Alvíssaras

‘aquele país lindo […] que não tem similar sob o céu’

Escrito por João Mauricio de Nassau-Siegen, governador do Brasil holandês (1604-1679)

É inegável, porém, que, além de habilitá-lo a concluir a Mauritshuis, o Brasil abria a Nassau um campo promissor às suas ambições de avanço profissional, até então sofreadas pela lentidão da carreira militar

Trecho da biografia de Nassau escrita pelo historiador brasileiro Evaldo Cabral de Mello

A fotografia pode não ter sido uma invenção brasileira -a despeito dos protestos de Hércule Florence, um imigrante francês, de que havia descoberto o método de Daguerre de maneira independente anos antes que ficasse conhecido no mundo – mas ela amadureceu no país, que conquistou sua independência somente em 1822.

Trecho de artigo de David Gelber, tesoureiro da sociedade sediada em Londres Denominada Society of Court Studies, sobre o desenvolvimento da fotografia no Brasil, estimulada pelo imperador Dom Pedro II

A cultura é um fenômeno do dia-a-dia que determina como as economias e os estados, os governantes e os governados veem o mundo, exercem o poder e são forçados a submeterem-se.

Trecho do artigo “Falsos Profetas e Falsas Notícias”, publicado em 31 de dezembro de 2016 pelo sociólogo James Petras

    Prezados leitores, aparentemente começamos o ano com o pé esquerdo, com rebelião de presos no Estado do Amazonas, já cognominada de Carandiru 2, devido ao alto número de mortos. Com certeza essa notícia ocupará algumas linhas de jornais na Europa e confirmará a ideia de que o Brasil e um país irremediavelmente violento. Permitam-se apresentar-lhes exemplos de narrativas recentes na imprensa mundial que longe de reforçarem os nossos eternos defeitos, mostram coisas das quais devemos orgulhar-nos.

    U motivo obvio de regozijo nacional não pode deixar de ser nossa natureza tropical luxuriante. Para quem ainda não sabe, em setembro de 2016 foram descobertos no arquivo Noord-Hollands na cidade de Haarlem 34 desenhos realizados por Frans Post (1612-1680), que partiu para o Brasil em outubro de 1636 para integrar a missão organizada por João Maurício de Nassau composta de 46 cientistas, intelectuais e artistas, quando da vinda do então conde para o Nordeste, recém-ocupado pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Frans Post fora indicado por seu irmão, Pieter Post, que havia projetado o palácio de João Maurício na Haia, o Mauritshuis. Não podemos negar que essa missão artística trazida por Nassau não era composta por luminares europeus, já que ou estes não estariam dispostos a fazer uma viagem tão longa e cheia de riscos ou exigiriam salários altíssimos. Frans Post era obscuro, mas quando voltou à Europa com o já ex-governador geral Nassau em 1644 aproveitou esses desenhos para pintar quadros que retratavam o Brasil.

    Essa relação entre a atividade de Post no Brasil e seu posterior trabalho artístico na Europa é mostrada na exposição denominada Frans Post: Animais no Brasil atualmente em cartaz no Rijksmuseum, em Amsterdã até 8 de janeiro, tendo iniciado em 7 de outubro. Para quem como eu não terá a oportunidade de visitar a Holanda, resta o consolo de que um livro sobre os desenhos de Frans Post no Brasil foi preparado por Alexander de Bruin. De qualquer forma, seja ao vivo, seja por meio do papel, para nós brasileiros é interessante saber o quanto sua estadia aqui determinou todo seu percurso profissional, pois de acordo com David Gelber, que escreveu um artigo sobre essa exposição publicado em novembro de 2016, Post passou os seus “36 anos restantes recreando em larga escala esse mundo exótico para um público holandês curioso.”

    Não foi só para um obscuro pintor que o Brasil foi um divisor de águas. Para o próprio João Mauricio de Nassau sua passagem pelo Brasil de 1637 a 1644 foi o ponto alto da sua vida. De acordo com o perfil dele elaborado por Evaldo Cabral de Mello edificou palácios (Vrijburg, Boa Vista e La Fontaine), parques, pontes, urbanizou Recife, revitalizou a economia açucareira, estendeu o domínio holandês do rio São Francisco, na Bahia, até o Maranhão, e do outro lado do Atlântico, a Angola e São Tomé. Sua capacidade militar e administrativa foi reconhecida tempos depois em 1653 quando o Imperador Ferdinando II lhe fez Príncipe. Não é encorajador saber que para aquilo a que se propusera o governador geral, isto é fazer a colônia em Pernambuco gerar lucros para a metrópole holandesa, Nassau governou de maneira eficiente no Brasil e até deixou um legado material que perdura em pleno século XXI, como a exposição em um dos principais museus do mundo mostra?

