Crimes sem castigo

Não se pense que, por afrontarem os padres como afrontavam, os habitantes da vila fossem menos religiosos. Ao contrário, era um povo temente aos céus, e capaz de manifestações tremendas para conseguir seus favores, como provam os testamentos da época, documentos de valor inigualável para jogar alguma luz nos desvãos das consciências da época. […] Vender índio, à luz do dia, com registro em documento, pouco se ousa, mas o repasse, nos atos sucessórios, é praticado sem constrangimento, e tem justificativa nos “usos e costumes da terra”

Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo

 

Ameaçando os homens com poderes invisíveis, eles [a Igreja e o Estado] força-os a sofrer em silêncio as misérias com as quais os poderes visíveis os afligem. Eles são levados a esperar que se concordarem em ser infelizes neste mundo serão felizes no próximo.

Trecho retirado do livro “O Cristianismo Exposto” do filósofo francês de origem alemã Paul Henri Dietrich dꞌHolbach (1723-1789)

 

DꞌHolbach rejeita a ideia cristão-voltairiana de que o homem nasce com o sentido do que é certo e o que é errado. A consciência não é a voz de Deus, mas do policial […] O melhor a que podemos aspirar é uma consciência formada por uma melhor educação, pelo hábito adquirido de olhar para os efeitos que nossas ações têm sobre os outros e sobre nós mesmos e por uma opinião pública mais saudável que um indivíduo inteligente hesitará em ofender.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada, para marcar a celebração dos 470 anos da cidade de São Paulo, lembrei da origem da cidade ligada às relações de amor e ódio entre os jesuítas, que no alto do morro do qual se avistavam os rios Anhangabaú e Tamanduateí celebraram uma missa em 25 de janeiro de 1554, os colonos e os índios. Naquela semana meu foco foi no lado do triângulo amoroso entre jesuítas e índios, que foram introduzidos na fé católica e na disciplina do trabalho nos aldeamentos invadidos e destruídos pelos colonos. Nesta semana retomo tais relações enfocando o outro lado do triângulo, isto é, as relações entre os colonos e os índios, os quais saíram da tutela dos padres e passaram para o domínio dos colonos. Meu objetivo é explorar o tipo de domínio e as consequências dele à luz das ideias do filósofo materialista e ateu d’Holbach, um dos colaboradores da Enciclopédia editada por Diderot (1713-1784) e d’Alembert (1717-1783).

    Como explica Roberto Pompeu de Toledo em sua história da cidade de São Paulo, as incursões militares dos bandeirantes pelo interior do país permitiram-lhes tomar para si a mão de obra indígena que estava sob a tutela dos jesuítas. Ela serviu a dois propósitos: o primeiro foi o de fornecer os braços para a prática da agricultura do trigo na cidade de São Paulo e arredores e o segundo foi servir como a infantaria dos grandes da terra em suas expedições de conquista. Esses braços dourados pelo sol da terra na prática eram propriedade daqueles que os tinham aprisionado ou daqueles que os haviam comprado dos caçadores de índios. Conforme o trecho que abre este artigo, é verdade que não se falava claramente que os índios pertenciam aos seus senhores, como se falava dos negros africanos comprados e vendidos como escravos, afinal a escravidão indígena era proibida por lei, pois considerava-se que os índios tinham alma. De qualquer forma, os índios eram citados nas disposições testamentárias dos colonos, o que mostra que como diria um advogado no século XXI, faziam parte do espólio do de cujus e eram objeto de sucessão hereditária.

    Em suma, na prática os nativos da Terra Brasilis eram tão cativos quanto os negros africanos e obviamente submetidos ao mesmo tratamento de trabalhos forçados e extenuantes na agricultura. E no entanto, os titulares da propriedade sobre esses recursos humanos não deixavam de ser tementes a Deus e a seguir todos os rituais da Igreja Católica, frequentando missas, participando de procissões, mandando rezar missas em prol da alma de parentes e de si próprios. Como conciliar essa observância estrita das regras exteriores da religião cristã e ao mesmo tempo violar cotidianamente a integridade física e espiritual dos aborígenes, forçando-os a extensas jornadas de trabalho às quais seu modo de vida anterior não os acostumara? Afinal o fato de os índios serem considerados seres com alma não os colocava em pé de igualdade com os brancos? Como explorá-los seja como bucha de canhão ou como trabalhadores agrícolas, semeando, carpindo e colhendo sob o sol tropical? É para resolver esta aparente contradição que recorro às ideias de d’Holbach.

