É a lama, é a lama

As pessoas mais pobres, que vivem em habitações precárias e em territórios vulneráveis, são as mais afetadas pelos choques climáticos.[…] “Os mais pobres estão não somente mais expostos, mas eles perdem muito mais quando atingidos por essas catástrofes, insiste Stéphane Hallegatte, economista do Banco Mundial, que dirigiu a equipe encareegada desse relatório. Isso porque o patrimônio delas, que não está em uma conta bancária e normalmente resume-se aos animais de criação ou à habitação, é muito mais vulnerável e pode ser completamente destruído por um choque.”

Retirado do artigo “A mudança climática prejudica a erradicação da pobreza” publicado na edição eletrônica do jornal Le Monde em 8 de novembro a respeito do relatório preparado pelo Banco Mundial intitulado “Shock waves: managing the impacts of climate change on poverty”

    Prezados leitores, este ano de 2015 parece ser um annus horribilis para nós brasileiros. Estávamos chafurdando no mar de lama metafórico da corrupção em Brasília, que não poupa ninguém, ateus, católicos, evangélicos, comunistas, socialistas, capitalistas, todos irmanados no culto à cobiça. Nós, pobres espectadores, estaqmos assistindo impotentes ao espetáculo e no fechar das cortinas temo que deixaremos o recinto com um desgosto tão enraizado com a política que o nível dos nossos representantes caíra ainda mais nos anos vindouros.

    Mas eis que um mar de lama literal nos atinge, dessa vez mais ao sul do Brasil varonil, para ser precisa no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km do centro do município de Mariana, cidade histórica mineira a 124 km de distância de Belo Horizonte. No dia 5 de novembro, por volta das quatro e meia da tarde as barragens do Fundão e de Santarém, estouraram, por causas ainda desconhecidas, liberando uma quantidade espetacular de resíduos da mineração de ferro realizada pela empresa Samarco, de propriedade da mineradora brasileira Vale e da mineradora Australiana BHP. Até agora são 2 mortos e 500 desabrigados, mas provavelmente serão 29 as fatalidades, considerando os desaparecidos. Como vivemos em um mundo global, a lama que desce rumo ao Espírito Santo tem efeitos sobre o preço das ações da BHP, que caiu mais de 8% desde o anúincio do desastre. O presidente da empresa, Andrew Mackenzie, já está no Brasil para avaliar com seus próprios olhos o tamanho da encrenca.

    Não estou aqui a falar apenas da destruição completa de Bento Rodrigues, mas dos efeitos a médio e longo prazo dessa enxurrada de lama. Várias perguntas se colocam: quanto tempo demorará para que o solo seja recuperado para a agricultura depois da invasão da areia que, de acordo com informações oficiais é o principal ingrediente da lama? Haverá metais pesados que se infiltrarão nos lençois freáticos? Não é demasiado lembrar que a região Sudeste está passando por um período de seca tão intenso que até a divisa dos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo não é mais a mesma desde que o rio fronteiriço praticamente secou. A contaminação da pouca água que existe com rejeitos do beneficiamento de minério é uma péssima notícia. Além do mais, como responsabilizar civilmente a Samarco considerando que as barragens passaram por vistoria em julho e aparentemente os fiscais não encontraram nada de errado? É possível a responsabilização objetiva da empresa, isto é sem necessidade de comprovação de culpa, apenas pela constatação do dano causado e pela relação de causalidade entre o dano e atividade mineradora. Por outro lado, é de esperar que os advogados da empresa, a fim de limitar o valor das indenizações a serem pagas, aleguem que suas operações não tinham nada de irregulares aos olhos do poder público. Não tenho dúvida de que a Samarco, controlada por duas empresas globalmente conhecidas, indenizará as vítimas diretas, providenciará a construção de um novo distrito para os desalojados. Mas e aqueles que serão afetados indiretamente pela lama como ficarão? Como ficarão os donos de pousadas em Mariana que vivem do fluxo de turistas, como ficarão os habitantes das cidades do Espírito Santo que enfrentarão a falta d’água, ou pior, a insegurança sobre a qualidade da água nos próximos meses?

