A felicidade das leis e dos calotes

Nas Histórias, Heródoto narra o suposto encontro entre Sólon e Creso, então rei da Lídia, em Sárdis, depois que ele deixou Atenas após a instituição das leis por ele reformadas. A conversa entre eles versa sobre a noção de felicidade, em que se contrastam duas concepções morais decorrentes de dois modos de vida distintos (a austeridade ateniense em oposição à opulência lídia): enquanto Creso identifica a felicidade com riqueza e poder, Sólon a entende como uma combinação de excelência moral, bens externos (como ter uma família bem constituída) e boa fortuna.

Trecho retirado de uma nota de rodapé à tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.), por Daniel R. N. Lopes

Parece incrível que nesta encruzilhada [final do século VII a.C.] da vida de Atenas, frequentemente repetida na história das nações, um homem tivesse sido encontrado que, sem nenhum ato de violência e nenhuma animosidade no discurso, conseguiu persuadir os ricos e os pobres a chegarem a um compromisso que não somente evitou o caos social, mas estabeleceu uma nova e mais generosa ordem política e econômica para todo o restante da vida independente de Atenas. A revolução pacífica de Sólon é um dos milagres encorajadores da história.

Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, de Will Durant (1885-1981), professor de filosofia e historiador americano

Nos séculos VII e VI a.C. a maior parte das cidades gregas foi deposta por líderes denominados tiranos. Eles basicamente eram reformistas que derrubaram as aristocracias locais fechadas, cancelaram as dívidas e redistribuíram a terra ao povo. Sólon aboliu a servidão por dívidas em Atenas em 594 a.C. (mas não fez reforma agrária) por meio “da destruição dos ônus,” sua seisachtheia, referindo-se ao ônus das dívidas.

Trecho retirado de entrevista do economista americano Michael Hudson (1939- ) a Martin North da Digital Finance Analytics em 20 de março de 2020

    Prezados leitores, vocês já ouviram falar dos Sete Sábios da Grécia? Foram em sua maior parte legisladores ou personagens que exerceram altos cargos públicos e cuja sabedoria se exprimia por meio de máximas morais ou práticas úteis na vida política da cidade. Para citar algumas delas, de autoria de Quilon de Esparta: “a virtude humana é prever o futuro na medida da capacidade da razão”; “controle sua língua, especialmente num banquete”; “não ultraje uma pessoa morta”; “respeite a velhice; “vigie a si mesmo”; “não deixe que a língua suplante o pensamento”; “não escarneça do infortúnio alheio”; “uma punição é preferível a uma vantagem vergonhosa, pois a primeira é dolorosa uma única vez, ao passo que a segunda o é pelo resto da vida”. Além de Quilon, esses sábios incluíam a figura de Sólon (640 a.C.-558 a.C.), estadista de Atenas, o qual será objeto deste humilde artigo por sua relevância para o momento presente.

    Sólon é conhecido por ter dado a Atenas uma constituição, isto é um conjunto de leis para a condução dos negócios da cidade, que se aplicavam a todos os homens livres, ricos e pobres, o que acabou lançando as bases para a democracia que floresceria na cidade no século V a.C.  Quando perguntado em que consistia um estado em ordem e bem constituído, ele respondeu: “Quando as pessoas obedecem aos governantes e os governantes obedecem às leis.”

     Essa submissão dos governantes a algo maior do que eles fica clara na história – citada na abertura deste artigo – que Heródoto conta a respeito de um suposto encontro entre o rei da Lídia, Creso e Sólon. Creso pergunta a Sólon se este não o considerava um homem feliz, já que ele tinha poder e riqueza.  Sólon responde que é temerário considerar um homem feliz, considerando o futuro incerto e as mudanças na fortuna que poderiam advir. Só pode ser considerado feliz a quem os deuses agraciaram com a felicidade até o fim.  Pavonear-se por sua prosperidade presente é uma insolência desarrazoada porque a vida do homem poderia mudar para pior. Aliás, o destino de Creso é emblemático a esse respeito, pois foi destronado pelo rei da Pérsia, Ciro, em 546 a.C.

    Assim, a boa fortuna era fundamental para a felicidade e tal fortuna não dependia do ser humano, portanto era preciso cultivar a humildade e não tripudiar sobre os outros. Para evitar que os ricos fizessem uso do seu poder e riqueza para esmagar os pobres e vulneráveis, Sólon cancelou todas as dívidas fossem elas devidas a particulares ou ao Estado. As pessoas presas ou escravizadas por dívidas foram soltas ou libertadas e conforme Michael Hudson explica em sua entrevista, citada na abertura deste artigo, Sólon inscreve-se na lista de líderes na Antiguidade que tinham a consciência de que dívidas impagáveis tinham que ser simplesmente canceladas. Obrigar as pessoas a honrar pagamentos à custa da sua própria subsistência ou de sua própria liberdade era lançar os germes da revolta social. O calote infligido aos credores pelo perdão das dívidas era o preço a pagar para que largas fatias da população não fossem depauperadas a ponto de cair na mais absoluta miséria e perderem a fé no sistema e o comprometimento com sua manutenção.

