Triângulo Amoroso ou Pas de Deux?

A Suprema Corte ela mesma é uma invenção moderna, criada no governo de Tony Blair. Seu nome engana – podendo levar-nos a confundi-la com a Suprema Corte dos Estados Unidos., que tem o poder de revogar decretos governamentais. Mas essa é a particularidade da Grã-Bretanha: não temos uma constituição escrita ou juízes que possam declarar as leis inconstitucionais. Aqui o Parlamento permanece supremo. Se ele não gostar daquilo que os juízes decidirem – nisso como em qualquer outro caso – ele pode anular uma decisão aprovando uma nova lei. Para citar as palavras sucintas e precisas que resumem a constituição da Grã-Bretanha, “O que a Rainha aprova no Parlamento é lei. ”

Trecho retirado do artigo intitulado “Brexit por um fio” do jornalista Joshua Rozenberg, publicado em 3 de dezembro

Nos Estados Unidos, ao contrário, assim como em toda democracia onde o poder legislativo ordinário sofre limitações legais, os eleitores não confinaram o exercício do poder soberano à eleição dos representantes, mas os submeteram a restrições legais. Aqui o eleitorado pode ser considerado um ‘poder legislativo extraordinário de última instância’ superior ao poder legislativo ordinário que é obrigado legalmente a respeitar as restrições constitucionais e, em caso de conflito, o Judiciário declarará o ato legislativo ordinário inválido. Aqui, então, o eleitorado é soberano e livre de todas as limitações legais…

Trecho retirado do livro “The Concept of Law”, do filósofo do direito britânico Herbert Lionel Adolphus Hart britânico (1907-1992)

Culpem os juízes e o Judiciário se os Estados Unidos forem atacados

Reação do Presidente americano, Donald Trump, à rejeição do recurso impetrado pelo Departamento de Justiça contra a liminar concedida pelo juiz James Robart, suspendendo o decreto presidencial que banira a concessão de vistos de entrada nos Estados Unidos para cidadãos de sete países muçulmanos.

    Prezados leitores, quanto mais eu assisto, na qualidade de espectadora interessada, mas passiva, aos imbróglios políticos a que os Brasil e os Estados Unidos estão submetidos atualmente, fruto do sistema de triângulo amoroso escolhido por nós, do Novo Continente, mais admiro o sistema britânico de governo, que eu diria ser um belo pas de deux. Explicar-me-ei, falando primeiramente sobre os recentes desdobramentos da decisão de junho do ano passado pelos britânicos de sair da União Europeia.

    Uma gerente de investimentos, Gina Miller, partidária da permanência da Grã-Bretanha na União Europeia, resolveu fazer uso do Judiciário para atrapalhar a festa dos vencedores. Ela argumentou em sua petição à Alta Corte da Grã-Bretanha que foi um ato do Parlamento de 1972 que colocou o país na União Europeia e, portanto, só um ato do Parlamento poderia tirar o país daquela organização. Diante da aceitação por aquele tribunal das alegações da autora, a primeira-ministra Teresa May impetrou recurso na Suprema Corte, que em 24 de janeiro estabeleceu que o Parlamento deveria realizar uma votação a respeito se dá ou não autorização ao governo para começar o processo de saída da Grã-Bretanha da EU. Pois bem, em 1º de fevereiro os membros da Câmara dos Comuns decidiram por 498 votos a favor e 114 contra a aprovar o projeto de lei que dá à primeira-ministra o poder para invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, e iniciar formalmente as negociações para a retirada. Pronto, os descontentes com o Brexit tiveram direito de manifestar-se, e melhor, o judiciário manifestou-se de maneira comedida, simplesmente passando a bola para o Parlamento. Todos os três poderes daquela monarquia saíram reafirmados, o que não significa que não haverá acirrados debates na Câmara dos Lordes e não haverá alterações no projeto antes que ele se transforme em lei. O importante é que o princípio basilar do sistema britânico continua intacto: o Parlamento é soberano. E melhor ainda: a vontade do povo, manifestada me 23 de junho de 2016, foi respeitada. Lindo, fino, elegante, sem vituperações, sem acusações mútuas. Tudo à altura da Regina Elizabeth II.

    Do outro lado do Atlântico, a coisa muda de figura. Os Estados Unidos lançaram a moda e nós, em 1891 por intermédio, entre outros juristas, de Rui Barbosa, copiamos na nossa primeira Constituição Republicana. Temos uma Constituição escrita promulgada por um poder constituinte original que fez aquilo que quis quando se reuniu, e a tal Constituição o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem submeter-se. Mas, quando houver conflitos sobre se um ato de qualquer dos três poderes é constitucional ou não, quem resolve a questão e no jargão técnico “diz a lei”, isto é estabelece o que está de acordo com a Constituição e o que viola a Constituição, é o Judiciário. Na prática, isso significa que o órgão de cúpula do Judiciário tem a palavra final. Não haveria grandes problemas se os juízes mostrassem comedimento e se limitassem a uma interpretação literal do texto da Constituição, no caso dos Estados Unidos, cuja Carta Magna é enxuta. e se no caso brasileiro não tivéssemos uma constituição programática que dá ao juiz esse papel de executor das boas intenções dos constituintes de 1988. No entanto, em uma era de afirmação de direitos de grupos especiais, e de descrédito da classe política, como ocorre tanto nos Estados Unidos como no Brasil, o Judiciário têm sido usado como um cabo de guerra na disputa entre os grupos de interesse, cada um deles querendo dar um sentido diferente às palavras da Constituição escrita.