    Conforme pode ser depreendido do trecho que abre este artigo, para o filósofo a Igreja e o Estado estão em conluio para estabelecer uma ordem social que garanta a preservação do poder das duas instituições. A Igreja ensina aos despossuídos, que não têm oportunidade de prosperar neste mundo porque nasceram no andar de baixo da sociedade, a tolerar a opressão terrena para conquistarem a felicidade no outro mundo. Sob o ponto de vista do Estado tal doutrinação é fundamental para garantir que os habitantes do andar de cima que controlam o governo possam viver à tripa forra impunemente, gozando dos seus privilégios sancionados pelos ensinamentos morais da Igreja. De acordo com d’Holbach, o ser humano não nasce com um senso moral inato, dádiva do Criador. A prova disso é o fato de o ser humano cometer as maiores barbaridades e justificá-las em nome da religião: se ele o faz é porque ele estabeleceu o que é certo ou errado não de acordo com uma bússola moral infalível, que não existe, mas de acordo com sua experiência, com uma educação e raciocínio distorcidos e com a corrupção dos costumes e da opinião pública engendrados pela concentração de poder e de riqueza nas mãos de poucos. Tal concentração torna os privilegiados insensíveis ao sofrimento dos pequenos e inclinados a chafurdar no vício e na luxúria.

    Não havendo como garantir um senso ético por meio da religião, que na verdade é só instrumento de manipulação dos que não têm pelos que têm muito, o melhor a fazer é incentivar o aumento do conhecimento pela educação para combater mitos tais como a vida após a morte e a imortalidade da alma e evitar a concentração da renda distribuindo terra aos despossuídos. Só assim o homem viverá em um meio adequado que lhe permita ter consciência de sua verdadeira natureza, das suas limitações e dos efeitos que suas ações têm sobre os concidadãos, permitindo-lhe melhorar seu comportamento em um ambiente menos desigual, em que a correlação de forças entre os diferentes grupos sociais é mais equilibrada. Sob essa ótica, a religião a serviço dos poderosos só reforça os maus hábitos das classes ricas, porque lhes dá uma justificativa moral para explorar os despossuídos como se elas estivessem fazendo o maior dos bens, em nome de Deus.

    Prezados leitores, uma lástima que as ideias do Barão de d’Holbach, que tanto inspiraram a Revolução Francesa, nunca tenham chegado às plagas tropicais. O resultado foram séculos e séculos de escravidão de indígenas e negros, de crimes sem castigo, tudo sob a fachada dos rituais religiosos praticados pelos ricos em benefício próprio. As consequências nós as vivemos até hoje e basta uma volta pelo centro histórico de São Paulo para observarmos o exército de despossuídos, descendentes daqueles que viveram nos aldeamentos jesuítas ou foram trazidos da África. Talvez algum dia nosso nível de educação e de prosperidade material seja suficiente para darmos o salto de qualidade de que fala d’Holbach e nos tornemos mais cônscios dos efeitos das nossas ações ao nosso redor e, portanto, mais éticos. Esperemos esse dia chegar sabendo que nem tudo pode ser feito em nome de Deus.

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O triângulo amoroso ou odioso de São Paulo

Os jesuítas, se não escravizavam, na acepção plena da palavra, não deixavam de praticar uma violência contra o índio ao tentar, bruscamente, impor-lhe valores como a monogamia, ou, mais que isso, ao tentar regular-lhe o cotidiano, dividindo-lhe o tempo em padrões por ele desconhecidos – hora do trabalho e hora da doutrina, hora do descanso e hora da oração. Sobretudo, não seria propriamente um ambiente de liberdade aquele que os jesuítas preparavam para os índios, cercando-os em aldeamentos e, também eles, obrigando-os aos trabalhos.

Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo

Debaixo do ponto de vista da Igreja repetimos que é forçoso reconhecer terem os padres agido com heroísmo, com admirável firmeza na sua ortodoxia; com lealdade aos seus ideais; toda crítica que se faça à interferência deles na vida e na cultura indígena da América – que foram os primeiros a degradarem sutil e sistematicamente – precisa de tomar em consideração aquele seu superior motivo de atividade moral e religiosa. Considerando-os, porém, sob outro critério – puros agentes europeus de desintegração de valores nativos – temos que concluir pela sua influência deletéria. Tão deletéria quanto a dos colonos, seus antagonistas, que, por interesse econômico ou sensualidade pura, só enxergavam no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escravo indócil a subjugar e a explorar na lavoura.

Trecho retirado do livro “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987)

    Prezados leitores, nesta semana a cidade de São Paulo comemora 470 anos. Em homenagem à minha cidade retomo minhas caminhadas reais e espirituais pelo centro histórico que, como já expliquei aqui neste humilde espaço, não é assim tão repleto de prédios antigos como outras cidades brasileiras. Detenho-me sobre a enorme escultura do padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597), na praça da Sé, cercado dos índios que ele catequizou ou tentou catequizar. Os índios mostram-se sérios, contritos e humildes perante o padre, feliz em dedicar-se ao projeto da sua vida, que era espalhar a fé católica pelo mundo. Não há como pensar em São Paulo sem pensar que a cidade não teria sido criada e se desenvolvido sem o triângulo de amor e ódio estabelecido entre os jesuítas, os indígenas e os colonos.