    Está aí um dos pontos fracos da economia de mercado, os efeitos adversos das decisões individuais que recaem sobre as outras pessoas, as chamadas externalidades negativas. Alguém na Samarco decidiu que consertar algumas fissuras da barragem aumentaria as despesas de maneira desnecessária, já que as autoridades mineiras não exigiram tal medida para considarem a inspeção feita. A mineradora economizou dinheiro e como isso causou um desastre ambiental que afetará milhares de brasileiros, em economês diríamos que o custo marginal é menor do que o custo social o que leva a que o benefício marginal usufruído pela empresa como agente econômico

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Que Pena

[…] o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. […]O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.

Trecho retirado do livro “Dos Delitos e das Penas” de Cesare Beccaria, jurista italiano (1738-1794)

Infelizmente, os presídios no Brasil ainda são medievais. E as condições dentro dos presídios brasileiros ainda precisam ser muito melhoradas. Entre passar anos num presídio do Brasil e perder a vida, talvez eu preferisse perder a vida, porque não há nada mais degradante para um ser humano do que ser violado em seus direitos humanos.

Trecho de palestra proferida pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em 13 de novembro de 2012 ao Grupo de Líderes Empresariais

    Prezados leitores,querem saber como é o cotidiano de uma prisão em um país do primeiro mundo? Assistam à série Unité 9, sobre um presídio feminino em Montreal, na província de Quebec. Dessa forma, na exata medida em que a ficção retrata a realidade, saberão a diferença de tratamento dos condenados entre o Canadá, país com renda per capita de 44.800 dólares americanos em 2014, e o Brasil, cujo PIB por pessoa era de 16.100 dólares americanos em 2014. É simplesmente hilário para nós brasileiros percebermos a discrepância.

    Hilário porque para nossos padrões de masmorras medievais a que aludiu o Ministro da Justiça há quase três anos a Unité 9 parece uma colônia de férias do SESC. As presas têm um quarto individual, apesar de o banheiro ser coletivo. O coletivo ali significa simplesmente que ele é compartilhado por umas sete presas. Esse grupo de companheiras de infortúnio dividem sala de estar, cozinha e telefone de onde podem fazer chamadas a qualquer momento. Durante o dia têm direito a frequentar a biblioteca, a assistir a aulas, a costurar e a praticar esportes no amplo gramado, onde a inspetora chefe organiza partidas de frisbee. Há assistência psicológica e médica 24 horas por dia e uma das presas lê o regulamento para verificar se tem direito a pleitear cirurgia de reconstituição das duas mamas retiradas por causa de um câncer. Essa assistência multidisciplinar inclui um tutor que acompanha o período de internação da condenada, observando sua evolução, o que significa observar a que passos ela está caminhando rumo à reintegração social. A reinserção do indivíduo no seio da sociedade que momentaneamente o expulsou para que ele pudesse ser reeducado é o ideal perseguido por toda prisão nos países ocidentais que adotaram a filosofia iluminista expressa em termos de Direito Penal no livro de Cesare Beccaria, autor da ideia de que penas cruéis e degradantes são estúpidas e inúteis.

    A busca contínua da melhora do preso se faz presente nos mínimos detalhes. Cada guarda deve dar sua opinião ao diretor do estabelecimento sobre como a presa está se comportando, para que o bom comportamento seja recompensado. No episódio da semana passada há um exemplo da prática dessa política de reabilitação. Uma mulher, assassina do pai que abusava sexualmente da neta, filha dela, tem direito a casar dentro da prisão: o Estado lhe fornece um belo vestido de noiva, feito sob encomenda e os parentes da noiva podem comparecer. Como lua de mel ela tem direito a passar uns dias na unidade familiar com seu príncipe encantado, uma casa em que podem desfrutar de toda privacidade. O diretor aprovou o casamento pois considerou que isso facilitaria a transição da parricida rumo à vida pós-prisão.

