Les bêtes noires

No domingo de manhã, durante a transmissão do programa “The Week” da rede ABC, o chefe da campanha de Hillary Clinton, Robby Mook, acusou o Wikileaks de ter publicado documentos fornecidos pelos russos para ajudar Trump.

Trecho retirado do artigo “O Partido Democrata vê a mão da Rússia por trás da publicação dos e-mails pelo Wikileaks” publicado na edição eletrônica do jornal Le Monde de 25 de julho

Acompanhamos atentamente as discussões tanto das elites dirigentes quanto da comunidade de especialistas. É suficiente ver as manchetes da imprensa ocidental no último ano. As mesmas pessoas que eram chamadas de defensores da democracia, são depois tachadas de islâmicos; primeiro eles escrevem sobre revoluções e depois as chamam de distúrbios e sublevações. O resultado é óbvio: a expansão cada vez maior do caos no mundo. […] Temos plena consciência de que o mundo entrou em uma fase de mudanças e transformações globais, quando precisamos de um grau especial de cuidado, da capacidade de evitar dar passos sem pensar. Nos anos depois da Guerra Fria, os participantes da política global perderam de certa forma essas qualidades. Agora precisamos lembrarmo-nos delas. Do contrário, as esperanças de desenvolvimento pacífico e estável serão uma ilusão perigosa, e o tumulto atual será um simples prelúdio do colapso da ordem mundial.

Trecho retirado do discurso de Vladimir Putin em Sochi em 24 de outubro de 2014 no 11º encontro do Clube de Discussões Valdai International

    Prezados leitores, o circo da eleição americana está montado. No dia 21 de julho Donald Trump foi oficialmente ungido candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos, e nesta semana será a vez de Hillary Clinton pelo partido democrata. Utilizo a palavra circo porque decididamente os acontecimentos são sempre espalhafatosos. Para além das diatribes no Twitter, em que as gozações mútuas incluíram ataques à reputação moral e à beleza física das esposas dos candidatos à chapa republicana, houve o discurso surpreendente de Ted Cruz. O senador pelo Estado do Texas, discursando aos delegados do partido durante a convenção republicana em Cleveland, recusou-se a endossar o magnata do ramo imobiliário, recomendando aos colegas que votassem de acordo com sua consciência. Cruz teve que salvar sua mulher Heidi das vaias dos delegados que gritavam para ela “Goldman Sachs, Goldman Sachs”. O último fato bombástico foi a revelação do site Wikileaks de e-mails hackeados do Comitê Nacional dos Democratas revelando que os caciques do partido deram uma ajudinha a Hillary Clinton, em detrimento de Bernie Sanders, o velhinho que angariou a simpatia dos mais jovens, mas acabou derrotado nas prévias eleitorais pela candidata do establishment.

    Em suma, há muita raiva mútua e a campanha promete ser uma troca incessante de ataques entre Trump e Clinton com a superficialidade, a virulência e a eficácia que as mídias sociais atualmente possibilitam com suas hashtags, as curtidas e não curtidas, e claro as mensagens curtas. Na quinta-feira dia 21 assisti ao discurso de investidura de Donald Trump na íntegra. Durante todo o tempo, lembrei de Mussolini, o velho Benito, que tinha uma maneira característica de dizer uma frase de efeito, girar a cabeça lentamente para um lado e para o outro, e depois levantá-la, mostrando seu queixo protuberante – ou assim parecia pelos gestos – e esperando, satisfeito consigo mesmo e com sua virilidade, o efeito que suas palavras teriam sobre a massa. Donald faz exatamente a mesma coisa, não sei se de caso pensado ou simplesmente instintivamente sabe como colocar-se como o Deus ex-machina de que os americanos precisam para livrarem-se de sua classe política corrupta e venal. As frases de Trump eram curtas e grossas: promessas gerais sobre o que vai fazer, sem entrar em detalhes sobre o como, e insistência em temas caros àqueles que têm medo como “law and order”, expressão que apareceu em seu discurso várias vezes e sempre pronunciada de maneira lenta para melhor absorção pelo público. Seus ataques a Hillary foram implacáveis: chamou-a de marionete, que faz aquilo que seus doadores de campanha ordenam que faça, referiu-se à esperteza dela de ter conseguido livrar-se das garras da justiça tendo violado a segurança dos Estados Unidos ao utilizar seu servidor pessoal para lidar com e-mails do Departamento de Estado no tempo em que ela era a responsável pela política externa americana. Por fim acusou-a de incompetente, de ter sido responsável pela derrubada de Muammar al-Gaddaf na Líbia e com isso ser responsável pelo caos no Oriente Médio e a crise migratória na Europa. Trump parecia um galo de briga, levantando o peito para o adversário para mostrar sua força. Em suma, o Aprendiz-Mor fez jus à sua fama, marcou presença da maneira sempre incisiva.

    As reações ao candidato republicano são sempre radicais, do tipo ame-o ou deixe-o. Louco, imbecil, fascista para uns, genial para outros. Este meu introito sobre o conteúdo e a forma do discurso do clone do líder fascista italiano serve para que eu expresse minha humilde opinião sobre quem é o melhor candidato, ou talvez o menos pior. Considero a escolha do gestor do Império americano de relevância para todos nós, e pelo fato de haver tantas nuvens no horizonte considero Trump o melhor candidato para garantir a paz mundial. Antes que riam de mim, explico-me.