    Roberto Pompeu de Toledo narra em sua história da cidade como os jesuítas tentaram se estabelecer na cidade para arregimentar os índios e colocá-los em um lugar confinado onde pudessem lhes inculcar os valores cristãos pelo trabalho e pela disciplina. O Pátio do Colégio é o local na cidade do primeiro aldeamento de indígenas, pois foi lá que se instalou a modesta casa que serviria de colégio dos jesuítas. A Ocorre que havia outros interessados no destino que se daria aos aborígenes brasileiros: homens como Fernão Dias Pais, Antônio Raposo Tavares, Manuel Preto, hoje chamados de bandeirantes, eram empreendedores que organizavam expedições de caça aos índios, marchando pelo interior do Planalto Paulista para conseguirem apreender aqueles que serviriam de mão de obra para atividades agrícolas e domésticas em uma cidade que não tinha pujança econômica suficiente para adquirir os negros comercializados nas cidades litorâneas. E nessa marcha eles bateram de frente com os aldeamentos criados pelos jesuítas no Guairá uma região que hoje é o oeste do estado do Paraná: a concentração de indígenas nesses locais fazia com que o apresamento fosse mais fácil do que tentar lutar com tribos que tinham capacidades militares: os jesuítas, desarmados, podiam ser colocados para correr se os chefes das expedições cercassem as aldeias e as atacassem com as flechas dos soldados dessas expedições, que eram indígenas, e com os bacamartes dos bandeirantes. E assim foi feito, de modo que já em 1637 as missões no Guairá haviam sido totalmente destruídas. O alvo seguinte passou a ser os aldeamentos criados pelos jesuítas na região do Tape, em uma área junto ao rio Uruguai, no que hoje é o estado do Rio Grande do Sul, também alvos da sanha destruidora dos bandeirantes. Como último capítulo do embate de jesuítas e colonos pelos índios, em 25 de julho de 1640, as oito vilas existentes na então capitania de São Vicente decidiram pela expulsão dos jesuítas.

    Este enredo que marca a história da cidade de São Paulo, de ondem partiam as expedições de destruição dos aldeamentos e de aprisionamento dos indígenas, pode ser contemplado no filme a Missão, de 1986, um drama histórico estrelado por Robert de Niro e Jeremy Irons que mostra como uma missão na região do rio Iguaçu foi dizimada pelos colonos. Ali estão os índios vestidos de batas cantando no coro da igreja, trabalhando nas oficinas de carpintaria e nas lavouras, guiados por padres que heroicamente tinham se arriscado de pés descalços, subindo cachoeiras e cruzando rios para fundarem suas utopias terrenas, em que os habitantes do Novo Mundo praticariam a religião cristã livres da corrupção que acometera a Igreja na Europa e que levara à Reforma Protestante. Em a “Missão” padres e índios resistem até a morte à cobiça cruel e assassina dos colonos, de modo que o filme expressa uma clara dicotomia: de um lado a luz representada pela vida na comunidade cristã, feita de oração, música e trabalho, de outro os portugueses e espanhóis que queriam pegar os índios a laço para fazê-los trabalhar seja nas minas de ouro e prata ou nas plantações. Mas será que tudo era assim preto no branco? Ou haveria cinquenta tons de cinza neste triângulo amoroso e odioso entre padres, índios e colonos?

    Em seu livro Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre mostra os detalhes desses diferentes tons. Conforme descreve o trecho que abre este artigo, é admirável o esforço dos jesuítas que se embrenharam em florestas, rios mares desconhecidos pelos europeus, sujeitos a doenças, a serem recebidos com uma saraivada de flechas por aqueles que tentavam cooptar. Por outro lado, é inegável, como Roberto Pompeu de Toledo também aponta em sua história de São Paulo, que o regime a que os jesuítas submetiam os aborígenes podia ser menos intenso do que o trabalho escravo para os colonos, mas não deixava de levar a um único lugar, a degradação material, cultural e espiritual dos aborígenes. Acostumados a viver nus e a tomar banhos de rio várias vezes ao dia, os índios foram obrigados, para o bem da moralidade cristã, a vestir-se, o que os levou a tornar-se sujos e a adquirir doenças de pele. Acostumados à autoridade dos chefes e ao sistema de vida comunal, foram submetidos à autoridade dos padres e a viver confinados nas aldeias, o que destruiu seus hábitos nômades. Polígamos, foram submetidos à monogamia cristã. E seus cantos de “agreste sabor” foram substituídos pelos cantos devotos, secos e mecânicos dos jesuítas, que só falavam de Nossa Senhora e dos santos, sem falar do amor. Para não falar das danças e festivais, totalmente suprimidos, privando-lhes de oportunidades de dar vazão a sua energia animal. Em suma, para Gilberto Freyre o tratamento dos jesuítas, cheios de boas intenções e por isso menos cruéis e mais condescendente do que os colonos, fez de qualquer forma os indígenas perderem a capacidade de criar sua própria cultura.