    Claro que nem tudo são flores, há corrupção das guardas, há tráfico de drogas, as presas sofrem de uma angústia permanente por estarem sendo vigiadas, por estarem longe dos filhos, por se arrependerem da bobagem que fizeram para estar ali. Mas percebem o porquê de uma brasileira como eu assistir a tudo embasbacada? Não importa aqui discutir a verossimilhança de o roteirista da série fazer uma condenada casar-se com um homem sensível e bonito que disse à sua esposa que nunca a trairá, apesar de eles não poderem fazer sexo frequentemente. Para mim esse moçoilo compreensivo foi particularmente difícil de engolir como real, sabendo eu que no estado de São Paulo, de acordo com a Fundação de Amparo ao Preso, 36% das mulheres não recebem visitas, ao passo que 29% dos homens não recebem visitas, ou seja as mulheres são mais rapidamente descartadas por seus companheiros, namorados e maridos, pelo menos em nosso Brasil lindo e trigueiro.

    Independentemente de quão os homens canadenses possam de fato ser mais amorosos do que os homens brasileiros, o que importa é que em linhas gerais há uma certa conduta observada em um país como o Canadá, para o qual um preso não deve ser um objeto de vingança, mas de políticas públicas. Pode até ser que os índices de reincidência das pessoas que saem das prisões de Quebec não sejam lá muito diferentes dos verificados aqui nos trópicos, mas o fato é que o cotidiano das internas mostra que são cidadãs vigiadas, revistadas, repreendidas, mas com certas garantias dadas a todos os habitantes da tundra canadense, em que a expectativa de vida da população é de 82 anos (73 anos no Brasil) e em que a mortalidade infantil é de 4,65 bebês em cada mil nascidos vivos (18,6 no Brasil).

    As perguntas que surgem agora são muitas: será que a diferença entre colônia de férias do SESC canadense e a masmorra medieval denunciada por José Eduardo Cardozo deve-se simplesmente à diferença de renda e das condições sociais das respectivas populações? Ou será que a sociedade brasileira tem uma característica perversa de não aceitar que assassinos, pedófilos, ladrões e corruptos continuam sendo espécimes do gênero humano? Será que nossa mentalidade ainda não absorveu as luzes da Razão e ainda não percebeu que garantir direitos aos presos é garantir direitos a todos? Ou será que nosso desprezo pelos delinquentes, nossa raiva em relação a eles, nosso prazer em vê-los mofando na cadeia é uma justa reação à violência que perpetraram, ao dinheiro que roubaram? Será que devemos nos regozijar pela justiça sendo feita quando o STJ nega habeas corpus a Marcelo Odebrecht ou estamos apenas exercitando o prazer da retribuição contra os ricos? Até que ponto a sanha de vingança da população influencia a decisão dos juízes de ordenarem e manterem prisão preventiva? Até que ponto a “conveniência da instrução criminal” estipulada no artigo 312 do Código de Processo Penal é uma desculpa para saciar a sede de sangue dos brasileiros fartos com a corrupção?

    Prezados leitores, as respostas a essas perguntas cada um dá de acordo com suas opiniões filosóficas e políticas. Uma coisa é certa para mim. É uma pena que os brasileiros não desfrutem das penas dos canadenses.

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Uma pitada de sal

A estrutura de cooperação é insidiosa. Há muito tempo os promotores têm a capacidade de oferecer às testemunhas benefícios valiosos, incluindo dinheiro, em troca do testemunho que incrimina os cúmplices. Atualmente as diretrizes sobre o pronunciamento de sentenças na justiça federal (antigamente obrigatórias; ainda altamente sugestivas e bastante seguidas pelos juizes) recompensam os réus que declaram ser culpados e dão ao governo os depoimentos de que este precisa para processar outras pessoas. Leis com redação imprecisa exacerbam o problema tornando relativamente fácil para um comparsa testemunhar que um antigo colaborador é realmente um sujeito corrupto.

Trecho retirado do livro “Three felonies a day – How the Feds Target the Innocent” escrito por Harvey A. Silvergate

A pena será reduzida de 1(um) a 2̷ 3 (dois terços) e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos, que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos, ou valores objeto do crime.