    Hillary Clinton é uma lídima representante dos neo cons, foi das primeiras a apoiar a Guerra no Iraque, e quando foi chefe do Departamento de Estado planejou a derrubada de Gaddaf na Líbia, o que abriu uma caixa de Pandora no Oriente Médio e MAGREB, em que o Estado Islâmico é a manifestação mais recente, depois do Talibã e da Al-Qaeda. Ela já se referiu ao presidente da Rússia como o novo Hitler e não admira que seu staff acuse os russos de tramarem contra ela com o vazamento dos e-mails sobre o boicote de Bernie Sanders pelos dirigentes do Partido Democrata. Para quem não sabe, a Guerra Fria está em plena efervescência, apesar de ter sido oficialmente extinta em 1991 com o colapso da União Soviética. Este episódio do doping dos atletas russos é apenas mais uma escaramuça entre Estados Unidos e o urso do Leste: querer proibir os esportistas da Rússia de participarem das Olimpíadas Rio 2016 é de uma hipocrisia infinda, porque todo sabemos que os esportes são hoje movidos a dinheiro, o desempenho excepcional é um produto e para oferecê-lo nas mais variadas cores e formatos, a ajuda de drogas é essencial. Eu cheguei até a ler em uma coluna em jornal brasileiro que o doping russo é política de Estado, fomentada é claro pela besta apocalíptica de nome Vlad. Não coloco a mão por nenhum dos que irão participar desta Olimpíada, mas querer que o público acredite que só a Rússia deve ser exemplarmente punida porque são seus esportistas os mais dopados é muita má fé. Há outros objetivos por trás, o principal deles, o de tornar o país um pária na tal da comunidade internacional.

    Outro sinal de que a Guerra Fria renasceu das cinzas é que os Estados Unidos, sob a fachada da OTAN, está atualmente instalando na Polônia o Sistema de Defesa de Mísseis Balísticos Aegis. A razão oficial é proteger a Europa do Irã, a razão subentendida é a de defender a Polônia de ataques russos, a razão verdadeira, na opinião de Putin, é cercar a Rússia de mísseis para atacá-la. É por isso que acho Trump uma opção mais segura para evitar o confronto entre potências nucleares, que seria fatal para todos nós. Em entrevista ao jornal The New York Times e no seu próprio discurso de investidura, o magnata afirmou que se for presidente não vai garantir a segurança de nenhum membro da OTAN se este membro não fizer sua devida contribuição material à defesa coletiva. Na prática, se a Polônia resolver bancar a engraçadinha e provocar a Rússia contando que terá a proteção do Tio Sam, em um governo do “The Donald”, ela dará com os burros n´água. Isso vai evitar que grandes potências iniciem uma guerra mundial por causa de países menores, como ocorreu tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra Mundial (aliás neste caso envolvendo a mesma Polônia).

    Prezados leitores, estamos vivendo tempos perigosamente interessantes. A China tem 5.000 anos de história, a Rússia mil, nenhum deles vai render-se aos Estados Unidos, mesmo porque não perderam nenhuma guerra para eles. A política externa americana nestes últimos 20 anos tem sido pautada pelo lema faça o que nós quisermos se não será considerado ditador, terrorista, sofrerá sanções econômicas. Se a América continuar arvorando-se como polícia do mundo, invadindo países como fez no Iraque, insuflando rebeliões como fez na Ucrânia e na Síria, o “colapso da ordem mundial”, leia-se a guerra nuclear, estará cada vez mais próximo. Por considerar que seja muito mais provável que as duas bêtes noires da cena mundial, Trump e Putin, estabeleçam relações de respeito mútuo do que Hillary e Vlad estabeleceriam, eu torço para que o clone do Benito Mussolini seja eleito em 8 de novembro.

Categories: Internacional | Tags: , , , , , , , , , , , | Leave a comment

Liberdade, abre as asas

Cinco filhos e dos cinco, só restava o último, um ser versátil, sem palavra nem vigor, e capaz de tudo menos portar a coroa de maneira digna. […] Eleonor não tinha ilusões nem sobre as capacidades do seu filho nem sobre os sentimentos dos senhores feudais a seu respeito. O liame feudal é um vínculo pessoal e a pessoa de João não tinha nada que pudesse lhe valer aquela fidelidade que o senhor espera do vassalo.

Trecho retirado do Livro “Aliénor D’Aquitaine” da historiadora francesa Régine Pernoud, sobre o rei da Inglaterra João sem Terra, filho de Eleonor, que foi obrigado, em 15 de junho de 1215, a conceder aos barões reunidos em Runnymede a Magna Carta, considerada a pedra fundamental das liberdades constitucionais da Inglaterra.

Está escrito nos livros de história e também no noticiário: a única democracia verdadeiramente operante é a inglesa… O Reino Unido provou pela enésima vez que acredita na vontade do povo e que sabe como respeitá-la com elegância.