    De maneira análoga, tivemos um outro governante que deixou uma marca que o mundo aproveitou. Independentemente de D. Pedro II ter somente de maneira tardia abolido a escravidão no Brasil, nosso segundo imperador fez muito para que a fotografia florescesse de acordo com o artigo supracitado. Já em 1842 eram organizadas exposições de fotos na Academia Imperial de Belas Artes e em 1851 Pedro II nomeou o francês Abraham-Louis Buvelot como fotógrafo da corte, dois anos antes de a rainha Vitória criar um cargo equivalente.

    Um retrato em 180 graus da cidade do Rio de Janeiro do carioca Marc Ferrez ganhou a medalha de ouro na Exposição do Centenário dos Estados Unidos realizada em 1876 na Filadélfia. Um ano antes, em 1875, Ferrez acompanhara uma missão da Comissão Geológica e Geográfica do Império para registrar a flora, a fauna e a topografia da Bahia. Na década de 1880, ele fotografou tribos indígenas em Goiás e Mato Grosso. Em suma, o entusiasmo do nosso imperador por essa nova tecnologia permitiu seu aprimoramento em terras brasileiras, estimulando seu uso para aumentar nosso conhecimento sobre nosso povo e nossa terra. Assim, nem só de flora e fauna tropicais vivemos nós, brasileiros, no século XIX fomos capazes de abraçar uma novidade técnica e fazer-lhe contribuições, como as vistas panorâmicas de Ferrez, que não só mostraram o Brasil ao mundo como o Brasil aos seus próprios habitantes.

    Prezados leitores, é uma grande tentação termos uma visão anacrônica dos acontecimentos, isto é, olharmos o passado com os valores do presente. Os feitos de Nassau são relevados por nossos historiadores (pelo menos aqueles que estudei em minha época de colégio) porque ele manteve a monocultura açucareira no Nordeste, que fazia a riqueza dos maiores distribuidores do produto brasileiro na Europa, os holandeses. Dom Pedro II é visto como um bestalhão que em seus tours pelo mundo à cata de novidades científicas ignorava de maneira premeditada a chaga da escravidão. É claro que o cultivo do açúcar era a atividade econômica dos proprietários de terra e a fotografia era um passatempo das elites que traficavam negros e os usavam para produzir commodities agrícolas, mas essas eram as condições em que aqueles dois governantes atuaram e exigir que tivessem respondido às aspirações democráticas de expansão de direitos que tomaram força no Brasil na segunda metade do século XX é mero progressismo, a ideia de que os valores e realizações do presente são necessariamente melhores porque vieram depois, ideia esta tão nefasta quanto a ideia conservadora que sustenta que tudo o que já passou era mais perfeito do que o estado de coisas atual. Em tempos como este, em que temos tantas razões para sermos pessimistas, pensarmos que fomos capazes de oferecermos uma contribuição cultural e técnica ao mundo, a despeito das nossas limitações materiais, como exemplificado acima, deve nos lembrar que mesmo em uma época como a nossa de corrupção desabrida, incompetência, desemprego, haverá sempre espaço para algum tipo de realização, por mais modesta que seja. Feliz Ano Novo e que 2017 traga a nós brasileiros, algum legado.

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Luzes, câmera, ação!

É claro que a esquerda americana coloca a culpa na direita pela substituição da política pela libertinagem. Mas a verdade é que todo mundo tem participação nisso. Ambos os lados descrevem os oponentes de maneira interminável não como pessoas com as quais discordam, mas como vilões de histórias em quadrinhos.

Trecho retirado do artigo “Luzes, câmera, política” escrito pelo jornalista Douglas Murray sobre como a arte da política transformou-se em um reality show

Eu sempre pensei sobre a questão da Guerra nuclear; é um elemento muito importante da minha atividade mental. É a catástrofe final, o maior problema que o mundo enfrenta, e ninguém está enfocando o aspecto prático disso. É um pouco como uma doença. As pessoas não acreditam que vão ficar doentes até que elas fiquem. Ninguém quer falar sobre isso. Acho que é uma das coisas mais estúpidas o fato de as pessoas acreditarem que a guerra nuclear nunca vai acontecer, porque todo mundo sabe o quão destrutiva ela será, então ninguém vai utilizar armas nuclearas. Que besteira.

Trecho retirado de uma entrevista dada pelo Presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, à revista Playboy em 1990

    Prezados leitores, o Aprendiz ganhou, mas não levou. Não levou como deveria ter levado, isto é, com aqueles que não votaram em Donald Trump para Presidente dos Estados Unidos aceitando sua vitória. Longe disso. Já houve várias tentativas de solapar sua vitória, vou citar apenas as duas mais importantes. Jill Stein, a candidata do Partido Verde, pediu recontagem dos votos em Estados-chave que poderiam mudar o resultado, mas não adiantou nada. Em Wisconsin, a recontagem aumento o número de votos de Trump, e em Detroit os votos dados a Hillary haviam sido inflados por seis na primeira contagem. O segundo estratagema usado pelos que consideram o bilionário neófito na política uma excrescência foi sugerir aos eleitores do Colégio Eleitoral que deixassem de votar no candidato escolhido pelos americanos. Um professor de Direito de Harvard, Lawrence Lessig, prometeu defender pro bono aqueles delegados quebrassem a tradição e escolhessem o candidato não chancelado pela maioria dos eleitores em cada Estado americano. Não deu certo novamente, e no dia 19 de dezembro Donald Trump foi eleito pelo Colégio Eleitoral Presidente dos Estados Unidos para tomar posse em 20 de janeiro em Washington.

