Útil para quê?

[…] Bentham expôs aquele “princípio da maior quantidade de felicidade” ao qual John Stuart Mill em 1863 deu o nome de “utilitarismo”. É a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas que é a medida do certo e do errado.” De acordo com esse “princípio de utilidade” todas as propostas morais e políticas e as práticas devem ser julgadas, porque “a tarefa do governo é a de promover a felicidade da sociedade”. No longo prazo, ele pensava, o indivíduo obtém a maior quantidade de prazer ou a menor quantidade de dor sendo justo com os outros membros da sociedade.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Aqui a felicidade é considerada como significando o mesmo que o prazer. A função da lei é garantir que, ao perseguir seu próprio prazer ao máximo, ninguém deveria prejudicar essa mesma busca nos outros. Dessa maneira é atingida a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas. Esse era, em que pese todas as suas diferenças, o objetivo comum dos utilitaristas.

Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832)

Jan e Els ficaram casados durante quase cinco décadas. No início de junho, eles morreram juntos depois de dois médicos lhes terem ministrado uma medicação letal. Na Holanda, isso é conhecido como eutanásia dupla. É legal e é raro – mas a cada ano, mais casais holandeses escolhem terminar a vida dessa maneira.

Trecho de um artigo publicado no site da BBC em 28 de junho de 2024 intitulado “Morte juntos: por que um casal que tinha um casamento feliz decidiu parar de viver

    Prezados leitores, há duas semanas revelei a vocês a inevitabilidade de eu perder meu emprego em virtude do progresso tecnológico que faz com que as máquinas trabalhem de maneira melhor e mais barata do que os seres humanos. A perda do emprego traz outras repercussões, entre elas a impossibilidade de se aposentar se o desempregado não consegue continuar pagando as contribuições previdenciárias até que cumpra os requisitos impostos pelo INSS. E tais requisitos são cada vez mais estritos. Para mulheres, 30 anos de contribuição e idade mínima de 62 anos são necessários para se conseguir o valor máximo de aposentadoria, que hoje está, em R$7.507,49, o que talvez permita cobrir as despesas com plano de saúde e as necessidades materiais básicas. E se o desempregado não conseguir fazer os pagamentos previdenciários? O que lhe restará?

    Esta é uma pergunta para a qual nossas autoridades não nos oferecem resposta satisfatória. Em 2019, os eminentes deputados e senadores aprovaram uma reforma para tentar viabilizar financeiramente a previdência, mas não houve nenhuma atenção à elaboração e à execução de políticas que estimulem o emprego daquela parcela da população que já passou dos 50 anos e que precisa ter condições de chegar à linha de chegada para conseguir ter uma vida mais ou menos digna na terceira idade. Isso não é novidade no Brasil. Os escravos foram libertados pela monarquia em 1888 e a república nunca se preocupou em oferecer meios para que os ex-escravos tivessem acesso a serviços de saúde e educação que lhes permitissem viver uma nova vida longe do trabalho braçal nas lavouras.  Qual será o expediente menos complexo de que nossas autoridades irão se valer para dar conta desses velhinhos desempregados e “desprevidenciados”? Velhinhos que não são pobres o suficiente para terem direito a benefícios assistenciais como o BCP-LOAS e nem ricos o suficiente para ao final da vida produtiva terem acumulado uma gorda poupança que lhes permita viver mais 30 anos viajando, dedicando-se a hobbies e a trabalhos voluntários?

