Relacionamentos para quê?

Eles desafiavam as mulheres a descartar seus modismos e anquinhas, seus sentimentos e desmaios e piedade submissa, convocando-as a juntar-se a eles para compartilhar a vida excitante da mente emancipada e do homem errante.

Trecho retirado do livro “Rosseau and Revolution”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre os proponentes do Sturm und Drang, movimento literário alemão do final do século XVIII, que teve entre seus participantes Goethe e Schiller

Seu conhecimento superior e força mental, ao invés de serem, como ele havia imaginado, um altar a ser consultado em todas as ocasiões, eram simplesmente colocados de lado em todas as questões práticas. […]Para Lydgate parecia que ele estava despendendo um mês após o outro sacrificando mais da metade das suas melhores intenções e suas melhores forças em prol da sua ternura por Rosamond; aturando as pequenas demandas e interrupções dela sem impaciência, e acima de tudo, aturando sem revelar nenhuma amargura a constatação com cada vez menos ilusões da superfície em branco e sem reflexo com que a mente dela apresentava-se ao ardor dele pelos fins mais impessoais  da sua profissão e de seus estudos científicos, um ardor que ele imaginara que a esposa ideal deve de alguma forma idolatrar como algo sublime. […] Rosamond sendo uma daquelas mulheres que acalentam a ideia de que cada homem que elas encontram teria preferido elas caso tal preferência não tivesse sido inútil.

Trecho do livro Middlemarch da escritora George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880)

    Prezados leitores, na semana passada, após várias semanas de ausência, eu lhes apresentei o Senhor Bulstrode, um rematado hipócrita cujo perfil a escritora George Eliot traça em seu romance Middlemarch para ilustrar sua visão de mundo, agnóstica que ela era: qual seja, a ideia de que o comportamento ético depende do caráter da pessoa e não da religião que ela professa, pois muitas vezes o discurso religioso só serve para justificar pelos artifícios de uma razão autocomplacente a crueldade, a mesquinharia e a ambição. Nesta semana, meu foco será em dois outros personagens, o doutor Lydgate e sua esposa Rosamond, pelos quais George Eliot mostra as sutilezas e as ambiguidades da sociedade patriarcal da época em que se passa o livro, a primeira metade do século XIX. Com isso ela nos dá sua visão desapaixonada do sexo feminino, de acordo com a qual as mulheres atuam em um contexto que as leva a agir de maneira específica de modo a atingir seus objetivos. Em assim fazendo, a escritora inglesa mostra como os relacionamentos humanos se desenvolvem na prática.

    A ascensão fulminante do feminismo nos países ocidentais na segunda metade do século XX consolidou uma visão crítica da sociedade dos séculos anteriores, ensinando-nos que as mulheres eram oprimidas pela sociedade patriarcal e não tinham maneira de expressar sua personalidade e desenvolver-se de maneira autônoma. Ora, a trajetória de Rosamond, ao lado do seu marido Lydgate, revela que a situação era bem mais complexa que este retrato em branco e preto dos oprimidos versus opressores. Lydgate é um cavalheiro que goza de reputação social em Middlemarch, onde ele resolve se instalar para atuar como médico. Sobrinho de um barão, portanto com conexões com a aristocracia, e tendo morado em Paris por algum tempo, ele chega à cidade cheio de autoconfiança e de ambições. Quer realizar uma prática médica diferente da comum, que insistia na prescrição de pílulas para toda e qualquer doença como meio de fidelizar os pacientes. Ele quer também construir um hospital para tratar de doenças infecciosas e o mais importante de tudo, quer dedicar-se à ciência combinando sua experiência ao lidar com os doentes com os estudo dos autores mais renomados e com experimentos por ele mesmo concebidos para fazer descobertas e assim contribuir para o progresso da humanidade.

    A princípio, ele consegue colocar esse projeto em prática, mas o comparecimento a festas na casa das famílias de Middlemarch coloca Lydgate em contato com Rosamond, filha de um industrial, portanto, uma mulher de menos prestígio social que ele, mas que é considerada a maior beldade da cidade e que havia frequentado uma escola para moças, onde aprendeu a ser educada, a cantar e a falar coisas agradáveis. O jovem e bem-apessoado médico flerta com a linda loira, mas não tem a intenção de casar logo, porque ele quer concentrar-se nos seus objetivos profissionais. Rosamond, ao contrário, está determinada a fisgá-lo como esposo, porque aos olhos dela ele seria o instrumento de sua ascensão social e da realização do sonho de morar em Londres e não ter mais contato com sua própria família modesta. A obstinação da moça tem sucesso: quando rumores começam a se espalhar de que Rosamond e Lydgate têm um relacionamento, o médico passa a evitar vê-la para não dar a entender que pretende casar, mas em um dia em que se encontram em uma festa, Rosamond chora e Lydgate ingenuamente toma isso como prova do amor que a moça sente por ele, quando na verdade era simplesmente o despeito de ela ver seu sonho de casamento estar indo para o brejo ante a reticência do seu alvo.

    Lydgate acaba cedendo e toma Rosamond como esposa. Conforme, o trecho que abre este artigo, ele via na beleza de Rosamond o sinal de um espírito sublime: o de uma mulher apaixonada pelo marido que o veneraria como mais forte, mais inteligente e mais sábio do que ela e que o obedeceria em tudo, ajudando-o a concretizar suas ambições profissionais ao proporcionar-lhe um lar agradável, preenchido pela doce voz e pela beleza física de uma mulher. No entanto, a loira mais cobiçada de Middlemarch estava longe deste ideal. Rosamond não compreendia os interesses intelectuais do esposo, que ela considerava esquisitos e inúteis, e começa a enfadar-se com ele, pois a conquista já estava feita, e seu ego exigia que ela fosse objeto da cobiça de outros homens. A preferência de Rosamond por divertir-se passa a prejudicar as atividades intelectuais de Lydgate, e como Rosamond só se interessa pelo marido na medida em que ele possa satisfazer os sonhos dela, Lydgate começa a perceber gradualmente que sua esposa em nada o ajudaria a tornar-se o grande cientista que ele gostaria de ser, o que mina gradativamente a autoconfiança que ele tinha ao chegar à cidade.