    Tomar posse sob que condições? Aí que mora o perigo. Como bem apontou Douglas Murray em seu artigo publicado em 15 de outubro, a política nos Estados Unidos com maior intensidade, mas também na Europa com menos intensidade, transformou-se em entretenimento. Não há lugar para debates, para nuances nos argumentos, para a elaboração de consensos. Sobram acusações que resvalam para a vida pessoal e descrições caricatas dos candidatos que são categorizados pelos seus defensores como mocinhos e pelos seus detratores como bandidos. Aqui é o momento de eu fazer um mea culpa, pois ao argumentar em favor do Aprendiz de presidente eu acabei enfatizando só os defeitos de Dona Hillary Clinton, mas é claro que ela tem qualidades, afinal é uma advogada formada em uma universidade de elite dos Estados Unidos, país que ostenta o maior número de instituições de ensino superior nos rankings de excelência educacional.

    A política como entretenimento pode nos levar a dar boas risadas ao lermos frases de efeito no Twitter, ao vermos Trump sendo comparado ao Garfield pela vastidão da cabeleira, ao vermos um boneco de Hillary Clinton vestida de presidiária dentro de uma cela ser exposto na frente da loja de um partidário de Trump. Mas há um lado sinistro nisso tudo que consiste na vilificação dos personagens que poderá trazer consequências sérias à humanidade. Há um enredo que está sendo encenado no momento, como desdobramento do inconformismo da grande imprensa, que tinha certeza que os americanos seguiriam a recomendação dos jornais e revistas e votariam em Hillary Clinton, de setores da população bem- pensantes que veem Trump simplesmente como um xenófobo, machista e despreparado, e de uma parte do próprio governo dos Estados Unidos, que quer que a política externa do país continue como está semeando guerras pelo mundo para construir a “democracia”.

    Neste enredo há um vilão-mor, Vladimir Putin, invasor da Crimeia e principal apoio do presidente da Síria, Bashar al-Assad, para manter-se no poder, à custa da morte de milhões de civis. Donald Trump é o vilãozinho, porque ele é uma marionete do sanguinário Vlad, que usou sua equipe de experts em computação para invadir os computadores do Partido Democrata dos Estados Unidos e divulgar informações que comprometeram o desempenho da candidata ungida por todas as pessoas sãs deste mundo (informações sobre o modus operandi maquiavélico da equipe clintoniana cuja veracidade, diga-se de passagem, não é contestada). A prova de que Donald Trump só conseguiu eleger-se com a ajuda do ogre russo é que ele escolheu como Secretário de Estado Rex Tillerson, presidente da Exxon Mobil que recebeu em 2013 o prêmio de amigo da Rússia das mãos do próprio Lúcifer em 2012, depois que em 2011 a Exxon Mobil comprometeu-se a investir 500 bilhões de dólares na prospecção de petróleo na região do Ártico em troca de a estatal do petróleo russa, a OAO Rosneft, poder investir em concessões da Exxon Mobil em todo o mundo. A parceria fracassou por causa das sanções impostas pelos Estados Unidos em 2014 depois da anexação da Crimeia. Em suma, Trump quer colocar como Secretário de Estado um homem que quer fazer negócios com os russos, não a guerra.

    Essa história é conveniente para vários grupos e pessoas a começar, por Dona Hillary Clinton, que ao colocar a culpa da sua não eleição em Putin exime-se de olhar de frente sua própria incompetência em perceber aquilo que preocupava os americanos, algo que Trump soube fazer desde o início: o importante para os deploráveis não era garantir que os transgêneros tivessem direito de acesso ao banheiro das mulheres, mas trazer de volta os empregos perdidos com a globalização. Ela também é conveniente para grandes veículos como CNN, Washington Post, New York Times e The Economist, que podem assim justificar a total parcialidade que demonstraram em relação à candidata democrata. Eles podem dizer que os eleitores foram enganados e que se não tivesse havido a tal interferência estrangeira os americanos teriam se guiado pela luz da razão dos sábios jornalistas e votado em Hillary. Por último, e não menos importante, a versão de que Vlad é o fazedor de presidentes é útil para aqueles que querem que os Estados Unidos continuem agindo como polícia do mundo, derrubando governos, colocando títeres, causando destruição e morte no Oriente Médio e no Norte da África.