Comentário do editor do jornal italiano Libero, Vittorio Feltri, sobre a decisão do povo britânico de sair da União Europeia, tomada no referendo de 23 de junho

    Prezados leitores, confesso que torci como uma louca pelo Brexit, tão loucamente como torcia pela finada seleção brasileira de futebol quando éramos os melhores do mundo e ganhávamos Copas nos quatro cantos do mundo. Estava eu trabalhando na quinta-feira por volta das 11 da noite quando decidi dar uma olhada no site do jornal Daily Mail. Para meu desgosto eles previam uma vitória do Remain. Voltei a trabalhar. Dali 15 minutos, já exausta, voltei ao dailymail.co.uk. A manchete era outra: uma das zonas eleitorais, cujo nome não lembro, tinha dado mais de 60% dos votos ao Leave. Foi a partir daí que a maré virou e o que era surpreendente tornou-se favas contadas: por volta da meia-noite e meia o apresentador da BBC admitia que o Brexit havia vencido e Nigel Farage, profundamente emocionado, anunciava que já era possível esperar que o sonho da sua vida iria tornar-se realidade: a ilha estava dizendo adeus à União Europeia.

    Como já disse aqui inúmeras vezes, e considero ser meu dever repetir periodicamente para que não haja mal-entendidos, não tenho a pretensão de convencer ninguém a respeito das minhas ideias: cada um informa-se de determinada maneira, tem seus valores, seus preconceitos (sem atribuição de nenhum sentido pejorativo a uma palavra que para mim quer dizer simplesmente conceito prévio). Isso não tira minha vontade de expor o que eu penso com a clareza que minhas faculdades mentais permitem, não para convencer, mas para provocar. Considero o Brexit uma pequena vitória contra certas coisas que me irritam e que vou tentar explicar aqui.

    Em primeiro lugar, o Brexit é obviamente uma vitória contra a União Europeia, união que impôs o euro a países com economias muito diferentes, o que causou um desastre no Sul da Europa, obrigados a utilizar uma moeda muito forte, incompatível com seus níveis reais de produtividade relativamente aos países do Norte da Europa. A Grécia hoje é colônia da Alemanha, em vários aspectos, desde o fato de ter vendido aeroportos a empresas alemãs até o fato de ter recebido um cala-boca monetário da senhora Ângela Merkel para receber os imigrantes vindos do Oriente Médio que desembarcam em suas praias e fazer cara de paisagem. A Itália atualmente tem uma dívida pública de 132% do PIB, 7% da sua população vive na miséria absoluta, e 40% dos jovens entre 15 e 24 anos estão desempregados. Os três últimos primeiros-ministros do país foram impostos por Berlin e Bruxelas, sem terem sido escolhidos pelo povo. Portugal tem uma dívida pública correspondente a 129% do PIB e 19% da sua população vive abaixo da linha de pobreza. Na Espanha a porcentagem dos que vivem abaixo da linha de pobreza está em 21% e a dívida pública está em 101% do PIB. Em suma, todos os países bastante endividados e presos à camisa de força da moeda única, que impede que se livrem de suas dívidas pela inflação e desvalorização da moeda.

    A sina deles é pagar cada centavo de euro devido aos grandes bancos fazendo ajustes fiscais draconianos cujo ônus recai sobre aqueles que recebem benefícios sociais do governo, mas que beneficiam aqueles que compram bens públicos a preços convidativos. Portugal tinha um déficit público de 11% do PIB em 2010 e conseguiu baixá-lo para 3,5% em 2015. Este é o vale de lágrimas que nós brasileiros trilharemos depois da ressaca das Olimpíadas de agosto: os países do Club Med europeu estão pagando pela farra de empréstimos proporcionada pelo euro que facilitou o acesso ao crédito a juros baixos; nós pagaremos pela gastança desabrida proporcionada pela ilusão do pré-sal. O efeito prático é o mesmo: os menos beneficiados pela orgia financeira serão os primeiros a serem chamados a dar sua contribuição.

    Em segundo lugar, o Brexit é um tapa com luva de pelica nos politicamente corretos, que tem as ideias corretas e por isso acham-se no direito de olharem com condescendência aqueles que são estúpidos, ou racistas demais, ou velhos demais para não repetirem o mantra da globalização. O Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama é emblemático. Esteve em Londres antes do referendo e disse que se o Reino Unido saísse da União Europeia iria ficar no fim da fila dos que querem assinar acordos comerciais com os Estados Unidos. Em suma, o líder de um país que mal e mal tem 500 anos estava lá ditando comportamentos a um país que há exatos 801 anos já tinha estabelecido o habeas corpus, o devido processo legal e o princípio do “no taxation without representation”, princípio este aliás que foi uma das justificativas fundamentais da revolta dos colonos americanos contra a metrópole britânica no século 18. Cara pálida, professor de Direito Constitucional de Harvard, foram os ingleses que inventaram a liberdade! Inventaram-na para protegerem-se de soberanos incompetentes como o Rei João sem Terra, em quem nem a própria mãe confiava. Como ousas querer interferir na liberdade de eles decidirem conduzir seus destinos como nação soberana, ameaçando-os veladamente de transformá-los em párias internacionais?

    Prezados leitores, ainda é muito cedo para dizer que os britânicos recuperaram de fato sua liberdade. Teresa May, a nova primeira-ministra, colocou Dave Davis, um eurocético, para conduzir as negociações com a União Europeia, cujos tentáculos são enormes e vorazes. O importante é que bobagens como a realização de um novo referendo dos que não sabem perder foram imediatamente descartadas por Teresa que disse que não é não e que é preciso preparar a saída. O povo falou, o povo que vê os serviços públicos sobrecarregados pelo maior número de usuários, fruto da imigração ao Reino Unido, o povo que quer manter a capacidade do seu Parlamento de fazer suas próprias leis sem ser ordenado por burocratas de Bruxelas que não foram eleitos por povo nenhum.