    Prezados leitores, julgamentos morais são sempre complexos, porque considerando que a humanidade não chegou a um acordo sobre os fundamentos da ética, não é possível estabelecer com certeza o que é certo e o que é errado. Heróis no filme a “Missão”, genocidas culturais e espirituais no livro “Casa Grande & Senzala, os jesuítas deixaram seu traço indelével no Brasil e na cidade de Sâo Paulo em particular. Se não for para dar-lhes viva em 25 de janeiro próximo, ao menos reconheçamos que sem o trabalho deles, sem suas disputas com os colonos, a cidade teria sido outra.

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Relíquias Vivas

Um dia Dostoievski se saiu com essa observação enigmática: “A Beleza salvará o mundo.” Que espécie de declaração é essa? Durante muito tempo fiquei convencido de que se tratava de meras palavras. […] Existe, entretanto, uma certa peculiaridade no conceito da arte: de fato, uma verdadeira obra de arte irradia uma força de persuasão absolutamente irrefutável, que obrigada até o coração mais endurecido a se render. É possível compor um discurso político aparentemente elegante e fluente, um artigo forte, um programa social ou um sistema filosófico baseados no mal-entendido e na mentira. O lado oculto e distorcido poderá não aparecer de súbito.

Trecho retirado do livro “Uma palavra de verdade” do escritor russo Alexander Solzhenitsyn (1918-2008)

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem que ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

Os colaboradores tinham uma visão muito simples da natureza humana, uma avaliação muito otimista da honestidade da razão, um entendimento muito vago da sua fragilidade, uma perspectiva muito otimista de como os homens iriam utilizar o conhecimento que a ciência lhes estava dando.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios editada pelo escritor francês Denis Diderot (1713-1784) entre 1751 e 1772

Epifania – uma manifestação ou percepção normalmente repentina da natureza ou do significado essencial de algo

Trecho retirado do verbete de epifania da edição de 1966 do dicionário Webster’s

Prezados leitores, vocês já tiveram uma epifania, de acordo com a acepção descrita na abertura deste artigo? Eu já tive e vou descrever-lhes o momento para que possam analisar se já passaram pela mesma experiência. Meu momento de percepção de uma verdade fundamental veio ao ler o conto Relíquia Viva, já tratado neste humilde espaço em “De Diógenes a Lukeria”, em 2021. Relíquia Viva narra o encontro do dono de uma propriedade rural, que passara vários anos estudando em Moscou, e uma serva, Lukéria, a quem ele não via há muito tempo. Lukéria na sua mocidade havia sido “alta, roliça, branca, corada, amiga do riso, da dança e do canto”. Quando o patrão a encontra ela está entrevada em uma cama, após ter caído de uma certa altura, e dependente de pessoas que levem a ela o que comer. O patrão fica chocado com a aparência de múmia da serva e oferece levá-la para um hospital, para que ela tenha companhia e talvez possa curar-se.

O trecho citado na abertura deste artigo me levou ao meu momento epifânico: ele mostra a sabedoria e lucidez de uma mulher que tem a vida destruída por um acidente e que sabe que ela não pode esperar nada das pessoas. Seu ex-noivo a visita um dia, mas ele seguiu em frente, sem olhar para trás e casou-se com outra. A visita dele faz Lukéria chorar, mas isso não quer dizer que ela guarde rancor ou tenha raiva do mundo e da humanidade. A serva resigna-se com sua tragédia e aproveita a vida como pode, presa a uma cama: ouve o cantar dos pássaros e a miríade de sons da natureza. Tem uma vida mental intensa que compensa o cotidiano modorrento: ela sonha muito e conta alguns desses sonhos ao patrão durante o encontro.

Enfim, Lukéria é consciente de que ficará sozinha pelo resto dos seus dias, mas não reclama, pois sua experiência “das profundezas degradantes da existência” para citar Alexander Solzhenitsyn a levam a um estágio de transcendência espiritual em que ela valoriza as pequenas alegrias do dia-a-dia, incluindo a visita inesperada e rápida de um patrão que tem todas as condições de desfrutar da vida e está lá ao lado de Lukéria de passagem. O que é comovedor no conto e nos leva a uma empatia profunda é que a camponesa não tem pena de si mesma. É justamente por isso, por sua visão serena das coisas, sem melodramas, que seu sofrimento fica mais evidente para nós leitores do conto. Vemos à nossa frente o patrão afortunado, que no verão se diverte indo caçar pelos seus campos, e a camponesa mumificada pelos anos de reclusão e que morre algumas semanas mais tarde, depois desse encontro com o patrão, não tendo chegado aos 30 anos.

Esse contraponto entre a sorte de um e de outro nos mostra a crueldade e a injustiça da vida, mas também sua beleza, a beleza da solidariedade, da bondade, da empatia, da Natureza, por mais fugazes que sejam. É essa verdade que a epifania revela aos que choram profusamente ao lerem este conto, como foi meu caso. E uma epifania, feita da revelação de um momento na vida de um personagem, tem um poder de persuasão muito maior do que qualquer discurso filosófico ou político, como explica Solzhenitsyn em seu livro “Uma palavra de verdade …” De acordo com o prêmio Nobel de Literatura de 1970, a obra de arte, fruto da consciência aguda do artista sobre a beleza e a fealdade da contribuição humana, vai ao cerne da questão como nenhum outro tipo de discurso porque é visceral e autêntica, mostrando a vida como ela é, ao passo que um programa político ou um sistema metafísico podem ser simplesmente uma racionalização de interesses individuais que procuram prevalecer pelo convencimento.

