Somos todos burgueses!

Ela era mais educada para os assuntos práticos do que a nobreza ou o clero, e estava mais bem equipada para comandar a sociedade na qual o dinheiro era o sangue pulsante. Ela via a pobreza como a punição da estupidez e sua própria riqueza como a justa recompensa pela diligência e inteligência. Não acreditava em um governo pelos sanscullotes; denunciava a interrupção do governo pelas revoltas do proletariado como uma impertinência intolerável. Ficava resolvido que quando o som e a fúria da revolução tivessem amainado, a burguesia seria a comandante do Estado.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a burguesia francesana época da Revolução Francesa

Morador da Brasilândia na Zona Norte, o motoboy Willian Miguel, de 27 anos, que faz entregas de aplicativo de delivery de comida há quatro anos, também foi atraído pelas promessas do discurso do ex-coach.

– O mais importante são as ideias empresariais dele, a visão de negócio – afirma Willian, que já teve carteira assinada quando fazia entrega de medicamentos para uma rede de farmácias e ganhava, segundo ele, um quarto da renda atual. – Os ideais do Boulos e da esquerda, do Lula, é o foco na CLT. Só que a gente veio para isso (os aplicativos) já para sair da CLT. A carteira tem as suas vantagens, mas não são totalmente boas. Metade do salário vai só para desconto de imposto (a alíquota máxima é de 27,3%). Deveria ser opção do trabalhador depositar, mas não ser obrigado – opina o motoboy.

Trecho retirado do artigo “Foco no voto do empreendedor”, publicado no jornal o Globo de 27 de outubro, sobre o discurso de Pablo Marçal enfatizando a prosperidade durante a campanha à prefeitura de São Paulo em 2024.

A USP faz há anos pesquisas, das quais participo, que dissecam o tamanho da devastação psíquica que o discurso do empreendedorismo produz nas pessoas. O você contra todo mundo, sem ajuda de ninguém. O todo mundo em competição o tempo todo. Pessoas em situação de precariedade, de vulnerabilidade econômica, obrigadas a serem empreendedoras de seu próprio sofrimento. […] O que precisamos é mostrar uma outra gramática dos vínculos sociais. A de solidariedade real. […] Não transformar o trabalhador em empreendedor sufocado pelo capitalismo de plataforma, que o fará trabalhar como um desesperado para não conseguir nada, sem garantia alguma.

Trecho retirado de uma entrevista do professor de Filosofia da USP Vladimir Safatle, publicada no jornal o Globo de 27 de outubro

    Prezados leitores, confesso ter um grande medo de motoboys. Quando eu os vejo no cruzamento de ruas sei que nunca pararão no sinal vermelho e por isso preciso estar sempre alerta para que quando seja tempo de  atravessar na faixa de pedestres eu o faça sempre antes de um deles acelerar e eu correr o risco de ser atropelada por um motoqueiro que não pode perder tempo e esperar que o sinal se torne verde. Vida muito louca, a deles, que têm pressa para fazer entregas, pois quanto mais entregas mais dinheiro. E a minha, que vivo angustiada em imaginar que daqui a alguns anos não terei os reflexos necessários para fugir dos motoqueiros como consigo fazer hoje.

    Apesar do meu medo e raiva pelo comportamento totalmente transgressivo das leis da boa convivência no trânsito, quando os vejo sentados na calçada consultando seu celular para verem se chegou algum pedido de entrega, fico imaginando que por mais que a aceleração incessante deles me deixe ansiosa, fazer do smartphone um instrumento de trabalho deve ser fonte de maior ansiedade ainda, pois o piscar da luz na tela passa a guiar todos os seus passos. Enfim, nutro um sentimento negativo por motoboys, mas não posso deixar de entender o estresse sob o qual vivem.

    Nessas últimas eleições municipais, que terminaram no domingo dia 27, descobri uma outra coisa a respeito dos motoboys que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias.  Eles são colocados na categoria social de empreendedores periféricos, pessoas como Willian Miguel, cujos princípios morais e filosóficos ele expôs ao repórter do jornal O Globo, conforme o trecho que abre este artigo. Willian é periférico porque mora na periferia de São Paulo, no bairro da Brasilândia e é empreendedor porque ele tem a mentalidade e a atitude de um legítimo homem de negócios, aquele que na Revolução Francesa era chamado de burguês. Ele quer ter liberdade para trabalhar com entregas do modo mais conveniente para ele, isto é do modo que lhe permita ganhar o máximo possível.

    Para que esse objetivo pecuniário se concretize ele não quer saber do governo interferindo na vida dele, tomando-lhe o dinheiro na forma de imposto de renda ou contribuição previdenciária. Sem registro em carteira, por favor, sem CLT, sem vínculo formal de emprego. Isso tudo é uma grande aporrinhação porque se Willian pagasse tudo isso ele tiraria um quarto do que tira hoje. O empreendedorismo de Willian é o empreendedorismo dos motoqueiros que cruzam dia e noite as ruas de Sâo Paulo e que nos amedrontam com sua liberdade de desrespeitar sinais vermelhos, de virar em locais proibidos, de andar pela calçada e pelas ciclofaixas e ciclovias.