    Não custa repetir aqui neste meu humilde espaço como o impeachment de Dilma Rousseff foi obtido pelos descontentes com sua reeleição em 2014 por meio do Judiciário e depois do Legislativo. E mais, o governo Dilma então enfraquecido foi inviabilizado de vez quando sua tentativa de nomear Lula ministro foi repelida pelo STF. Pois bem. Desde lá nós brasileiros só assistimos ao bateu levou incessante. Agora é a vez de Moreira Franco, nomeado ministro por Michel Temer, ser alvo de ação no STF porque ele é investigado na Lava Jato. Como Lula no ministério era mera blindagem contra processos judiciais em foros comuns e Moreira Franco no ministério de Temer não é? Mais uma vez o Judiciário vai decidir, independentemente do que a maioria do povo pensa sobre a legitimidade do atual mandatário do Brasil. Na década de 80, em plena década perdida, o noticiário era dominado pelas façanhas dos economistas, agora o protagonismo cabe aos órgãos da Justiça. O povo continua ao largo, chamado a apertar botões a cada dois anos, mas parece que nossa tarefa é simplesmente escolher os gladiadores que serão imolados no Coliseu de Brasília, vulgo STF.

    A eleição de um populista para a Casa Branca também parece estar levando os Estados unidos por essa trilha de disputas intermináveis. Trump está tentando cumprir o que prometeu aos seus deploráveis eleitores: tornar as fronteiras mais seguras e criar empregos perdidos com a globalização. Mas a parcela daqueles que o detestam é grande e está se mobilizando por meio do Judiciário. O Aprendiz é um galo de briga e seus twitters bombásticos mostram que ele vai lutar até o fim. Qual será o fim? O total descrédito do Judiciário e do Legislativo se Trump conseguir afirmar seu poder? Ou o impeachment de Trump depois de inúteis batalhas em que ele será vencido pelos grupos de interesse? E se houver impeachment lá como aqui? Como ficam os eleitores que nele votaram? Será que se sentirão traídos pelos grupos que controlam o Judiciário e o Legislativo? Qual será sua reação? Lembrem-se que os Estados Unidos já passaram por uma guerra civil no final do século XIX…

    Prezados leitores, sei que seria ingênuo importar o sistema britânico para nossas plagas, afinal a história, a cultura, depõem contra tal medida. No frigir dos ovos, no caso do Brasil, a maior parte do povo brasileiro se fosse escolher entre nossos políticos, envolvidos até o pescoço com a corrupção, e o Judiciário, escolheria este último, que justamente está revelando a simbiose sinistra entre grupos econômicos e nossa classe política. Quanto aos Estados Unidos, a coisa é diferente e mais momentosa, porque eles são um império nuclear e se o povo que elegeu Trump decidir ir às ruas, armados, para defender sua escolha soberana, o caldo pode entornar. De qualquer forma, é de lamentar que neste lado do Atlântico não possamos assistir à bela sincronia em que o Judiciário simplesmente diz ao Parlamento para cumprir sua obrigação e fazer leis e que se desenrole diariamente diante de nossos olhos os tapas e beijos trocados entre os três poderes. No que dará este triângulo amoroso das Américas saberemos em breve.

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Sinuca de bico

Elso Pozzobon, vice-presidente da Associação dos Produtores de Milho e Soja do Mato Grosso, diz que a agricultura “vai ajudar a economia a sair da letargia.” Para Silveira, o agronegócio evita outro ano recessivo no País. Porém, pelo fato de ter cadeia curtas de produção e empregar pouco, o setor não pode trazer de volta o crescimento: “Essa função ainda é da indústria.”

Trecho retirado do artigo intitulado “Agronegócio dribla inflação, tem safra recorde e injeta até R$ 237 bi no País, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 29 de janeiro

Crise faz dobrar procura pelo serviço militar entre jovens que se alistam em SP
Título de artigo publicado no mesmo jornal sobre a estratégia usada por jovens brasileiros para escapar do desemprego

Um país industrializado beneficiar-se-á se um parceiro comercial subdesenvolvido adquirir novas indústrias e melhorar de maneira geral sua produtividade. Continuará a beneficiar-se até que aquele parceiro tenha atingido um nível de desenvolvimento que lhe permita desempenhar um papel mais significativo no mercado global. Depois desse ponto, a aquisição de indústrias pelo parceiro recém-desenvolvido torna-se prejudicial ao país mais industrializado. […] é importante perceber que no mundo de hoje os interesses de uma empresa e do seu país de origem em termos de localização das unidades de produção pode apresentar grandes divergências.