    O momento da verdade sobre o relacionamento do casal chega quando começam os problemas financeiros. Levando um estilo de vida que não condiz com os rendimentos que Lydgate consegue obter como médico que não receita pílulas milagrosas, as dívidas se acumulam. Lydgate tenta resolver o problema tomando as medidas mais racionais possíveis: penhorando bens e cortando despesas. Ele espera que sua esposa o obedeça, mas Rosamond é surda aos apelos dele, pois o que lhe importa acima de tudo é a reputação de que ela quer gozar na sociedade. Isso faz com que ela boicote de maneira sub-reptícia todos os esforços dele de lidar com os credores, o que o obriga a pedir dinheiro emprestado ao Sr. Bulstrode, com quem Lydgate trabalhava na construção do hospital. Bulstrode dá o dinheiro a Lydgate após este ter cuidado de um homem que chantageava Bulstrode ameaçando contar a todos o que sabia sobre o passado do paladino da moral em Middlemarch. O homem morre porque Bulstrode não lhe dá o remédio prescrito por Lydgate e quando todos na cidade acabam sabendo sobre as ações desonrosas de Bulstrode, eles chegam à conclusão de que o silêncio de Lydgate sobre a morte suspeita do chantageador foi comprado.

    Lydgate consegue pagar suas dívidas, mas sua reputação está em frangalhos, o que para Rosamond é insuportável. Ela exige a mudança para Londres e Lydgate atende ao pedido, apesar de sua vontade de continuar em Middlemarch trabalhando em prol do hospital e da ajuda de amigos que estão dispostos a asseverar a honestidade do médico. E por que Lydgate cede? No papel de cavalheiro casado que deve proteger sua esposa até o fim, ele se sente na obrigação de reparar os danos causados ao orgulho de Rosamond pelas dívidas e pelas relações com o famigerado Bulstrode. Assim, Rosamond consegue tudo o que sempre quis, mas a autora nos revela que Lydgate, apesar de ter ganho dinheiro em Londres como médico que receita remédios para gota, é um homem frustrado por não ter conseguido realizar seus sonhos. Ao longo dos anos, percebendo ter feito uma má escolha ao casar-se com a bela e vaidosa Rosamond, Lydgate dá vazão ao seu ressentimento acusando a esposa de ser um manjericão, isto é, uma planta que floresce no cérebro de um homem morto. Rosamond não se importa com essas acusações, pois jamais amou o marido e jamais percebeu o sacrifício que ele fez para agradá-la. Quando ele morre aos 50 anos e a deixa com quatro filhos e uma boa fortuna, ela logo casa-se de novo.

    A lição que tiramos do drama de Lydgate é que se o estereótipo da sociedade patriarcal é de que atrás de um grande homem existe uma grande mulher, o oposto também é verdadeiro: se uma mulher constrói um homem ela pode também o destruir, como Rosamond fez com seu marido, a quem ela usou como instrumento para suas ambições de ascensão social. Mas George Eliot é sutil o suficiente para mostrar os defeitos de Lydgate, que se deixou levar por uma paixão sexual e encantar-se por uma beleza oca, vazia de caráter ou de espiritualidade. Rosamond era mesquinha e seu prazer na vida era admirar-se no espelho, vendo seu próprio reflexo em tudo e todos. Mas Lydgate foi fraco e ingênuo ao se deixar enganar pela mulher que desempenha o papel da fêmea agradável, passiva, que se faz de frágil para alimentar a vaidade masculina e assim conseguir um esposo. Talvez George Eliot tivesse em mente as críticas que o Sturm und Drung fez ao comportamento estereotipado das pessoas em sociedade, conforme o trecho que abre este artigo. Os membros deste movimento, que propunha um individualismo humano, queriam que as mulheres fossem autênticas como eles eram, dessem vazão aos seus sentimentos e não ficassem escondendo-se atrás de atitudes fingidas como desmaiar, obedecer sempre, não tomar a iniciativa para nada, estabelecidas como estratégias para encaixar-se no estereótipo do feminino e assim conseguir a aprovação de um homem candidato a esposo ou a amante que as sustentariam.

    Prezados leitores, o gênio de George Eliot estava em mostrar os cinquenta tons de cinza das sociedades patriarcais do início do século XVIII: as mulheres seguiam as regras do jogo, agindo polidamente, agradando os homens, esperando que eles agissem, mas a depender do caráter delas, elas o faziam simplesmente para satisfazer seus próprios interesses em detrimento dos interesses do suposto sexo forte. Nessa guerra dos sexos, muitas das vítimas foram homens bem-intencionados como Lydgate, que fiéis ao ideal do cavalheiro responsável pelo bem-estar da dama, foram incapazes de lidar com mulheres predadoras como Rosamond, que souberam extrair o bônus de ter um financiador sem se preocuparem com os ônus de desempenhar o papel do sexo frágil, que era o de ajudar o marido a desenvolver seu potencial. A história do casal Lydgate e Rosamond nos coloca a questão: para que haver relacionamentos? Para sermos sinceros uns com os outros e buscarmos a felicidade juntos, como os românticos alemães propunham? Ou para desempenharmos papéis estereotipados e chafurdarmos em comportamentos passivo-agressivos? A escolha está posta, tanto na sociedade patriarcal do século XIX retratada por George Eliot quanto na sociedade pós-patriarcal do século XXI. Cabe a cada um de nós escolhermos.

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Hipocrisia para quê?