Sobre isso já alertavam Will e Ariel Durant ao comentarem sobre a Enciclopédia que foi o marco do Iluminismo na França. O objetivo dos seus editores era tornar a razão o novo objeto de culto, fazer o conhecimento obtido pelo exercício das faculdades mentais sobrepor-se ao dogma, o progresso material advindo das conquistas científicas e tecnológicas sobrepor-se à contemplação resignada da morte. A razão proposta pelos autores dos verbetes da Enciclopédia podia livrar a humanidade das superstições, dos medos infundados, do fatalismo, do fanatismo religioso, mas ela também podia ser um instrumento de manipulação e opressão do homem pelo homem escondida sob a capa das verdades trazidas pela ciência: se Diderot tivesse vivido o suficiente ele teria visto os usos que o conhecimento científico teve para a indústria de matar pessoas, desde os canhões das guerras napoleônicas no século XIX até os artefatos nucleares no século XX.

Prezados leitores, o fato é que há verdades e verdades. As verdades dos cientistas que para os Enciclopedistas inaugurariam uma nova era na história da humanidade, livre como jamais do jugo da religião, e as verdades dos artistas, reveladas em cenas, em atos e falas de personagens que tocam no âmago da experiência humana, a qual vai além das nossas sensações, da nossa fisiologia, da nossa atividade cerebral. São relíquias vivas de um drama que se desenrola desde que o homem expressou sua consciência através de imagens e símbolos e se desenrolará enquanto o homo sapiens caminhar sobre a Terra.

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Crer em quê?

Quase todos os filósofos do Iluminismo reconheciam que a maioria dos homens, mesmo na nação mais civilizada, está assoberbada demais pelas necessidades econômicas e pelo trabalho para ter tempo para o desenvolvimento da razão e que as massas da humanidade são motivadas muito mais pela paixão e pelo preconceito do que pela razão. […] O homem podia finalmente libertar-se dos dogmas medievais e dos mitos orientais; ele poderia dar de ombros para aquela teologia atordoante e aterradora e levantar-se livre, livre para duvidar, indagar, refletir, obter conhecimento e disseminá-lo, livre para construir uma nova religião no altar da razão e a serviço da humanidade. Era uma nobre embriaguez.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre os filósofos ateus do século XVIII na França

Vejo a raça humana continuamente ocupada em proteger-se das trapaças cruéis desta Providência, que dizem estar ocupada em cuidar da felicidade da raça humana. […] A quem a ideia de Deus enche de reverência? A alguns poucos homens fracos, decepcionados e desgostosos com o mundo, algumas pessoas cujas paixões já estão extintas pela idade, pelas enfermidades ou pelos revezes da fortuna.

Trechos retirados do livro “Superstições em todas as Idades” ou “Últimas Vontades e Testamento” de Jean Meslier (1678-1733), padre na região de Champagne, na França, mas um ateu enrustido

Grandes personalidades que eram – o que poderíamos dizer? – porta-vozes da comunidade dos Novos Ateus – Douglas Murray, […], Neil Fergusson, entre eles, Bret Weinstein, começaram a perceber que nossas concepções estão inseridas em um substrato narrativo, em uma história religiosa e que essa história em vários aspectos não pode ser substituída. É possível encaixar substitutos, mas eles tendem a ser ideologias devastadoras do tipo que caracterizava, digamos a União Soviética, ou um niilismo que devora a alma.

Trecho retirado da entrevista dada pelo psicólogo canadense Jordan Peterson ao jornalista britânico Piers Morgan

    Prezados leitores, já ouviram falar de um padre francês que exerceu o ofício por 30 anos e que deixou como legado testamentário um livro tão antirreligioso que sua versão integral só foi publicada em 1861, mais de 100 anos depois de sua morte? Se não ouviram, ouvirão agora neste humilde espaço, que lhes apresenta Jean Meslier. Meslier justifica aos seus leitores póstumos ter sido padre a vida toda, a despeito de suas inclinações, não por ganância, mas para obedecer aos pais. Meu objetivo será o de apresentar suas ideias, representativas dos chamados philosophes franceses do século XVIII, que se rebelaram contra o catolicismo.

    Para quem sabe um pouco de história, a reforma protestante na França não vingou, porque os dissidentes religiosos foram todos expulsos ou trucidados sob as ordens do rei Luís XIV (1638-1715). Portanto, a Igreja Católica não teve seus bens confiscados como o rei Henrique VIII fizera na Inglaterra para se ver livre do jugo de Roma. Até o advento da Revolução ela continuou a ser poderosa senhora de terras e a explorar o trabalho dos camponeses, isenta de tributação, monopolizadora das instituições educacionais e da monarquia, fazendo a cabeça de todos, ricos e pobres, incluindo dos reis que tinham padres como tutores, além confessavam seus pecados desde a mais tenra infância. E o que a Igreja colocava na cabeça das pessoas? Jean Meslier explica.