    É verdade que os empreendedores periféricos arriscam sua vida e arriscam a vida de todos com seu comportamento arrojado na direção. Mas a bem da verdade, o risco é da essência do empreendedorismo e se Elon Musk não tivesse se arriscado a perder bilhões de dólares em um lançamento fracassado do foguete Starship, em abril de 2023, sua empresa Space X não estaria agora se preparando para o sexto voo da nave que Musk pretende um dia que chegue a Marte para iniciar a colonização daquele planeta. Então devemos celebrar os Willians Migueis de Sâo Paulo como Elon Musk é celebrado nos Estados Unidos, certo? Assim fez Pablo Marçal, o empresário goiano que no primeiro turno das eleições à prefeitura de São Paulo teve 1.719.274 votos e que dizia que Jesus Cristo não distribuiu pão, ele o multiplicou, para desconstruir o discurso da esquerda de justiça social. Se nem Jesus Cristo dava nada a ninguém porque eu devo dar alguma coisa ao governo pagando impostos e contribuições previdenciárias e porque o governo haverá de dar alguma coisa caso impostos e contribuições previdenciárias não sejam arrecadados?

    Para o filósofo Vladimir Safatle, aceitar essa lógica de que não há justiça social nem possível nem desejável e a figura do empreendedor periférico como personagem a ser louvado e encorajado é o suicídio da esquerda no Brasil. No trecho que abre este artigo, ele revela o que há por trás desse homem livre das amarras do governo, livre para trabalhar o quanto quiser, a qualquer horário do dia e dia da semana, livre para ficar com todos os seus rendimentos para si sem ter que compartilhar nada com o Estado opressor.

    Na visão de Saflate, o empreendedor periférico é um sujeito que não conta com ninguém e só conta consigo mesmo. O mundo está contra ele, inclusive os pedestres como eu, que não gostam do comportamento temerários dos adeptos da teologia da prosperidade. E ao contrário de homens de negócio como Elon Musk, cujo risco é calculado, mensurado e embutido no preço dos produtos e serviços que ele oferece, o risco da vida louca dos motoboys não é compartilhado com ninguém nem repassado a ninguém: se o motoboy tem um acidente de trânsito ele para de trabalhar e fica sem ganhar. Como não é registrado e não paga contribuições previdenciárias, não terá nenhuma renda durante o período de inatividade e será um sujeito de sorte se conseguir receber tratamento médico de emergência em uma instituição de ensino e pesquisa, como o Hospital das Clínicas.

    Em suma, o empreendedor periférico é na verdade um sujeito vulnerável, que por qualquer tropicão na rua pode ter sua vida totalmente desestabilizada. Daí que Saflate defende na entrevista dada ao Globo que a esquerda brasileira evite cair na armadilha do culto ao empreendedor periférico e proponha uma narrativa alternativa fundada na solidariedade real dos vínculos sociais viabilizada pelo Estado, que estabelece regras para o trabalho de forma que aqueles que não tem poder financeiro suficiente para garantir sua plena prosperidade material possam ter o necessário para a vida com dignidade.

    Belas palavras do eminente filósofo, mas ele mesmo reconhece que a teologia da prosperidade defendida pela direita fincou raízes no Brasil do século XXI e eis que somos todos burgueses em nosso país, tais como aqueles do século XVIII na França descritos por Will Durant no trecho que abre este artigo. Burgueses confiantes na nossa capacidade intelectual e moral, burgueses que acumularam riqueza por mérito próprio, e a quem devem ser dadas as rédeas do governo do país para que a liberdade, a prosperidade e a propriedade frutifiquem.

    Prezados leitores, façamos como Willian Miguel e tantos outros empreendedores periféricos e sigamos a cartilha espiritual de Pablo Marçal: mudemos nosso mindset e tenhamos a certeza de que nosso sucesso só depende de nós e de que se fracassarmos a culpa é da nossa estupidez. Se cairmos de uma moto em uma grande avenida de São Paulo, basta levantarmo-nos e seguirmos em frente, mesmo que seja mancando, se arrastando ou na maca desacordados. O importante é sermos donos do nosso próprio destino, sem empecilhos, principalmente do governo, o grande elefante na sala. Multipliquemos nossos pães e seremos todos burgueses!

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O triunfo da vontade

Brienne tornou-se uma prova formativa para o garoto de dez anos, tão longe de casa em um ambiente estranho e rígido. Os outros alunos não perdoavam seu orgulho e temperamento, que pareciam tão desproporcionais a sua nobreza obscura. “Eu sofri infinitamente com as gozações dos meus colegas, que zombavam de mim por ser estrangeiro.” O jovem desgarrado recolheu-se em si mesmo, aos estudos, aos livros e aos sonhos. Sua pré-disposição a ser taciturno aumentou; ele falava pouco, não confiava em ninguém e mantinha-se afastado de um mundo que parecia organizado para atormentá-lo.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a infância de Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, vivida em uma academia militar

 

A virtude consiste na coragem e na força; … a energia é a vida da alma… O homem forte é bom; somente o homem fraco é ruim.