    Prezados leitores, nesta era da pós-verdade, da política como puro entretenimento, nunca saberemos de fato quem é responsável pelo hacking. As acusações contra os russos foram de agentes anônimos da CIA, que foram imediatamente repercutidas nos ditos veículos sérios da imprensa americana. Por que esses agentes da CIA não se identificam? Por que a CIA agora mete-se em política interna, sua tarefa não é a de atuar pelo mundo afora para viabilizar a política externa americana? Se estão falando a verdade e têm provas porque não vêm à público, por que não comparecem no Congresso Americano? Espero que o façam em breve e fundamentem suas declarações de maneira robusta. Fofocas e maledicências só servem para minar um governo que nem começou e que já está levando saraivadas de todo lado. Eu sinceramente espero que Trump consiga emplacar seu Secretário de Estado e que o Senhor Tillerson contribua para normalizar as relações com a Rússia. Porque se essa história em quadrinhos estrelando a dupla de vilões Donald e Vladimir prosperar, teremos muita ação neste mundo, e como disse o então magnata do ramo imobiliário em 1990 o indizível poderá ocorrer, isto é o enfrentamento nuclear entre as superpotências.

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Constituição Cidadã ou Anciã?

[…] nós não procedemos direito com o Direito, e fomos dando respostas políticas, morais e econômicas quando a resposta deveria ser jurídica. Assim fomos deixando que os predadores externos e internos do Direito o fossem enfraquecendo. […] Grande parcela da magistratura trabalha com a concepção ativista, e qual é o problema? O ativismo é aquilo que eu chamo de uma atitude comportamentalista, é quando o juiz substitui o legislador. São juízes ético-político morais.

Trecho da entrevista de Lenio Steck, professor de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos em entrevista à Revista da CAASP

Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

Parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição Federal

Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Artigo 55, inciso VI da Constituição Federal

    Prezados leitores, sei que há assuntos mais importantes no Brasil do que as filigranas jurídicas a que temos sido submetidos sem entendermos muito bem o que está ocorrendo. Há a crise das finanças públicas, o desemprego de 12 milhões de pessoas, a reforma da previdência que vem sendo colocada como a salvação da lavoura, ou ela ou o dilúvio, a recessão econômica No entanto, são essas filigranas que ocupam as manchetes dos jornais, por uma simples razão. Para nós, brasileiros, cheios de raiva diante da extensão da corrupção na política, não importam os detalhes das discussões intermináveis sobre como os membros do Judiciário têm interpretado as leis e a Constituição para tomar suas decisões bombásticas, o que importa é o resultado prático. E para nós resultado prático significa ver as algemas tilintarem, os maganos passarem longas temporadas na prisão, os deputados, senadores e presidentes perderem o cargo. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem dado uma resposta e tanto à sociedade.

    Em 31 agosto de 2016, Dilma Rousseff teve o mandato cassado pelos senadores em sessão presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, sem que ficasse inabilitada para o exercício de funções públicas, como manda o artigo 52, parágrafo único da Constituição. Em outubro de 2016, o STF estabeleceu que é possível a execução de uma pena após condenação na segunda instância, a despeito do que diz o inciso 57, artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece a presunção da inocência até que todas as possibilidades de recurso tenham sido esgotadas. Em 4 de dezembro de 2016, manifestações em várias cidades do Brasil pediram a cabeça de Renan Calheiros e o Supremo Tribunal Federal em 7 de dezembro estabeleceu um quid pro quo com os senadores. Foi permitido a Renan Calheiros, que é réu em ação que tramita naquela corte, permanecer presidente do Senado Federal, mas ele foi retirado da linha sucessória. Não há nada na Constituição estabelecendo isso, além daquilo que está transcrito na abertura deste artigo. O Supremo burilou essa solução para salvar as aparências, para fingir que os poderes da República respeitam-se mutuamente e sabem exatamente quais são suas respectivas áreas de atuação.

    E não é só o Supremo Tribunal Federal que têm nos brindado com a satisfação do nosso desejo de vingança. Os ilustres membros do Ministério Público Federal elaboraram o projeto de lei 4.850, que “estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos”. As mesmas pessoas que no domingo exigiram a defenestração de Renan Calheiros manifestaram seu apoio unânime ao projeto cruzadista, que inclui medidas polêmicas, algumas felizmente retiradas pelos deputados tão massacrados pela opinião pública. Havia o teste de integridade para funcionários públicos que previa a realização de uma espécie de pegadinha do malandro consistente no oferecimento de propina a funcionários e verificação da sua reação. Havia restrições à concessão do habeas corpus, previsto no artigo 5º inciso 68, da Constituição Federal. Por outro lado, ainda estão lá as hipóteses de aceitação de provas ilícitas produzidas de boa fé, que nos termos do artigo 5º, inciso 61 da Constituição Federal são inadmissíveis. Essas filigranas a que os deputados e senadores devem prestar atenção antes de dar seu voto pela aprovação ou rejeição do projeto são totalmente irrelevantes para nós brasileiros, que estamos preocupados somente com colocar os que roubam nosso dinheiro na cadeia, não importando os meios.