Trecho retirado do livro “Global Trade and Conflicting National Interests” de Ralph E. Gomory e William J. Baumol

    Prezados leitores, tive um choque esta semana quando me foi informado que terei que trabalhar na segunda, na terça e na quarta-feira de Carnaval. Isso nunca havia me acontecido antes na empresa na qual trabalho há exatos 10 anos. Os dias de folia são um patrimônio imaterial do Brasil, afinal fomos nós que levamos a festa herdada da Europa ao paroxismo, com os blocos carnavalescos, os desfiles das escolas de samba, a dança desabrida nas ruas, as sátiras políticas. O Carnaval também é patrimônio da Igreja Católica, marcando o início da Quaresma de preparação para a comemoração da Páscoa. Lembro-me dos folguedos que presenciei em Lucerna, na Suíça. Fiquei maravilhada com a estranheza de tudo: as roupas de inverno pesadíssimas, mas não menos coloridas do que as nossas, que me informaram serem inspiradas nos trajes do exército que lutou contra a invasão napoleônica, as músicas tocadas nos bumbos, que eu associei a algo como o heavy metal, o desfile ordeiro pelas ruas da cidade, onde as pessoas dão vazão a suas paixões sempre dentro de certos limites estritamente seguidos. Enfim, onde há catolicismo há Carnaval, que se adapta à índole do povo.

    Do ponto de vista estritamente jurídico, o feriado só existe mesmo na terça-feira em alguns Estados brasileiros, não todos. Portanto, a empresa que faz os funcionários trabalharem no Estado de São Paulo não comete nenhuma ilegalidade, já que aqui nossa Assembleia Legislativa nunca teve a caridade de aprovar uma lei instituindo a terça-feira como dia obrigatório de ócio remunerado. O que não significa que ela não seja culpada de uma tremenda mesquinharia. Dar a nós trabalhadores a alegria de folgar quatro dias por liberalidade é algo por que trabalhamos o ano todo. E no entanto, neste ano de 2017 minha empresa decidiu economizar dinheiro, obrigando-nos a queimar banco de horas se quisermos desfrutar da festa. Por que será? Desconfio que o fato de o Brasil estar com 12 milhões de desempregados no final de 2016 dá um estímulo aos patrões para folgarem conosco, serem mais rígidos e lembrarem-nos que para os descontentes com o trabalho em pleno momento em que o país todo cai na diversão a “porta é a serventia da casa”.

    O Brasil está realmente em uma sinuca de bico. O único setor em que temos vantagem competitiva no mundo global é o agronegócio, mas a agricultura de exportação que é a menina dos olhos da economia, que bate recordes de produtividade e que gera know-how de cultivo exportados para outros países tropicais não gera empregos. Os empresários do setor, donos de vastas extensões de terra, quando acumulam renda compram uma colheitadeira de um milhão e meio de reais operada por um único indivíduo dentro de uma cabine com ar-condicionado. Para que a agricultura gerasse empregos teríamos que investir em agricultura familiar, mas seria preciso dar apoio técnico e financeiro para que o pequeno negócio fosse viável e gerasse renda. Como disse Pozzobon, a boa e velha indústria ainda é o método mais eficiente de gerar empregos por causa dos vários elos das cadeias de produção. Para fabricar uma singela boneca preciso de plástico, tinta, pano, maquinário, os quais são fornecidos por outras indústrias, gerando um círculo virtuoso. Mas como já estamos carecas de saber, nossa indústria foi atingida seriamente pela concorrência chinesa e em certos setores certamente foi ferida de morte. Criança, eu brinquei com Susis fabricadas pela Estrela, andei de bicicleta Cecizinha Caloi da qual ainda lembro as meigas flores pintadas no cano e ouvi meus discos da Mônica e do Cascão em uma vitrola Phillips made in Brazil. Tudo isso virou poeira, como provavelmente dirá Ivete Sangalo em algum trio elétrico em Salvador. O que fazer?

    Os jovens brasileiros de 14 a 24 anos, cujo desemprego atinge 27,7%, ante a taxa total de 11,8% de acordo com os dados do IPEA, têm se virado como podem. Tentar entrar no Exército, Marinha ou Aeronáutica é uma tendência recente, infelizmente restrita aos privilegiados que conseguem obter as restritas vagas. Não será surpreendente se houver um recrudescimento do interesse no sacerdócio católico, evangélico ou de outra denominação religiosa, que oferece a estabilidade tão almejada em tempos em que tudo o que é sólido desmancha-se no ar. Será que quando voltarmos a registrar taxas positivas de crescimento conseguiremos criar vagas em número suficiente para compensar aquelas que foram perdidas? Especialistas da consultoria Tendências e GO Associados preveem que só em 2021 “o Brasil deverá recuperar o nível de estoque de empregos formais do final de 2014, quando o país vivia uma situação considerada de quase pleno emprego”. Mas isso é só uma projeção que para ser concretizada depende de uma conjunção de vários fatores.

