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Trabalhar para quê?

Durante o século XVIII, os cercamentos na Inglaterra atingiram seu auge. Por vários séculos, tinha havidos casos em que as terras comuns a todos tinham sido cercadas pela nobreza para seu próprio uso. Isso criava dificuldades para a população rural, cuja subsistência em alguma medida dependia dos benefícios extraídos das terras comuns. No entanto, foi só no século XVIII que a violação dos seus privilégios fez com que um grande número de habitantes do campo fosse desenraizado e levado às vilas e cidades em busca de uma nova forma de subsistência. Foram essas pessoas que acabaram sendo absorvidas nas novas fábricas. Mal pagas e exploradas, elas se estabeleciam nos bairros mais pobres e nas periferias, dando origem às grandes favelas industriais do século XIX.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, do filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

 

À medida que a industrialização avançava, as privações enfrentadas pelos empregados foram mitigadas por jornadas de trabalho menores, salários maiores e um acesso mais amplo ao fluxo crescente de bens saídos das fábricas. Mas o meio século da transição do artesanato e da casa para a fábrica, depois de 1760, foi para os trabalhadores da Inglaterra um período de sujeição desumana às vezes pior do que a escravidão.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a Revolução Industrial

 

O homem que trabalha tão moderadamente de modo a conseguir trabalhar constantemente não só preserva sua saúde pelo maior tempo possível, mas ao longo do ano executa a maior quantidade de trabalho.

Trecho retirado do livro escrito pelo economista escocês Adam Smith (1723-1790), “A Riqueza das Nações”, que se tornou a bíblia da economia clássica ao estudar as várias forças que interagem dando origem à economia de um país.

 

Todo mundo, à exceção dos idiotas, sabe que as classes inferiores precisam permanecer pobres, caso contrário elas nunca serão diligentes.

Arthur Young (1741-1820), escritor inglês

 

Prezados leitores, minha vida útil está se esvaindo. Fui alcançada pela inteligência artificial, que faz meu trabalho com qualidade cada vez melhor, de maneira mais rápida e a um custo infinitamente menor. Estando marcada para morrer do ponto de vista ocupacional, sei que é questão de algum tempo até que eu seja demitida e por isso tenho criado na minha mente os cenários possíveis em que deixarei de ter emprego, no sentido clássico do termo, isto é vínculo empregatício com contribuições à previdência pelo empregador. Apesar da angústia que tal perspectiva suscita quando passamos de uma certa idade, sei que na hora H não chorarei na frente do meu chefe, nem deixarei mensagem de adeus aos colegas de serviço.  A certeza de que terei uma atitude estoica em relação ao pé na bunda é que sei que trabalho em uma empresa moderna e não em uma guilda. Isso faz toda a diferença em minha psiquê de trabalhadora. Explico-me.

As guildas eram organizações que surgiram na Idade Média e reuniam pessoas que começavam como aprendizes de um determinado ofício, fosse ele a carpintaria, a metalurgia, a marcenaria, a cutelaria, a pintura ou outro qualquer. Se trabalhassem bem e seguissem as rígidas regras vigentes, poderiam ascender até chegarem a mestres, quando então ensinariam a quem estivesse chegando. Cada guilda tinha sua própria missão e valores, como diríamos hoje em dia usando o palavrório gerencial, mas à época em que essas organizações floresceram isso era para valer: a guilda tinha o santo patrono, inclusive doava dinheiro para construir igreja em homenagem ao santo de sua devoção, e o pertencimento a uma guilda era um dos aspectos da identidade da pessoa, como era pertencer a uma tribo nas sociedades indígenas. O membro da guilda trabalhava em casa, com a família, usando suas próprias ferramentas e estabelecendo seu próprio ritmo ao sabor das pausas ao longo do dia e dos descansos nas datas ao longo do ano em que a Igreja Católica estabelecia que era proibido trabalhar.