     É por essa razão que Will Durant chama Sólon de um milagre da história: em um momento em que os pobres endividados não acreditavam nas leis e na justiça que sempre decidia a favor dos ricos e em que os ricos sofriam as consequências do calote de dívidas que só podiam ser pagas com o sangue, o suor e as lágrimas dos devedores, as reformas de Sólon criaram previsibilidade que por seu turno gerou prosperidade para todos. A previsibilidade de leis aplicáveis a todos que substituíram uma miríade de  decretos incalculáveis e eternamente mutáveis, e a previsibilidade do perdão de dívidas que permitiram aos pobres sair do círculo vicioso do endividamento e da penúria material e assim melhorar suas perspectivas.

    Prezados leitores, Michael Hudson defende que a receita de Sólon seja aplicada nos Estados Unidos aos indivíduos que devem mais do que o valor do seu patrimônio e aos Estados soberanos que seguem a cartilha do FMI para impor a austeridade a suas populações para permanecerem bons pagadores aos credores. Segundo ele, só livrando os cidadãos do peso de dívidas impagáveis é que se pode começar a construir uma nova economia baseada não nas operações financeiras, mas sim na produção de coisas reais.

    Essa nova economia, não financeirizada, melhorará a situação do povo porque ela tornará a vida menos incerta, mais previsível e pronta para ser iniciada de novo, livre do fardo das dívidas. Oxalá que Javier Milei, o novo presidente da Argentina, ouça falar de Sólon e de sua fórmula para evitar a revolta social e a divulgue ao FMI, quando for renegociar a divida impagável do país com seus credores internacionais. Como todo sábio digno de nome, Sólon deixou-nos um legado de lições pertinentes em qualquer época: meden agan, nada em excesso, nem dívidas nem leis. Aproveitemo-lo!

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O melhor ou o pior dos mundos possíveis?

Quais são os valores do Iluminismo, os ideais do Iluminismo? Em resumo, é o ideal de que devemos utilizar a razão para aumentar o florescimento humano. O que quero dizer com “razão”? Discussão aberta, ciência, história, avaliação das ideias. E os frutos da razão foram implementados em determinadas instituições, particularmente na democracia liberal, nos mercados regulados e nas instituições internacionais. Esse é em resumo, o Iluminismo. O que quero dizer com florescimento? Bem, quero dizer coisas que queremos para nós mesmos e não podemos negar aso outros: vida, saúde, subsistência, prosperidade, paz, liberdade, segurança, conhecimento.

Trecho de autoria do professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-), em seu debate com o professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-)

Como você consegue obter progresso moral e político se você não chega à verdade, se você tem uma situação em que os indivíduos não conseguem chegar a um acordo sobre os princípios fundamentais?

Trecho de autoria do professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-) em seu debate com o professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-)

Todo o conhecimento será subdividido e ampliado; e sendo o conhecimento, como observa Lord Bacon, poder, os poderes humanos de fato aumentarão; a natureza, incluindo tanto seus materiais quanto suas leis, ficarão mais sob nosso domínio; os homens farão sua situação neste mundo tremendamente mais fácil e confortável; eles provavelmente prolongarão sua existência nela, e ficarão a cada dia mais felizes, cada um por si mesmo, e mais capazes de comunicar a felicidade aos outros (e, creio eu, mais dispostos a fazê-lo). Assim, qualquer que tenha sido o começo deste mundo, o final será glorioso e paradisíaco além do que nossa imaginação pode conceber agora… Felizes são aqueles que contribuem para a difusão da pura luz deste evangelho eterno.

Trecho retirado do livro “História das Corrupções da Cristandade” (1782), de autoria de Joseph Priestley (1733-1804), teólogo e cientista britânico, descobridor do oxigênio, citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Prezados leitores, antes de mais nada é preciso fazer um esclarecimento. Segundo Thomas Kuhn, há três indivíduos que podem ser considerados os descobridores do gás oxigênio, o apotecário sueco Karl Wilhelm Scheele (1742-1786), Joseph Priestley e o químico francês Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794). Todos os três obtiveram, por meio de experimentos, uma amostra relativamente pura do gás, mas Lavoisier levou os louros porque ele deu ao gás um nome, derivado do grego, que quer dizer um gerador de ácidos, porque Lavoisier considerava erroneamente que o oxigênio era um elemento constituinte indispensável de todos os ácidos. Dando esse nome Lavoisier acabou por enterrar de vez a teoria do flogístico, que segundo acreditavam os químicos da primeira metade do século XVIII, era um fluido liberado no ar a partir da queima de uma substância.