    Acredito que a solução que será encontrada será aquela proposta por países como a Holanda para lidar com a senescência, a eutanásia. Em, 2023, 9.068 pessoas morreram de eutanásia na terra das tulipas, dos moinhos e dos diques, o que corresponde a 5% do total de óbitos. A morte simultânea do casal Jan e Els, citado na abertura deste artigo, entra na estatística de 2024. Jan de 70 anos exerceu durante toda a vida ofícios que exigiam força física, como o descarregamento de mercadorias, e acabou adquirindo uma dor na coluna que uma cirurgia em 2003 não resolveu e que o obrigava a viver à base de analgésicos. Sua mulher Els, de 71 anos, havia sido professora e aposentou-se em 2018 quando começou a mostrar sinais de demência. A decisão de acabar com a vida foi tomada pelos dois de comum acordo e comunicada ao filho único. Ela resolvia vários problemas: acabava de vez com as dores insuportáveis de Jan, acabava com a angústia de Els de viver sabendo que sua demência só pioraria com os anos e a levaria a se tornar cada vez mais dependente, eximia o filho único de arcar com o fardo de cuidar de pais idosos e debilitados e economizava dinheiro para o Estado holandês, que não mais precisou pagar aposentadorias a duas pessoas que certamente precisariam ainda ser internadas em algum asilo financiado com dinheiro público.

    Diminuindo a dor e os ônus de um grande número de partes envolvidas, a eutanásia parece satisfazer aos critérios do princípio da maior quantidade possível de felicidade ou princípio utilitarista do filósofo e jurista londrino Jeremy Bentham, conforme exposto no trecho que abre este artigo. Afinal, o exemplo concreto da morte do casal Jan e Els mostra que de um lado foi evitada a dor física e o desconforto mental por que os dois passariam se tivessem ficado vivos e de outro lado foi proporcionado um benefício ao filho, que pode agora levar uma vida tranquila sem ter ninguém doente sob sua dependência e um benefício ao Estado, que economizou dinheiro. E mais, ninguém foi prejudicado pela morte dos dois velhinhos.  Sob essa perspectiva, a lei da eutanásia obedece ao princípio exposto por Bertrand Russell em sua exposição das ideias de Bentham de que a lei deve garantir que cada indivíduo possa seguir seu caminho rumo à felicidade e ao mesmo tempo permitir que todos os outros possam fazer a mesma coisa simultaneamente. Para Jan e Els, acabar com a vida era o caminho da felicidade pois evitava a dor inevitável à condição de decadência física em que se encontravam. O que pode haver de mal nisso se não o preconceito dos proponentes de uma moral de fundamento religioso que faz da vida um bem absoluto?

    E no entanto, Bertrand Russell expõe algumas falhas na visão utilitarista. Ela foi utilizada pelos economistas liberais para justificar o laisser faire e o livre comércio em voga no século XIX. A ideia era que se a cada indivíduo fosse dada a liberdade de perseguir sua própria felicidade, em termos de busca de bens materiais, a sociedade como um todo sairia ganhando, porque ao final haveria a maior quantidade de felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Como vimos quando tratamos da Revolução Industrial, o laisser faire teve um lado negro, pois permitiu a superexploração dos trabalhadores nas fábricas, exaurindo-os física e mentalmente. Jeremy Bentham pensava que a justiça para todos seria obtida se cada indivíduo ao calcular sua felicidade pensasse nela no longo prazo e no longo prazo é melhor que não prejudiquemos os outros membros da sociedade, porque isso tem repercussões negativas para nós.

    No entanto, será que o ser humano consegue agir cotidianamente e tomar decisões sobre o que fazer pensando no longo prazo? Será que ele tem informações suficientes sobre o que pode ocorrer no futuro para fazê-lo? E será que na prática não somos levados pelas nossas paixões e desejos de forma que a busca da felicidade como ideal acaba sendo uma busca da satisfação dos nossos instintos? Afinal, Sócrates no século V a.C. já havia nos alertado que sem conhecimento não pode haver virtude. Como ser virtuoso ao praticar o culto da felicidade se não conhecemos a nós mesmos e se não entendemos a realidade presente para antecipar o futuro?

    Sob essa perspectiva, será que o filho de Jan e Els, ao se ver privado dos pais por longos anos pela frente, não se arrependerá de ter compactuado com a morte deles porque lhe era mais conveniente no momento? Será que o Estado holandês que economiza agora, cortando custos ao liberar a eutanásia, não estimulará no longo prazo um individualismo cada vez maior, o esgarçamento cada vez maior dos laços familiares e desincentivará a constituição de famílias e a consequente reprodução das pessoas? Afinal, para que ter filhos se quando eu ficar velho serei coagida a me deixar ser objeto de eutanásia para não ser estorvo para ninguém? Quem sustentará o Estado se não houver pessoas que possam trabalhar, gerar riqueza e pagar impostos?