Trecho de um ensaio escrito por Napoleão em 1791 intitulado “Quais verdades ou sentimentos devem ser inculcados nos homens para que sejam felizes”

De um lado temos a moralidade do senhor, na qual o bem conota a independência, a generosidade, a autossuficiência, e que tais; de fato, todas as virtudes que pertencem ao homem de alma grande de Aristóteles. Os defeitos opostos são a subserviência, a mesquinhez, a timidez e assim por diante, e essas qualidades são ruins.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, escrito pelo filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970), sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900)

    Prezados leitores. Imaginem um menino magro, baixinho, de compleição malsã, que falava um francês claudicante, vindo de um rincão da Europa, a Córsega, uma ilha que havia sido transferida por Gênova à França em 1768, portanto um ano antes de este menino nascer, o que fazia dele um francês por acaso. Imaginem também esse menino apresentando-se como nobre, quando na verdade seu pai havia conseguido um certificado de nobreza reconhecido pelo governo francês, pois a origem da sua família encontrava-se na Toscana. Imaginem por último esse menino em uma academia militar frequentada somente pela nobreza francesa. Pronto, estão postas as condições para o assédio de um aluno que destoava daqueles que o rodeavam. Esse menino esquisito chamava-se Napoleão Buonaparte, filho de Carlo e Letícia, italianos antes de 1768 e franceses depois.

    E assim ocorreu durante os cinco anos em que Napoleão passou em Brienne, antes de seguir para a École Militaire em Paris. Conforme o trecho que abre este artigo, pelo fato de ter todas as características mencionadas acima, o jovem Napoleão sofreu gozações o tempo todo e isso o levou a refugiar-se nos estudos e nos livros, a desconfiar de todos, a ser sempre triste e às vezes ter pensamentos suicidas e a ver o mundo como conspirando contra ele. Foi seu primeiro contato com a crueldade, a violência, a covardia das pessoas que se unem para eleger um bode expiatório, em suma com a natureza humana tal como ela é, independente dos ideais cultivados pela sociedade. O que motivava seus colegas a tratar o jovem corso assim? Seria a falta de uma ética religiosa de amor e de respeito mútuos que fosse além da mera aparência dos ritos e dos sacramentos que faziam parte da rotina de todos os membros da Igreja Católica? Seria falta de racionalidade, que os levava a enxergar a vida sob a ótica arbitrária dos seus preconceitos de classe e a dar vazão a seus instintos mais baixos por serem incapazes de controlar suas emoções e atuar de maneira objetiva e justa?

    Qualquer que fosse a razão do bullying, Napoleão Bonaparte acabou tirando suas próprias lições éticas de sua vivência entre a juventude aristocrática francesa da academia militar, seguindo uma terceira via que levava em conta a fragilidade do ideal cristão e do ideal racional a respeito do homem: longe das premissas cristãs de humildade e doação ao próximo; mas longe também das premissas iluministas e racionais sobre uma natureza humana que pode ser transformada pela educação e pelo controle dos desejos, levando ao nascimento de um homem imparcial, controlado, que não faz aos outros aquilo que não quer que façam com ele, a fim de que todos possam viver em paz. A terceira via da moral napoleoniana é a da força e da vontade. Conforme o trecho citado do seu ensaio de 1791, apresentado à Academia de Lyons, o homem bom é o homem forte e com coragem de fazer coisas, indômito frente às dificuldades da vida o homem mau é o homem fraco, incapaz de fazer nada, incapaz de dedicar-se a qualquer empreendimento porque tem medo de tudo.

    De acordo com Will Durant e Ariel Durant, em seu livro “The Age of Napoleon”, o corso de um metro e sessenta e nove de altura foi um precursor da vontade de poder de Friedrich Nieztsche. Conforme o trecho que abre este artigo, Nieztsche considerava como virtuoso todo homem que age autonomamente, confiando em si mesmo e sem depender de ninguém e como homem carente de virtudes aquele que é tímido, incapaz de quaisquer iniciativa e por isso subserviente, pronto para obedecer ao outro que dita as regras porque tem o ímpeto da ação. Nesse sentido, conforme Bertrand Russell explica em “Wisdom of the West”, o filósofo alemão descartava toda moral de fundamento religioso, pois qualquer que seja ela, inclusive e principalmente a cristã, será sempre a moralidade dos escravos, daqueles que são dóceis e se compadecem do sofrimento alheio, não daqueles que atuam no mundo para moldá-lo de acordo com sua vontade e os objetivos que pretende alcançar.

    Assim, para os adeptos do triunfo da vontade, o poder se justifica por si mesmo se ele é exercido em sua plenitude e se seu exercício leva à imposição bem-sucedida da vontade de um indivíduo sobre o outro ou sobre os outros para a construção de algo. O julgamento moral que se pode passar a respeito do exercício do poder não é se ele deu a cada um o que é seu ou contribuiu para a prosperidade e a felicidade de todos, mas se ele foi bem-sucedido, isto é, se a vontade de poder conseguiu o que almejava. Não é de se admirar que os proponentes de tal moralidade sejam indiferentes ao sofrimento de muitos e que Napoleão tenha perseguido seus ideais imperialistas ao custo total entre 3.250.000 e 6.500.000 de mortos, incluindo civis e militares, de acordo com o site Wikipedia. Só na França, as Guerras Napoleônicas, entre 1800 e 1815, ceifaram a vida de 1/60 avos da população, o que teve um efeito nefasto sobre a taxa de natalidade, conforme a Enciclopédia Britânica.