Parágrafo quinto do artigo primeiro da Lei 9.613 de 3 de marçõ de 1998 sobre lavagem de dinheiro

  Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes Harvey A. Silvergate, um advogado criminalista americano que atua em Boston e autor da citação acima. Harvey é um feroz crítico da justiça federal penal dos Estados Unidos. Seu livro relata casos de processos penais movidos por promotores de justiça em que, no entender do autor, não foi dada aos réus a chance de defenderem-se de maneira adequada e portanto houve a condenação injusta desses indivíduos ou empresas. As principais armas utilizadas pelos promotores para aumentar seus índices de condenação e portanto tornarem-se mais populares (lembrem-se que nos Estados Unidos o cargo é eletivo e serve ainda como trampolim para carreiras políticas, como Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York não me deixa mentir) são duas, de acordo com Harvey: a exploração de tipos penais abertos e a delação premiada.

    Para entender o que é um tipo penal aberto vou dar-lhes um exemplo clássico de um crime na mais perfeita acepção da palavra que é o homicídio. Matar alguém exige uma ação no mundo físico, um ser humano como objeto e uma intenção de acabar com a vida de alguém, revelada pelos atos do autor, como pegar a arma e apontar em direção à vítima. Além disso, qualquer pessoa sabe que dar um tiro fatal é algo condenado moral e legalmente. Tudo muito claro, direto, completo, o que permite aplicar a pena de prisão àquele que praticou o ato, sem grandes dilemas. Ora, o tipo penal aberto embaralha as coisas porque exige uma interpretação a respeito do que ocorreu no mundo dos fatos, não é simplesmente um filme de ação a que o juiz, ou o júri, assiste com a vítima no meio de uma poça de sangue.

    Um exemplo desse tipo de crime é o descrito no artigo 177 do Código Penal Brasileiro, que condena afirmações falsas feitas a respeito da constituição de uma sociedade e a ocultação fraudulenta de fato relativo a ela. Perceberam como a coisa se complica? Como decidir o que é uma afirmação falsa? Como decidir o que significa na prática ocultar de maneira fraudulenta uma informação? O perigo de tais crimes cuja existência depende de um julgamento de valor é que o réu pode estar fazendo algo que ele pensa ser certo ou porque é uma prática corrente no seu meio profissional ou porque seus valores morais individuais não veem nada de errado naquilo. O parágrafo primeiro daquele artigo criminaliza a conduta de um diretor que conta mentirinhas sobre as reais condições econômicas da empresa. Ora, será isso manifestação de um desígnio maligno de enganar as pessoas ou uma prática adotada por aqueles que carregam as maiores responsabilidades pela condução dos destinos do negócio? Será que dar notícias negativas não pode afugentar investidores? Como decidir o que é fraude e o que é meia-verdade inocente contada por diligência profissional?

    É um fato da sociedade contemporânea que esses tipos penais abertos estão cada vez mais presentes nos códigospenais de todos os países, porque a vida tornou-se mais complexa e as possibilidades de causar prejuízos a outras pessoas multiplicaram-se. A voz do povo exige que mais e mais condutas sejam criminalizadas para que haja justiça, e no afã de satisfazerem aos desejos da população e de estarem antenados com as mudanças econômicas e tecnológicas, os legisladores muitas vezes aprovam leis que são imprecisas e mal escritas. Harvey mostra como os promotores federais americanos aproveitam-se disso para dar aos “statutes” uma interpretação criativa que permite condenar indivíduos desprevenidos que não imaginavam que destruir papeis de trabalho depois de uma auditoria para preservar a confidencialidade das informações do cliente e para diminuir custos de armazenamento de materiais é obstrução da justiça para os FEDs. Chega-se a uma situação kafkaniana em que o sujeito está cometendo crime sem o saber, daí o nome do livro.