    Detentora de poder material e espiritual, a Igreja Católica tinha interesse em manter o status quo e para tanto infundia nos fiéis o medo do inferno e a promessa do paraíso. O inferno era para os pecadores, aí incluídos os hereges, que questionavam os dogmas religiosos como a ideia de que Jesus Cristo era filho de Deus, que na missa o pão e o vinho transformavam-se no corpo e no sangue do Salvador do Mundo. O paraíso era para os que não cometiam pecados, aí incluídos os que aceitavam todas as proposições da Igreja e da Bíblia, tal como os padres as apresentavam aos fiéis.

    Não admira que um Deus que condenava ao inferno os contestadores das verdades estabelecidas fosse um Deus tirânico e caprichoso, porque afinal a decisão sobre o que era verdade e o que era mentira cabia à Igreja e somente a ela, de acordo com critérios obscuros que mudavam ao sabor dos interesses temporais da Igreja como instituição: um dia um homem era excomungado, noutro era perdoado se se submetesse aos ditames religiosos. Mas será que depois do perdão o homem teria deixado de ser pecador ou teria sido por conveniência política que a Igreja o perdoara, num quid pro quo destinado a manter sua influência sobre as pessoas?

    Sob essa perspectiva, para Meslier a Igreja Católica e a religião cristã eram simplesmente fonte de opressão e de injustiças. A história falava por si: as perseguições e matanças dos cátaros no século XIII, o massacre de São Bartolomeu em agosto de 1572, quando ao redor de 3.000 protestantes foram assassinados, mostravam que o comportamento ético passava ao largo das ações dos príncipes da Igreja: a paz e a harmonia que a Igreja defendia era aquela que ela impunha à força com a ajuda das armas do Estado Monárquico.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Meslier considerava que a ideia de crença em um Deus ia contra a natureza humana: somos seres com paixões e instintos e querermos fundar um código de ética na negação da nossa natureza era contraproducente, pois só uma minoria de pessoas, que não tivesse mais desejos, pelo fato de elas estarem velhas ou doentes, poderia aderir às proibições impostas pela Igreja Católica. Para o padre e ateu enrustido, a moral só pode ter dois fundamentos: a razão e o conhecimento, de modo que o homem chegue ao bom senso, isto é, a estabelecer regras que podiam ser obedecidas porque estavam de acordo com aquilo que somos e aquilo que somos só pode ser conhecido pelo exercício da razão aliado à experiência. O homem deveria ser livre para buscar seu prazer se não prejudicasse os outros, e deveria ser livre para lutar com todas as suas forças e sua razão para vencer as peças pregadas pela Natureza: as enchentes, a fome, as tempestades, o frio, a esterilidade e todos os infortúnios que faziam parte da existência humana, a contrariar a ideia de um Deus benigno e providente.

    Esse novo ser vislumbrado pelo padre de Champagne era o ideal iluminista por excelência, conforme pregado pelos filósofos franceses como Diderot, D’Alembert, Voltaire, La Mettrie, Grimm, Helvétius e d’Hollbach. Deixando definitivamente para trás as superstições, os medos e as fábulas impostas pela Igreja Católica desde a Idade Média para manter seu poder, o homem seria livre para questionar as verdades consolidadas pela tradição e, ajudado pelas descobertas cada vez mais numerosas da ciência, embarcaria em uma jornada de busca da felicidade material e espiritual, proporcionada pelo exercício desimpedido da razão para a solução dos problemas postos à sobrevivência da humanidade. Assim é que o homem, livre de doenças, da morte precoce, da falta de comida superaria o estágio religioso da civilização e entraria no estado racional, em que as regras de comportamento ético e de organização da sociedade seriam fruto de um esforço racional de todos que conjugaria para um denominador comum.

    E no entanto, conforme o trecho que abre este artigo, os próprios entusiastas desse novo tipo de agir viam-lhe as limitações. Nem todos os homens tem aptidão ou vontade para exercer suas faculdades mentais. Aliás, a maioria deles só consegue agir de maneira instintiva ou passional, e seu conteúdo mental limita-se aos preconceitos que herdaram de seus pais, familiares, amigos, e demais pessoas do seu círculo de convivência. Na ausência do exercício da razão, que caminho essas pessoas poderão trilhar rumo ao futuro cheio de esperanças prometido pelos iconoclastas religiosos?