O fato é que ao passo que Priestley ainda acreditava na teoria do flogístico e considerou que o gás que ele obteve era ar sem o flogístico, Lavoisier percebeu por meio de seus experimentos que na verdade na combustão o material que queimava retirava algo do ar, o oxigênio, não liberando nada. Essa capacidade de dar um passo além em termos conceituais foi fundamental para que Lavoisier fosse um dos pais da química moderna, ao conseguir explicar melhor o fenômeno da combustão. Quanto a Scheele, o problema dele foi que não publicou seus resultados a ponto de ter alguma influência sobre o trabalho de seus colegas do mundo da ciência.

Feitos esses esclarecimentos sobre a epítome dada a Priestley de descobridor do oxigênio, independentemente da maior ou menor contribuição dele à química moderna, o fato é que o cientista britânico era um entusiasta da ciência, para ele a única força capaz de criar uma utopia na Terra, se ela vencesse a superstição e a ignorância. Conforme o trecho que abre este artigo, a ciência traria conhecimento ao homem e lhe conferiria poder sobre o mundo, de modo a livrá-lo dos males da doença e da morte e levá-lo a uma vida mais feliz, que seria livre dos medos atávicos e esperançosa no futuro, o qual tinha muito mais chances de concretizar-se. E o homem que vivesse mais e melhor, sendo mais feliz, comunicaria essa felicidade aos próximos: um círculo virtuoso se construiria sob o condão da vitória da ciência.

Não é menos inabalável o otimismo de um dos principais divulgadores da filosofia Iluminista no século XXI, o psicólogo canadense Steven Pinker. Conforme ele explica na discussão citada na abertura deste artigo, o Iluminismo é o cultivo da razão (cotejo de ideias para a maior aproximação possível da verdade) para que o homem conquiste bens materiais e imateriais, como prosperidade, saúde, segurança, liberdade e paz. Essa razão em prol do florescimento humano concretiza-se em um determinado ambiente político, econômico e institucional. Ele é constituído de democracia para haver o embate de ideias e a obtenção de consensos possíveis, de mercados em que o indivíduo tenha a liberdade de empreender e de oferecer sua força de trabalho, e de instituições que possibilitam que a democracia e os mercados funcionem sem impedimentos.

E no entanto, o intelectual com o qual Steven Pinker debateu a respeito do Iluminismo, John Mearsheimer, tem lá suas dúvidas sobre essa receita de sucesso, formada por razão + conhecimento + ciência = bem-estar material e espiritual. Pois o fato é que a razão livre de restrições determinadas pelos dogmas religiosos e pelas superstições não fundadas na realidade não é unívoca. Diferentes pessoas, igualmente educadas, podem ter visões diametralmente opostas, a depender de seus valores fundamentais. Para o cientista político, se não há acordo sobre o que é a boa vida sob o ponto de vista ético, não haverá o compartilhamento de uma verdade ancorada em uma visão do modo como devemos viver neste mundo e portanto, não haverá progresso político nem moral: as pessoas, os Estados, as civilizações continuarão a disputar entre si porque eles não conseguem se entender sobre o que é certo e o que é errado. A concepção Iluminista de uma razão transparente, acessível a quem quer que estivesse disposto a livrar-se dos dogmas religiosos, cai por terra quando consideramos a diferença de concepções embutidas nas diferentes ideologias espalhadas pelo mundo, seja o liberalismo ocidental, o islamismo do Oriente Médio, o confucionismo chinês, o cesaripapismo russo, o teocraticismo vigente em Israel e no Irã.

Prezados leitores, os ideais do Iluminismo, colocados em prática primeiro no Ocidente e depois espalhados pelo mundo, levaram a prosperidade a centenas de milhões de indivíduos na China e na Índia, países que agora colhem os frutos da sua importação da receita de sucesso. Afinal, de acordo com o FMI, a China é a segunda economia mundial e a Índia a quinta. Por outro lado, será que fizemos progressos morais e políticos utilizando a razão? Ou a razão livre para florescer acaba criando as mais variadas e conflitantes ideologias?

Conforme já comentado neste humilde espaço, Israel, que já matou ao menos 50.000 palestinos desde 7 de outubro, a maioria deles (70%) mulheres e crianças, considera-se paladino da civilização contra a barbárie. O que há de civilizado nessa matança? Não estará aqui o governo israelense simplesmente racionalizando seu desejo de vingança e de extermínio do povo palestino usando o véu da luta contra o terrorismo? Será que algum dia haverá um consenso sobre o que fazer no Oriente Médio com base na razão? Ou a razão livre e desimpedida só levará à construção de dogmas políticos e religiosos pelas respectivas partes? Nesse sentido, será que vivemos no melhor dos mundos possíveis em termos dos confortos materiais disseminados cada vez mais no mundo e ao mesmo tempo no pior dos mundos possíveis, pois cada um tem a liberdade de ter sua própria opinião sobre tudo e sente-se no direito de defendê-la contra aqueles que com ela não concordam? Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso tenhamos uma visão mais crítica das utopias na Terra prometidas por Priestley no século 18 e por Pinker no século XXI.