    A segunda arma dos promotores é a delação premiada. Harvey condena esse instituto porque na mão dos promotores sedentos de condenação ela não é um instrumento de busca da verdade dos fatos, mas de coação do réu que normalmente é forçado a aceitar confessar algo para ter uma pena menor ou ficar isento de pena, livrando-se de um processo judicial que lhe custará tempo e dinheiro e terá desfecho incerto. Muitos que caem na mira dos promotores, mesmo considerando-se de boa fé inocentes, preferem barganhar para evitar o pior e não cair em desgraça com as autoridades. Em suma, a delação acaba sendo uma transação que potencializa as condenações pela pressão que exerce sobre a parte que tem tudo a perder no curto prazo se não ceder e pouco a ganhar no longo prazo se heroicamente resolver levar o processo às últimas consequências. Um caso típico relatado por Harvey é o da antiga firma de auditoria Arthur Andersen que auditava as contas da empresa americana Enron. A Arthur Andersen recusou-se a aceitar as condições draconianas oferecidas pelo Departamento de Justiça, que queria que a empresa divulgasse todos os seus registros e colocasse à disposição todos os seus funcionários para deporem no processo. O resultado é que a empresa foi condenada por obstrução da justiça em 2002 ao pagamento de uma multa de 500.000 dólares, teve sua reputação destruída, algo fatal para uma empresa do ramo, e quando conseguiu reverter a decisão na Suprema Corte, em 2005, já era tarde demais.

    Prezados leitores, abordar o que tem a dizer um advogado de defesa americano parece-me relevante porque o Brasil não só tem inúmeros tipos penais abertos – temos um crime tipificado no artigo 359-B de” inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar”, acreditem se quiser – como também adotou o instituto da delação premiada na lei citada acima, na lei 8.137 de 1990 que trata dos crimes contra a ordem tributária e na lei 7.492 de 1986, que trata dos crimes contra o sistema financeiro. Em um momento em que estamos no afã de fazer uso desses dois truques jurídicos na cruzada contra a corrupção, é bom estarmos cientes do seu lado negro. Uma pitade de sal no angu de caroço brasileiro não faz mal a ninguém.

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A Arte ou a Maldição do Convencimento

O que preocupa a elite intelectual neste momento [século XIII] é a dialética, isto é a arte de argumentar, considerada então a arte por excelência, […] a disciplina das disciplinas, aquela que ensina a ensinar, que ensina a aprender; nela a razão descobre e mostra o que ela é. […] não se concebe como possível chegar a uma verdade que não foi anteriormente disputada: daí a importância da dialética, que ensina a estabelecer as premissas de um diálogo, a enunciar corretamente os termos de uma proposição, a estabelecer os elementos do pensamento e do discurso, enfim tudo o que permite ao discurso ser fecundo.

Trecho retirado do livro da historiadora francesa Régine Pernoud (1909-1998) “Heloise et Abelard”

A escolástica, enquanto movimento, difere da filosofia clássica pelo fato de suas conclusões serem circunscritas antes do evento. Ela deve funcionar nos limites da ortodoxia . […] Em termos de método […] utiliza os argumentos dialéticos com quase nenhuma referência aos fatos.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” de Bertrand Russell, filósofo inglês (1872-1970)

Blair continua a defender você e os Estados Unidos à medida que avançamos na luta contra o terrorismo e na guerra contra o Iraque. Ele apresentará a você as linhas estratégicas, práticas e aquelas relativas a questões públicas que ele acredita reforçarão o apoio mundial a nossa causa comum.

Memorando enviado por Colin Powell em 28 de março de 2002 ao então Presidente dos Estados Unidos a respeito da reunião que este teria em seu rancho Crawford no Texas com o então primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair de 5 a 7 de abril de 2002

    Prezados leitores, vocês sabem a diferença entre demonstrar e convencer? Para explicar-lhes, vou começar dizendo que na Idade Média os intelectuais demonstravam por meio da dialética, ao passo que na Renascença os intelectuais convenciam por meio da retórica redescoberta pela leitura dos autores clássicos. A demonstração é uma operação que segue regras rígidas, as quais se forem violadas põem tudo a perder: um silogismo cuja premissa é falsa não fica de pé, assim como cai por terra aquele em que a conclusão não deriva necessariamente dos seus termos. É uma pena que nosso ensino seja tão esculhambado que tal arte tenha sido totalmente deixada de lado, de modo que falamos e ouvimos por aí declarações que do ponto de vista lógico são absurdas.