    Em frente ao Parlamento em Londres há uma estátua do Rei Ricardo Coração de Leão, o filho querido de Eleonor de Aquitânia que morreu aos 41 anos, vítima de uma flechada no ombro e que foi sucedido por seu irmão João. Sem a morte prematura de Ricardo sem herdeiros João não teria subido ao trono, e sem sua invencível incapacidade de governar não teria havido a Magna Carta. Sem a Magna Carta a democracia na Inglaterra não teria se desenvolvido da maneira robusta que o fez. Sim, os jovens votaram pela União Europeia e os velhinhos ultrapassados votaram pelo “Tchau querida”. Mas talvez uma das razões seja que os velhinhos quando passaram pela escola aprenderam sobre Ricardo Coração de Leão, herói das Cruzadas, e sobre seu irmão mais novo, João Sem Terra, herói involuntário da Magna Carta. Hoje o conhecimento dos jovens sobre o passado parece se resumir à Segunda Guerra e ao monstruoso Hitler. Essa é uma pequena grande diferença: os velhinhos sabem como a liberdade foi conquistada e querem preservá-la, porque uma vez perdida ela precisa ser recuperada à força. Liberdade, abre as asas sobre os ingleses!

Categories: Internacional | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment

A gente vai legislando, a gente vai legislando…

Com uma pontuação de 76, o Brasil tem um alto índice de aversão à incerteza – assim como a maioria dos países latino-americanos. Essas sociedades apresentam uma grande necessidade de regras e regimes jurídicos complexos para estruturar a vida. A necessidade do indivíduo de obedecer às leis, no entanto, é fraca. Se as regras não conseguem ser mantidas, novas regras são estipuladas. No Brasil, assim como em todas as sociedades em que é alto o índice de aversão à incerteza, a burocracia, as leis e as regras são muito importantes para tornar o mundo um lugar mais seguro de viver.

Trecho do relatório sobre o Brasil preparado pelo psicólogo social e antropólogo organizacional holandês Geert Hofstede, que avalia os países de acordo com a distância em relação ao poder, o individualismo, a masculinidade, a aversão à incerteza, a orientação de longo prazo e a indulgência

O plano A é o controle de despesas, o B é privatização, e o C, aumento de imposto. […] Teremos privatizações, concessões, outorgas, securitizações, etc. Elas virão de qualquer maneira.

Trecho de entrevista dada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles ao jornal O Estado de São Paulo, e publicada em 10 de julho sobre as medidas de austeridade fiscal

    Prezados leitores, permitam-me voltar a um tema do qual já tratei neste meu humilde espaço, mais precisamente em novembro de 2014, quando escrevi um artigo intitulado “Leis para que as queremos”: nossa obsessão em acreditar que novas leis são a salvação da lavoura nacional. O motivo do meu retorno é porque achei um gringo que corrobora esse achado que a qualquer brasileiro é óbvio: a sofreguidão com que elaboramos, promulgamos e, mais importante, desrespeitamos as leis. O gringo em questão é um holandês Geert Hofstede, nascido em 1928. Ele elaborou o primeiro modelo empírico das dimensões da cultura de cada país, que permitiu levar em conta os elementos culturais na cooperação, na comunicação e na economia internacionais, como informa o site do Professor Emérito da Universidade de Maastricht.

    É óbvio, porque faz parte dos nossos mais arraigados valores, do nosso modo de pensar, de sentir e de reagir, e assim de difícil erradicação. Sai governo, entra governo, de esquerda ou de direita, corrupto ou honesto, a muleta é sempre a mesma, disfarçada como algo novo, por meio de um palavreado rebuscado, como “marco regulatório”, mas que é sempre vendido como a panaceia que vai nos abrir as portas da redenção política, social, econômica, cultural. Os novos donos do poder, que vieram para substituir o lulo-petismo enxovalhado pela Operação Lava Jato, já nos ofereceram seu leque de drogas miraculosas.

    Há a Proposta de Emenda à Constituição estabelecendo um teto para o gasto público. Uma ideia sensata, diria genial. Genial porque com certeza conseguirá fazer-se respeitar como não o foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor desde 2000. A LRF foi currada, sodomizada, estuprada, conspurcada, vitimizada, violentada de Norte a Sul do Brasil, sem dó nem piedade, por todos os entes da federação. A conta dessa orgia de depravação pagaremos por longos anos, mas o importante dessa experiência traumática para as contas públicas e o bolso dos contribuintes é a lição a tirar disso.

    O problema não é que nossa pontuação no índice de Hofstede é de 44 em orientação de longo prazo e de 69 em distância em relação ao poder, que mede o quanto os membros menos poderosos das organizações ou instituições no país esperam e aceitam que o poder seja distribuído de maneira desigual. Tais traços culturais, que revelam a falta de meios que os brasileiros têm ao seu dispor de controlar efetivamente o que nossos dirigentes fazem, e a nossa pouca “capacidade de lidar com os desafios do futuro”, são irrelevantes. A razão por que a LRF não conseguiu fazer com que os gastos públicos fossem controlados e feitos de maneira a satisfazer o interesse público é uma mera tecnicalidade jurídica. A LRF é lei complementar, de posição inferior na hierarquia das leis àquela de que gozará uma emenda à Constituição, que é a Lei Maior. Em suma, se o comando de gastar modica e eficazmente tiver status de constitucional ele com certeza será respeitado.