    À época em que os philosophes propuseram suas ideias pela primeira vez, o entusiasmo com a redescoberta da razão como instrumento que poderia substituir as crenças milenares que haviam estagnado o progresso da civilização era grande demais para que eles se preocupassem com o destino da grande maioria das pessoas que não tem nada de intelectual em si mesmas para cultivar. No entanto, em nosso século XXI, o Ocidente que inventou o Iluminismo para superar o Cristianismo já está no pós-Iluminismo, quando o Cristianismo só é levado a sério por uma ínfima minoria. Por esse motivo, esse problema do que colocar no lugar da religião na cabeça dos não intelectuais é premente e digno da atenção de pessoas que se debruçam sobre a malaise espiritual da nossa época, como o psicólogo canadense Jordan Peterson.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Peterson, as ideologias, que no século XX tentaram ser fontes de utopias terrenas – como a religião cristã havia sido outrora fonte de utopias celestes – fracassaram porque só causaram destruição, como o leninismo, o stalinismo, o maoísmo. É mais do que necessário agora retomar a religião como instrumento de criação de uma narrativa pessoal, isto é, de estabelecimento de valores que deem sentido à vida, pois não só de pão vive o homem: vivemos em meio a uma prosperidade material inédita na história da humanidade, fruto das conquistas científicas e tecnológicas estimuladas pelo Iluminismo, mas ao mesmo tempo isso não é suficiente para nos dar paz de espírito, como mostra a alta incidência de ansiedade e os índices de suicídio entre os jovens.

    Prezados leitores, o que fazer? Crer? Mas crer em quê? Na razão como única fonte possível de conhecimento e de preceitos morais? Ou em alguma religião? Ou no vegetarianismo? Ou na ecologia? Ou na diversidade e inclusão? Cada indivíduo deve escolher, de acordo com suas aptidões pessoais? Ou ele deve seguir as normas da sociedade em que vive? De qualquer forma, para nossa saúde mental, para conseguirmos desenvolver e contar nossa própria história, é preciso crer em alguma coisa.

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O estilo da Capital da Solidão

Quanto mais substância e força damos aos pensamentos pela meditação, mais fácil será concretizá-los na expressão. […] A mente humana não consegue criar nada, produzir nada, a não ser que tenha se enriquecido pela experiência e pela meditação; […] Somente aqueles trabalhos que são bem escritos entrarão para a posteridade. A quantidade de conhecimento, a singularidade dos fatos, mesmo a novidade das descobertas, não serão garantia de imortalidade; […] porque o conhecimento, os fatos, as descobertas são facilmente removidos e levados para longe, e até ganham ao serem colocados em mãos mais hábeis. Essas coisas estão fora do homem, mas o estilo é o homem ele mesmo; o estilo não pode ser roubado, transportado ou alterado; caso seja elevado, nobre e sublime, o autor pode ser admirado igualmente em qualquer época, pois somente a verdade é durável e permanente.

Trechos do discurso proferido em 25 de agosto de 1753 pelo naturalista francês Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), ao ser admitido à Académie Française

Uma barreira é tanto um obstáculo que desengana quanto um convite para que se procure superá-lo. A barreira tanto desencoraja quanto tenta. Se existe, é porque esconde algo. Se esconde algo, é porque é precioso. Os primeiros portugueses pioneiros decidiram-se pela segunda alternativa, ato que seria o primeiro a determinar a criação da cidade de São Paulo.

Trecho do livro “A Capital da Solidão – Uma história de São Paulo das origens a 1900”, de Roberto Pompeu de Toledo, referindo-se à Serra do Mar, muralha de 800 metros de altura que corre paralela ao mar e liga o litoral ao Planalto, onde foi fundada a cidade de São Paulo

    Prezados leitores, tenho por hábito caminhar pelo centro histórico de São Paulo, para apreciar a arquitetura dos prédios antigos, as esculturas lapidadas na fachada, e por vezes entrar em um ou outro edifício à cata de alguma obra de arte em exposição temporária ou permanente. Achar essas pérolas requer motivação, porque a região em volta da Praça da Sé é frequentada nos finais de semana e feriados, que é quando tenho tempo de sair pela cidade afora, em sua maior parte por moradores de rua. Andar por lá não chega a ser perigoso pois há policiamento, mas a quantidade de sem-teto é tamanha que afasta os cidadãos normais. O centro de São Paulo poderia ser uma atração turística muito maior do que é, mas creio que nunca chegará a sê-lo de maneira robusta o suficiente para que a massa de turistas afaste os mendigos, bêbados e drogados.

    É inegável que não temos aqui o nível de antiguidade de cidades como Salvador e Recife, que ostentam igrejas e conventos do século XVII, e que a casa mais antiga que temos no centro de São Paulo que ainda resta em pé talvez seja a da Marquesa de Santos, que foi proprietária do agora chamado Solar da Marquesa de 1834 a 1867. Isso se deve não só ao fato de que o casario colonial foi derrubado à medida que a cidade se expandia no começo do século XX, mas a que a cidade de São Paulo ao longo de seus primeiros trezentos anos  de vida foi um simples vilarejo do interior, fora do alcance dos navios da metrópole, sem nada a oferecer à cobiça portuguesa que fizesse com que os colonizadores aqui se instalassem, como o fizeram nas cidades litorâneas, que os colocavam mais próximos da Europa, para onde eram enviados os produtos produzidos ou recolhidos nos trópicos.