Esse mundo de pertencimento a um grupo, de trabalho autônomo mas disciplinado que dava sentido à vida do membro da organização por dar-lhe uma identidade por meio da relação fiel e duradoura com os outros membros chegou ao fim com a Revolução Industrial, da qual a Inglaterra foi a pioneira. Pioneira por uma série de motivos. Em primeiro lugar, a Inglaterra conseguiu estabelecer colônias na América e na Ásia depois de ter derrotado seus principais concorrentes em termos de potência marítima, a Espanha em 1588, que ousou tentar invadir a Inglaterra com sua “Grande e Felicíssima Armada” e a Holanda nas chamadas Guerras Anglo-Holandesas, que duraram de 1654 a 1784. As colônias conquistadas tornaram-se fornecedoras de matérias-primas e consumidoras dos produtos fabricados pela metrópole. Em segundo lugar, a Inglaterra conseguiu estabelecer uma infraestrutura física consistente em canais e rodovias que permitiam o transporte da fonte de energia (carvão), das matérias-primas e dos produtos acabados. Em terceiro lugar, as Ilhas Britânicas contaram com inventores que criaram equipamentos para mecanização da produção e para a geração de força motriz de maneira eficiente e ininterrupta de modo que o maquinário pudesse funcionar dia e noite, o exemplo mais célebre sendo a máquina a vapor do escocês James Watt (1736-1819). Por último, a Inglaterra conseguiu criar um vasto contingente de mão de obra ao tornar as guildas obsoletas e forçando o êxodo rural.

Conforme Bertrand Russell explica no trecho que abre este artigo, os cercamentos de terras comuns que se intensificou no século XVIII levou à criação de grandes propriedades particulares que tornaram impossível a um indivíduo que não tivesse fonte de renda sobreviver, pois barrava qualquer possibilidade de caça de animais, a coleta de produtos comestíveis da natureza ou a colheita em um  humilde roçado. Condenado a passar fome no campo, esse infeliz migrava para as cidades à procura de trabalho que lhe desse dinheiro para comer e vestir-se. Ora, iria ele dirigir-se a uma guilda? Em pleno século XVIII, esse modo de produção caseiro, em que o trabalhador era responsável por todas as etapas da produção até chegar ao produto acabado, não era suficientemente eficiente para gerar a quantidade de produtos que atendesse à crescente demanda a preços acessíveis para um grande número de pessoas. A solução encontrada foi o trabalho nas fábricas, onde quem mandava não era o mestre que ensinava o ofício, mas o capitalista, que arregimentava o capital para comprar e instalar o maquinário que permitia produzir bastante e barato.

Will Durant explica as diferenças entre o trabalho artesanal nas guildas e o trabalho mecanizado nas fábricas. Quem ditava o ritmo não era o trabalhador e suas necessidades materiais, fisiológicas e espirituais. Era o maquinário, que estava sempre funcionando movido pelo vapor de James Watt. Daí que os operários trabalhavam de 12 a 14 horas por dia, seis dias por semana. E para que se acostumassem a esse regime totalmente estranho a pessoas que antes trabalhavam alguns dias na semana e folgavam nos dias santos, recebiam magros salários, que os obrigavam a ir trabalhar todos os dias, sob pena de não terem o suficiente para subsistir. No trecho que abre este artigo, Arthur Young dá a receita para colar os operários às máquinas, por mais duro que fosse acostumar-se a isso: pagar mal para tornar as pessoas dependentes e assim não lhes dar opção senão a de encaixarem-se na linha de produção de alguma fábrica, realizando uma única tarefa repetida milhares de vezes ao longo da jornada.

É verdade que, com o avanço da Revolução Industrial, os bens produzidos em larga escala se tornaram cada vez mais baratos e puderam ser adquiridos pelos trabalhadores, mas como mostra o trecho que abre este artigo a transição entre a produção artesanal e a produção manufatureira foi realizada à custa do sacrifício de uma mão de obra que trabalhava não para, entre outras coisas, adquirir uma identidade social pelo pertencimento a um grupo, mas simplesmente para não morrer de frio e de fome. Em suma, os operários do começo da Revolução Industrial foram as buchas de canhão do capitalismo, que permitiram a este florescer, criar riqueza e ao final de décadas finalmente aumentar a qualidade de vida de todos e não só dos capitalistas.

Prezados leitores, à luz dessas explicações históricas, meu estoicismo em face da minha iminente obsolescência fica compreensível? Em pleno século XXI somos os herdeiros desses trabalhadores do século XVIII desenraizados, explorados e sacrificados em prol da eficiência produtiva. Não temos relações pessoais com nossos empregadores, sabemos que somos descartáveis a qualquer momento porque é a tecnologia que dita os rumos do trabalho e não nossos direitos e deveres em relação ao mestre. Então o melhor a fazer é desapegar e tentar seguir a receita de Adam Smith: trabalhar de maneira constante, sem exageros, porque essa é a única chance de podermos continuar trabalhando o mais longamente possível. E para quê? Para sobreviver, isto é, para satisfazer nossas necessidades, as quais são bem mais complexas do aquelas dos camponeses, artesãos e operários do século XVIII. E para um dia podermos nos dar ao luxo de parar de trabalhar antes de morrer. Se quiserem algo mais motivador, abram sua própria guilda.


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