    Prezados leitores, o triunfo da vontade do menino corso assediado em Brienne o fez sobreviver à infância infeliz, a enfurnar-se nos livros para preparar-se para a vida adulta e a prosperar, imprimindo sua marca no mundo. A trajetória de Napoleão, cuja carreira para Friedrich Nietzsche foi a única justificativa para o sangue derramado durante a Revolução Francesa, exemplifica mais uma vez que o poder não pode ser exercido de acordo com princípios cristãos. É preciso impor sua vontade ao outro, sem se preocupar com as consequências, mas com foco intenso na concretização dos planos.  A questão permanece, no entanto: como lidar com os efeitos colaterais dos empreendimentos bem-sucedidos? A moralidade da vontade de poder não nos dá tais respostas. Mas é inegável que ela permite ao indivíduo sobreviver e triunfar frente aos seus inimigos.

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Confortos e desconfortos aqui e acolá

Em relação a mim, eu admito que eu conheci apenas um Deus – o Deus de todo o mundo e da justiça… O homem no campo acrescenta a essa concepção… porque sua juventude, sua masculinidade e sua velhice devem ao padre seus pequenos momentos de felicidade… Deixe-o com suas ilusões. Ensine-o se quiser… mas não deixe que os pobres tenham medo de que possam perder a única coisa que os ligam à vida.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando George Jacques Danton (1759-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

O ateísmo é aristocrático. A ideia de um grande Ser que vela pela inocência e pune o crime triunfante é basicamente a ideia do povo […] Essa noção […] liga-se somente a ideia de um Poder incompreensível, do terror dos malfeitores, o esteio e conforto da virtude.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Maximilien de Robespierre (1758-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

De maneira mais abrangente, este relatório também descreve os impactos em cascata que levam a mortes indiretas, causados pelas operações militares de Israel em Gaza e na Cisjordânia. Ele examina o impacto sobre a saúde da população causado pela destruição da infraestrutura pública, das fontes de subsistência, pelo acesso reduzido a cuidados de saúde, à água e ao saneamento e pelos danos ambientais. Por exemplo, 96% da população de Gaza (2,15 milhões de pessoas) enfrenta níveis agudos de insegurança alimentar. De acordo com a carta de 2 de outubro de 2024 apresentada ao Presidente Biden por um grupo de médicos americanos, 62.413 pessoas em Gaza morreram de inanição.

Trecho retirado do Resumo do relatório intitulado “The Human Toll: Indirect Deaths from War in Gaza and the West Bank, October 7, 2023 Forward” publicado pelo Watson Institute for International & Public Affairs da Universidade Brown

    Prezados leitores, venho abordando a Revolução Francesa ao longo das últimas semanas. Na primeira semana de outubro, em “Pontos de inflexão – os paralelogramos de Gibbon”, falei sobre o conjunto de fatores que presentes concomitantemente criaram as condições suficientes para sua eclosão. Na semana passada, em “Onde estão os novos porteiros”, falei como a exploração de um veículo relativamente novo de comunicação, a imprensa escrita, foi responsável pela criação das narrativas que sustentaram o movimento revolucionário, a luta dos bons, o “povo”, contra os maus, representados basicamente pela nobreza e pelo clero, que gozavam de privilégios seculares. Nesta semana, retomarei essa dicotomia para explorar as visões de mundo que se digladiavam no século XVIII e lançar luz sobre nossas próprias dicotomias, em pleno século XXI.

    É verdade que havia diferentes grupos sociais que disputaram o poder na França desde 1789 até a tomada do poder por Napoleão em 1799, os quais tinham diferentes visões sobre como organizar as instituições econômicas e políticas. No entanto, ignorando as nuances das respectivas teorias, podemos com certeza dividir a sociedade francesa do final do século XVIII em dois campos ideológicos. Um deles, ligado às tradições, considerava que a fé religiosa era no final das contas o único apoio que o indivíduo tinha vivendo em um mundo ininteligível, sem significado e trágico. O outro, aberto à experimentação, considerava que a religião era uma superstição que atrapalhava o caminho rumo à razão e à liberdade.

    Assim, para os experimentalistas revolucionários, a combinação da razão e da liberdade permitiria tentar novos modos de organização da sociedade que estabeleceriam uma nova ética nas relações humanas, não fundada no medo das coisas invisíveis e na esperança vã de uma vida eterna melhor, mas na busca pela diminuição do sofrimento das pessoas e pelo aumento da felicidade. Uma moral racional, livre de preconceitos e de noções de superioridade e de inferioridade irredutíveis trariam a igualdade, a justiça e, portanto, melhoraria a vida da maioria das pessoas.