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Confúcio e a ética do cavalheiro

[…] Confúcio, como outros professores da antiguidade, tinha por objetivo criar uma sociedade estável, mantendo um certo nível de excelência, mas nem sempre lutando para obter novos sucessos. Nisso ele foi mais bem-sucedido do que qualquer outro homem que já passou pela face da Terra. Sua personalidade marcou a civilização chinesa desde seus dias até os dias atuais. Durante a vida de Confúcio, os chineses ocupavam somente uma pequena parte do território atual da China e eram divididos em uma série de estados beligerantes. Durante os próximos trezentos anos, eles se estabeleceram no que hoje é considerada a China e fundaram um império que ultrapassava em termos de extensão e população qualquer outro que existiu até os últimos 50 anos. […] Na essência, o que Confúcio prega é algo muito parecido com o ideal ultrapassado do “cavalheiro”, conforme existia no século dezoito.

Trecho retirado de “Ideais de Felicidade”, ensaio incluído na coletânea de “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), o qual tece considerações sobre o sistema ético chinês em contraposição ao ocidental

Porque é impossível descrever a maneira bonita pela qual tudo nas leis dos chineses, mais do que em qualquer outro povo, tem como objetivo a conquista da tranquilidade pública… O estado das coisas aqui, à medida que a corrupção espalha-se entre nós de maneira desmedida, parece-me tal que pareceria quase necessário que missionários chineses fossem enviados a nós para nos ensinar o uso e a prática da religião natural, da mesma maneira que nós enviamos missionários a eles para lhes ensinarem a religião revelada. De maneira que considero que se um homem sábio fosse escolhido para julgar… a excelência dos povos, ele iria dar o prêmio máximo aos chineses […]

Trecho do livro “Novissima Sinaica”, do filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, em março de 2022 em “Confúcio e a algocracia” eu explorei as raízes dessa invenção chinesa, o crédito social, na ética confuciana. À época argumentei que para o filósofo chinês Confúcio (551 a.C.-479 a.C) não poderia haver uma sociedade ordenada e pacífica sem que cada indivíduo, em suas relações familiares, pessoais e profissionais, tivesse as atitudes corretas, então controlar o comportamento de cada pessoa ao final resultaria na construção daquele ideal almejado de ordem, paz e prosperidade. No Ocidente, o crédito social é considerado o símbolo do totalitarismo chinês, pois permite o controle pelo Estado de tudo o que o cidadão faz e consome. Meu objetivo nesta semana é mostrar que os princípios que embasam esse sistema de pontuação para o bom comportamento podem ser uma fonte de liberdade e da única ética possível para os seres humanos, isto é, aquele que não é contrária à nossa natureza e afinidades naturais. Para isso vou basear-me nas considerações de Bertrand Russell sobre a ética confuciana, da qual ele era um grande entusiasta.

    No ensaio “Ideais de Felicidade”, o filósofo inglês estabelece como uma das diferenças cruciais entre a ética ocidental e a ética chinesa a ideia, fundada na Bíblia, de um pecado original, isto é, de que todo homem nasce corrompido, tão corrompido que ele merece a punição eterna. Uma série de consequências surge desse pecado original. Se o homem é naturalmente mau, o objetivo da ética é o de controlar os seus próprios impulsos e tentar controlar os impulsos alheios, de maneira que não basta ao homem ético abandonar os prazeres, mas também garantir que as outras pessoas também o façam.

Para Russell, essa é uma receita certa para a hipocrisia, pois os impulsos naturais não são facilmente domados, então o homem busca racionalizações para explicar para si mesmo e aos outros o porquê de não ter atingido o ideal de bom comportamento. Pior, essa hipocrisia envolve também agir da maneira mais antiética possível, chafurdando nos mais baixos instintos como se estivesse atuando como um santo, pois tem uma sublime explicação para fazê-lo. Os guerreiros cruzados, que nos séculos XI, XII e XIII lutaram na Palestina em nome de Cristo, matando, pilhando e destruindo, são o exemplo acabado dessa dissonância entre o ideal ético abstrato, incompatível com o homem real, e o comportamento prático.

    Uma segunda consequência da crença no pecado original do homem para Bertrand Russell é que as diferenças de opinião entre os ocidentais se transformam rapidamente em questões de princípio: cada lado considera que o outro lado é malévolo e qualquer compromisso com o partido oposto significa compactuar com sua malignidade. Nesse sentido, é muito mais difícil submeter as diferenças a argumentos e à razão, porque a visão maniqueísta do bem contra o mal obscurece qualquer nuance e leva a uma disposição maior a recorrer à força para resolver disputas, já que estas logo se tornam ferozes pela invocação de conceitos absolutos como o bem e o mal.