A trajetória de Bulstrode até aquele momento tinha, ele pensava, sido sancionada por ocorrências providenciais notáveis, parecendo apontar para ele o papel de agente da concretização do melhor uso de um grande patrimônio e evitando que este fosse pervertido. A morte e outras disposições extraordinárias, tais como a confiança das mulheres, haviam acontecido e Bulstrode teria feito suas as palavras de Cromwell – ‘Você chama esses acontecimentos de vazios? Que o Senhor tenha pena de você! Os acontecimentos eram comparativamente pequenos, mas a condição essencial estava lá – a saber, que eles favoreciam seus próprios fins. Era fácil para ele estabelecer o que ele devia aos outros indagando quais eram as intenções de Deus com relação a si próprio.

Trecho do livro Middlemarch da escritora George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880)

É impossível, a esta distância, retratá-lo de maneira objetiva, pois desde sua ascensão até hoje os historiadores o descreveram como um hipócrita ambicioso ou um santo-estadista. Uma personalidade tão ambivalente provavelmente encerra em si – às vezes harmoniza – em seu caráter as qualidades opostas que geram tais avaliações contraditórias. Essa pode ser a chave para entender Cromwell.

Trecho retirado do livro “The Age of Reason Begins”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

“Eu desejo que todas as pessoas de boa fé possam imputar a glória disto a Deus, que é quem deve ser elogiado por essa misericórdia”. Ele esperava que “tal amargura impedirá o derramamento de sangue, pela bondade de Deus.”

Trecho retirado do livro “The Age of Louis XIV”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando a fala de Oliver Cromwell (1599-1658), Lorde Protetor da Inglaterra entre 1653 e 1658, quando da sua campanha de conquista da Irlanda, na qual ele cercou a cidade de Drogheda e foi responsável pela morte de 2.300 pessoas, incluindo civis e padres

    Prezados leitores, eis-me aqui de volta, depois de várias semanas de férias. Trago em minha memória imagens de lugares que visitei e reflexões sobre livros que li. Nesta semana, quero compartilhar com vocês minhas impressões sobre Middlemarch, a obra-prima da escritora inglesa George Eliot, que não foi consagrada por Hollywood como Jane Austen foi, talvez pelo fato de seus livros não serem facilmente convertidos em um script de filme. Meu foco será em um único personagem, o Sr. Bulstrode, que a escritora cria como um paradigma do puritano hipócrita, que adora pregar a virtude, acha defeitos morais em todos a seu redor, mas tem telhado de vidro. O objetivo será traçar um paralelo com Oliver Cromwell, paralelo aliás estabelecido pela própria autora.

    O Sr. Bulstrode é um homem rico e respeitável da cidade de Middlemarch, no interior da Inglaterra. Ele é rico porque herdou o patrimônio de sua primeira esposa, de quem ficou viúvo, e o multiplicou pelo seu tino comercial, e respeitável porque tem um papel de liderança na comunidade, que ele exerce indicando pessoas para cargos religiosos e construindo um hospital para abrigar as vítimas de doenças infecciosas. Ele se opõe à escolha do Sr. Fatherstone como pastor para uma igreja porque ele joga cartas à noite, o que é um hábito condenável de acordo com a religião, e ele deixa de emprestar dinheiro a um médico que lhe pede ajuda para pagar suas dívidas dando-lhe uma lição sobre como ele deve viver de maneira frugal. Enfim, o Sr. Bulstrode aparece ao longo da história como o paladino da observância de rígidos padrões morais. E no entanto…

    A visita inesperada de um antigo amigo que lhe pede dinheiro revela atos e omissões da vida pretérita do vetusto “dissidente”, como eram chamados aqueles de confissões religiosas outras que o catolicismo e o anglicanismo. A primeira esposa do Sr. Bulstrode era herdeira de um negócio no qual ele começara a trabalhar como aprendiz. Ela tinha uma filha de um casamento anterior, que fugira de casa para casar-se com um ator. Bulstrode promete à mulher que iria investigar o paradeiro da moça e realmente o faz. Ao encontrá-la, ele não dá à esposa a boa-nova e a pobre coitada morre sem saber que a filha estava viva. É nas pirotecnias mentais que Bulstrode faz para justificar seus atos para si mesmo que George Eliot revela seu gênio para retratar um típico fanático religioso hipócrita.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Bulstrode a morte da mulher, a confiança que ela depositava nele, o fato de a filha nunca ter aparecido para reivindicar nada tudo isso eram sinais da providência divina. Se a esposa morreu e a filha não deu as caras é porque Deus quis que o dinheiro ficasse com o marido viúvo, para que este o empregasse de maneira produtiva e não para que fosse gasto por pessoas perdulárias que tinham uma vida desregrada, como se pode esperar de atores. O fato de Bulstrode ter tomado a decisão de não dizer à mãe que sua filha estava viva não é, aos olhos do seu raciocínio interesseiro, uma falha moral. A morte da esposa e o desinteresse da filha em procurar a família eram intervenções divinas que corroboravam a atitude de Bulstrode e portanto, a tornavam benigna aos olhos do Senhor.

    Na prática, Bulstrode estabelece para si um código moral maquiavélico, em que os fins justificam os meios, isto é, o fim de realizar a obra divina na terra justificam a mentira, a crueldade com a própria mulher, que morreu com a mágoa de não ter podido reencontrar a filha. Nesse sentido, ele usa sua razão não para controlar suas paixões, mas para dar-lhes um verniz ético que lhe permite dar plena vazão a elas, motivando-o a perseguir seus desígnios egoístas, que ele confunde com os desígnios divinos para ter uma consciência tranquila. Em suma, qualquer coisa que Bulstrode faça será sempre boa do ponto de vista moral, porque ele sempre encontrará uma razão para vê-la dessa forma, já que a busca pelo dinheiro e pelo poder sobre as pessoas é o que o move, acima de tudo.