    Ora, esse caminho rumo ao paraíso na terra era ceifado de dificuldades, pois não havia escolhas fáceis. No campo econômico era preciso garantir a todos que pudessem comer e para isso que o preço dos alimentos fosse acessível para a população mais pobre. O que fazer? Estabelecer preços máximos para os produtos? Se assim fosse feito, os agricultores não teriam estímulo para produzir. Por outro lado, se os preços fossem liberados, os comerciantes poderiam auferir grandes lucros se retivessem as mercadorias para vendê-las no futuro a preços maiores, quando a demanda fosse maior. Num e noutro caso, a decisão a ser tomada para enfrentar o problema da oferta e da demanda e de como equilibrá-las implicava enfatizar um aspecto em detrimento do outro.

    Um governo de inclinação burguesa liberaria os preços para incentivar a produção e a criação de riquezas. Um governo de inclinação popular controlaria os preços para diminuir as desigualdades criadoras de ressentimentos. Seria possível destrinchar o problema apelando à razão? Haveria uma única razão, imparcial, objetiva, unívoca que viabilizasse uma resposta categórica? Ou haveria uma ponderação dos interesses em jogo e no final das contas uma decisão arbitrária sobre que interesses privilegiar com base na correlação de forças políticas?

    Tanto Danton, que foi ministro da Justiça e membro do Conselho Executivo de agosto de 1792 até 1793, quanto Robespierre, o principal nome do Comitê de Salvação Publica a partir de julho de 1793 até sua execução em julho de 1794 reconheciam que na prática o reino da prosperidade para todos que tornaria a religião inútil não era algo simples de ser conquistado. Daí as observações desses dois homens sobre a função da religião, citadas na abertura deste artigo. Se as desigualdades e as injustiças, o sofrimento, o trabalho duro, a doença não podem ser eliminados da face da Terra, é preciso crer que em outra dimensão um Ser com poderes absolutos punirá os maus e recompensará os bons. Do contrário, como ter motivação para viver se o indivíduo, por sua posição na escala social e econômica é vítima desses males constantemente? Não crer em Deus é um luxo dos privilegiados, que têm mais condições materiais de remediar os sofrimentos que os acometem e portanto não precisam recorrer a entidades sobrenaturais que façam o serviço de justiçamento que é impossível de ser concretizado no mundo real.

    É neste ponto que salto três séculos, dos sans-culottes que sofriam com a carestia na França do século XVIII, para os palestinos, que estão sendo lentamente dizimados, em pleno século XXI. O relatório cujo trecho é citado na abertura deste artigo descreve os detalhes da exterminação gradual e segura, causada pelo bloqueio de ajuda humanitária, pela destruição das redes de esgoto e de abastecimento de água, pela destruição dos hospitais, pela proliferação de doenças causadas pela sujeira e pelo enfraquecimento do sistema imunológico devido à falta de comida. No século XXI, os ideais iluministas da razão e da liberdade como veículos do progresso são veiculados pelo Direito Internacional. Afinal, é o Direito Internacional que estabelece regras de convivência entre os diferentes países para que um não tente impor sua vontade ao outro de maneira arbitrária, é o Direito Internacional que estabelece o modo como os países devem conduzir operações bélicas de maneira a minimizar danos a populações civis.

    Ora, o direito internacional até agora falhou redondamente na guerra entre Israel de um lado, e Hamas e Hezbollah, de outro, que se iniciou em 7 de outubro. Civis estão sendo trucidados em nome do combate ao terrorismo islâmico e seu direito à integridade física está sendo constantemente solapado pelos bombardeios israelenses incessantes, pela dificuldade de atuação das equipes da Organização das Nações Unidas na Palestina. E por que o direito internacional falhou? Por que não é possível elaborarmos coletivamente um argumento racional para diminuir o sofrimento das pessoas e aumentar a felicidade geral de todos os que habitam a região? Será porque o Oriente Médio é palco de disputas geopolíticas que só levam a uma ponderação de interesses sem que seja possível chegar a uma conclusão imparcial sobre o que fazer? Será porque a religião é utilizada por um e por outro lado para motivar as pessoas e dar uma pátina de moralidade às disputas de poder entre fundamentalistas islâmicos e judeus?

    Enquanto isso, prezados leitores, talvez diante da perspectiva de sofrimento infindável para os palestinos, seja melhor eles recorrerem ao conselho de Danton e se apegarem à única coisa que os liga à vida: a fé. Se a razão é inviável e não leva à justiça, à paz e à felicidade, é melhor que os palestinos, dormindo ao relento, passando fome e frio, morrendo lentamente sem cuidados médicos e fugindo das bombas sonhem com um Ser supremo que vingará os oprimidos.

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Onde estão os novos porteiros?

“Acho que há um desafio específico para as marcas tradicionais, como o New York Times e o Wall Street Journal,” disse Tucker, acrescentando “Há não muito tempo, como eu digo, nós controlávamos as notícias. Éramos os porteiros, e também basicamente controlávamos os fatos também. Se foi dito no Wall Street Journal, no New York Times, então é um fato,” ela continuou, acrescentando, “Hoje em dia, as pessoas podem recorrer a todo tipo de diferentes fontes de notícias e elas estão questionando mais o que estamos dizendo.”