    E assim é que a tal Constituição Cidadã promulgada por Ulysses Guimarães em 5 de outubro de 1988 está sendo deturpada, violada a torto e a direito e ignorada. Pelos membros do STF que decidem como querem e depois burilam algum argumento jurídico à guisa de interpretação do que a Constituição diz, por certos membros do Ministério Público Federal com suas medidas anticorrupção, que se fossem aprovadas do modo como foram originariamente formuladas dariam um imenso poder aos promotores e procuradores para investigar e denunciar os suspeitos de enriquecimento ilícito. E por certa parcela do povo, que vai às ruas exigir mais ladrões na cadeia não importa a que preço.

    Talvez tenha chegado o momento de aceitarmos a realidade de que de gambiarra em gambiarra a Constituição de 1988 está em coma. Ela tinha sido prometida como o instrumento que nos levaria ao governo das leis e não dos homens. Neste ano de 2016, vemos que a letra da Constituição não tem muito valor no Brasil e que o que importam são os heróis ou vilões, a depender do ponto de vista, que têm sua própria pauta de prioridades e que se valem da Constituição como instrumento para cumprir tal agenda. Essa cacofonia a que estamos submetidos diariamente, as quedas de braço entre os três poderes, o toma lá dá cá entre o governo e o Legislativo para a aprovação das PECS, as reações das autoridades aos clamores da imprensa e das ruas manifestam-se em relação à Constituição de 1988 em flagrantes violações a ela por todos aqueles que juraram protegê-la. Não seria o caso de admitirmos que ela não serve para mais nada e que uma nova Assembleia Constituinte deveria ser convocada para elaborar outra? Não seria o caso de admitirmos que nós brasileiros não nos preocupamos muito com liberdades e garantias que sejam estendidas aos nossos inimigos, sejam eles corruptos, assassinos ou políticos de quem não gostamos? Não seria o caso de admitirmos que não somos capazes de construirmos e mantermos a social-democracia ou a democracia social de nobres e fundamentais direitos que a Constituição de 1988 vislumbrou porque somos por demais improdutivos e vingativos para tanto? Ou será que é melhor fingirmos que está tudo bem com a Constituição e que ela está sendo aplicada à risca para evitar um penoso processo de elaboração de um novo texto em um momento em que não temos dinheiro para gastar com firulas?

    Prezados leitores, o risco que corremos ao não sermos transparentes sobre o que está acontecendo na prática com a Constituição de 1988 é que acabaremos vendo projetos como a reforma da previdência, a reforma trabalhista e o estabelecimento de teto de gastos serem aprovados como se eles não tivessem impacto nenhum sobre aquilo que os deputados constituintes imaginaram para o Brasil há 28 anos. Na prática, e sabemos que a prática é o que importa, para além das filigranas jurídicas, a crise em que estamos mergulhados será paga pelo povo brasileiro que a Constituição de 1988 tentou contemplar com direitos sociais, e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, e igualdade e a justiça”. Esperem e verão.

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Verdades temerárias

No Brasil que encontramos não havia apenas o déficit fiscal. Havia também, lamento dizê-lo, um certo déficit da verdade. Devo dizer que a gigantesca crise que herdamos é, em parte, produto de tentativas de disfarçar a realidade.

Trecho do discurso de Michel Temer em 21 de novembro na abertura das reuniões do novo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

E, por maior que fosse o mal, a noite estava serena e bonita, em todo este mundo de Deus a verdade existia e continuaria a existir, também ela serena e bonita, e todos na terra apenas esperavam fundir-se com a verdade, assim como a luz da lua fundia-se com a noite.

Trecho do conto “No fundo do Barranco” de Anton Tchekhov (1860-1904), traduzido para o português por Rubens Figueiredo

    Prezados leitores, tenho andado em busca da verdade em algum lugar. A grande imprensa não me satisfaz porque em sua maior parte os órgãos que supostamente deveriam nos informar sobre a realidade têm sua própria pauta de interesses. Neste ano no Brasil a prioridade dos principais veículos de comunicação era defenestrar o PT do poder, e para isso martelou-se ad infinitum a respeito das descobertas escabrosas da Operação Lava-Jato. A novela das roubalheiras dos políticos segue com os novos capítulos eletrizantes sobre o desespero de Anthony Garotinho ao ver-se constrangido a ser hospitalizado no Presídio do Bangu, pelo medo de ser morto por seus inimigos e sobre as joias adquiridas com propina por Adriana Ancelmo, esposa de Sérgio Cabral. Queremos ver no xilindró, com a ajuda do santo guerreiro Sérgio Moro, todos os ladrões que sangram o erário e tiram dinheiro da saúde e da educação.