    Não admira que George Eliot cite as palavras de Oliver Cromwell para ilustrar o pensamento casuístico de Bulstrode que a cada manifestação do seu ego vê a intervenção divina no arranjar dos acontecimentos para favorecer os fins por ele perseguidos e justificar seus atos. Cromwell, que ascendeu ao poder na Inglaterra depois da execução do rei Charles I em 1649, é um personagem polêmico da história da Inglaterra que muitos amam e outros odeiam. Essa ambivalência de julgamento, de acordo com a explicação de Will e Ariel Durant citada na abertura deste artigo, é fruto das características contraditórias do homem. Um exemplo de uma de suas ações servirá de ilustração.

    No chamado massacre de Drogheda, que ocorreu depois do cerco à cidade irlandesa em setembro de 1649, Cromwell, que liderava as tropas, ordenou a execução de prisioneiros e o incêndio da Igreja de São Pedro, onde os soldados que defendiam a monarquia se refugiaram. Conforme as palavras dele citadas em “The Age of Louis XIV”, a mão de Deus esteve presente nesses acontecimentos: o fato de soldados terem sido queimados vivos, de outros que haviam se rendido esperando clemência terem sido executados não eram atos malignos. Eles eram manifestação da clemência de Deus pois a repressão brutal dos irlandeses rebeldes permitiu que a revolta fosse debelada, impedindo assim que mais sangue fosse derramado.

    Daí a ambiguidade de um personagem como Cromwell, que George Eliot exemplifica na figura de Bulstrode inserido no microcosmo que ela cria inspirada em seu Warwickshire natal. O fato de ele ter a convicção de ser inspirado por Deus em seus atos dava-lhe a determinação para perseguir seus objetivos de maneira implacável? Não seria isso uma qualidade em um líder que estava enfrentando a desordem causada pela derrubada do Velho Regime da monarquia absolutista representada por Charles Stuart, o rei deposto e executado? Ou as matanças e crueldades praticadas sob as ordens de Cromwell, tudo em nome de Deus, seriam os atos de um hipócrita que sabia dar vazão a sua ambição pelo poder convencendo as pessoas de que ele estava fazendo a coisa certa do ponto de vista moral porque o Senhor havia intervindo diretamente nos acontecimentos? Será que a harmonização de que fala Durant significa que a hipocrisia de Cromwell, isto é, sua facilidade em costurar um manto sagrado para seus atos, permitiu-lhe uma firmeza de propósitos que deixou um legado digno de um estadista?

    Questões filosóficas cuja resposta depende dos valores de cada um. No seu esforço de retratar um hipócrita em ação, George Eliot, que era profundamente agnóstica em matéria religiosa, dá a seu personagem o final de um ser sobre o qual ela passa um julgamento moral. Bulstrode acaba tendo que sair de Middlemarch, diante da repercussão das revelações sobre sua vida pregressa que caem na boca do povo. Ele vai morar em outra cidade com sua fiel esposa que não o abandona por amor, mas a quem ele não tem a humildade de pedir perdão, porque seu orgulho e sua autoimagem são mais importantes que tudo. De qualquer forma, por maior que seja sua falta de caráter, para além do verniz do proselitismo religioso, ele deixa um legado: um hospital que terá um impacto positivo na comunidade, a despeito da origem ilícita dos recursos que o financiaram. Com certeza se pode dizer o mesmo do Lorde Protetor da Inglaterra: não há dúvida de que ele foi o carrasco da Irlanda, pois sua guerra de conquista causou a morte de 616.000 de um total de 1.466.000 pessoas. Mas o seu governo, cheio de excessos puritanos, deu um golpe fatal no direito divino dos reis e lançou as bases para a futura tomada definitiva do poder pelo Parlamento.

    Inspirados realmente por Deus ou não, os hipócritas Bulstrode e Cromwell, na sua estranha combinação de elementos contraditórios, deixaram sua marca no mundo, fazendo assim com que o vício prestasse tributo à virtude. Prezados leitores, no final das contas, a hipocrisia pode ter uma função no grande esquema das coisas, mas não deixem jamais de desconfiar de quem age em nome de Deus.

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Déspota esclarecido para quê?

Ele deixou de lado qualquer ideia de democracia. Ele sentia que seu povo não estava preparado para fazer julgamentos; com raras exceções, eles adotariam qualquer opinião ditada a eles por seus senhores ou padres. Mesmo uma monarquia constitucional não lhe parecia auspiciosa; um parlamento como o da Inglaterra seria uma sociedade fechada de proprietários de terras e bispos que desafiariam qualquer mudança nas estruturas básicas. José partia do pressuposto de que somente uma monarquia absoluta poderia quebrar a inércia dos costumes e dos grilhões dos dogmas, protegendo o fraco simplório do forte esperto.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o imperador da Áustria e do Sacro Império Romano Germânico José II (1741-1790)

O principal risco vem dos grupos de pressão. É fois gras (fígado gordo) virar cesta básica. É expandir demais grupos que têm tratamentos favorecidos. O Brasil tem essa característica de que grupos de pressão são muito poderosos. Já foi uma luta na Emenda Constitucional e, agora, vai ser uma luta na legislação complementar. Eu acho que esse é o perigo maior.

Trecho da entrevista dada ao jornal O Estado de Sâo Paulo em 28 de abril de 2024 pelo Doutor em Economia e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, Samuel Pessoa, sobre a regulamentação da reforma tributária aprovada no Congresso Nacional em 2023

A conclusão que eu quero tirar de tudo isso, ela é triste: é que o Sr. Macron não é o presidente da República Francesa, ele ocupa o posto, mas ele não está lá. O presidente da República Francesa, o Chefe de Estado é normalmente alguém que defende acima de tudo os interesses nacionais. […] Então o Sr. Macron não obedece ao povo francês, ele é o empregado de uma oligarquia que quer privatizar nosso sistema de previdência social.