Fala de Emma Tucker, editora-chefe do Wall Street Journal em um painel de discussões intitulado “Defending Truth” realizado no Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2024

“A velha aristocracia,” disse Napoleão, “teria sobrevivido se tivesses tido conhecimento suficiente para se tornar expert nos materiais impressos… O advento do canhão matou o sistema feudal; a tinta irá matar o sistema moderno.”

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

A deterioração do debate público, com o uso crescente da violência e das mentiras mais deslavadas por candidatos, apontam especialistas, é característica central tanto das eleições deste ano quanto do próprio estado das democracias liberais nos dois lados do Atlântico. E a denúncia e a condenação da barbárie, alertam, podem não ser suficientes para estancar a sangria.

Trecho retirado do artigo “A deterioração do debate”, publicado no jornal O Globo em 6 de outubro

    Prezados leitores, foram exatos 56.853 votos e o post de um laudo médico falso sobre um surto psicótico de Guilherme Boulos em virtude da suposta ingestão de drogas que nos separaram de Pablo Marçal para a disputa do segundo turno das eleições para a prefeitura de São Paulo. Sem eles, teríamos tido o homem dos cortes como candidato, corroborando aquilo que falei no artigo “No tempo dos ordálios e das cadeiradas”, que estávamos utilizando como critério para a escolha de dirigentes políticos a aprovação em provas irracionais, isto é, provas que prescindem do diálogo e da argumentação para decidir quem é melhor. Ufa! Dessa vez nos livramos do perigo, mas será que Marçal não utilizará sua habilidade no uso dos recursos das mídias sociais em outras eleições?

    Afinal, a manipulação da comunicação de massa para fins políticos não é algo novo, como mostra o trecho que abre este artigo, em que Napoleão atribui a derrota da aristocracia na Revolução Francesa ao fato de que seus membros não souberam fazer uso da imprensa para defender seus pontos de vista. Se tivesse contratado jornalistas para escrever libelos atacando a burguesia e os sans-culottes, a aristocracia teria denegrido a imagem desses grupos sociais como a imagem dela foi denegrida pelo sem número de panfletos que foram escritos e canções que foram compostas contra o povo de sangue azul. Como resposta às acusações levianas de que o rei Luís XVI era um corno manso, a rainha era uma puta e o herdeiro do trono um bastardo, os jornalistas a serviço dos aristocratas poderiam ter levantado os podres dos líderes da Revolução, como Robespierre (1758-1794), Danton (1759-1794) e Marat (1743-1793) e se não tivessem encontrado nada de espetacular poderiam ter inventado, como fizeram os jornalistas a serviço do “povo”.

    Afinal, entre o começo da Revolução Francesa, em 1789, e a implantação do Terror em 1792, que durou até 1794, a liberdade de expressão era tamanha que as mentiras deslavadas eram publicadas lado a lado com as notícias sobre os últimos acontecimentos. Para Napoleão Bonaparte (1769-1821), os próceres do antigo regime não souberam usar as armas que seus inimigos usaram para influenciar a população em geral e fazê-la seguir suas ordens. Foram pintados como vilões, culpados de todas as mazelas da população, eleitos como bodes expiatórios e assim destruídos física, e economicamente em benefício dos patrocinadores dos panfletistas, a burguesia.

    Os excessos da orgia libertária acabaram sendo eliminados quando uma ordem genuinamente liberal se instalou na França e nos países da Europa Ocidental que se inspiraram nela para reformarem seus sistemas políticos. Como nos ensina John Rawls em “A Theory of Justice”, em um regime liberal todos têm direito de participar do debate público e de expor suas ideias, mas as desavenças só podem ser produtivas e levar à escolha das políticas que melhor atendem o bem comum sob a inspiração do conceito de oposição leal, mencionado na página 196 da edição revisada da obra: todos os participantes do jogo político aderem às regras e não abusam delas para tirar vantagem do sistema.

    Sob essa perspectiva, um candidato como Pablo Marçal, que se deixa ser entrevistado não para responder às perguntas dos jornalistas, mas para aparecer em um veículo da imprensa e usar a imagem em suas mídias sociais, viola as regras do jogo democrático porque ele não quer debater, mas “causar” e ataca a imprensa para lustrar suas credenciais de ser antissistema. Afinal, se a imprensa é um dos pilares da ordem liberal-democrática, por viabilizar o debate dentro de certos parâmetros de boa-fé, em que os participantes estão dispostos a ouvir, a rebater e a propor, utilizar a imprensa para desconstruí-la como “esquerdista” ou “tendenciosa” é uma maneira de mostrar-se um outsider, que não participa da suposta podridão reinante.

    Eis um novo ponto de inflexão no Ocidente: começando com a profusão de materiais impressos durante a Revolução Francesa, passamos pela sobriedade liberal dos órgãos de imprensa como instrumentos da disputa política nos limites da lealdade e da boa-fé. Em pleno século XXI, o avanço da internet como meio de comunicação permitiu que completássemos o ciclo e voltássemos ao começo anárquico. Como explica Emma Tucker no trecho que abre este artigo, hoje há uma infinidade de fontes de informação e os órgãos de imprensa tradicionais, que exerciam o monopólio sobre o que era o fato e o que era a notícia, estão cada vez mais questionados. Qual será o efeito dessa volta à profusão de meios de comunicação?