    A grande revolução da Renascença foi que os sábios da época deixaram de lado as amarras da escolástica e deram- se a liberdade de pensar livremente. Naquela época, digamos séculos XIV, XV, pensar livremente não significava a ampla liberdade que temos de fazer ataques pessoais como normalmente acontece em pleno século XXI na internet, mas simplesmente não ter as conclusões colocadas a priori, como ocorria com os praticantes da dialética, que sempre deveriam chegar à conclusão de que Deus existe, de que Deus é onipotente, onipresente e criou o mundo e todos os dogmas da Igreja Católica. Os renascentistas lançaram-se à busca de outras fontes de sabedoria que não fossem a Bíblia, incluindo o mundo real, o mundo das cidades em pleno florescimento econômico e cultural. Para eles, mais importante que demonstrar verdades com base exclusivamente em exercícios mentais, era convencer as pessoas sobre um determinado rumo a seguir, seja a assinatura de um tratado de paz, a construção de uma obra pública, o estabelecimento de relações comerciais. Neste admirável mundo novo em que havia tanto por fazer e descobrir, engajar as pessoas em empreendimentos conjuntos exigia fisgá-las pelas palavras, seja por aquilo que as palavras mostravam da realidade externa quanto da realidade interna dos homens.

      Não é exagero dizer que isso foi um passo gigantesco, pois o caminho que a civilização ocidental trilhou desde então foi sem volta. É claro que demonstrações ainda são e serão imprescindíveis na matemática, por exemplo, mas na arena pública o tempo de ouvir monges decantando as verdades extraídas da Bíblia passou definitivamente. Nós estamos dispostos a ouvir qualquer um que nos toque o coração revelando algo sobre nós mesmos ou a razão mostrando-nos os fatos, ou melhor, alguém que faça uma mescla dos dois. Um exemplo de exercício desta arte do convencimento foi dado por Tony Blair primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007, que foi o instrumento oratório de George Bush, um homem com notórias dificuldades linguísticas, para tornar a Guerra do Iraque palatável e aceita pela “comunidade internacional”.

    A extensão dos serviços de Blair está sendo revelada com a publicação, ordenada pela justiça americana, de 30.000 e-mails recebidos por Hillary Clinton enquanto ela foi Secretária de Estado de 2009 a 2013. Como é sabido, Hillary está sendo investigada por ter utilizado um servidor pessoal para troca de informações confidenciais fora da rede segura do governo do Estados Unidos, e no âmbito das investigações ora em curso os memorandos sobre as atividades dos membros do governo de George Bush estão sendo revelados. Blair foi crucial no esforço de guerra não pelo poderio bélico do seu país, mas por ter dado uma pátina de respeitabilidade a uma intervenção militar que não foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, e portanto violou o direito internacional. Em abril de 2002, exatos onze meses antes do início da guerra no Iraque, George e Laura Bush receberam Tony e Cherie Blair no rancho do texano e conforme mostram os memorandos escritos por Colin Powell, o Secretário de Estado americano de 2001 a 2005, lá costuraram a estratégia de convencimento da utilidade de depor Saddam Hussein.

    Como evidência da periculosidade do ditador sanguinário, Blair repetiu ad infinitum as informações colhidas pelos órgãos de inteligência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha que Saddam tinha desenvolvido armas de destruição em massa e estava pronto a utilizá-las, o que revelou-se totalmente sem fundamento. É claro que para a imprensa ao chegar ao Texas o advogado formado em Oxford disse que “Não estamos propondo ação militar neste momento”. Tudo mentira, pois um acordo foi selado então: Bush apresentaria Blair como o líder do Reino Unido, parceiro especial e estratégico dos Estados Unidos, o país mais poderoso da Terra então, e em troca desta massagem no ego do ex-império onde o sol nunca se punha, perdido após a Segunda Guerra Mundial, Blair realizaria o esforço de provar aos mais céticos que Saddam Hussein era a besta do apocalipse.