Trecho de uma entrevista à rádio Courtoisie em 15 de setembro de 2022 de François Asselineau, presidente e fundador da União Popular Republicana na França, sobre o aumento da idade mínima de aposentadoria, introduzida pelo Presidente da França, Emmanuel Macron

    Prezados leitores, já tratei neste meu humilde espaço de populistas, como Donald Trump, de autocratas como Putin e nesta semana tratarei de uma figura sobre a qual nós nos bancos escolares aprendemos sob o nome de déspota esclarecido, que era o ideal de governante dos filósofos iluministas do século XVIII. O governante que, educado e imbuído dos valores corretos de tolerância religiosa, de combate à superstição e ao dogma, seria o melhor instrumento da reforma para o bem do progresso. Especificamente tratarei do imperador da Áustria, José II, que vem a ser tio-avô da nossa imperatriz Leopoldina. José, filho da imperatriz Maria Theresa (1717-1780) e que governou ao lado da mãe de 1765 até a morte dela e depois sozinho. O objetivo de analisar a trajetória do déspota esclarecido austríaco é o de lançar luz sobre as atribulações que vive a democracia nos países em que e

la vige, como o Brasil e a França.

    Assim como um de seus ídolos intelectuais, Voltaire (1694-1778), José II não acreditava em democracia, porque a maioria da população estava por demais impregnada pela religião para poder pensar racionalmente. Conforme o trecho que abre este artigo, José, como bom homem ilustrado, considerava que se fosse dado às massas o direito de escolher seus governantes, ela simplesmente iria fazer o que o potentado plantão mandasse, fosse o padre do vilarejo ou o senhor do castelo. Nem uma monarquia constitucional, à la anglaise, para ele era a solução, pois os membros do parlamento seriam os representantes dos grupos mais fortes politica e economicamente, os quais defenderiam seus interesses entrincheirados e lutariam contra qualquer tentativa de mudança que pudesse ser proposta para votação.

    A solução era então esta figura do déspota, que faria uso dos poderes absolutos desfrutados tradicionalmente pela monarquia para impor à força as mudanças de que o país necessitava para modernizar-se, isto é, produzir riqueza pelo aumento de oportunidades de trabalho e para melhorar as condições de vida da população. E assim o imperador austríaco, que era também rei da Hungria tentou fazer, por meio de uma série de medidas. Elas incluíram a abolição da servidão,  a abolição da pena de morte, a instituição de um novo código de processo civil, o estabelecimento do direito dos antigos servos de mudarem de ocupação e de residência, a redução ou a abolição de pedágios internos para estimular a livre circulação de mercadorias, o aumento da tributação da propriedade rural, de forma que o camponês ficasse com uma fatia maior daquilo que produzia e da sua renda, aumentando tal parcela de 27% para 75%, ao invés de entregá-la em sua maior parte à Igreja, ao Estado e aos senhores de terra, como ocorria antes. José também desmantelou muitos monastérios e conventos, confiscando o patrimônio dessas instituições e alocando-o para a construção de hospitais, escolas e instituições de caridade.

    Ao penalizar a Igreja com confisco de propriedade e os nobres com aumento da tributação, estes poderosos grupos se revoltaram contra essas reformas e ao final, em 30 de janeiro de 1790 José II revogou todas elas, à exceção da abolição da servidão. Frustrado por seus fracassos, exaurido fisicamente pelos seus esforços, o imperador morreu em 10 de fevereiro daquele ano, não antes de preparar seu próprio epitáfio que dizia: “Aqui jaz José, que não obteve sucesso em nada”. No entanto, as sementes que ele lançara frutificaram em 1848, quando as reformas desse déspota esclarecido foram todas resgatadas e concretizadas.

    O ponto a ser ilustrado por esse resumo das políticas de José II é o quão é difícil colocar ideais de boas políticas em prática quando é necessário enfrentar os interesses das elites dominantes, que veem seus privilégios serem ameaçados. Isso é válido tanto no século XVIII quanto no século XXI, em que temos sistemas democráticos representativos em que os parlamentos acabam sendo depositários desses interesses. No Brasil, o governo federal conseguiu aprovar uma reforma tributária que instituiu o Imposto sobre Bens e Serviços para substituir o ICMS e o ISS nos níveis estadual e federal, respectivamente, e a Contribuição sobre Bens e Serviços, que substitui os antigos IPI, COFINS e PIS no nível federal. A questão agora é a regulamentação da nova lei tributária, que estabelecerá, por exemplo, que setores gozarão de alíquotas reduzidas ou zero. É aí que mora o perigo, conforme o trecho que abre este artigo. Segundo Samuel Pessoa, a reforma, que deu um passo importante rumo a uma maior racionalização do regime tributário no Brasil, pode ser deturpada se os grupos de pressão se mobilizarem e conseguirem isenções tributárias.  Considerando o quão fortes eles são no Congresso o economista preocupa-se com o que a regulamentação fará com o espírito da lei.

    A força das oligarquias para moldar políticas a despeito da democracia e até no próprio seio dela também é motivo de reflexão por parte de François Asselineau em sua entrevista a uma rádio francesa alternativa. Nela ele fala a respeito da reforma do regime de previdência efetuada pelo Presidente da França, Emmanuel Macron, que aumentou a idade mínima da aposentadoria dos franceses de 65 para 67 anos para que possam receber o benefício integral. Para o presidente e fundador da União Popular Republicana, considerando a dificuldade que os maiores de 50 anos têm para obter emprego, especialmente no contexto do pouco dinamismo econômico que vive o país, e que aqueles que começam a trabalhar cedo ou exercem trabalhos manuais se exaurem fisicamente muito antes dos 67 anos, tal reforma é injusta, pois penaliza os mais vulneráveis.

    Asselineau sustenta que o objetivo dessa reforma é o de minar o sistema de previdência público, tornando-o cada vez mais inacessível, e estimular o sistema de previdência privado. Isso está em linha com a atuação de Macron, ao longo do seu mandato presidencial de defesa dos interesses da oligarquia em detrimento dos franceses. Asselineau vê graves problemas na democracia francesa: mal informada pela mídia e manipulada por pesquisas de opinião parciais, a população francesa acaba fazendo más escolhas por falta de conhecimento e elege figuras como Macron que jamais defendeu os interesses do povo francês como um todo, mas somente do pequeno grupo que fez dele um candidato viável, promovendo-o nos meios de comunicação.