    Haverá a deterioração irremediável do debate público, como afirma o artigo do Globo, pela falta dos porteiros, representados por órgãos de imprensa que gozavam de credibilidade e que estabeleciam o que era objeto de discurso e o que não era objeto de discurso? Afinal, se não há os porteiros que dizem que fatos serão considerados como objeto de reflexão por parte daqueles que se propõe a apresentar propostas de políticas públicas, como fica a discussão? Vira um vale-tudo? Fica inviabilizada pelo fato de os participantes não se acordarem nem sobre quais são os fatos e as notícias sobre os fatos, não dispondo, portanto, de princípios comuns sobre os quais estruturar seus argumentos? Afinal como decidir sobre o que estamos falando se não sabemos o que é fato e o que é ficção? E como chegarmos a conclusões conjuntas, a consensos se não concordamos sobre os fundamentos da discussão e falamos sobre coisas diferentes?

    Prezados leitores, enquanto não encontrarmos novos parâmetros para lidarmos como as novas mídias sociais, ficaremos à mercê das cadeiradas, dos relatórios falsos e dos vídeos curtos descontextualizados. Para isso, precisamos encontrar novos porteiros que estabeleçam quem pode entrar e quem pode sair do debate público, pois os antigos porteiros perderam toda a credibilidade. Será o Poder Judiciário estabelecendo censura prévia? Será o povo livremente escolhendo o que consumir em termos de notícias na internet, separando por si só o joio do trigo, decidindo de maneira autônoma em quem confiar e de quem se afastar? Serão os empresários proprietários de veículos de mídia social, proibindo perfis anônimos? De qualquer forma, cabe a nós fazermos um exercício de imaginação coletiva para criá-los e presentificá-los. Do contrário, a ordem liberal-democrática sangrará até a morte.

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Pontos de inflexão: os paralelogramos de Gibbon

Ele não via desígnio nenhum na história; os acontecimentos são o resultado de causas não direcionadas; são o paralelogramo de forças de diferentes origens que geram um resultado multifacetado. Em todo esse caleidoscópio de acontecimentos a natureza humana parece permanecer inalterada. A crueldade, o sofrimento e a injustiça sempre afetaram a humanidade, e sempre afetarão, porque eles estão gravados na natureza humana. “O homem tem muito mais a temer das paixões dos seus pares do que das convulsões dos elementos naturais.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794)

De fundamental importância foi o crescimento das classes médias em número, educação, ambição, riqueza e poder econômico; sua reivindicação de status político e social compatível com sua contribuição à vida da nação e às finanças do estado; e sua ansiedade ante a possibilidade de o tesouro tornar os títulos públicos sem valor ao declarar falência. Subsidiariamente e utilizados por elas como ajuda e ameaça, eram a pobreza de milhões de camponeses implorando por alívio em relação às taxas, impostos e contribuições […] os crescentes padrões de administração esperados por cidadãos cujo intelecto havia sido afiado mais do que o de qualquer outro povo daquela época por escolas e salões, pela ciência, pela filosofia e pelo Iluminismo.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito das origens da Revolução Francesa

    Prezados leitores, estamos passando por momentos interessantes na cena internacional. Interessantes porque parecem estar abalando estruturas, lançando novos paradigmas geopolíticos. À parte a guerra na Ucrânia, que já dura desde 2022, agora temos a guerra no Oriente Médio, que se intensificou nas últimas semana. Será que as partes beligerantes, no caso Israel, a Palestina, o Líbano e o Irã vão bombardear-se mutuamente, vão lançar mísseis uns contra os outros por algum tempo e depois irão se aquietar? Será que as potências mundiais – Estados Unidos, China e Rússia – chegarão a um acordo de cavalheiros e irão exercer pressão em seus respectivos aliados para que não haja uma escalada de hostilidades que afete a economia e a paz mundiais? Será que as partes avaliarão os custos e benefícios do confronto, ponderarão seus respectivos pontos fortes e fracos e tomarão decisões com base em tais análises?  Ou será que irão agir motivados por seus valores éticos e religiosos fundamentais que os impelem a confrontar seus inimigos, custe o que custar? Será que haverá pressão das populações muçulmanas de países como Turquia, Jordânia e Egito para que seus respectivos governos tenham uma atuação mais forte em defesa dos Palestinos de Gaza?

    Ninguém sabe, nem os atores envolvidos nesse conflito sabem. E a razão da impossibilidade de prevermos o curso da história foi determinada pelo historiador inglês Edward Gibbon, autor do Declínio e Queda do Império Romano, conforme o trecho que abre este artigo. Os acontecimentos históricos são fruto de uma resultante de forças que atuam de maneira aleatória, sem que haja uma força invisível ou entidade sobrenatural que acione um ou outro fator conforme a finalidade última que essa força ou entidade tenha em mente. Assim, a história é uma caixa de surpresas, porque não é possível saber de antemão que força terá mais ou menos influência e se determinado fator desempenhará ou não algum papel no desenrolar dos acontecimentos. Como regra geral, Gibbon considerava que podemos apostar que as paixões e fraquezas humanas sempre desempenharão um papel, cuja intensidade se revelará no momento da ação. Esse conceito de paralelogramo pode ser aplicado com grande utilidade para entendermos a Revolução Francesa.