    Prezados leitores, a retórica eficaz do dono do sorriso Colgate, que hoje fatura rios de dinheiro prestando consultoria a governos em todo o mundo, permitiu que os Estados Unidos montassem a coalisão do eixo do bem, composta de 48 países, que contribuíram com tropas seja para a invasão seja para a ocupação do Iraque. O vácuo de poder deixado pela queda do regime baathista permitiu a criação do Estado Islâmico, financiado pela Arábia Saudita e pela CIA para atacar os países shiitas, entre os quais o Irã. Como vemos agora, a criatura escapou do controle dos seus criadores e decidiu voar com asas próprias, realizando, entre outras façanhas, a destruição do patrimônio histórico milenar do Oriente Médio.

    Será que a maestria maligna de Blair nos convence de que é melhor deixar a retórica de lado e voltar às demonstrações cabais?

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TPP

A Tragédia ou Desastre de Bhopal foi um acidente industrial que ocorreu na madrugada de 3 de dezembro de 1984, em Bhopal, quando 40 toneladas de gases tóxicos vazaram na fábrica de pesticidas da empresa norte-americana Union Carbide. É considerado o pior desastre industrial ocorrido até hoje, quando mais de 500 mil pessoas, a sua maioria trabalhadores, foram expostas aos gases. O número total de mortes é controverso: houve num primeiro momento cerca de 3.000 mortes diretas, mas estima-se que outras 10 mil ocorreram devido a doenças relacionadas à inalação do gás.

Informações obtidas no site Wikipedia

O caso Philip Morris x Uruguai teve início em 19 de fevereiro de 2010, quando a empresa multinacional de tabaco Philip Morris International protocolou uma reclamação contra o Uruguai. A empresa queixa-se de que a legislação de combate ao fumo do Uruguai desvaloriza duas marcas registradas da Philip Morris e seus investimentos no país, e está processando o Uruguai para obter uma indenização nos termos do tratado bilateral de investimento entre a Suíça e o Uruguai. (A Philip Morris é sediada em Lausanne). O tratado prevê que os litígios sejam resolvidos por arbitragem, sem possibilidade de recurso a outras instâncias, no Centro Internacional de Resolução de Controvérsias Relativas a Investimento (ICSID).

Informações obtidas no site Wikipedia

    Prezados leitores, nesta semana nós brasileiros recebemos mais um notícia que, de acordo com nossa imprensa, nos mostra que estamos no caminho errado. O Acordo de Livre Comércio do Pacífico (TPP em inglês) entre Estados Unidos e outros 10 países da costa do Pacífico ficou pronto e o Brasil está fora. De acordo com uma pesquisa do economista Lucas Ferraz, da Fundação Getúlio Vargas, citado por Veja em sua edição de 14 de outubro, “haverá uma retração de 2,9% nas exportações de industrializados e de 5% nas de produtos de agronegócios brasileiros”.

    Considerando o quão vulneráveis estamos neste momento, com uma queda prevista no PIB de 3% em 2015 e de 1,5% em 2016, não há dúvida de que a perda de mercados é algo a se lamentar. Além do mais, observa-se uma diminuição crescente da taxa de poupança do Brasil, que era de 18,1% do PIB em 2012, passou para 17,6% em 2013 e ficou em 16,2% do PIB em 2014. Hoje em dia, estar fora do que os economistas chamam de cadeias globais de valor, estabelecidas juridicamente pormeio de tratados internacionais de comércio, significa estar fora da rota de investimentos, tão necessários para um país como o Brasil que pouco economiza.

    E, no entanto, permitam-me enfocar o lado negro desses acordos, o aspecto negativo pouco explorado na imprensa, que é o imenso poder que as multinacionais ganham na arena global de proteger seus interesses. Para explicar melhor vou valer-me de um conceito jurídico. Qualquer Estado soberano tradicionalmente goza de uma prerrogativa, que é a de poder praticar atos de império, que são atos impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial. Um exemplo desse tipo de atuação é a encampação de um serviço prestado por uma empresa particular. O Estado arroga-se a si próprio o direito de retomar o serviço quando julgar que a empresa não está atuando da maneira mais benéfica para o interesse público. Evo Morales, o presidente da Bolívia, fez uso desse poder de império quando em 2006 decidiu nacionalizar o setor de hidrocarbonetos do país, o que levou à expropriação das refinarias de propriedade da Petrobras. Lula, num gesto de boa vontade diplomática de respeito à soberania da Bolívia, decidiu deixar para lá e a Petrobrás não levou o caso à justiça, o que poderia ter feito.