    Prezados leitores, como sanar os defeitos da democracia no século XXI, que já haviam sido apontados pelos filósofos do século XVIII e por um déspota esclarecido como José II? Como fazer com que o povo seja mais bem informado para escolher representantes que não serão simplesmente testas de ferro de grupos de interesse? Será que o povo quer ser informado? Ou ele quer continuar alineado da política, seja acreditando cinicamente que todos os políticos são corruptos e que por isso não vale a pena preocupar-se com isso, seja acreditando que os candidatos são autênticos e podem ser julgados pelo que falam porque fazem o que pregam? Quais a consequências de longo prazo dessa indiferença ou dessa inocência? No final das contas, se a democracia continuar refém dos interesses oligárquicos isso não abrirá caminho para um déspota que canalizará as frustrações da maioria? Será que ele será esclarecido o suficiente para refundar a democracia e a prosperidade ou será tirânico o suficiente para incitar a violência e o caos?  Aguardemos.

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Ritos para quê?

[…] humildes realmente são se lavam pés a pobres, como fez e fará o cardeal, como fizeram e farão o rei e a rainha, ora tem Baltasar as solas rotas e os pés sujos, primeira condição pra que o cardeal ou rei se ajoelhem um dia diante dele, com toalhas de linho, bacias de prata e água-de-rosas, desde que a outra condição Baltasar satisfaça, que é a de ser ainda mais pobre do que agora conseguiu ser, e à condição terceira, que é escolherem-no por virtuoso e cliente da virtude.

Trecho retirado do romance Memorial do Convento, do escritor português José Saramago (1922-2010)

 

[…] tais cerimônias, e a exibição de vasos preciosos e relíquias miraculosas nas igrejas, eram o principal fator na manutenção da ordem social entre os pobres.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as procissões do Santíssimo Sacramento que ocorriam em Lisboa no século XVIII eram testemunhadas pelos ingleses

Então as classes médias deram as boas-vindas às Luces – ao Iluminismo que vinha da França e da Inglaterra – ao mesmo tempo que seus empregados, que lotavam as igrejas e beijavam os santuários, confortavam-se com a graça divina e a esperança do paraíso.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre recepção do movimento filosófico do Iluminismo na Espanha

[…] ele tinha nojo da destituição das massas, sua consequente ignorância e superstição, e a aceitação pela igreja da pobreza generalizada como uma consequência da natureza e da desigualdade entre os homens.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes (1745-1828)

    Prezados leitores, garanto que já ouviram falar da cerimônia do lava-pés. É um ritual cristão realizado em memória do ato de Jesus Cristo de lavar os pés dos seus apóstolos na quinta-feira antes da Páscoa. Os reis da Europa começaram a realizar esse rito na Idade Média. Atualmente, em um país como o Reino Unido, que vive sob uma monarquia, o rei participa de uma missa na chamada Maundy Thursday e transmite uma mensagem aos súditos.

    É essa cerimônia a que José Saramago se refere no trecho que abre este artigo, mas o faz com ironia, como é a tônica do Memorial do Convento, um livro em que o Prêmio Nobel de Literatura dá vazão com verve e maestria a todo o seu anticlericalismo. Para ter a honra de ter os pés lavados pelos reis de Portugal não bastava ser pobre, era preciso ser muito pobre e isso Baltasar, o personagem do romance, ainda não consegue. Lavar os pés dos pobres era um gesto de generosidade dos monarcas, mas considerando que eles o praticavam há centenas de anos, e que pretendiam fazê-lo pelas próximas centenas de anos, isso significa que governavam sociedades que  reproduziam a pobreza indefinidamente, que precisavam desses rituais para reforçar o status quo, mostrar à população que sempre haveria pobres e que sempre haveria reis que magnanimamente lavariam-lhes os pés uma vez por ano, mesmo que não pudessem ou não quisessem mudar as condições materiais da vida desses humildes descalços.

    Memorial do Convento é anticlerical por oferecer um retrato das contradições engendradas e reforçadas pela religião. O rei Dom João V assistia à missa todos os dias, seguia as procissões, mandou construir o convento de Mafra em agradecimento ao nascimento de um filho, todas atitudes de um rei muito católico. Ao mesmo tempo era um polígamo assumido, que mantinha um séquito de freiras para satisfazer seus desejos carnais. Apreciava a música e fez de Mafra uma jóia arquitetônica, mas apoiava o Santo Ofício em sua perseguição aos heréticos, isto é aqueles que opunham-se por gestos ou palavras aos dogmas católicos. É queimado na fogueira pelo Santo Ofício que o herói do romance Baltasar terminará seus dias. Moral da história: a Igreja era santa e seguia rituais que ilustravam o ideal cristão da caridade. Ao mesmo tempo, o pobre que de alguma forma se rebelasse contra sua condição na vida era tratado sem dó.

    Daí a importância desses rituais religiosos: conforme as observações dos ingleses citadas por Will e Ariel Durant, a beleza das procissões, das vestimentas dos santos, dos objetos de culto, como o Santíssimo Sacramento, mesmerizava os pobres e impedia que se transformassem em contestadores como Baltasar. Em tal contexto, a chegada do Iluminismo na Península Ibérica trazido da França pelo Conde de Aranda (1718-1799) à Espanha e pelo Marquês de Pombal (1699-1782) da Inglaterra a Portugal tinha objetivos mais modestos que os movimentos filosóficos nos países de origem. Se na França e na Inglaterra o objetivo era acabar com a superstição, fomentar a tolerância, a educação, a ciência de modo a achar soluções para melhorar a vida material das pessoas, na Espanha e em Portugal o objetivo era diminuir o poder da Igreja e da Inquisição e aumentar o do Estado.