    Prezados leitores, a eutanásia pode ser útil e resolver no momento os problemas de um grande número de pessoas de maneira simples. No longo prazo, ela pode contribuir para destruir a civilização, porque ao cultivar a morte, ela acabará com o vínculo do passado com o futuro estabelecido por aqueles que praticam os valores de uma sociedade que pretende permanecer viva, notadamente o de preservar o legado deixado pelas gerações passadas para as gerações futuras. Espero que nosso Brasil, que está envelhecendo rapidamente e não achou ainda meio de dar emprego e condições dignas aos velhinhos, não adote esse expediente utilitarista. No final das contas, a eutanásia é útil para quê? Para resolver um problema financeiro imediato ou para destruir aquilo que gerações e gerações de seres humanos construíram ao longo dos séculos?

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Morrer para quê?

A Revolução Industrial transformou a moralidade. Ela não alterou a natureza do homem, mas deu novos poderes e oportunidades a antigos instintos que primitivamente eram úteis, mas socialmente causavam problemas. Ela enfatizou a motivação do lucro a um ponto em que parecia estimular e intensificar o egoísmo natural do homem. Os instintos não sociais tinham sido coibidos pela autoridade parental, pela instrução moral nas escolas e pela doutrinação religiosa.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Ele considera as religiões tradicionais como sendo os alicerces da moralidade dos escravos. De acordo com ele, o homem livre deve reconhecer que Deus está morto; aquilo pelo que devemos lutar não é Deus, mas um tipo mais sublime de homem. O exemplo típico de moralidade dos escravos Nietzsche encontrava no Cristianismo. Isso porque ele é pessimista ao cultivar a esperança de uma vida melhor em outro mundo, valorizando virtudes de escravo como a docilidade e a empatia.

Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Se não existe Deus, então eu sou Deus. […] Se Deus existe, então toda a vontade é Dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se não existe, então toda a vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio. […] Não compreendo como até hoje um ateu pôde saber que Deus não existe e não se matou no ato! […] O homem foi até hoje tão infeliz e pobre porque temeu proclamar a parte essencial do seu arbítrio.

Trecho retirado do livro “Os Demônios”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), falado pelo personagem Kiríllov

    Prezados leitores, eu já apresentei aqui anteriormente personagens da literatura como o Dr. Lydgate e sua esposa Rosemond, idealizados pela escritora inglesa George Eliot. Nesta semana abordarei um personagem do romance de Fiódor Dostoiévski, Os Demônios. O nome dele é Kiríllov e suas ideias são consideradas pela critica literária como uma antecipação avant la lettre do que seria proposto pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Se o casal inglês ilumina as relações passivo-agressivas às quais muitas vezes ficamos presos, o revolucionário russo ilumina os caminhos históricos pelos quais seu país enveredou no século XX e foram vislumbrados pelo autor de Os Demônios.

    Kiríllov faz parte de um grupo de rebeldes que se reúnem em Genebra, na Suíça, e têm a ideia de destruir todas as instituições russas, incluindo sua moral e sua religião para criar uma nova sociedade. De volta à pátria-mãe, os membros do grupo seguem percursos paralelos que vez ou outra se entrecruzam. O percurso de Kiríllov é o suicídio, que ele concretiza como uma manifestação da sua liberdade. Conforme o trecho que abre este artigo, se Deus não existe, o homem não está submetido aos seus ditames e nem deve a Deus a graça da vida. Não estando limitado por nenhuma regra imposta por algum Ser Supremo, o homem deve exercer seu livre-arbítrio e a manifestação mais perfeita desta liberdade de escolher o que fazer é escolher dispor da própria vida, que é o bem que segundo os ditames da religião teria sido concedido a nós por Deus. Dessa forma, o homem se torna Deus, porque ele cria e destrói como Ele faria se existisse. Entre continuar a viver e morrer, Kiríllov escolhe dar-se um tiro mortal.