    Acordos comerciais internacionais como a TPP eliminam essas surpresas desagradáveis porqu eo poder de império do Estado, atributo da sua soberania, fica bastante limitado. Uma empresa que se sente lesada por medidas tomadas por um determinado Estado signatário de um tal tratado pode brigar em pé de igualdade recorrendo à arbitragem internacional, sem necessidade de abrir processo no país cujo governo está lhe fazendo maldades. A decisão dos árbitros é final, irrecorrível e ao Estado que quis colocar as asinhas de fora só resta acatar e cumpri-la sob pena de sofrer sanções. O caso citado acima envolvendo a Philip Morris e o Uruguai, ainda não solucionado, é emblemático dessa nova correlação de forças no cenário global. As políticas de saúde pública do país platino para coibir o fumo estão sendo colocadas em xeque por uma empresa que vende cigarros e que portanto perderá receitas se elas forem bem-sucedidas. Se o Uruguai acabar sendo condenado a pagar indenizaçâo à Philip Morris, isos pode tornar a proteção da saúde dos uruguaios muito cara ao ponto de inviabilizá-la com os recursos orçamentáriosd de que o país dispõe, a depender do montante estipulado pelo ICSID.

    Não é de estranhar-se que os Estados Unidos sejam os principais promotores da TPP, pois o país têm o maior estoque de investimentos diretos estrangeiros no exterior, cinco trilhões e duzentos e sessenta bilhões de dólares em 2014. A proteção dos investimentos oferecida pela TPP inclui uma série de medidas que diminuem a margem de manobra dos Estados nacionais que pretendam realizar alguma política industrial: proibição de favorecimento de empresas estatais, proibição de certos subsídios. Os países em desenvolvimento que aderiram à TPP, entre eles o Chile, o Vietnã e o Peru, não poderão tentar executar o modelo de chinês de industrialização baseado na cópia barata dos produtos criados pelas multinacionais. A TPP criminaliza o roubo de segredos industriais e estabelece uma robusta proteção às patentes.Para ficarmos no nosso contexto sul-americano, essa rigidez não faz muita diferença para Chile e Peru que sempre forma exportadores de commodities e nunca tiveram grandres pretensões à industrialização. Mas para um país mais complexo como o Brasil com um parque industrial diversificado, a opção por aderir a regras que defendem primordialmente os interesses das empresas multinacionais donas dos capitais e das patentes não é uma escolha tão óbvia.

    No final das contas tudo é uma questão de ponderação: abdicarmos da autonomia de o Estado formular e executar política industrial, social, ambiental para que possamos fazer parte do clube fará com que os investimentos estrangeiros aumentem exponencialmente no Brasil? Ou tais investimentos dependem muito mais da capacidade que o Estado possui de criar um ambiente favorável aos negócios proporcionando a infraestrutura material e não material adequada? Será que diminuir ainda mais a margem de manobra do governo vai permitir que o Brasil crie essa infraestrutura? Ou será que o medo de violar tratados internacionais fará com que os nosos governantes tornem-se ainda mais tímidos nas suas ambições de política?

    Prezados leitores, é verdade que o sonho de todo brasileiro é trabalhar em uma multinacional. Mas o que é bom para elas não necessariamente é bom para nós, habitantes de países em desenvolvimento. A Union Carbide nunca foi realmente punida pelo acidente de Bhopal. O julgamento ocorrido nos Estados Unidos chegou ao veredicto de que a culpa foi de uma sabotagem de um funcionário e em termos de indenização custou à empresa apenas 0,48 dólares por ação. Talvez estejamos fazendo uma grande besteira em não termos participado da TPP, mas participar dela com certeza nos traria custos. Como era de se esperar, o modo como a questão é posta na imprensa brasileira é mais uma vez no modo Fla x Flu: a TPP é boa, o PT que a esnobou pé mau. Ponto final. Infelizmente a realidade, como a Union Carbide e a Philip Morris nos mostram, é mais complexa.

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