    A esse mito do pecado original, cultivado no Ocidente, o filósofo inglês contrapõe a falta dessa noção de que todos somos irremediavelmente pecadores entre os chineses. Daí surgir o ideal confuciano do cavalheiro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. O cavalheiro não está obrigado a fazer coisas excepcionais que exijam um grande autocontrole. Não se está aqui a pedir que o homem reprima sua natureza e suas simpatias: Confúcio não pede que o pai denuncie o filho ou que o filho denuncie o pai, pelo contrário, ele considera errado fazer isso, pois os laços familiares devem sempre ser reforçados, a família sendo a unidade básica da sociedade.

    Além disso, o cavalheiro não precisa amar a humanidade, pois isso não é possível. Basta que ele trate a todos de maneira polida, evitando ser briguento e quando disputar algo com alguém deve pedir a mediação de um terceiro para resolver o conflito. E resolver o conflito não é dar razão a uma parte em detrimento da outra: é chegar a um meio-termo que salve as aparências para ambas isto é, que evite que elas sejam humilhadas e permita que ambas possam seguir em frente, tendo preservado sua dignidade. Segundo Russell, essa ênfase no compromisso faz com que a vida social e política na China seja bem menos implacável que no Ocidente, aferrado a princípios morais abstratos de difícil concretização, como amor universal e perdão.

    Essas explicações sobre a ética confuciana do cavalheiro permitem-nos entender a que Leibniz se refere no trecho que abre este artigo, quando fala da religião natural praticada pelos chineses, em contraposição à religião revelada dos ocidentais, a qual temos como ideal, mas que raramente colocamos em prática. A religião natural, incentivando a tolerância e o respeito mútuos, não pedindo mais do cavalheiro do que ele pode dar, estimulando as fidelidades familiares provou ser uma receita mais duradoura de ordem e paz do que aquela testada no Ocidente, afinal o Império do Meio existe como país unificado desde o século VI a.C., o que não é o caso de nenhum país da Europa ou das Américas.

    Prezados leitores, em um tempo tão polarizado como o nosso, em que um país como os Estados Unidos se vê como excepcional, em que Israel vê-se participando de um embate contra as forças do mal, representadas pelos terroristas sanguinários do Hamas, e em que muitos islâmicos querem empreender a jihad contra os infiéis, será que esse pragmatismo confuciano dos objetivos modestos em prol de conquistas mais duradouras não é uma proposta mais civilizada? Será que ela não evitaria a conflagração mundial que a cada dia parece mais perto? Bertrand Russell, grande pacifista de sua época, que foi preso por protestar contra a Primeira Guerra Mundial e lutou toda sua vida contra os princípios absolutos, certamente diria que sim.

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Grande homem ou herói?

“Aqui está uma morte digna!” disse Napoleão ao fitar Bolkonski.

O Príncipe André percebeu que a frase era a respeito dele, e que era Napoleão quem falava. Ele ouviu o falante ser interpelado como Senhor. Mas ele ouviu as palavras como se tivesse ouvido o zumbido de um mosquito. Não somente elas não o interessavam, como não prestou atenção a elas e imediatamente as esqueceu. A cabeça dele ardia, ele se sentia sangrando até a morte, e via acima de si mesmo o céu remoto, imponente e eterno. Ele sabia tratar-se de Napoleão – seu herói – mas naquele momento Napoleão parecia uma criatura tão insignificante em comparação com o que estava se passando então entre ele e aquele majestoso infinito com as nuvens que voavam no céu. Naquele momento não importava nada para ele quem estava em pé ao lado dele ou o que era dito dele; ele estava simplesmente feliz que havia pessoas ao seu lado e somente desejava que elas o ajudassem e o trouxessem de volta à vida, que lhe parecia tão bonita agora que ele aprendera a entendê-la de maneira diferente. Ele reuniu todas as suas forças para mover-se e emitir um som. Ele moveu debilmente a perna e emitiu um grunhido fraco e mórbido que o fez sentir pena de si mesmo.

Ah! Ele está vivo”, disse Napoleão. “Levantem esse jovem e levem-no à enfermaria.”

Trecho do livro “Guerra e Paz” do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) em que o personagem André Bolkonski encontra-se entre os feridos da Batalha de Austerlitz (1805), em que Napoleão Bonaparte (1769-1821) venceu os exércitos da Áustria e da Rússia

Nada além de um nome permanece daqueles que comandaram batalhões e frotas; nada resulta para a raça humana de cem batalhas ganhas; mas os grandes homens dos quais falei prepararam delícias para gerações ainda por nascer. Um canal que liga dois mares, um quadro de Poussin, uma bela tragédia, uma verdade descoberta são coisas mil vezes mais preciosas do que todos os anais da corte, todas as narrativas de guerra. Eu chamo de grandes homens todos aqueles que se sobressaíram no útil e no agradável. Os destruidores de províncias são simplesmente heróis.