    Daí porque Kiríllov anuncia a visão de mundo que seria defendida pelo filósofo alemão Nietzsche em obras como “Assim Falou Zaratustra” (1885). Tanto o personagem de Dostoiévski quanto o personagem de Nietzsche renegam e desprezam o cristianismo. Para Kiríllov, a morte de Jesus Cristo é absurda, não tem significado nenhum. Ele sofreu imensamente por nada, pois nem foi para o paraíso e nem ressuscitou. O amor, a compaixão, a caridade mostrados pelo principal personagem do Cristianismo não serviram de nada, pois foram pretensas virtudes que acabaram não sendo recompensadas nem aqui nem em um outro mundo. Nietzsche também envereda pelo mesmo caminho de desprezar as virtudes cristãs, que para ele servem apenas para escravos, pois incentivam o pessimismo, a subserviência e a timidez, já que implicam a aceitação do sofrimento de maneira inquestionável. Em contraposição a esta moralidade dos escravos, devemos criar a moralidade dos senhores, do homem sublime, conforme mencionado no trecho que abre este artigo.

    O homem sublime nietzschiano reconhece que Deus está morto, como Kiríllov reconhece, e tal reconhecimento é uma oportunidade de criar a moralidade do übermensch, isto é, do ser independente, generoso, resiliente que supera o velho homem que sofre e tem medo das vicissitudes que a vida lhe impõe, por isso sonha com a vida além da morte. O übermensch ao contrário, segue em frente, destemido, atuando no mundo de maneira implacável, sem reticência, mesmo porque ele, pertencente ao grupo dos melhores, tem pouca simpatia pelo sofrimento da maioria dos seres humanos que não estão destinados a grandes realizações como o übermensch, tomando o lugar de Deus, está.

    Não é de surpreender que uma nova moralidade, livre das amarras da religião cristã, tenha surgido na mente de intelectuais do final do século XIX como Dostoiévski e Nietzsche. Como tentei explicar neste meu humilde espaço na semana passada, a Revolução Industrial proporcionou a melhora das condições materiais da vida em virtude do emprego da tecnologia para a produção de bens de consumo em grandes quantidades e a um preço cada vez mais acessível a um grande número de pessoas. Conforme o trecho que abre este artigo, a Revolução Industrial acabou tendo um impacto também sobre a moralidade. Dotando o homem de novos poderes e de novas possibilidades, ela tirou o foco do sofrimento e da redenção após a morte para infundir-lhe otimismo ante o que ele poderia fazer no futuro. Isso claro, incluía destruir a antiga sociedade e recriar a sociedade sobre novas bases, já que o homem toma do Deus morto o poder de vida e de morte.

    Prezados leitores, os Kiríllov e os Zaratustra da vida real no século XX fizeram a revolução na Rússia, na China, no Camboja, entre outros países. Para que esse novo homem pudesse surgir foi preciso que milhares de homens morressem e para quê? Para ressuscitar para a vida eterna depois de sofrerem na Terra a opressão de outros homens? Ou para afirmar a liberdade de ação dos übermensch que decretam a morte de Deus, como é proposto em obras como “Os Demônios” e “Assim Falou Zaratustra”? E que novo homem surgiu depois de todas essas mortes? O mesmo egoísta de antes, mas sem amarras morais que lhe atassem à religião e à família? Ou um homem sublime, que prescinde de Deus porque ele é seu próprio Deus? Cada um ache sua resposta, conforme sua ideia do que é a vida e a morte.

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Missa para quê?