    Engraçado, estamos agora às voltas com uma polêmica a respeito dos tais sacrossantos preceitos constitucionais. Nosso egrégio Supremo Tribunal Federal tem-se mostrado especialmente confuso a respeito de um comando que à primeira vista parece ter um significado óbvio, o inciso 57 do artigo 5º da Constituição Federal que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Na prática isso significa que o réu tem direito de recorrer em liberdade, aliás significava até que em fevereiro, no calor das condenações em série do Juiz Sérgio Moro, o STF decidiu por sete votos a quatro que uma condenação no Tribunal de Justiça era suficiente para mandar à cadeia, mesmo sem sentença definitiva. Eis que no último dia 5 de julho o ministro Celso de Mello, monocraticamente, isto é, individualmente, mandou suspender a execução de mandado de prisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

    Ou seja, os ministros da Corte Suprema da Nação, postos contra a parede pela Operação Lava Jato, ainda não conseguiram decidir o que significa o tal do inciso 57, o que faz com que uma norma constitucional fique sem eficácia. Portanto, incluir algo na Constituição como forma de “blindagem” para usar uma palavrinha que agrada aos nossos governantes, não garante que todos respeitarão o comando. A blindagem é apenas uma muleta, que logo, logo, deixará de ser útil e será jogada em uma caçamba qualquer, talvez perto do Congresso Nacional quando construírem o sonhado shopping center por lá.

    Outra das soluções velhas empacotadas como revolucionárias são os tais dos novos marcos legais. Teremos concessões, outorgas, privatizações, em suma um arcabouço jurídico original que será mais atraente para o setor privado pois permitirá retorno maior e mais garantido dos investimentos, melhores serviços, mais competição e criação de empregos com as obras de infraestrutura. Em suma, um círculo virtuoso proporcionado pelas novas leis que o governo de Michel Temer vai promulgar. Quem garante não é só o ministro da Fazenda, mas dona Elena Landau, a musa das privatizações de Fernando Henrique Cardoso.

    Por outro lado, parte das novas leis sobre outorgas, concessões e privatizações servirá para burlar as leis antigas: Elio Gaspari, em sua coluna de 10 de julho no jornal O Globo, informa os leitores a respeito das benesses que estão sendo preparadas para os investidores privados: perdão de aluguéis de aeroportos devidos pelas concessionárias no valor de R$ 2,3 bilhões, extensão do prazo das concessões de rodovias, transferência da titularidade de imóveis e infraestrutura públicos às operadoras de telefonia. As concessionárias de rodovias cumpriram no máximo 40% do que foi estipulado no marco regulatório dos governos passados, e agora o governo de Michel Temer oferece novas leis que tornarão os negócios menos arriscados, eximindo-as de cumprir condições antes obrigatórias nos contratos administrativos celebrados com os entes públicos.

    Será que o povo brasileiro terá o maná prometido pelos arautos do novo marco legal? É ver para crer se a venda dos ativos públicos gerará receitas suficientes para cobrir o déficit e nos oferecerá variedade de serviços e preços em regime de competição de mercado. Mas se tivermos que pagar 26 reais por um sanduíche de pão com queijo como tive que fazer em maio no maravilhoso Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos, então no governo pós-Temer com certeza o chefe do Executivo nos brindará com um novo pacote de Medidas Provisórias para acabar com os abusos.
Prezados leitores, de lei em lei, a gente vai levando essa chama, no caso a crença brasileira no poder de novas regras que substituam as velhas: não deixem de botar fé na Lei das Estatais, e torçam para que as medidas de combate à corrupção propostas pelos nossos heróis do Ministério Público sejam aprovadas logo. Afinal, para nós legislar é cultura.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , | Leave a comment

O semeador e o ladrilhador

A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim. Raros os estabelecimentos fundados por eles no Brasil que não tenham mudado uma, duas ou mais vezes de sítio, e a presença da clássica vila velha ao lado de certos centros urbanos de origem colonial é persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.

Trecho retirado do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982)

Todos sabemos o que irá acontecer. Quando todo mundo estiver no estádio para a cerimônia de abertura haverá uma troca intensa de tiros em campo. Todos vão aplaudir, pensando ser um espetáculo cuidadosamente coreografado, mas será um tiroteio verdadeiro. Porque é o Rio. […] a elite global esperava que o Brasil, um país infestado de criminosos e corruptos, cuja economia está atrelada a mercados instáveis como o do petróleo e o de minérios, fizesse um bom trabalho ao sediar os Jogos Olímpicos. Tenho certeza que as festas no Rio serão boas, mas organizar as Olimpíadas exige mais do que champagne, roupas chamativas e sensualidade à flor da pele.

Trecho retirado do artigo “As Olimpíadas no Rio: outra confusão constrangedora dos globalistas incompetentes” de Milo Yannopoulos, publicado no site breibart.com

    Prezados leitores, um dos capítulos de um dos clássicos do ensaísmo brasileiro, Raízes do Brasil, intitula-se O Semeador e o Ladrilhador. Para Sérgio Buarque de Holanda, os colonizadores portugueses foram semeadores nas suas posses no Novo Mundo porque agiram por tentativa e erro, de maneira aventureira, esperando um golpe de sorte que lhes permitisse adquirir fortuna. A “diligência pertinaz, parcimônia, exatidão, pontualidade, solidariedade social” não eram virtudes caras aos lusitanos, que não vieram aqui para dedicar-se ao trabalho árduo e sistemático, que dá frutos modestos, mas seguros. O ladrilhador que vai vendo sua obra completar-se gradualmente pelo esforço diário nunca foi o ideal dos nossos descobridores, e para o historiador paulista nós brasileiros herdamos esse traço de caráter.