Trecho de uma carta escrita em 1736 pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

O filme trata de maneira superficial os saques em escala industrial de Napoleão e seu hábito de partir rapidamente quando o seu exército tinha algum problema. Ainda assim, o veredito de Ridley Scott sobre seu personagem, como marido e líder, é cruel. Para os defensores de Napoleão, ele foi um grande defensor do Iluminismo e um romântico inveterado. Nesta encarnação ele é um belicista e um animal.

Trecho retirado do artigo “O complexo de Napoleão”, publicado na edição de 18 de novembro da revista The Economist sobre “Napoleão”, o filme de Ridley Scott

    Prezados leitores, um dos itens do ”Sobe” da revista VEJA desta semana é o filme “Napoleão”, que liderou as bilheterias de cinema do Brasil. O filme narra a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte, uma das figuras históricas sobre as quais mais livros foram escritos até hoje. Como atualmente os livros não são lá apreciados, a quem tem alguma curiosidade histórica assistir a filmes biográficos pode ser uma via de obtenção de conhecimento. A criação de Ridley Scott tem como foco as batalhas travadas pelo corso tornado general, cônsul e imperador.

    É uma opção que faz sentido do ponto de vista cinematográfico, considerando os recursos de inteligência artificial à disposição dos cineastas: as cenas são estupendas porque tem-se uma visão de cima que mostra a disposição dos milhares de soldados e uma visão dos detalhes da guerra: os cavalos feridos, os corpos crivados de balas afogando nos lagos cobertos de gelo. É de se esperar que, depois de quase três horas de filme, o espectador saia do cinema convencido de que Napoleão adorava guerras, conforme descreve a resenha da revista “The Economist” citada na abertura deste artigo, ainda mais que ao final apresenta-se o número de mortos das principais batalhas travadas por Napoleão, que totaliza ao redor de três milhões de pessoas durante quase 20 anos de campanhas militares.

    Nesse sentido, o veredito de Ridley Scott, um britânico, de que Napoleão buscou o poder e a glória à custa da vida de milhões de pessoas, para no final acabar seus dias de maneira patética em uma ilha no meio do Atlântico, coincide com a opinião que o filósofo francês Voltaire teria do personagem se o tivesse conhecido. Afinal, conforme o trecho que abre este artigo, Voltaire não dava valor nenhum aos que ganhavam guerras, porque eles só deixavam um rastro de destruição. Grandes homens eram aqueles que deixavam um legado para a humanidade tanto do ponto de vista espiritual isto é, na ciência, na literatura, nas artes, na filosofia, quanto do ponto de vista material isto é, na construção de obras e instituições que contribuíssem para o progresso da humanidade.

    E que progresso era esse? Voltaire desenvolve no livro “Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações desde Carlos Magno até os nossos dias” (1769) um conceito de como seria esse progresso e assim estabelece uma filosofia da história, no sentido de um princípio fundamental que determinava a aventura humana no planeta azul. A história seria o lento avanço do homem, cheio de trapalhadas, de idas e vindas, da ignorância para o conhecimento, dos milagres para a ciência, da superstição para a razão. Para o filósofo que foi um crítico feroz da religião católica na França, não havia atuação de nenhuma providência divina nos assuntos humanos, para que eles caminhassem rumo aos desígnios inescrutáveis de uma entidade sobrenatural. O sentido da história era dado pelo espírito subjacente à criação humana por excelência, a civilização, que tinha seus próprios valores, costumes, modos de agir e de pensar, maneiras de apreciar a beleza e de atingir o transcendente por meio da arte. O produto eterno de cada civilização que o homem conseguiu criar na face da Terra eram as manifestações do intelecto, em qualquer área.

    Considerando essa grande corrente subjacente que dava identidade à civilização e era o motor dos empreendimentos humanos, e portanto, da história, um homem como Napoleão era irrelevante no grande esquema das coisas, porque era simplesmente um gênio militar, não um gênio do espirito. Gênio militar porque ganhou 90% das batalhas que travou, mas um animal do ponto de vista do espírito da história, porque seus empreendimentos bélicos não construíram nada e com a derrota de Waterloo em 1815 a França acabou ficando com um território menor do que aquele que tinha antes da ascensão do corso “parvenu” ao poder.

    Voltaire viveu no século XVIII, Napoleão construiu sua biografia no século XIX. Se Voltaire o tivesse conhecido, como conheceu o belicista da sua época, o rei da Prússia Frederico, o Grande, sua atitude provavelmente seria aquela de distanciamento que André Bolkonski tem em seu momento de epifania, citado na abertura deste artigo. Crente que está a ponto de morrer dos ferimentos recebidos na Batalha de Austerlitz, que foi o ápice da carreira militar de Napoleão Bonaparte, Bolkonski começa a dar valor à vida de uma maneira que nunca havia feito antes. Poder apreciar o céu deitado na relva torna-se de repente mais importante do que os sonhos de grandeza que ele nutrira ao alistar-se no Exército Russo para lutar contra a Grande Armée francesa, imbuído de admiração pelas façanhas do corso que não perdia nunca. E quando Bolkonski vê Napoleão em carne e osso, em vez de ficar embasbacado ante a aparição de seu ídolo, ele o ignora em prol da singela experiência de olhar para o céu porque continua vivo.