    Nesse sentido, já era suficiente que as classes médias adotassem os princípios iluministas. Elas não precisavam de religião, porque não precisavam de um consolo espiritual para a miséria material que afligia os pobres. Estes poderiam continuar a beijar relíquias e estátuas de santos, a ajoelhar-se ante a passagem de uma procissão. Aliás, isso era até uma necessidade, porque o projeto iluminista ibérico não era radical o suficiente para vislumbrar incluir as massas no esforço progressista e tirá-las do medo, das crenças infundadas, da penúria, da fome e das doenças.

    Era esse conformismo com o status quo que o pintor espanhol Goya condenava na Igreja Católica, conforme o trecho que abre este artigo. Seus paramentos, seus incensos, seus cantos ofereciam consolo, mas ao mesmo tempo levavam as pessoas a aceitar as enormes desigualdades entre as classes sociais como algo inevitável. O que a  Igreja Católica fazia pelos destituídos era o suficiente para que não passassem fome e continuassem cultuando e honrando Deus, mas não era suficiente para lhes dar oportunidades reais de desenvolvimento. Goya havia sido pobre e tivera a chance de desenvolver seu talento servindo à nobreza. Mas ele sabia que esse caminho de prosperidade física e intelectual estava interditado para a maioria das pessoas, por interesses dos ricos e por conivência da Igreja com os ricos.

    Prezados leitores, essa explicação da função dos rituais religiosos nas sociedades não bafejadas pelo Iluminismo nos mostra o porquê de o cristianismo ter caído em descrédito total na Europa, que aparta-se cada vez mais de qualquer princípio religioso para a organização da sociedade. Quando os livres-pensadores perceberam que a religião era simplesmente um conjunto de ritos destinados a manter os pobres na linha e os privilégios dos ricos, eles a descartaram totalmente como algo incompatível com o exercício da razão para melhorar as condições materiais das pessoas. As repercussões dessa negação total refletem-se até hoje. Talvez algum dia, quando a civilização ocidental que hoje existe pereça, os sobreviventes poderão ter uma atitude mais serena em relação à religião e adotar alguns de seus princípios éticos. Oxalá então que o ritos possam adquirir um novo significado e não ser apenas expressão de hipocrisia e de opressão dos que nada têm pelos que tudo têm.

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Rússia para quê?

Meus amigos – ensinava-nos – a nossa nacionalidade, se é que ela realmente “nasceu”, como eles agora asseguram nos jornais, ainda está na escola, em alguma Peterschule alemã, atrás de livro alemão e afirmando sua eterna lição alemã, enquanto o mestre alemão a põe de joelhos quando precisa. […] a Rússia é um mal-entendido grande demais para que nós o resolvamos sozinhos, sem os alemães e sem o trabalho.

Trecho da fala do personagem Stiepan Trofímovitch do romance “Os Demônios “ de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Andrew Napolitano: Qual é a atitude do povo russo, na medida em que você conseguiu percebê-la, sejam eles sindicalistas, autoridades governamentais, jovens profissionais, sobre o desejo dos Estados Unidos de fazer uso da violência contra a Rússia e a raiva das autoridades governamentais americanas contra suas contrapartes russas?

Alistair Cooke: Bem, essa reunião foi muito diferente, porque havia todo tipo de pessoa, era para os sindicalistas, mas estava cheia de acadêmicos, cientistas, professores de filosofia e pessoas do parlamento e do governo. Devo dizer que o sentimento geralmente expresso de maneira poderosa, não era somente de desapontamento, realmente era de desprezo, particularmente em relação à Europa. Essa fala era típica: “Nós acreditávamos no Ocidente, nós acreditamos por 25 anos. E agora nós desprezamos o Ocidente, o que eles estão fazendo conosco agora é como o cerco a Leningrado, eles estão nos assediando, fazendo tudo o que podem para nos prejudicar.” Mas no final das contas devo dizer que o que foi mais impactante foi que eles se orgulham dos seus valores, eles se orgulham do que a Rússia significa. Eles se orgulham do fato de que conseguiram passar por tudo isso de maneira a conseguir os valores deles de volta. Eles acreditam que os seus valores são verdadeiros e bons.

Trecho do podcast entre o juiz aposentado americano Andrew Napolitano e o ex-embaixador do Reino Unido Alistair Cooke

Atualmente Dostoiévski é um dos romancistas do século 19 mais lidos talvez porque ele dramatizou de maneira eficaz os problemas morais, religiosos e políticos que perturbaram as gerações entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e depois.

Trecho do verbete sobre o escritor russo na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica.

 

    Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes um personagem tirado do livro Os Demônios, Stiepan Trofimovitch. Ele é enquadrado na categoria de liberal sem nenhum objetivo, que só era possível na Rússia. Meu objetivo será traçar um paralelo entre o estado de coisas que este personagem representava no século XIX, e o estado de coisas em pleno século XXI, conforme percebido por Alistair Cooke em sua recente visita a Sâo Petersburgo, onde participou de discussões sobre o futuro do mundo.

    O que era um liberal sem objetivo na Rússia do século XIX? Era um homem espirituoso, que se achava diferenciado por gostar de propagar ideias e por sentir-se no direito de fazê-lo, como ocorria no Ocidente, herdeiro da tradição racional e libertária do Iluminismo do século XVIII. Como ser especial que era, o liberal russo olhava seu país com condescendência e o criticava sempre, por não se enquadrar nos cânones ocidentais de liberdade de consciência e de expressão, afinal havia a censura imposta pelo governo tzarista, e de liberdade de trabalho, pois havia ainda servos na Rússia.