Goethe considerava que a “religião cristã é uma revolução política abortada que se tornou moral”. Há na literatura “mil páginas tão belas e úteis” quanto nas Escrituras. “Ainda assim eu considero todos os quatro evangelhos como genuínos, porque neles é evidente o esplendor refletido do poder sublime que emanava da pessoa de Cristo e de sua natureza, que era tão divina quanto o divino possa ter se manifestado na Terra … Eu tiro o chapéu para ele como a manifestação divina do mais alto princípio da moralidade. […] Ele suspeitava que o Protestantismo sofreria devido à falta de cerimônias inspiradoras, formadoras de hábitos, e ele considerava o catolicismo sábio e benéfico ao simbolizar as relações e desenvolvimentos espirituais com sacramentos que deixavam uma profunda impressão nas pessoas.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre as ideias do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

As expressões do divino como algo íntimo e não alienado, como residente no interior e perto do interior das pessoas e não remoto, caracterizam o panteísmo e o panenteísmo em contraste com o teísmo clássico. Tal imanência estimula o senso do homem de participação individual na vida divina, sem a necessidade de mediação por nenhuma instituição.

Trecho retirado do verbete sobre panteísmo e panenteísmo do volume 13 da edição de 1975 da Enciclopédia Britânica

 

Deixe o homem ser nobre,

Prestativo e bom

Porque isso é a única coisa

Que o distingue dos outros seres

Que conhecemos…

Trecho retirado “Wilhelm Meisters Wanderjahre, oder Die Entsagenden” do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), conforme citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre as ideias do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

    Prezados leitores, na semana passada eu humildemente conclamei os franceses que protestavam contra os resultados do primeiro turno das eleições a abandonarem o ódio e optar pelo amor, ou pelo menos por uma benevolência ou boa-vontade mútuas que os levassem a entender o ponto de vista do outro. Claro que esse apelo não foi ouvido por ninguém do outro lado do Oceano Atlântico e no segundo turno das eleições que ocorreram no último dia 7 de julho, os franceses praticaram o voto útil para mostrar seu repúdio ao Rassemblement Nacional, o partido que em 30 de junho havia chegado em primeiro e que uma semana depois acabou ficando na terceira posição. A democracia na França parece ter resvalado para o tribalismo, a luta de um grupo contra o outro, cada um com valores irreconciliáveis e cujo objetivo é destruir o inimigo. Quem perde com a polarização é o país: em não dialogando, a direita e a esquerda não conseguem pensar juntas e estabelecer denominadores comuns para a ação concreta. Prenuncia-se na França uma paralisia que pode piorar a situação do país cujas despesas públicas totalizaram 57,3% do PIB em 2023 (fonte: Trading Economics) e cuja dívida pública ficou em 117% do PIB em 2022 (fonte: Statista). A situação nos Estados Unidos não é diferente: se os espantalhos na França são Marine Le Pen, a líder da direita, ou o líder da esquerda Jean-Luc Mélenchon, na terra do Tio Sam os bichos-papões no momento são Donald Trump, considerado pelos seus detratores como mentiroso contumaz, e Joe Biden, o velho gagá, como não deixam de enfatizar os trumpistas.

    Nessa era de ódios e tribalismos como cultivar o amor e o respeito pelo outro? Meu objetivo nesta semana é apresentar-lhes a receita encontrada por Johann Wolfgang von Goethe, o autor da famosa obra Fausto, a mais importante já escrita na língua alemã. A receita de Goethe foi sendo elaborada ao longo da sua vida, com base nas experiências que teve e no conhecimento que ele adquiriu. A princípio, pode-se dizer que ele rejeitava o cristianismo, por uma série de razões: sua sensualidade, seu gosto pela vida o impediam naturalmente de considerar-se um eterno pecador por ter tais características. A história de que Jesus Cristo era o filho de Deus, vindo à Terra no ventre de uma mulher virgem para redimir os pecados da humanidade pela morte na cruz parecia-lhe absurda. Para Goethe, provavelmente o que o homem Jesus quis foi livrar os judeus do jugo dos romanos, mas o resultado prático da sua tentativa de rebelião foi a criação por seus seguidores de uma igreja que ao longo do tempo se institucionalizou e arvorou-se em detentora da verdade sobre o que era o bom e o mau comportamento. Para um indivíduo que se via como parte da Natureza, que não é nem boa nem má, mas simplesmente existe e se destrói e se recria constantemente, era impossível seguir os preceitos quer do Catolicismo, quer do Protestantismo e levar a vida reprimindo seus sentimentos e seus desejos para não se sujar com a mancha do pecado e condenar-se à danação eterna.