    E, no entanto, por mais que os portugueses não tenham realizado uma colonização propriamente dita no Brasil, mas uma “feitorização”, eles acabaram fundando um país, que bem ou mal organizou-se social, politica e economicamente. Sim, somos produtos de avacalhação e somos avacalhados, mas quem há de negar que temos uma civilização brasileira, celebrada pela primeira vez nos meios acadêmicos por Gilberto Freyre que a viu nascer nas relações entre a casa grande e a senzala estabelecidas no século XVI?

    Recorro a esses dois luminares do pensamento tupiniquim para rebater as críticas dos politicamente incorretos como o senhor Milo Yannopoulos, que denunciam o absurdo de o Comitê Olímpico Internacional ter dado a um país de Terceiro Mundo a incumbência de organizar a maior festa do esporte mundial. Os politicamente incorretos não celebram a diversidade, o multiculturalismo e para eles o sul do Equador não trouxe nenhuma contribuição significativa à humanidade porque seus habitantes autóctones não têm a capacidade intelectual para fazê-lo. Milo Yannopoulos corrobora seus argumentos contra a Rio 2016 com fatos inquestionáveis: nossa atual crise política, que se desenrola aos nossos olhos cansados sem que consigamos colocar os pés no fundo do poço; nossa crise econômica, causada pela dependência de commodities que atualmente estão com preços baixos no mercado internacional; nosso problema de saúde pública com o vírus zika, que aportou na terra do pau-brasil trazido pelos turistas em 2014 e proliferou com o calor e a sujeira que aqui encontrou; nosso problema ambiental, que para Yannopoulos é o mais grave em relação aos Jogos Olímpicos, que é o fato de o local em que as competições a vela serão realizadas ser um depósito de esgoto, a Baía de Guanabara, canta em prosa e verso; nosso problema da violência urbana, que o autor do artigo não corrobora com números, mas apenas cita (eu poderia ajudá-lo dizendo que 10% dos homicídios no mundo ocorreram no Brasil); finalmente nossa crise fiscal, exemplificada pelo fato de o Rio de Janeiro ter decretado estado de emergência por falta de dinheiro para cobrir despesas públicas básicas com saúde, educação e mobilidade urbana (para corroborar o alarmismo de Milo eu cito aqui o fato de que a previsão de receita para o Estado do Rio em 2016 é de 49 bilhões de reais, enquanto que sua dívida é de 102 bilhões, e dois calotes acabam de ser dados, no valor de 14 milhões, um na Agência de Fomento Francesa e outro no Banco Interamericano de Desenvolvimento).

    Contra fatos, não há argumentos. Como convencer pessoas como Milo Yannopoulos a ter uma visão mais benigna sobre a possibilidade de realização de um evento global no lado de baixo do Equador? Faço uso das constatações históricas, antropológicas e sociológicas de Sérgio Buarque de Holanda e de Gilberto Freyre para responder a Yannopoulos, que obviamente nunca lerá minha resposta. Sim, somos um país “governado por palhaços” que fala uma língua desconhecida, mas a rota por nós escolhida de “semeadores” que planejam pouco, deixam tudo para a última hora correndo o risco de tudo dar errado poderá oferecer aos bilhões de espectadores que assistirão no conforto do lar às competições um espetáculo único.

    É verdade que provavelmente a conexão wi-fi não ficará disponível de maneira ininterrupta aos jornalistas que cobrirão o evento, é verdade que o deslocamento dos atletas será demorado e motivo de irritação e angústia para quem precisa ficar 100% focado em vencer, é verdade que aqueles que se aventurarem a conhecer a Cidade Maravilhosa poderão sofrer assalto, fruto do descuido. Mas falar na possibilidade de tiroteio no Estádio Olímpico é não conhecer a verdadeira alma do Brasil: cordial, contemporizadora, fruto da entente cordial entre a Casa Grande e a Senzala, tal como descrita pelo sociólogo pernambucano, que relaciona em seu livro as variadas maneiras em que os dois espaços trocavam experiências, saberes e dengos.

    Senhor Milo Yannopoulos, os traficantes de drogas não vão descer o morro e barbarizar o asfalto assassinando turistas. Provavelmente a cúpula do “movimento” já entendeu-se expressa ou tacitamente com as autoridades constituídas do Rio de Janeiro, num toma lá dá cá que deve garantir a paz durante os jogos. Afinal, Nicolas Labre Pereira de Jesus, o Fat Family não foi resgatado do Hospital Souza Aguiar pelos seus fiéis companheiros nas barbas da polícia? Como não ver aí uma salutar concessão dos poderes republicanos que o mantinham sob sua guarda? As relações incestuosas entre polícia e bandidos, tão brasileiras, ao mesmo tempo sintoma e causa do despreparo das forças da ordem, e que leva muitas vezes a execuções sumárias de pretos e pobres para acerto de contas, pode permitir que nos Jogos Olímpicos os próprios traficantes assegurem que não haja sérios problemas para limpar a barra da polícia e assim garantir que ela deixe o pessoal da comunidade seguir a vida.