    No livro sobre comércio internacional citado no início deste artigo os autores argumentam que para um país gerar emprego e renda no mundo global é preciso investir em pesquisa básica, infraestrutura, é preciso ajuda governamental, e de modo geral um inconformismo com um certo papel na ordem mundial. Para Golmory e Baumol o comércio internacional não é nada daquilo que nos pintam: um mundo harmonioso em que quanto mais os países se abrem para os produtos de outros países mais todos ganham. Eles descrevem um quadro mais sombrio, da lei do mais forte, em que em muitos casos para que alguns ganhem outros têm que perder. É claro que há situações perfeitas em que a economia de um país é complementar à de outros, como ocorre com aqueles especializados em alguns produtos agrícolas que vendem sua produção a países industrializados. Por outro lado, a trajetória de um país como a China, que começou produzindo quinquilharias e foi subindo degraus até tornar-se a usina do mundo, mostra que se de início um país como os Estados Unidos beneficiou-se do crescimento econômico no Império do Meio fornecendo-lhe capital, know-how e acesso a mercados, no século 21 está claro que a China aprendeu muitos truques e agora é capaz de disputar posições nos mesmos mercados que o Tio Sam. Terceirizar a produção de I-phones para a Foxconn pode ser lucrativo para a Apple, mas já passou-se o ponto de equilíbrio da complementaridade da economia dos dois países: a renda e o emprego gerados na China são muito maiores do que o emprego e a renda gerados nos Estados Unidos, como mostram os índices reais de desemprego na “América”, que está acima de 23% de acordo com o advogado e ativista político Michael Snyder, apesar dos lucros fabulosos da dona da maçãzinha comida e de outras empresas que beneficiam-se da globalização.

    Talvez o maior defeito do facínora eleito presidente dos Estados Unidos seja que ele vê a realidade como ela é nua e crua, sem os mitos vendidos pelos ideólogos da ordem vigente: o mundo global faz perdedores e vencedores, empregados e desempregados, e nem tudo o que é bom para as multinacionais, incluindo acordos multilaterais de comércio que as blindam contra leis e regulamentos locais, é bom para o país de origem da multinacional. Os deploráveis americanos que ainda têm direito de votar reagiram contra a drástica diminuição da possibilidade de viver uma vida de classe média sustentada por sólidos empregos na indústria e resolveram lutar para não serem jogados na lata de lixo da História.

    A unanimidade contra Trump mostra que as verdades que ele fala ferem muitos interesses há tempos consolidados que se escamoteiam em discursos anódinos sobre tolerância e liberdade para angariar a simpatia dos inocentes úteis. A sinuca de bico da disputa por empregos é vivida por todos no século XXI e cada país tentará sair dela a sua maneira, seja rendendo-se à ordem global ou resistindo a ela. Quem vencerá? Alia jacta est.

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Vox populi?

A eficácia do líder populista nas funções de Governo dependerá da margem de compromisso que ocasionalmente exista entre os grupos dominantes e de sua habilidade pessoal para superar, como árbitro, os enfrentamentos e para encarnar a imagem da soberania do Estado, em face das forças sociais em conflito.

Trecho retira do texto escrito pelo cientista político Francisco Carlos Weffort (1937-), “O Populismo na Política Brasileira”

O que realmente importa não é qual partido controla o governo, mas se o governo é controlado pelo povo. 20 de janeiro de 2017 será lembrado como o dia em que o povo se tornou o comandante deste país de novo.

Trecho do discurso de posse do 45º Presidente dos Estados Unidos, Donald John Trump

Eles financiarão a infraestrutura por meio de títulos de dívida e parcerias público-privadas, linhas de trem e linhas de transporte. Quem serão os beneficiários disso e quem vai pagar por isso? Se o governo não pagar por isso serão os detentores de títulos públicos e Wall Street.

Trecho de entrevista dada pelo professor de economia da Universidade do Missouri, Michael Hudson sobre o plano de Donald Trump de investir na construção e renovação da infraestrutura nos Estados Unidos

    Prezados leitores, por razões profissionais recentemente tive que inteirar-me sobre o mecanismo de funcionamento do empréstimo consignado, cuja lei, de número 10.820, entrou em vigor em 17 de dezembro de 2003. Considero que do legado de Lula, que inclui a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, o empréstimo consignado constitui uma perfeita síntese do que nosso ex-presidente tentou como legítima expressão do populismo latino-americano, a saber, conciliar interesses antagônicos em sociedades com grandes disparidades econômicas, sociais e culturais como a brasileira. O desconto em folha de pagamento de empréstimos contraídos por assalariados em instituições financeiras é bom para os bancos, porque dá uma garantia mais sólida de que haverá pagamento, e permite ao trabalhador pegar dinheiro a taxas um pouco mais baixas do que as normalmente praticadas no mercado brasileiro. Uma maravilha, não? Em termos.

    O caldo entorna quando o devedor perde o vínculo empregatício e as taxas de juros incidentes sobre a dívida aumentam porque o empréstimo transforma-se em empréstimo comum. Considerando a pouca educação financeira que nós brasileiros temos, isso pode transformar-se em uma bola de neve que escraviza o correntista, porque o banco vai continuar cobrando a dívida fazendo débitos automáticos de qualquer valor que caia na conta do pobre indivíduo que a esta altura estará desempregado, sem renda garantida e provavelmente devendo três vezes mais do que o início (foi o que aconteceu no caso com o qual tive contato). E como não deixar de pagar, se precisamos ter conta corrente se quisermos almejar ter de novo vínculo empregatício? Em suma, o que era um pacto perfeito costurado pelo sindicalista Lula entre o interesse dos banqueiros de aumentar sua carteira de clientes com o mínimo de risco e o interesse dos trabalhadores de ter crédito para comprar bens de consumo duráveis, tem transformando-se muitas vezes em um pesadelo para os incautos trabalhadores do Brasil, irremediavelmente pegos na teia das armadilhas financeiras dos bancos.

    Esta é uma das várias contradições de Lula, que tentou ser amigo de todos, das “zelites”, do povo, e acabou em muitos aspectos sendo amigo da onça de muitos. Como mostra Weffort em seu texto, que li em em meus tempos de escola quando estudávamos o primeiro grande espécime do gênero no Brasil, Getúlio Dornelles Vargas, o populista , ao fazer a ponte entre o povo que o elegeu e os donos do poder, precisa ter muito jogo de cintura e conseguir uma sintonia fina entre os vários interesses: não pode desgostar muito a elite para que ela não pense em derrubá-lo por meio dos meios de que dispõe, e não pode deixar de satisfazer os anseios do povo que nele depositou suas esperanças de conquistar direitos. O PT de Lula conseguiu essa sintonia fina embalado pelo crescimento econômico, mas quando este mingou a partir de 2011 chegou a hora da verdade, os compromissos não mais puderam ser feitos. Era preciso escolher, e os donos do poder no Brasil escolheram livrar-se do PT porque o cobertor ficou extremamente curto para cobrir as veleidades de justiça distributiva a que se dá o nome de populismo fiscal. O Sr. Temer no poder permite passar a conta da crise das finanças públicas para quem não tem direito adquirido nem meio de fazer lobby convincente em Brasília.

    Nós, na América Latina, estamos acostumados com a ascensão e queda de populistas. A grande novidade no momento é que no lado de cima do Equador, os antagonismos econômicos provocados pela globalização fizeram surgir um populista em pleno Primeiro Mundo, o Aprendiz Donald Trump, que em seu discurso de posse deixou claro que pretende ser a ligação direta entre o povo, em nome do qual o poder é exercido, e o exercício do poder. O mundo espanta-se com isso, mas o fato é que nos últimos 30 anos os Estados Unidos acabaram vendo surgir em seu seio bolsões de Terceiro Mundo, infestados de desemprego, de criminalidade, de falta de infraestrutura pública, cuja existência Trump teve a qualidade de reconhecer e enfatizar, algo que sua adversária, Hillary Clinton, nunca fez, preocupada que estava com a política das minorias. Mas agora, cabe a pergunta, que tipo de populista será o 45º presidente dos Estados Unidos? Terá ascensão e queda meteórica como o costuma acontecer no lado de baixo do Equador? Ou conseguirá ser o fazedor de consensos, gerando crescimento econômico e empregos e fazendo todos prosperarem, transformando-se em criador de uma nova síntese pós-globalização?

    Uma vantagem de Trump é que ele chega curtido na batalha feroz que travou com a grande imprensa de seu país, e sabe que ela jamais lhe dará trégua. Por isso não cansa de fustigar a CNN, o New York Times e outros, e vale-se do Twitter e da mídia alternativa na internet para transmitir sua mensagem, blindando-se contra os ataques. O PT e seu mentor perceberam muito tarde que os principais meios de comunicação do Brasil queriam defenestrá-los do poder e para tanto promoveram incansavelmente a cruzada contra a corrupção dos governos Lula e Dilma. A má fé da nossa grande imprensa mostra-se agora quando a vetusta VEJA já descarta de antemão como teoria da conspiração qualquer suspeita sobre a morte para lá de estranha do juiz mais sério do STF, Teori Zavascki, que não havia cedido à tentação de tornar-se celebridade. Não é de se admirar que a morte de Teori não cause a comoção que deveria causar nos supostos arautos da honestidade na política. Afinal, o objetivo principal era tirar o PT do poder e isso já foi conseguido. Enfim, o Aprendiz, por ser um homem que já trabalha há muito anos na televisão, sabe que quem não domina os meios não domina os conteúdos das mensagens e não domina as mentes. Por mais que a mídia tradicional trucide Trump, ele é um manipulador hábil e não se deixará imolar como um bezerro desmamado.

    Por outro lado, nos Estados Unidos a briga de grupos com interesses conflitantes é briga de cachorro grande, não é para amadores. Há o complexo industrial-militar que quer que o Império Americano se expanda eternamente, mesmo à custa de mais e mais déficits, há as agências de inteligência que querem continuar invadindo a privacidade dos cidadãos, há os que querem briga com a China, outros que querem briga com o Irã, ainda outros para quem que o inimigo deve ser a Rússia. O que Trump fará? Vai jogar um grupo contra os outros para melhor governar em nome do povo, vai tentar chegar a um denominador comum ou vai jogar migalhas aos pobres, como Michael Hudson acha que ele vai fazer no caso da infraestrutura usando os bancos para viabilizar financeiramente as obras e tornando o país mais endividado?

    Prezados leitores, preparem-se para um espetáculo inédito, um legítimo populista em pleno coração do Primeiro Mundo. Se Donald Trump será a voz do povo ou será um eficaz ventríloquo nas mãos das elites globais permitindo-lhes escamotear os efeitos perversos do seu sistema de um mundo sem fronteiras, é uma grande incógnita no momento. Esperemos e apertemos os cintos, porque os solavancos virão, qualquer que seja o desfecho.

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Será?

Sabe-se que 90% dos atletas olímpicos brasileiros receberam algum tipo de incentivo com recursos públicos, enquanto menos de 50% contaram também com recursos da iniciativa privada. Existe muita desconfiança por parte das empresas acerca do destino de seus possíveis investimentos em esporte, uma vez que as federações esportivas no Brasil são verdadeiras caixas-pretas e os escândalos se empilham nas notícias do dia a dia.

Trecho retirado do artigo intitulado Copa e Olimpíadas: o Brasil passou a vez de Billy Graeff

Defensoria do AM quer indenização de R$ 50 mil a famílias de presos -Valor será definido pelo governo nos próximos dias; Estado pode ter que desembolsar R$ 3,2 milhões

Manchete de artigo publicado na versão eletrônica do jornal O Globo de 12 de janeiro

    Prezados leitores, meu humilde artigo de hoje tentará refletir minha perplexidade por meio de uma série de perguntas para as quais obviamente não tenho e ninguém tem resposta. Meu propósito em tudo o que escrevo aqui não é convencer ninguém, afinal como tentei mostrar na semana passada, argumentos que não sejam estritamente científicos em larga medida têm como fundamento valores e convicções que variam muita na nossa sociedade dividida em guetos. Dividirei as perguntas em temas para facilitar o entendimento.

    Começarei pela onda das rebeliões em presídios, que parece estar espalhando-se pelo Brasil como um rastro de pólvora, quem sabe pelo fato de os presos estarem sentindo-se celebridades depois da farta divulgação dos seus feitos nas mídias sociais. Provavelmente a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Amazonas será imitada pelas Defensorias dos outros Estados onde houve assassinatos nas prisões e todas pedirão indenização do Estado para as famílias dos presos. Os brasileiros pagarão em todos os momentos, as vítimas dos que estão encarcerados são as primeiras a pagar, em seguida os contribuintes pagam os parceiros privados como a tal da empresa Umanizzare que gere muito mal várias cadeias no Brasil, mas claro é remunerada regiamente para fazê-lo, quando os presos fogem como está acontecendo agora pagamos com o aumento da insegurança e o contribuinte será chamado pelos defensores públicos a arcar com a conta mais uma vez para ressarcir os danos materiais e morais às viúvas, mães e filhos de presos.

    Por quanto tempo mais aguentaremos pagar a conta? Por quanto tempo mais continuaremos a ser chamados a assumir o prejuízo quando as coisas dão errado, ou melhor quando as coisas dão errado para a maioria e dão certo para uma minoria? É certo que esse estado calamitoso nas prisões beneficia alguns, a começar pelas facções criminosas e as autoridades que fazem vista grossa ao que elas fazem em troca de compartilhamento do botim proporcionado pelas atividades ilícitas. Por quanto tempo conseguiremos sustentar essa política de multiplicação de direitos de grupos e coletividades específicas? Posso dar-lhes outros exemplos para não me acusarem de ser partidária da limpeza étnica nas nossas “masmorras”, como disse o ex-Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. O Ministério Público tem defendido os direitos daqueles atingidos pelo estouro da barragem em Mariana, o Judiciário concede liminares a quem tem doenças raras para que o Estado pague a realização de exames caros e a importação de remédios cuja eficácia nem sempre é comprovada. E quem defende o povo brasileiro como coletividade única e não como uma reunião de grupos que disputam entre si os escassos recursos? Ou será que já não é mais moralmente defensável pensarmos em um homem médio porque isso seria sexista ou racista ou intolerante? Será que estaremos condenados a permanecer nessa trilha de cada um puxar para si um cobertor cada vez mais curto? Ou pior, antes que o cobertor rasgue por completo, será que nossa democracia tupiniquim está rapidamente transformando-se em um narcoestado? Será que nosso PCC, CV e outras facções já estão chegando ao nível da La Zeta mexicana, que manda pendurar a cabeça de indivíduos abatidos em viadutos para dar exemplo? O próprio talvez futuro Secretário de Estado dos Estados Unidos, Rex Tillerson, na ínfima menção que fez à América do Sul ao ser sabatinado no Senado mostrou-se preocupado com os recentes acontecimentos por aqui. Será que o governo americano considerará o Brasil mais um caso de failed state? Se positivo, qual será o efeito disso na prática? Haverá em nosso território o nível de interferência americana que há na Colômbia, por exemplo?

    Os otimistas apontarão que a Operação Lava-Jato e seus desdobramentos no Judiciário mostram, ao contrário, a força das nossas instituições. Não há como negar que todas essas prisões, delações premiadas e as medidas anticorrupção quando finalmente transformarem-se em lei terão um efeito dissuasório ou ao menos camuflador das práticas corruptas. Por outro lado, uma dúvida surge. Será que a partir desse saneamento a política atrairá pessoas honestas e bem-intencionadas? Ou terá o efeito perverso de permitir a sobrevivência apenas dos mais fortes, no caso daqueles que conseguem arrecadar fundos suficientes para arcar com os maiores riscos do negócio, especificamente os inevitáveis problemas na justiça? Será que no final das contas todo esse esforço de anos pela limpeza moral do Brasil simplesmente criará uma barreira a mais para novos ingressantes, impedindo que neófitos aventurem-se na seara política, por medo de serem processados e não terem como arcar com os custos? É cedo demais para vislumbrar como todas essas medidas de combate à corrupção vão influir a prática democrática a longo prazo, mas se nós brasileiros continuarmos a votar com base em pesquisas de opinião e guiados por uma imprensa que tem sua própria pauta de interesses corporativos será difícil impedir que ocorra a seleção dos tiranossauros rex da política brasileira e a suspensão do advento do homo sapiens.

    Aliás, por falar em grande imprensa brasileira, por que ela raramente cumpre uma função verdadeiramente pública? A cobertura dos megaeventos esportivos que realizamos, tanto antes como durante, foi na base do oba-oba, os problemas eram mostrados secundariamente, pois a prioridade era ter esperança de que tudo afinal daria certo, de que as obras ficariam prontas e de que daríamos um grande espetáculo para o mundo. Só agora um veículo como a VEJA espinafra de cabo a rabo o legado da Copa e das Olimpíadas, em um artigo na sua edição de 18 de janeiro, mostrando o abandono das arenas, os roubos que estão ocorrendo no Maracanã e a falta de destino do Parque Olímpico no Rio de Janeiro, como se este fosse o momento mais oportuno de lavarmos a roupa suja, quando só nos resta pagar a conta da incompetência e da malandragem. Não teria sido mais útil enfatizar antes o fato de que o público foi chamado a arcar com os custos desde o início e que a tal da iniciativa privada só entraria com sua fatura da construção dos elefantes brancos? Utilizo o verbo enfatizar porque o que quero apontar não é a total falta de informações sobre o desafio de construção de um verdadeiro legado positivo para o povo brasileiro, mas a falta do devido destaque aos efeitos de longo prazo desses megaeventos, em prol da cobertura sensacionalista da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.

    Prezados leitores, guerra entre facções criminosas, greve de policiais, rescaldos do impeachment, receitas públicas que caem vertiginosamente: parece que estamos vivendo um período de ressaca. Há alguns anos eu humildemente previ que teríamos o mesmo destino da Grécia que sediou os Jogos Olímpicos de 2004, ou seja, a bancarrota, que está levando aquele país a vender todo o patrimônio público que tem para pagar dívidas. Minha última pergunta desta semana será: estamos começando um círculo vicioso ou simplesmente chegamos ao fundo do poço e melhoraremos em 2017?

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Guerra de Palavras

Crátilo acredita que qualquer pessoa que saiba o nome de uma coisa também conhece a coisa. […] Porque os nomes não somente servem como ferramentas de referência, algo que inúmeras etiquetas poderiam fazê-lo, eles também servem para nos instruir sobre a natureza das coisas, sobre o modo como o mundo é.

Trecho retirado da Introdução à edição americana do diálogo platônico Crátilo sobre a relação entre a linguagem e a realidade

Os raciocínios analíticos são aqueles que, partindo de premissas necessárias, ou pelo menos indiscutivelmente verdadeiras, chegam, por meio de inferências válidas, a conclusões igualmente necessárias ou verdadeiras. Os raciocínios analíticos transferem a necessidade ou a verdade das premissas à conclusão: é impossível que a conclusão não seja verdadeira se a pessoa raciocina de maneira correta a partir de premissas verdadeiras. O tipo de raciocínio analítico era para Aristóteles o silogismo.

Trecho retirado do livro “Logique juridique, Nouvelle rhétorique, de Charles Perelman

    Prezados leitores, muito reclamamos da escola brasileira, de como os alunos não sabem escrever, de como estamos sempre na rabeira da classificação nos testes internacionais. Junto-me ao coro dos reclamões colocando-me como vítima da insuficiência acadêmica, eu que passei duas vezes e formei-me com certa distinção duas vezes pela maior e melhor universidade do país. Já estou com 44 anos e ainda tento por iniciativa própria suprir uma chaga na minha formação, qual seja: nunca aprendi nos bancos escolares brasileiros a pensar. Aprendi a ler, e certo, na Faculdade de Letras aprendi a ler nas entrelinhas dos textos o preconceito racial, sexual, a ideologia de classes por trás do discurso dos escritores, e na Faculdade de Direito tive contato com leis e meus ilustres professores fizeram-me ver como toda decisão de juiz, petição de advogado ou defesa devem estar fundamentados nos direitos fundamentais “insculpidos” na Constituição.

    Tudo suficiente para escrever bonito, mas nada que nos desse sustância intelectual para aprendermos a formular os tais dos silogismos tão fundamentais para apresentar um ponto de vista. Afinal, nunca nem ao menos tentaram explicar-nos a importância da definição dos conceitos, a importância do discernimento de qual sentido está sendo atribuído a uma determinada palavra para identificar as premissas do argumento, a importância de seguir os passos corretos para tirar conclusões a partir das premissas. Sócrates, um dos personagens do diálogo Crátilo, desafiava seus alunos justamente indagando-lhes a respeito do sentido das palavras que eles utilizavam para fazer suas declarações. O só sei que nada sei dele é nada mais nada menos do que esse exercício de identificação das premissas do argumento para verificar se elas se sustentam ou não, o que envolve sempre a busca do significado das palavras. Essa nossa incapacidade generalizada afeta até os relacionamentos pessoais, pois cria animosidades que poderiam ser evitadas se as pessoas soubessem por que estão discordando. Vou dar-lhes um exemplo disso relatando uma experiência recente por mim vivida em uma troca de e-mails com uma professora universitária.

    O motivo da discussão era o feminismo, ou melhor, a vertente do feminismo que declara que as mulheres sempre foram oprimidas pelos homens porque os homens sempre se valeram de sua posição predominante para reprimir e explorar as mulheres, negando-lhe direitos. Essa inferioridade jurídica, econômica e cultural deve ser superada pela luta das mulheres pelo fim do paradigma masculino na sociedade, o que levará a uma diversidade de gêneros fora da lógica binaria macho/fêmea ainda prevalente. Pois bem, depois de eu tentar apontar em vão exemplos na história de mulheres que pensaram, que escreveram, que foram reconhecidas mesmo em uma sociedade opressora, eu apontei à minha correspondente que seria inútil continuarmos a discutir porque eu não compartilhava as premissas dela e nem ela as minhas. Em minha opinião, há diferenças biológicas irredutíveis entre pessoas do sexo masculino e pessoas do sexo feminino, ao passo que ela considera que essas características dos dois gêneros estabelecidos na sociedade são totalmente construídas e devem ser desconstruídas em prol da multiplicidade de identidades.

    Pelo fato de eu atribuir um significado biológico aos termos homem e mulher, considero que em última análise o indivíduo do sexo masculino, enquanto tiver as características hormonais com as quais ele normalmente nasce, sempre verá a mulher como um objeto sexual, o mesmo valendo para os indivíduos do sexo feminino. Em suma, enquanto o homo sapiens continuar a se interessar pelo sexo oposto, haverá sempre um jogo de conquista mútua que necessariamente tem um conquistador e um conquistado. Considerar isso como fonte de opressão que deve ser superada pela educação para a igualdade para mim é ilusório, com base nas minhas premissas.

    Infelizmente, quando afirmei a ela que nem as minhas premissas nem as dela poderiam ser estabelecidas com certeza, afinal o ser humano nasce em sociedade, ou como disse Aristóteles, anthropos physei politikon zoon, o que torna impossível separar no homem o que é 100% biológico do que é cultural, a conversa desandou. Se nossas respectivas premissas são inverificáveis, as afirmações dela são tão válidas ou tão inválidas como as minhas, o que a levou a dizer que eu a estava acusando de mentirosa. Nesse momento identifiquei o mal que a aflige que é compartilhado por todos os brasileiros, como eu também, educados totalmente aqui (quero crer que haja ainda lugares em que os estudantes aprendam a pensar). Não sabemos distinguir o que são premissas, o que são as consequências necessárias das premissas e como fazer essa operação de derivar um de outro. O resultado é que batemos boca à toa, trocamos farpas, muitas vezes fazemos ataques pessoais. Eu desisti completamente da discussão, mas ela não desiste de tentar convencer-me, mesmo porque além de eu ser anti-feminista (isto é nos moldes em que ela concebe o feminismo) fui a favor da eleição do facínora aprendiz de ditador, Donald Trump, o homem que é sempre mostrado em jornais, revistas e internet rosnando. É preciso salvar-me do pecado e por isso ela manda-me artigos que claro pregam para os convertidos ao ódio ao presidente eleito dos Estados Unidos. Está aí um outro caso de divergência sobre conceitos.

  Quando digo pregar para convertidos é escrever para quem compartilha suas premissas básicas. Hoje minha correspondente enviou-me o “comovente” discurso de Meryl Streep contra o magnata. Para achar qualidade naquilo que ela fala é preciso concordar com o conceito de que discriminar, isto é, estabelecer diferenciações com base em certos critérios, é necessariamente ruim porque racista e xenófobo. O muro com o México é obviamente o pomo da discórdia e o motivo da indignação de pessoas de bem como Meryl Streep. No entanto, como eu considero que discriminar pode ser bom, a depender dos critérios que sejam estabelecidos, acho que os americanos tem tanto direito de construir um muro para evitar ou diminuir a entrada de drogas, armas e criminosos, como nós brasileiros temos o direito e até o dever, para o bem da paz interna, de controlarmos de maneira infinitamente mais estrita do que atualmente fazemos nossos 17.000 quilômetros de fronteiras com países que incluem produtores de cocaína como Bolívia, Peru e Colômbia. Se estabelecer critérios para que determinados tipos de pessoas e objetos que potencialmente podem causar danos internamente não entrem é algo terminantemente proibido porque racista e xenófobo, qual outra maneira que os bem-pensantes propõem para garantir a segurança da população do país? Soltar pombas da paz como fazemos frequentemente no Brasil? Educar para a cidadania e esperar que os ensinamentos sejam absorvidos total e imediatamente? Na prática é preciso agir logo, como a situação dos presídios brasileiros, controlados por gangues de traficantes de drogas nos mostra.

    Prezados leitores, dizem que estamos na era da pós-verdade, eu diria que a era da pós- verdade é a era dos guetos: nossos valores, convicções, princípios são tão diversos que as discussões tornam-se diálogos de surdos vociferados por interlocutores que não concordam nem sobre o que estão falando. O resultado vemos à nossa volta e vejo em mim mesma, claro: violência verbal, desprezo e ódio mútuos, cada um no seu canto, informando-se nos veículos que compartilham seus dogmas e ignorando o resto. Parafraseando Tim Maia: chamem o Sócrates!

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