    A ideia predominante é que se punirmos exemplarmente cortaremos o mal da corrupção pela raiz e uma era de prosperidade será inaugurada, porque teremos resolvido o principal problema do Brasil. Enquanto a grande imprensa proporciona o espetáculo da imolação dos peixes graúdos em primeiro plano e espera-se ansiosamente o grand finale com a prisão de Lula, há uma pauta extensa de reformas que estão se desenrolando como pano de fundo praticamente invisível para a maior parte da população, fissurada no sangue que está jorrando no proscênio. Como nosso excelentíssimo Presidente da República demonstrou um apreço pela verdade na reunião inaugural com os novos membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, é com grande esperança que me dirijo a ele em busca da verdade, porque na grande imprensa só encontro sensacionalismo e meias-verdades ou meias-mentiras. Para tanto, farei algumas perguntas ao nosso constitucionalista no poder.

    Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, a reforma da Previdência vislumbrada por sua equipe, cuja principal medida é estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria de 65 anos tanto para homens quanto para mulheres, leva em conta o fato de que a mulher responde por dois terços dos aposentados por invalidez, de acordo com a pesquisadora do IPEA Ana Amélia Camarano? Aliás, os doutos especialistas atuariais estão considerando em seus cálculos que com o envelhecimento da população a invalidez tende a aumentar (até 2050 deve haver um aumento de 181%), o que fará com que muitas pessoas, tanto homens quanto mulheres, não conseguirão chegar aos 65 anos trabalhando? Se não estão considerando nãos seria o caso de começar a fazê-lo e mostrar à população que a reforma da Previdência só será efetiva caso ela venha acompanhada de uma expansão na oferta de serviços de saúde aos brasileiros para que todos nós tenhamos condições de chegar aos 65 anos vivos, operantes e laboriosos contribuintes do sistema brasileiro de seguridade social?

    Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, o que o senhor fará a respeito da medida tomada por alguns Estados da Federação, a saber o Rio de Janeiro e agora o Rio Grande do Sul, de decretar estado de calamidade financeira? Permita-me expor-lhe minha consternação ante essa gambiarra jurídica, para usar um termo vulgar. Nos termos do artigo 65 da Lei Complementar 101, a dita Lei de Responsabilidade Fiscal, o reconhecimento de calamidade pública pela Assembleia Legislativa estadual permite que haja o descumprimento de certas exigências estabelecidas pela LRF, entre as quais a diminuição das despesas com pessoal dentro de um certo período. Se a moda pega, os Estados pelo Brasil afora farão uso desse expediente para continuar a gastar tudo de acordo com a lei de responsabilidade fiscal, esperando uma ajuda providencial da União. O senhor estará disposto a ser condescendente com os Estados que tem sido perdulários há anos e a socializar os prejuízos, fazendo o governo federal assumir o ônus? Caso o senhor aceite o argumento jurídico da calamidade não será um contrassenso, considerando que o senhor foi alçado ao poder depois da defenestração da presidente eleita por causa de suas pedaladas fiscais? Será moralmente correto punir exemplarmente o PT que praticou o populismo fiscal, como afirmou Geraldo Alckmin, e ao mesmo tempo perdoar o mesmo comportamento irresponsável nos Estados?

    Senhor Michel Miguel Elias Temer Lulia, o senhor enfatiza sempre a herança maldita dos quase 14 anos do PT no poder, mas por acaso o senhor não foi conivente com os desmandos, considerando que se omitiu, não vindo à público esclarecer os brasileiros a respeito do que se passava? Se é verdade que Dona Dilma Rousseff não lhe dava espaço, isso não mostra uma falta de postura, eu diria mesmo de liderança da sua parte? Se lhe causava desgosto aquilo que Dona Dilma fazia não era o caso de ao menos expor-lhe seus pensamentos ou o senhor era tão irrelevante que nem uma miséria audiência conseguia? A propósito de capacidade de mando, o senhor por acaso considera que para ser um bom Presidente da República basta falar muito bem a última flor do Lácio, inculta e bela? Que só porque seu português é infinitamente melhor do que o claudicante idioma falado por Dona Dilma o senhor tem uma estratégia e uma visão infinitamente melhores? A esse respeito, o que o senhor vislumbra para o Brasil no curto e o médio prazo? Para o senhor a PEC do Teto aprovada em primeiro turno no Congresso Nacional representa o quê? Um expediente emergencial para tranquilizar os investidores em títulos públicos, o coroamento do seu período na presidência, que já terá valido a pena se ela for finalmente aprovada, ou um meio para começarmos a reconstrução do Brasil depois do desastre do PT no poder? E se ela for um meio, quais os próximos passos? Talvez se o senhor deixasse de ficar pintando de cores tenebrosas o legado do PT, como se não fosse também compartilhado pelo seu partido, o PMDB, que coabitava com aquele no poder federal, não ficássemos com a impressão de que o objetivo é nos chantagear, nos constranger a aceitar sacrifícios em nome do estado calamitoso das coisas, sacrifícios estes que não serão divididos de maneira equânime por todos os brasileiros.