    Se a religião, tal qual estabelecida no Ocidente, não satisfazia seus anseios existenciais, a que Goethe recorreu? À arte e à ciência. Daí ele ter sido um cientista diletante, que publicou obras sobre a natureza das cores e anatomia comparativa, e ter sido um praticante da literatura que escreveu obras de ficção, autobiografias, peças de teatro e poemas. Nesse sentido, pode-se dizer que Goethe foi um panteísta, conforme a definição que abre este artigo: na qualidade de artista e portanto, dotado de aguçada sensibilidade, ele não poderia simplesmente conceber o mundo como algo meramente material, pois nele o material e o espiritual existiam intrinsicamente ligados. Deus não é uma entidade remota e abstrata como o pintava o teísmo clássico, mas algo imanente à Natureza, à forma como ela se manifestava em termos de eventos necessários, que obedeciam a leis imutáveis, mas também em termos de uma potência criadora e destrutiva que faz o homem maravilhar-se ante as surpresas e os mistérios que ele encontra no mundo exterior.

    Panteísta sim, teísta não. Deus é imanente à Natureza, não é um patriarca severo que dita regras morais aos homens do alto do seu trono no céu. E no entanto, será que Goethe era contra a religião? Ele, indivíduo intelectualmente preparado, sedento de conhecimento e extremamente sensível, alimentava seu espírito pela arte e pelo contato com a Natureza, seja estudando-a como cientista seja deleitando-se em contemplá-la em suas múltiplas manifestações. No entanto, ele tinha a sabedoria de admitir que nem todas as pessoas podiam ser como ele e que à falta de arte e de ciência, a religião poderia ser uma porta para a vida espiritual e fazer do homem uma criatura diferente dos outros seres vivos, na medida em que ele tinha a capacidade de fazer o bem.

    Conforme o trecho que abre este artigo, Goethe descartava a maior parte das afirmações teológicas do cristianismo sobre a divindade de Jesus Cristo, sua ressurreição dos mortos, etc. Mas ele não podia deixar de constatar que Jesus Cristo, ao pregar o amor como princípio moral básico, tinha sido um ser humano excepcional, que se elevou às mais altas esferas ao cultivar o que há de melhor no homem. Nesse sentido, a religião tinha o seu valor porque permitia que pessoas sem propensão artística ou intelectual cultivassem o espírito por meio dos sacramentos, dos rituais e dos símbolos da igreja. Nesse sentido, as missas da Igreja Católica para ele eram instrumentos mais poderosos para levar as pessoas a se conectar ao todo, ao mistério da vida do que os cultos protestantes, que ao darem muita ênfase aos sermões, à palavra, à argumentação teológica sem apelo à emoção não seriam tão inspiradores.

    Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Em pleno século XVIII, em que o cristianismo havia sido desacreditado intelectualmente pelos Iluministas, Goethe achou um lugar para os rituais religiosos: se o hábito de ir à missa aos domingos permite ao homem ter contato com a sua melhor parte ao lembrá-lo do cerne da mensagem de Jesus Cristo, qual o problema se as pessoas letradas não podem crer em todos os dogmas da Igreja? Afinal, como o poema citado na abertura deste artigo afirma, a nobreza do homem não está em ajudar seus semelhantes e fazer o bem?

    Prezados leitores, à luz das lições do maior escritor da língua alemã fica a dica para combatermos os maus sentimentos que predominam no mundo. Adquiramos o hábito de frequentar um culto religioso: por mais que não possamos aceitar muitas das proposições sobre a divindade que as igrejas oferecem, ao menos uma vez por semana cultivaremos o espírito e teremos a sensação que Goethe tinha ao olhar para as montanhas ou para o céu estrelado ou ao ler um poema ou uma música. Quem sabe com isso achemos nossa humanidade comum e sejamos mais benevolentes uns com os outros? Não custa tentar, basta que nos livremos dos nossos preconceitos antirreligiosos. Em suma, missas para quê? Para que, à falta dos talentos de um artista ou cientista, qualquer homem comum possa ter a oportunidade de concretizar sua vocação para uma vida em sociedade, em que um ajuda o outro em prol do bem de todos.