    Stiepan Trofímovitch mostra suas credenciais de liberal no trecho que abre este artigo. Quando falavam de nacionalismo e de nacionalidade russos ele mofava dessa ideia. Não havia como a Rússia ter identidade própria, porque esta só podia ser construída sob o crivo das civilizações europeias superiores. Afinal, muita coisa que se encontrava no país, a servidão, a repressão governamental, a censura, a falta de educação em geral e de educação científica em particular, não poderia ser aceita no Ocidente, porque seria uma violação do projeto Iluminista que então estava sendo implementado na Europa há quase um século, desde meados do século XVIII. Dessa forma, o que pudesse ser visto como tipicamente russo, fruto da sua experiência histórica de encontro e embate com mongóis, tártaros e outros povos asiáticos, deveria ser extirpado e não restaria muita coisa dessa tal identidade.

    Para fazer jus ao seu papel de homem ilustrado, Stiepan Trofímovitch entremeava seu discurso com frases inteiras em francês, mostrando sua cultura, e falava longamente. E qual era o efeito prático dessa profusão de pensamentos transmitidos a quem quer que estivesse disposto a ouvi-lo? Por acaso ele aplicava sua razão para resolver os problemas concretos dos russos? Para diminuir-lhes o sofrimento físico causado pelas doenças?  Para achar formas de atuação política em benefício dos servos? Para organizar empreendimentos econômicos que criassem empregos e prosperidade?

    Nada disso. Trofímovitch apesar de seu olhar distanciado sobre a Rússia, de um europeu que vê quão bárbara e atrasada ela era, agia como um homem típico da sua classe. Não tinha ocupação nenhuma, além de conversar, era um rentista que vivia da mesada dada por uma amiga, Varvara Petrovna, e não perdia a oportunidade de beber enquanto divulgava suas ideias moderníssimas. Não conseguia nem colocá-las no papel, para melhor organizá-las. Pedir a um liberal sem objetivo que se dedicasse a uma atividade que tivesse alguma utilidade prática seria pedir muito.

    Nesse sentido, Stiepan Trofímovitch, o homem que brincava com as ideias para ter uma boa imagem de si mesmo e iludir-se que era algo mais do que um beberrão vagabundo, dramatiza uma corrente em voga na Rússia no século XIX, a daqueles que consideravam que o padrão ouro de civilização era o europeu e que o que deveria ser feito era depurar o país de suas características não europeias para que ele pudesse progredir. O problema, conforme mostra Dostoiévski por meio das peripécias desses liberais sem objetivo é que eles eram inconsistentes: professavam valores europeus como o uso da razão para melhorar a vida do homem por meio da educação, da ciência e da tecnologia; na prática nada mais faziam do que aproveitar-se do estado de coisas vigente em que uma minoria vivia do trabalho alheio, em benefício próprio. Estavam todos prontos a criticar a Rússia e sua identidade, mas não eram capazes de criticar-se a si mesmos.

    O que ocorreu com o liberal sem objetivo retratado por Dostoiévski? O que ocorreu com os admiradores do Ocidente na Rússia, que sempre colocaram a Europa como o paradigma a ser imitado, mesmo que fosse de maneira superficial? De acordo com Alistair Cooke, ex-embaixador do Reino Unido, os acontecimentos dos últimos 10 anos fizeram os russos darem uma guinada radical. Para aqueles que têm mais de 50 anos, lembrem-se que na década de 1990, após a queda do regime comunista, a Rússia importou receitas neoliberais para a implantação do capitalismo: privatização em massa de ativos estatais, desregulamentação, terapias de choque. Passados 25 anos, na segunda década do século XXI começam os problemas na Ucrânia, que se arrastam até hoje: a derrubada do governo com a chamada revolução Maidan de 2013-2014, a anexação russa da península da  Crimeia  em 2014, a invasão pela Rússia em fevereiro de 2022 da Ucrânia depois de reconhecer a independência de Lugansk e Donetsk, regiões onde predominam populações etnicamente russas, a anexação em setembro de 2022 pela Rússia de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporija.

    Para os russos, o Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, está usando a Ucrânia como meio de destruir a Rússia, fornecendo-lhe armamentos, treinamento apoio logístico e de inteligência para que a guerra continue indefinidamente e não haja negociações de paz que permitam que russos e ucranianos cheguem a um acordo sobre como as populações de etnia russa que residem na Ucrânia devem ser tratadas. Daí que toda a vontade de emular o Ocidente que brotara novamente no final do século XX com a queda do comunismo se transformou agora, conforme explica Alistair Cooke no trecho que abre este artigo, em desapontamento.

    Desapontamento com a traição do Ocidente, que em troca da boa vontade mostrada pela Rússia em participar da ordem internacional liberal só lhe pagou com maldades: expandiu a aliança militar do Ocidente até as portas da Rússia, cercando-a de bases e de mísseis; insuflou o povo ucraniano, povo irmão, contra os russos, impôs sanções econômicas e não cessa de acusar a Rússia de ser um país ditatorial, comandado por um chefe de quadrilha, Vladimir Putin, que cometeu crimes de guerra nestes mais de dois anos de conflito.

    Longe de colocar-se de joelhos, como Stiepan Trofímovitch, rezava que a Rússia deveria fazer frente à superioridade alemã, os russos do século XXI dão as costas para o Ocidente, cheios de frustração pelas ilusões perdidas e de desprezo pela ideologia liberal ocidental de culto à homossexualidade, à transssexualidade, à mudança de sexo. Na sua visão o Ocidente está perdido, e só a Rússia transmitirá para as próximas gerações a moralidade cristã abandonada no mundo liberal pós-cristão.

    Prezados leitores, à pergunta colocada como título deste artigo: Rússia para quê? Tipos como Stiepan Trofímovitch vislumbraram que o país deveria vir a reboque do Ocidente, imitar-lhe as qualidades.  Hoje, os russos se veem como herdeiros de uma tradição civilizacional que se perdeu no Ocidente e que eles têm a obrigação de continuar. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso, apreciemos Fiódor Dostoiévski, que como poucos soube criar narrativas em que os grandes debates filosóficos do pós-Iluminismo puderam vir à tona nas falas e ações de seus personagens.

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