    Prezados leitores, fiz muitas perguntas ao nosso Presidente da República, que aponta corretamente haver um déficit da verdade no país. Como considero que Michel Temer está mais para bombeiro ansioso do que para líder visionário, confesso que procurarei refúgio nesses dias periclitantes por que passa o Brasil nos contos do escritor russo Anton Tchekhov, que chegava à verdade por sua total descrença de que houvesse algum sistema de pensamento correto, seja ele filosófico ou religioso. Ele singelamente mostrava as pessoas em situações cotidianas, sem emitir opinião sobre se seus atos eram bons ou maus. Mas o contraste entre o comportamento dos diferentes personagens ante determinadas situações que lhes eram postas era sempre revelador do caráter de cada um. Nesses tempos de mesóclises, em que o Presidente da República enfatiza os desmandos do governo anterior, do qual era membro oficial, para esconder sua própria mediocridade, as verdades despretensiosas de Tchekhov são sempre bem-vindas.

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Mea culpa

O que surpreende não é que a esmagadora maioria da mídia de qualidade esteja rejeitando Trump. Afinal, do meu ponto de vista, ele merece a descrição que dele fez “The Atlantic” (o mais ostensivamente desqualificado candidato de um grande partido em 227 anos de história da Presidência americana), ao optar por Hillary. O que surpreende é que o republicano ainda tenha chances de vitória, mesmo que as mais recentes pesquisas indiquem vantagem para a candidata democrata

Trecho de artigo publicado pelo jornalista Clóvis Rossi em 9 de outubro intitulado “Trump contra a mídia”

Por fim, a mídia não pode ser culpada por não endossar a agenda de Trump. Fazê-lo equivaleria a jogar no lixo posições que jornais como o “Washington Post” e o “New York Times” defendem historicamente. A maioria dos americanos, aliás, tampouco a endossou. Ele ganhou pelo esdrúxulo modelo de Colégio Eleitoral. É um presidente legítimo, mas é uma agenda levemente minoritária, insisto.

Trecho de artigo publicado pelo mesmo jornalista em 14 de novembro intitulado “A mídia não tem culpa”

    Prezados leitores, é minha obrigação pedir-lhes desculpas por duas grandes bobagens que falei a respeito das eleições americanas. Em primeiro lugar, eu disse que a linguagem crassa utilizada por Trump para falar das mulheres faria com que ele não tivesse o voto das mulheres com educação superior, o que lhe seria fatal. Tal previsão provou ser uma meia-verdade. Hillary Clinton teve o voto de 54% das americanas com nível superior, contra 45% de Donald Trump, mas por outro lado, Donald Trump obteve 62% dos votos de mulheres sem diploma universitário, enquanto Hillary Clinton obteve 34%, de acordo com a CNN. Isso significa que os votos que Trump perdeu entre as mulheres educadas por revelar-se machista foram compensados pelos votos das mulheres pertencentes à famigerada classe dos deploráveis, os quais compõem 95% da população para a qual a renda e o patrimônio diminuíram, de acordo com as estatísticas do Federal Reserve e da Renda Nacional., pois o crescimento econômico só beneficiou os 5% mais ricos. No frigir dos ovos, o Aprendiz teve 42% dos votos femininos contra 54% de Hillary, cujo desempenho entre suas companheiras de sexo foi pior do que o de Obama em 2012 (55%) e 2008 (56%), de acordo com o Pew Research Center.

    Minha segunda bobagem foi na semana passada ter condenado à extinção os brancos que perderam postos de trabalho em fábricas com a globalização e estão tendo que obter renda prestando serviços, o que no geral, não se revela tão seguro quanto os antigos empregos de operário. Afinal, há serviços e serviços: uma coisa é ser programador no Vale do Silício, na Califórnia, que aliás votou por Hillary Clinton, outra coisa é ser caixa de supermercado no Walmart, ou garçom ou cuidador de idosos. Todos prestam serviços, mas uns tem benefícios indiretos e trabalham em tempo integral, outros têm poucos benefícios ou nenhum, recebendo por hora e trabalhando parcialmente em atividades que podem ser bem estressantes. Pois bem, 52% dos perdedores ressentidos com a situação econômica, aqueles sem formação universitária, votaram em Donald Trump, ao passo que 44% apoiaram Hillary, a maior discrepância já verificada desde a década de 1980, de acordo com o Pew Research Center. Considerando só a população branca, independentemente da escolaridade, Trump obteve 58% dos votos contra 37% de Hillary.