    Como mostram os Durant em seu capítulo intitulado “Anatomia da Revolução”, a força principal que impulsionou a deposição da monarquia, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, o Código Civil que estabeleceu a defesa da propriedade e a igualdade perante a lei, foi a classe média, conforme o trecho que abre este artigo. A classe social que abarcava advogados, médicos, banqueiros, comerciantes, industriais, administradores, cientistas, professores, artistas, autores e jornalistas considerava que ela era a principal responsável pela riqueza produzida na França e que eram suas economias que permitiam sustentar um Estado perdulário.

    Para a classe média, a nobreza recebia muito mais do que contribuía: gozava de pensões concedidas pelo rei e dos mais altos cargos na administração pública e militar; cobrava dos camponeses obrigações impostas no feudalismo e vigentes ainda no século XVIII; e conseguia de livrar da maior parte da carga tributária imposta pelo Estado por meio de subterfúgios. A contribuição da nobreza resumia-se às suas funções militares, pois há muito ela deixara de exercer suas funções tradicionais no campo, como a aplicação da justiça, a gestão agrícola, a criação de escolas, hospitais e instituições de caridade e a vigilância da população, funções cada vez mais exercidas pelo Estado. Sobre o clero, a opinião da classe média versada na literatura filosófica do Iluminismo não era melhor: seus membros eram os propagadores de uma teologia medieval e infantil.

    Diante disso, era preciso dar um choque de competência e dinamismo ao Estado que, em 1789, às vésperas da queda da Bastilha, tinha um déficit de 150 milhões de livres (o que equivaleria ao redor de 1 bilhão e 200 milhões de dólares americanos de hoje). Para isso, era preciso recrutar pessoas de talento, independentemente da origem social, de forma que o mérito fosse premiado e não o fato de a pessoa ter ou não determinado ancestral ilustre. Se o Estado francês continuasse a gastar muito mais do que arrecadava, ele poderia dar o calote naqueles que eram os seus grandes financiadores, a classe média que poupava e investia em títulos públicos.

    No entanto, paralelamente a essa grande força motriz da classe média descontente com o status quo, querendo mostrar seus talentos e ganhar prestígio social ascendendo aos altos cargos do governo restritos à nobreza, havia outro fator: o descontentamento do próprio povo isto é, dos artesãos, dos vendedores de rua, dos camponeses que em 1789 sofriam de insegurança alimentar devido a uma grande seca que afetou as plantações e a uma tempestade de granizo que arrasou terras em 1788, ao inverno de 1788-1789, o pior em 80 anos, e finalmente a enchentes torrenciais na primavera de 1789. O preço dos alimentos básicos disparou, o que causou fome, raiva, e motins, devidamente explorados pela classe média para derrubar o governo.

    Governo esse capitaneado por um rei, Luís XVI (1754-1793), que tinha boas intenções, queria ajudar o povo, mas não tinha nenhum talento para liderança. Sua vocação era ter sido chaveiro, mas a loteria genética o colocara no posto de herdeiro do trono do francês. Faltava-lhe autoconfiança, o que tornava difícil para ele tomar decisões e o levada a se deixar influenciar por sua esposa, Maria Antonieta (1755-1793), que gastava dinheiro em vestidos, em penteados de cabelo, em jogos de azar e em recompensar amigos por sua fidelidade.

    Descontentamento da classe média e do povo, desastres climáticos, rei indeciso, rainha exercendo influência nefasta sobre o rei que o tornava pior do que já era, abalando a credibilidade da monarquia: pronto, já temos um paralelogramo de forças! Atuando ao mesmo tempo, com intensidades diferentes, elas desencadearam a sucessão de eventos que levou à queda da monarquia, à execução do Rei e da Rainha, ao período do Terror, em que a guilhotina reinou soberana, matando a torto e direito quem se opusesse ao governo de Robespierre (1758-1794), ao período do Consulado e a ascensão de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

    Prezados leitores, em todo ponto de inflexão histórica, a lição de Edward Gibbon permanece válida: a história não tem uma moral, porque ninguém sabe para onde os acontecimentos caminham e portanto não é possível perceber nenhuma finalidade. Só sabemos de uma coisa: nunca haverá um único responsável pelos eventos, e assim, nunca haverá um único culpado e um único inocente. No século XVIII tínhamos Luís XVI, Maria Antonieta, Mirabeau (1749-1791), Lafayette (1757-1834), Robespierre, Danton (1759-1794), Napoleão. Hoje temos Benjamin Netanyahu, Vladimir Putin, Joe Biden, Xi Jinping, os líderes do Hamas e do Hezbollah, os israelenses que querem que os reféns feitos no dia 7 de outubro sejam resgatados e os muçulmanos do mundo todo que querem ver os palestinos pararem de sofrer.  Aguardemos o novo paralelogramo se formar e veremos qual será a força resultante. Ela poderá levar a uma nova ordem geopolítica mundial ou a um conflito nuclear que nos destruirá.

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