    Quanto à falta de dinheiro para terminar o metrô do Rio que garantirá o meio de transporte para os atletas e turistas olímpicos, neste 20 de junho de 2016 o descalabro das finanças públicas foi temporariamente resolvido por um acordão entre o Presidente Michel Temer e os governadores, pelo qual decidiu-se suspender o pagamento de dívidas à União. Ninguém ainda sabe como cobriremos o rombo descomunal, fruto do nosso completo desapego à Lei de Responsabilidade Fiscal, que havia sido celebrada como a salvação das contas nacionais quando de sua promulgação. O importante é que nós brasileiros sabemos costurar conchavos à margem da lei, pelo qual todos saem ganhando ao menos no curto prazo. Deixemos para pensar em como cortar despesas e aumentar receitas em 2017.

    Por fim, quanto à poluição da Baía de Guanabara haverá redes de contenção ao redor do local das provas a vela e, além do mais, o lixo que se acumula há décadas no fundo do mar carioca não virá à tona, podem ter certeza. O que os espectadores globais verão pela televisão é a paisagem deslumbrante do Pão de Açúcar ao fundo e tenho certeza que ficarão maravilhados como Mem de Sá, Estácio de Sá e Nicolas Durand de Villegagnon ficaram no século XVI.

    Prezados leitores, nosso ex-presidente Lula semeou a ideia das Olimpíadas em um páis tropical em 2007, em um momento em que o Brasil orgulhava-se de ser membro de um grupo geopolítico importante, o dos BRICs, e em que a riqueza do pré-sal estava ao alcance da mão. Não previmos todas as desgraças que cairiam sobre nossa cabeça e como é do nosso feitio, nunca tivemos um plano de contingências. Já que a nossa vocação é de sermos semeadores, que o cenário do Rio de Janeiro, especialmente pintado por Deus, permita que possamos mostrar a rabugentos como Milo Yannopoulos que os Jogos Olímpicos em um país de Terceiro Mundo não serão um exemplo de organização e eficiência, mas não serão apocalípticos como querem fazer crer os preconceituosos. Eles simplesmente serão brasileiros e farão todos sonhar com o sol, o mar e todas as belezas naturais da Cidade Maravilhosa. Viva a Rio 2016!

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , | Leave a comment

Sobre turistas proletários e proletários turistas

Vê-se que o inglês não é motivado por um grande apetite de descoberta. De fato, constata-se in loco que ele não se interessa nem pela arquitetura, nem pela paisagem, nem por o que quer que seja. Encontramos o inglês no começo da noite, depois de uma breve estadia na praia, sentado ao redor de aperitivos bizarros. A presença de um inglês em um local de férias não fornece nenhuma indicação sobre o interesse do lugar, sua beleza, seu eventual potencial turístico. O inglês vai a um local de férias unicamente porque tem certeza que vai encontrar outros ingleses.

Trecho retirado do livro “Lanzarote e outros textos” do escritor francês Michel Houellebecq

Uma das características mais interessantes do debate sobre a saída do Reino Unido da União Europeia é que ele escancarou um cisma na sociedade britânica muito mais profundo que a divisão tradicional entre trabalhistas e conservadores. De um lado temos a elite próspera e educada que vive majoritariamente nas grandes cidades e nas cidades onde há universidades, que é liberal em questões sociais, a favor da imigração, acredita no livre comércio e tem uma perspectiva internacionalista. De outro lado, temos a classe trabalhadora branca, concentrada em áreas de estagnação econômica, particularmente cidades litorâneas, socialmente conservadora, contra a imigração, desconfiada do livre comércio e ferozmente nacionalista.

Trecho retirado do artigo “Estes esnobes e cruéis partidários da União Europeia” do jornalista inglês Toby Young e publicado em 14 de maio de 2016

    Prezados leitores, um dos prazeres a que me dediquei nas minhas férias foi ler tomando sol. E escolhi para minha diversão um autor que fala muitas coisas interessantes sobre nossa vida contemporânea, Michel Houellebecq, que no ano passado adquiriu notoriedade pelo fato de seu livro, “Submission”, ter sido lançado na mesma época em que houve o atentado à redação do Charles Hebdo em Paris. A razão da notoriedade é que ele descreve no seu livro a eleição para a presidência da França de um muçulmano. Mas seu olhar sobre o islamismo, cuja religião, ele chama em um de deus livros de “emerdeada”, não me interessa no momento. O que quero em primeiro lugar é enfocar sua opinião sobre a atividade turística e sobre os turistas, colocadas no livro acima mencionado.

    Vi “Lanzarote et autres texts” em uma livraria em Roma e como já estive nesta ilha do Arquipélago das Canárias, tive certeza que ele teria algo a me dizer. E de fato não me decepcionei. Houellebecq fala sobre as esperanças do turista que ao comprar um pacote de viagens, compra um sonho, possibilidades lúdicas, misteriosas, até místicas de viver plenamente, de preencher o vácuo existencial que todos temos dentro de nós, por mais que na maioria das vezes não pensemos nisso. Em “La Carte et le Territoire” Houellebecq comenta que para um jovem casal urbano rico o turismo tem como objetivo dotar o homem e a mulher “de boas lembranças que lhes servirão para lidar com os anos difíceis.”