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Amor para quê?

Quando a igreja se torna uma instituição que força a crença ou o culto: quando ela presume ser ela a única com o direito de interpretar as Escrituras e de definir a moralidade; quando ela forma um clero que alega ter a exclusividade de aproximação com Deus e com a graça divina; quando ela torna seu culto um ritual mágico detentor de poderes miraculosos; quando ela se torna uma arma do governo e um agente de tirania intelectual; quando ela procura dominar o estado e usar os líderes seculares como instrumentos da ambição eclesiástica – então a mente livre levantar-se-á contra tal igreja, procurando fora dela aquela “pura religião da razão” que é a busca da vida moral.

Paráfrase de um trecho do livro “Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft”, do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

Quando eu odeio eu retiro algo de mim mesmo; quando eu amo eu me torno mais rico por aquilo que amo. O perdão é o recebimento de um bem que foi perdido. A misantropia é um suicídio postergado.

A ética de Jesus Cristo, conforme definida por Johann Christian Friedrich Schiller (1759-1805), poeta autor da Ode à Alegria cantada na parte final da Nona Sinfonia de Beethoven, citado no livro “Rousseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

As ruas de Paris transformaram-se em palco de uma guerra na noite de domingo, quando dezenas de milhares de desordeiros de esquerda foram às ruas para mostrar sua oposição ferrenha à vitória histórica nas eleições legislativas do partido de direita francês Rassemblement National. Os desordeiros quebraram vitrines de lojas, vandalizaram monumentos e acenderam fogueiras em praças públicas depois que os resultados da eleição revelaram que o partido, liderado pela nacionalista Marine Le Pen, teve 33% dos votos no primeiro turno decisivo das eleições legislativas na França.

Trecho retirado do jornal New York Post sobre as eleições realizadas na França em 30 de junho, convocada pelo presidente Émmanuel Macron para a formação de um novo governo

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei o conceito de imperativo categórico do filósofo Immanuel Kant e tentei aplicá-lo às ações dos houthis no Mar Vermelho à luz das críticas que foram feitas a ele por Bertrand Russell (1872-1970). Nesta semana, explorarei mais a ética kantiana para contrapô-la a uma visão menos racional da religião com o objetivo de analisar as manifestações de ódio ocorridas em Paris no dia 30 de junho e propor uma saída para a ameaça que elas revelam.

    Para Kant, a única religião defensável era uma religião da razão, isto é, uma religião que colocasse no centro das preocupações humanas a obediência a um senso do dever, o qual era uma manifestação da existência do divino no homem, portanto inexplicável e eterno: o ser humano nasce com a centelha de uma consciência moral que não se apaga jamais e o papel da religião é o de fazer com que essa centelha se transforme em uma brilhante fogueira que leve o homem a viver uma vida moral, isto é, uma vida dedicada à concretização do imperativo categórico de fazer a coisa certa em qualquer momento ou circunstância, independentemente das preferências pessoais.

    Daí por que o filósofo de Konisberg, cidade que ficava na antiga Prússia e hoje é Kaliningrado na Rússia, rejeitava a religião, conforme ela estava institucionalizada no século XVIII. Cultivando a razão e o livre arbítrio como fontes da ação ética, Kant insurgia-se contra tudo o que havia de irracional e arbitrário nas igrejas constituídas na Europa, conforme o trecho que abre este artigo. Assim, ele criticava o uso da religião, dentre outras coisas: como forma de controlar o pensamento das pessoas e de sufocar o livre exercício pelo indivíduo das suas faculdades mentais; como forma de manter  as elites no poder pela supressão das críticas ao sistema econômico e político; para impor a visão de que os membros da igreja eram os únicos com acesso à verdade, por conta de suas relações privilegiadas com Deus, estabelecidas por meio da instituição; como instrumento de culto de mitos e de prática de rituais que contrariavam a realidade dos fatos e os ensinamentos da ciência e que só serviam para dar uma aura de mistério a algo que era simplesmente absurdo.