    Grande homem ou herói? É certo que por tudo que foi dito aqui Napoleão se encaixa na categoria desprezível de herói, estabelecida por Voltaire. E no entanto, é inegável que algo ficou das aventuras do corso: o Código Civil que entrou em vigor em 1804 na França e espalhou-se pela Europa e pela América Latina ao longo do século XIX. Com modificações, ele ainda vige em todos os países nos quais foi implantado. Sob essa perspectiva, dar um veredito final sobre um personagem complexo como Napoleão Bonaparte é tarefa inútil, e sempre haverá os detratores que realçam seus vícios e os admiradores que se detêm sobre suas virtudes.

    Prezados leitores, uma coisa é certa: se Napoleão contribuiu para superar o caos e a violência desencadeados pela Revolução Francesa e a consolidar as conquistas dela em termos de direitos humanos, a despeito do seu rastro de destruição ele contribuiu para a civilização viabilizando o progresso das trevas para a luz de que fala Voltaire. Nesse sentido, ele não é só um herói bélico, mas um grande homem. Portanto, se forem assistir ao filme de Ridley Scott, lembrem-se que o personagem ali montado é apenas um recorte do homem de carne e osso que deu uma grande contribuição para a França superar definitivamente o obscurantismo da Idade Média para entrar nas luzes da Idade Moderna.

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Guerra… e a Paz?

Cada classe e cada país sempre garante para si a maior parcela possível da riqueza, e no final das contas são as forças armadas que decidem qual o tamanho dessa parcela. […] Assim, eu presumo que a autoridade central será criada pela força, ou pela ameaça da força, não por uma organização voluntária como a Liga das Nações, que nunca será forte o suficiente para coagir as Grandes Potências recalcitrantes.

Trecho retirado do ensaio “Algumas Perspectivas” escrito pelo filósofo Bertrand Russell (1872-1970) e incluído na coletânea dos seus “Ensaios Céticos”, publicados em 1928

Maquiavel não entendeu a verdadeira natureza do soberano… Longe de ser o senhor absoluto daqueles que lhe são subordinados, ele é somente o primeiro dos seus servidores, devendo ser o instrumento do seu bem-estar, assim como eles são o instrumento da sua glória.

Trecho retirado do livro “Refutação do Príncipe de Maquiavel”, escrito em 1739 pelo príncipe herdeiro da Prússia, Frederico (1712-1786), sob a influência do filósofo francês Voltaire (1694-1778), citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Parece claro e evidente para mim que um indivíduo deve manter sua palavra de maneira escrupulosa…Se ele for enganado ele pode pedir a proteção das leis… Mas a que tribunal o soberano pode recorrer se outro príncipe viola os compromissos feitos a ele? A palavra de um indivíduo implica o infortúnio de um único homem; aquela de um soberano pode causar uma calamidade geral em toda uma nação. Tudo isso pode ser reduzido a uma pergunta: é melhor que as pessoas pereçam do que o príncipe violar um tratado? Que imbecil hesitaria em decidir essa questão?

Trecho retirado do livro póstumo “História do meu Tempo” escrito pelo rei Frederico II (1740-1786) da Prússia, chamado de Frederico o Grande

    Prezados leitores, na semana passada citei Alistair Cooke, ex-embaixador britânico, e o citarei novamente nesta semana. De acordo com ele, no artigo “O Chapéu do Mágico e o Grande Simulacro do Bálsamo Paliativo” a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ofereceu 10 bilhões de dólares ao Egito e 5 bilhões de dólares à Jordânia para que aceitem receber os palestinos residentes na Faixa de Gaza, que está sendo bombardeada pelos israelenses desde o ataque do Hamas em 7 de outubro. O objetivo então parece ser facilitar a concretização da solução final de Israel que é se livrar dos palestinos e criar o Grande Israel da Bíblia, conforme expliquei aqui na semana passada.

    De acordo com Ron Unz em seu site, até agora pelo menos 14.000 habitantes de Gaza já morreram, dois terços deles mulheres e crianças, fora os que estão sob os escombros das construções destruídas. Será que os 2 milhões e 300 mil palestinos que lá viviam até outubro irão ser desalojados definitivamente e abrigados em tendas no deserto do Sinai? Será que perderão definitivamente qualquer ligação com a Terra da Palestina? Os governantes do Egito e da Jordânia teriam recusado a oferta, mas de repente se Dona Úrsula aumentar as cifras eles acabem aceitando e será a pá de cal no Estado Palestino. Os despossados palestinos, sem terem a proteção de nenhum Estado forte, sofrerão a derradeira e a maior das injustiças ao longo dos 75 anos de conflitos pelo território.