    Feito meu mea culpa com base no que de fato aconteceu, peço a jornalistas renomados como Clóvis Rossi calçaem as sandálias da humildade, o que obviamente ele não fez, como mostra em seu artigo depois da eleição, e nem vai fazer, porque não há chance nenhuma de ele ler meu humilde artigo, escondido num canto obscuro da internet. Para luminares como Rossi, se Donald Trump foi eleito contra todas as previsões das pesquisas, a mídia não tem nada a explicar. Em primeiro lugar, a culpa é dos institutos de pesquisa, sobre cujas atividades os jornais e revistas não têm e nem podem ter a mínima responsabilidade. Em segundo lugar, quem é culpado são os deploráveis que votaram em Trump contra o conselho mais sábio dos reputados órgãos de imprensa que apontaram o aprendiz como um bufão, falastrão e despreparado para o cargo. A tarefa dos jornalistas da grande imprensa é simplesmente lamentar o que ocorreu e minimizar a importância do descontentamento que levou o “fascista” ao poder, baseando-se no fato de que Hillary Clinton ganhou no voto popular, já que ela teve muitos votos em Estados de grande população, como Califórnia e Nova York, apesar de Trump ter ganho na maioria dos Estados, naquilo que os americanos chamam de fly-over country. A outra tarefa dos jornalistas da grande imprensa é manterem-se fiéis aos princípios e ética de vetustos veículos como o Washington Post e o New York Times, o que inclui o apoio à tolerância, à diversidade, à igualdade de gênero.

    Essa auto complacência é de amargar. Uma coisa é errar previsões e todos erram, outra coisa é deixar de relatar fatos que não respaldam aquilo que os órgãos de imprensa querem que aconteça e isso aconteceu sobejamente durante as eleições de 2016 nos Estados Unidos. Para quem via nas mídias sociais as imagens das pessoas esperando horas sob a neve para entrar nos comícios de Trump e para quem soube pelas notícias curtas divulgadas no Twitter que Hillary Clinton muitas vezes teve que cancelar comícios porque não tinham quórum, a vitória do falastrão não é nenhuma surpresa. Ao contrário, considerando que os comícios de Trump, divulgados no youtube, mostravam pessoas altamente motivadas por um indivíduo que falava dos problemas que essas pessoas enfrentam no seu cotidiano (falta de empregos, alto preço do seguro-saúde, vulgo Obamacare), não é de admirar que o candidato “bufão” tenha levado a melhor sobre uma candidata que fez muito menos comícios e preferia reunir-se com seus doadores de campanha. Estes lhe deram um bilhão de dólares para contratar especialistas em Big Data, realizar pesquisas de opinião com as ditas minorias e fazer anúncios mostrando como Trump era xenófobo, racista e machista.

    A grande imprensa e Hillary Clinton formaram uma simbiose perfeita. Há anos sobrestima-se a tal da recuperação econômica dos Estados Unidos depois da debacle de 2008 e minimizam-se os problemas. Fala-se que o desemprego está em 5,3%, de acordo com o CIA Factbook, uma estatística que não leva em conta as pessoas que já desistiram há muito de procurar um trabalho, fala-se que o Obamacare proporcionou cobertura de saúde a milhões de pessoas. Não há menção ao fato desagradável de que o preço do seguro-saúde do Obamacare está disparando para pessoas jovens e saudáveis como compensação às seguradoras para aceitarem indivíduos que certamente lhes darão prejuízo, de acordo com o professor da Universidade de Missouri, Michael Hudson.

    O quadro róseo pintado pela “mídia de qualidade” permitiu à Hillary vender-se como a candidata da continuidade, como se continuar como está fosse interessante aos americanos. Se tudo está bem, se basta seguir o curso, as pessoas podem dedicar-se a policiar-se para não adotarem discursos racistas, sexistas, xenófobos. Não admira que Hillary tenha enfocado tanto as gafes de Donald Trump e ignorado totalmente as angústias econômicas sentidas por uma parcela da população que não tem certeza sobre o futuro porque não conseguiu ainda um lugar ao sol na maravilhosa economia de serviços. A imprensa reforçava a noção de que votar em um dono de cassinos, em um galo de briga como Trump – que se tivesse nascido no Complexo da Maré no Rio de Janeiro certamente teria sido chefe dos traficantes, teria o apelido de Alemão ou Garfield e teria sido assassinado por policiais e sido carregado no Caveirão do BOPE –, era tão obviamente absurdo que não era preciso que a candidata oficial abordasse os reais problemas das pessoas, que incluem também a disputa das escassas vagas de trabalho com imigrantes legais e ilegais.

    Prezados leitores, esse grande desprezo da grande imprensa pelo homem comum coloca em perigo o debate equilibrado e a busca de consenso. Enquanto o quarto poder continuar minimizando os efeitos negativos da globalização e pior, estigmatizar os pessimistas e descontentes como racistas, xenófobos e sexistas, haverá cada vez mais votos de protesto e surpresas como Donald Trump. A caixa de pandora está aberta e em 2017 ela pode trazer à luz Marine Le Pen como a próxima presidente da França, outra que é fustigada pela mídia de seu país tanto quanto Trump foi e continua sendo. Se a grande imprensa continuar a olhar para o próprio umbigo jactando-se com a correção das suas ideias, sua credibilidade diminuirá cada vez mais, e ela vai tornar-se irrelevante frente aos tweets e memes das mídias sociais, que informam tanto quanto empobrecem o debate das ideias, transformando tudo em disputas entre partes irreconciliáveis. Clóvis Rossi e seus colegas, por favor, façam seu mea culpa e admitam que têm falhado em mostrar a vida como ela é. A democracia agradece.

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