    Assim, a igreja enquanto instituição prestava um desserviço ao exercício da “pura religião da razão” proposta por Kant, por ser um mero exercício de poder daqueles que se arvoravam em defensores do bem contra o mal e de divulgadores da verdade revelada, mas que no mais das vezes apenas defendiam seus privilégios e, em fazendo isso, praticavam atos imorais e propagavam mentiras. O que fazer em tal situação? Guiar-se pelos ditames da nossa consciência moral, manifestação divina?

    Ora, o exemplo das ações dos houthis, que querem diminuir a injustiça infligida aos palestinos piorando a vida de bilhões de pessoas ao redor do mundo por seus ataques a navios cargueiros, mostra que o senso de dever de cada indivíduo não é um guia infalível para fazer o que é certo. Navegando pelos meandros da razão, o ser humano pode acabar apenas dando vazão a paixões por meio da racionalização das suas motivações. Será que os houthis defenderiam grupos não muçulmanos da opressão da mesma maneira que estão defendendo os palestinos? Ou será que no final das contas, fazer a coisa certa para os houthis é simplesmente ajudar grupos amigos, membros da mesma tribo religiosa?

    Talvez a saída seja adotar uma concepção menos racional das obrigações éticas do homem. É o que fez o poeta alemão Schiller em uma série de cartas reunidas sob o título de “Philosophische Briefe”. Esqueçamos a velha teologia, que não pode ser mais aceita à luz dos avanços do conhecimento humano. Fiquemos com a mensagem básica de Jesus Cristo, o homem em nome de quem todas as igrejas ocidentais foram criadas, conforme citada no trecho que abre este artigo: amemos uns aos outros. É melhor amar do que odiar, porque o amor nos enriquece e o ódio nos empobrece espiritualmente, nos torna amargos, rancorosos e nos faz nos sentirmos injustiçados por aqueles que são o objeto do nosso sentimento.

    Nos tempos atuais, de polarizações políticas, a máxima de Schiller talvez nos livre das armadilhas do exercício da razão para o estabelecimento de obrigações éticas. Conforme o trecho que abre este artigo, no dia 30 de junho, após a divulgação dos resultados das eleições legislativas na França, nas quais o partido de direita de Marine Le Pen obteve o primeiro lugar, houve manifestações de protesto reunindo milhares de pessoas de esquerda. Todas elas convictas de estarem fazendo o que é certo, de estarem lutando contra o racismo, contra a xenofobia, contra o fascismo e a favor da democracia e da justiça a favor dos oprimidos. Será que o debate entre direita e esquerda renderá algum fruto? Considerando que cada lado do espectro político tem uma definição própria do que seja racismo, xenofobia, fascismo, democracia e justiça, baseada em seus valores fundamentais, será que o exercício da razão será de alguma utilidade? Como fazer uso da razão para chegar à verdade se não é possível que as partes beligerantes cheguem a um acordo sobre as premissas básicas da discussão?

    Daí que a saída pode estar em cultivar o amor e não o ódio, como Jesus Cristo fez, aos olhos de Schiller. Se olharmos o outro de maneira benevolente, talvez tornemo-nos mais dispostos a chegar a um meio-termo sobre as definições de conceitos que viabilizam uma discussão produtiva e a obtenção de conclusões e de consensos que permitam à sociedade executar soluções práticas para os problemas que são de todos. Se continuarmos no Ocidente a cultivar o ódio, a estigmatizar o objeto do nosso ódio e a colocá-lo em categorias éticas negativas que nos permitem continuar a odiá-lo sob o manto da vitimização e da superioridade moral, o próximo passo é a violência tornar-se institucionalizada, como parece ser o caso na França, um país desenvolvido que está a ponto de explodir.

    Prezados leitores, amemos uns aos outros: sem amor não há pensamento equilibrado, não há discussão produtiva e não há democracia que aguente os ataques mútuos. A hora é agora, pois se demorarmos muito perderemos o bonde e chafurdaremos na guerra de todos os injustiçados contra todos os injustiçados.

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