    Se formos olhar para a história esse é um destino comum a outros povos obliterados pela incapacidade de resistir à força das armas. Não devemos nos espantar, mas apenas lamentar como Yasser Arafat, o líder da Organização para a Libertação da Palestina o fez, lembrando dos índios americanos e do desejo dele de que o seu povo não tivesse o mesmo fim trágico. Poderíamos argumentar que se tivéssemos partes em conflito menos sectárias e dogmáticas, como é o caso do governo de direita capitaneado por Benjamin Netanyahu em Israel e o Hamas teríamos uma chance de paz.

    No entanto, a análise da trajetória de um príncipe enciclopédico como Frederico o Grande, que conversava sobre as artes, a guerra, a medicina, a literatura, a religião, a filosofia, a moral, a história e as leis, tocava flauta e escrevia poemas em francês nas horas vagas e manteve uma correspondência profícua com um intelectual do porte de Voltaire mostra que a realidade da capacidade ou da aptidão para a guerra e a paz é complexa.

    Conforme o trecho que abre este artigo, antes de suceder ao pai Frederico Guilherme I (1688-1740), Frederico, o Grande cultivava ideais iluministas de governar com justiça, clemência e bondade para o bem-estar do povo. A conquista e manutenção do poder à moda maquiavélica, isto é, a qualquer custo, mesmo ao custo da destruição e da miséria do povo, lhe eram repugnantes. E ao ascender ao poder, em 1740, Frederico praticou essas virtudes que ele exaltou em seu livro contra Maquiavel. Diante da safra ruim que se esperava no verão ele ordenou a venda de grãos a preços razoáveis aos pobres, aboliu o uso da tortura em processos criminais, ordenou que todas as religiões fossem toleradas e que nenhuma tivesse a liberdade de se impor à outra. Além disso, sob a influência de Voltaire, seu amigo, Frederico o Grande deu novo ímpeto à Academia de Ciências de Berlim.

    Tudo muito de acordo com o modelo de um rei-filósofo, livre das superstições e evitando perseguir pessoas por suas crenças. Mas no mesmo ano em que Frederico assumiu o poder na Prússia o Imperador do Sacro Império Romano Germânico, rei da Hungria, Croácia e Boêmia, Arquiduque da Áustria, Carlos VI (1685-1740) morria sem ter herdeiros masculinos, só uma filha Maria Theresa (1717-1780), cuja herança foi contestada. Não me cabe aqui descrever todos os detalhes da Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), basta dizer que Frederico, depois de aliar-se ora a um país ora a outro, conforme as conveniências do momento, renegar tratados firmados e invadir a Silésia, que era parte dos domínios do imperador morto, acabou conseguindo ficar com a região para si. Foi assim que o rei-filósofo se transformou no rei-soldado. Mas como sua mente não havia desaprendido as lições absorvidas antes, Frederico justificou sua adesão a Maquiavel.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, o rei da Prússia passou a considerar que a moral que rege a vida de um indivíduo não pode reger a vida de um Estado soberano. Afinal o indivíduo, se tiver seus direitos violados, pode recorrer à justiça do país, de forma que há um incentivo para que as pessoas ajam corretamente, do contrário serão punidas. Mas qual o incentivo para um Estado cumprir as obrigações firmadas em um tratado assinado com um aliado? Afinal, se o aliado não cumprir sua parte do acordo, a quem recorrer para fazê-lo cumprir? Há por acaso uma instância supranacional que possa ser acionada para fazer os recalcitrantes seguirem a lei? Não havendo quem imponha a obediência, não é melhor cada Estado proteger-se cumprindo obrigações com outros Estados soberanos só quando isso lhe for vantajoso ou pelo menos não lhes prejudicar? O que se ganha na cena internacional em seguir princípios éticos se isso pode diminuir o poder e a riqueza de um país? A ética vale mais do que o bem-estar do povo do qual o soberano tem a responsabilidade de cuidar?

    Um outro filósofo, este do século XX, fez a mesma constatação da onipresença da força nas relações internacionais, mas ao contrário do rei da Prússia, propunha um caminho para a paz. Em seu ensaio “Perspectivas”, escrito sob a influência da disputa entre capitalismo e socialismo em voga na década de 1920, Bertrand Russell defende que, como contraponto à força da guerra representada pelas disputas militares entre os países por recursos, uma força da paz deveria ser imposta a todos os Estados. Seu objetivo seria o de impedir a proliferação de conflitos pelo mundo e ela teria eficácia justamente por ser um exercício de poder em prol da coletividade e não de um determinado país.

    As palavras de Russell sobre a Liga das Nações, que depois de 1945 foi rebatizada de Organização das Nações Unidas, revelam-se prescientes sobre a situação de hoje. A ONU, por ser uma organização voluntária, não tem a força necessária para impor a ordem e nunca terá, de acordo com o filósofo inglês. Nosso destino, independentemente do nível de cultura dos governantes, parece ser o da guerra. E a paz, onde ficará? No século XXI ela ficará sob os escombros de Gaza?

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