    A constatação de que a cidade de São Paulo não tem muito a oferecer em termos de patrimônio histórico é fácil quando caminhamos pelo centro e fica mais inteligível ao lermos a história de “Sampa”, como é conhecida, contada no livro de Roberto Pompeu de Toledo citado na abertura deste artigo. Para resumir uma longa história, Martim Afonso de Sousa, que em 1532 aportara em São Vicente, no litoral, tinha vindo ao sul do Brasil com uma esperança: a de tornar o Planalto, a que se tinha acesso depois de subir a íngreme e dificultosa Serra do Mar – a barreira de que fala Roberto Pompeu de Toledo – uma plataforma para a realização de expedições que pudessem levar os portugueses a chegar pelo interior à terra do ouro e da prata, isto é, ao que hoje chamamos de Peru.

    No entanto, Francisco Pizarro perseguiu uma melhor estratégia para descobrir o império do rei branco, apostando em um caminho marítimo pelo Pacífico. Em 1531, ele aportou na costa oeste da América do Sul e o ouro e a prata ficaram para os espanhóis. Martim Afonso de Sousa, que por causa de suas atividades no litoral paulista, recebeu São Vicente como capitania hereditária, jamais voltou a pôr os pés no Brasil, preferindo aventurar-se na Índia. O vilarejo além da Serra, distante do litoral, desprovido de metais preciosos e inútil como ponto de partida para a busca do ouro e da prata que já tinham sido abocanhados pelos rivais espanhóis, que seria fundado em 1554 com a criação do colégio dos jesuítas, foi esquecido e abandonado pelo governo português.

    Daí por que Roberto Pompeu de Toledo chama a desenxabida vila de Capital da Solidão, solidão de um local cujo acesso requeria vencer um paredão de 800 metros coberto de mata densa. E no entanto, apesar da vila ter permanecido imersa em sono profundo até o século XIX, isso não é motivo suficiente para que o jornalista não conte uma história saborosa da cidade, assim como não é motivo para que eu humildemente deixe de caminhar por um centro cuja história é bem desprovida de marcos arquitetônicos e culturais, justamente por nada de muito interessante ter acontecido aqui desde que Martim Afonso de Sousa partiu para nunca mais voltar. O motivo quem explica é o naturalista francês Buffon, autor da famosa frase que se perpetuou na história: “O estilo é o homem”. Explico-me.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o autor de “História natural, geral e particular” que no total era constituída de 44 volumes, considerava que o estilo era tudo. O que era o estilo? Era a capacidade do homem, pela meditação sobre a experiência, chegar à expressão dos seus pensamentos. E tal expressão perduraria pelos séculos se ela fosse perfeita, se ela fosse capaz de evocar tudo aquilo que tinha dado ensejo a ela, em suma se ela chegasse a uma verdade, que fosse além dos fatos, descobertas e conhecimento que tinham sido processados pela mente que burilou tal verdade. Pois o que importava não eram os detalhes específicos, mas o panorama geral dado pela maestria estilística do homem que criava a forma na qual cabiam os elementos já conhecidos pelo dono do estilo, mais aqueles que ainda se dariam por conhecer. Em seu trabalho de naturalista Buffon muitas vezes foi criticado por sacrificar a precisão dos detalhes em prol das generalizações, mas nunca se negou a ele a qualidade de saber expressar suas ideias acerca da majestade da natureza.

    Prezados leitores, seguindo consciente ou inconscientemente as lições do naturalista francês, Roberto Pompeu de Toledo faz seu estilo dar uma dinâmica à história de São Paulo, cidade que teve um destino medíocre do século XVI ao século XIX, e que apesar disso não deixou de ser marcada por vários dramas. Ao utilizar a Serra do Mar como uma metáfora da dificuldade de colonizar esta parte do sul do Brasil, e da motivação para superar tal desafio, o jornalista tornado historiador, desfia os elementos épicos da criação de São Paulo: a barreira física representada pelo Serra do Mar, a decepção dos portugueses que contavam chegar ao Peru passando pelo Planalto e atravessando o interior do Brasil, o conflito entre os jesuítas motivados e comprometidos com a evangelização e os portugueses como João Ramalho que viveram aqui na poligamia escancarada com suas temericós, i.e. as índias oferecidas aos estranhos como símbolo de aliança.

    Desse modo, a Capital da Solidão, triste e enfadonha na realidade, transforma-se na vila do Planalto, erguida no pico da Serra do Mar. E os meus passeios pelo centro adquirem um sabor especial ao me dar conta de que aquele centro desprovido de patrimônio é o fruto da expansão vertiginosa de uma cidade que não era nada para o país e que acabou tornando-se tudo. Em tempo: todos estão convidados para um passeio pelos arredores da Praça da Sé, para verificarem in loco a mutação da tal da Capital da Solidão em capital das multidões.

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