    Enfim, seu olhar sobre o turismo e seus participantes é sempre irônico, cáustico e por isso pertinente. No mais das vezes ao fazermos uma excursão por uma das atrações do lugar, ao alugarmos um carro e conhecermos as belezas que os próprios habitantes do local não percebem e muito menos apreciam, simplesmente preenchemos o tempo para não morrermos de tédio. Nesse aspecto, o comportamento dos ingleses revela o aspecto não abertamente comercializado da atividade turística. Os ingleses viajam para beber com seus amigos ingleses e muitas vezes quando o fazem provocam arruaças e quebra-quebra, como mais uma vez ficou demonstrado no sábado em Marselha na França, durante o jogo Rússia x Inglaterra pela Eurocopa. Eu pude constatar os objetivos prosaicos dos ingleses descritos por Michel Houellebecq quando reclamei com um homem ao redor dos seus 50 anos que tinha sido muito cansativo subir a montanha para ver as ruínas de um forte construído pelos venezianos no século XVII. Eu então lhe perguntei se ele também tinha feito a caminhada. Ele deu uma risada dizendo, “de jeito nenhum, já vi muito monte de pedra na minha vida”. Essa é a opinião sucinta do turista inglês mediano sobre civilizações antigas, história, arqueologia e arte. Nenhum grande ideal sobre epifanias espirituais ao comprar um pacote de viagem.

    Neste ponto chego ao segundo foco da minha atenção neste meu humilde artigo, que tomou como ponto de partida as observações antropológicas de Michel Houellebecq sobre o turismo no século XXI para chegar aos ingleses, especificamente aqueles ingleses que viajam para beber, são pouco educados e de acordo com Toby Young formam um lumpenproletariat que a elite da Inglaterra despreza. Para o editor da revista The Spectator, a classe trabalhadora branca é a grande vítima da globalização, porque os empregos que ela costumava conseguir não estão mais disponíveis no século XXI, seja porque as atividades manuais foram substituídas por robôs, seja porque cidades outrora operárias perderam sua base industrial, seja porque os imigrantes fazem o mesmo serviço a um custo mais baixo. Toby Young é a favor da saída do Reino Unido da União Europeia como única forma de estabelecer-se um novo pacto social em que a elite que atua no ramo financeiro, advocatício, ou imobiliário, setores que se beneficiaram grandemente da posição de Londres como centro financeiro mundial e reduto de milionários dos quatro cantos do globo, faça um sacrifício em prol daqueles que perderam com a globalização.

    O sacrifício consistiria em frear o fluxo de pessoas, negócios e mercadorias representado pela adesão à União Europeia. É verdade que saindo da UE o Reino Unido correria o risco de ver Londres ser desbancada do seu status de meca financeira, mas para os partidários do Brexit, como Toby Young, vale a pena arcar com as consequências negativas em termos de perda de uma parte da vantagem competitiva da indústria financeira se isso permitir que a classe trabalhadora branca nativa recupere um pouco da dignidade perdida ao aumentar sua participação no mercado de trabalho em detrimento dos imigrantes. A falta de compaixão dos ricos pelos pobres denunciada por Toby Young foi recentemente exemplificada pela medida adotada pelo Chanceler do Tesouro, George Osborne, que em sua proposta orçamentária cortou os benefícios por invalidez pressupondo que muitos dos que recebem o dinheiro não trabalham porque são vagabundos, o que levou Ian Duncan Smith, o então Ministro do Trabalho e Aposentadoria a renunciar em 18 de março deste ano, acusando Osborne de favorecer os privilegiados.

    Os cínicos dirão que o lumpenproletariat britânico é irremediável e que a única coisa a fazer em relação a eles é prover-lhes a subsistência e evitar que eles causem muitos estragos, proporcionando-lhes válvulas de escape como o futebol e o turismo etílico descrito por Houellebecq. Seja lá como for, saberemos a resposta ao apelo de Toby Young feito aos agraciados pela globalização em seu país no dia 23 de junho, data do referendo sobre a saída ou não do Reino Unido da União Europeia.

    Prezados leitores, no Reino Unido os perdedores do processo de transformação do mundo em aldeia global poderão revoltar-se decidindo dar às costas à União Europeia, nos Estados Unidos poderão eleger Donald Trump presidente dos Estados Unidos. A desigualdade social devida ao fato de o crescimento econômico no século XXI beneficiar apenas alguns grupos dentro de cada Estado é algo inédito para esses afortunados países do Primeiro Mundo, que no século XX tiveram tudo para acreditar que seus habitantes seriam em sua maioria de classe média. Nós, no Brasil, não nos livramos dos nossos marginalizados nem com o crescimento econômico fenomenal obtido depois da Segunda Guerra Mundial, e agora, com o fim do ciclo das commodities e o colapso geral das finanças públicas em todos os entes da federação, será muito mais difícil prover-lhes algo além do Bolsa Família. Sair do Mercosul não resolve o problema dos ném-ném (nem estuda nem trabalha) aqui, e por enquanto ainda não temos um populista falastrão como Trump, ou melhor nosso melhor exemplar, Lula, provavelmente sairá da Operação Lava Jato nu e batendo os dentes de frio. Esperemos, pois, a compaixão de privilegiados como Cláudia Cruz Cunha, que poderia doar algumas bolsas e sapatos às nossas mulheres pobres. Não é um bom começo para a distribuição da renda? Quem sabe cheguemos a viagens a Fernando de Noronha para o lumpenproletriat brasileiro regadas a cerveja?

Categories: Internacional | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment