Lutero era tão utópico quanto os pioneiros do Vale do Silício na nossa própria época. Na sua cabeça, a Reforma criaria uma nova e poderosa rede de cristãos piedosos, todos com capacidade de ler a Bíblia no vernáculo e estabelecer relações mais diretas com Deus do que as indiretas mediadas por uma hierarquia eclesiástica corrupta. A visão de São Pedro de uma “fraternidade de todos os crentes” seria finalmente colocada em prática. Mas a consequência verdadeira da Reforma não foi harmonia, mas polarização e conflito. Nem todo mundo inspirou-se pela mensagem de Lutero. Alguns tentaram ir mais além. Outros reagiram violentamente contra as reformas propostas. A Contrarreforma adotou as novas técnicas de propaganda dos protestantes e as utilizou contra os hereges.
Trecho do artigo Tecnologia x Trump do jornalista Niall Ferguson, publicado em 14 de outubro de 2017
Que os olhos de todos os trabalhadores devem mirar a integridade do trabalho é o único meio de tornar o trabalho bom em si mesmo e assim bom para a humanidade.
Trecho retirado do livro “The Mind of the Maker” da escritora e tradutora inglesa Dorothy Sayers (1893-1957)
Martinho Lutero retratado por Lucas Cranach (1472-1553)
Meus prezados dois leitores, vocês devem ter notado meu sumiço prolongado, fruto em parte de circunstâncias alheias à minha vontade, leia-se falta de tempo, mas também de uma decisão da minha parte de permanecer calada. Meu desânimo em escrever foi parcialmente mitigado pelas lições que tirei do livro que menciono acima. Segundo Dorothy Sayers, todo ser humano deveria ver seu trabalho, independentemente de ser manual ou intelectual, como um ato de criação em que o autor expressa sua ideia em um meio material e obtém assim algo concreto, seja um livro escrito, um carro produzido ou uma joia feita. O trabalhador precisa ver o fruto do seu trabalho completo, apto a ter um efeito sobre os outros indivíduos. Com a tênue esperança de que um artigo que desenvolve uma argumentação possa ser aproveitado de alguma forma por aquele que o lê, eu resolvi voltar à labuta, mas menos excitada a respeito do maravilhoso mundo novo proporcionado pela internet.
O jornalista Niall Ferguson em seu artigo traça um paralelo entre os ideais de Lutero (1483-1546), o pai da Reforma Protestante que acabou com a hegemonia da Igreja Católica no Ocidente, e os ideais daqueles que foram os primeiros a dedicar-se a desenvolver a internet, que acabou com a hegemonia da mídia tradicional, isto é, rádio, TV e jornais, sobre a veiculação de informações e opiniões sobre os fatos correntes. Tanto o monge agostiniano de Wittenberg quanto os engenheiros nerds da Califórnia vislumbravam a possibilidade de os seres humanos livrarem-se dos donos do poder e das explicações, que haviam se corrompido até a medula, e discutirem entre si livremente de acordo com sua consciência individual.
Lutero sonhava com um mundo em que a popularização da Bíblia pela tradução para as línguas nacionais e sua impressão em massa levaria os cristãos a cultivar a verdadeira fé, baseada no contato direto com a letra do Evangelho. Na prática, a história mostrou que nossa semelhança genética com os gorilas fez aflorar o instinto tribal nas guerras entre católicos e protestantes que duraram mais de século. As discussões filosóficas dos intelectuais que foram a vanguarda da contestação dos dogmas católicos logo descambaram para uma disputa com base em fidelidades de classe e de país. Os huguenotes na França eram normalmente burgueses bem-sucedidos, os países que permaneceram ortodoxamente católicos, como a Espanha e Portugal, eram frequentemente aqueles em que a iniciativa individual, fomentada pelo Protestantismo, era menos desenvolvida.
Pior, ou melhor, a depender da convicção religiosa de cada um, o Protestantismo, ao deixar por conta do indivíduo isolado gerenciar sua relação com Deus, permitiu um certo relaxamento. Longe dos olhos dos padres confessores, o cristão pôde estabelecer seu próprio código de conduta, de acordo com suas próprias convicções e ao cabo dos séculos, por que não dizer? isso levou a uma diminuição radical no número de pessoas adeptas dos preceitos religiosos. Daí à descrença total foi um passo. O Ocidente atual é decidida e irremediavelmente um mundo pós-cristão. Talvez Lutero, se visse as igrejas vazias na Europa, o secularismo da sociedade, que aboliu totalmente a religião para o seu balizamento moral, substituindo os padres por médicos, psicólogos e outros letrados, ficaria horrorizado com a caixa de Pandora que ele ajudou a abrir com sua crítica à venda de indulgências pela Igreja Católica.
Nesse sentido, se levarmos adiante o paralelismo traçado por Niall Ferguson entre a Reforma e a internet, não há como deixar de inquirir a respeito de quais serão as consequências de longo prazo de as pessoas não mais se informarem lendo artigos em respeitáveis jornais ou revistas, mas compartilhando vídeos, memes e twitters pelo smartphone. Atualmente, fica claro que o acesso de todos a uma plataforma digital onde podem trocar figurinhas não aprimorou o debate de ideias. Ao contrário, a possibilidade e a necessidade de trocas instantâneas fez com que perdêssemos a capacidade de medir as palavras. Trocamos insultos o tempo todo, fazemos ataques pessoais àqueles com os quais não concordamos, tratamos de assuntos da mais alta relevância na sociedade fazendo piada. A internet transformou-se em um ringue de MMA em cada grupo de internautas fecha-se em si mesmo, pronto para a luta contra os outros, imune a argumentos contrários, para deleitar-se com a própria certeza de ter as ideias corretas.
É neste ponto que cabe a pergunta: se não há possibilidade de os diferentes grupos debaterem suas ideias, como podemos exercer a democracia sem que ela se transforme em uma eterna sucessão de vencedores e perdedores do jogo eleitoral? Se não somos capazes de esclarecer nossos termos de referência, constatarmos nossas diferenças e buscar pontos em comum, como construiremos consensos a respeito da gestão dos destinos da sociedade? Será que a internet veio para tornar a prática da democracia um exercício ainda mais delicado do que já é em um país como o Brasil, considerando nossas desigualdades históricas?
Ao tempo em que Dorothy Sayers escreveu seu livro sobre qual deveria ser a natureza do trabalho humano, em 1941, ela mostrava-se preocupada com a crescente incapacidade das pessoas de distinguir o que era propaganda do que era uma declaração de fato. A solução para a autora era uma volta à educação tal como ministrada na Idade Média: o ensino da gramática, isto é, da arte de escrever e falar corretamente, da dialética, isto é, da arte de elaborar argumentos lógicos e colocá-los à prova pelo debate, e da retórica, isto é, da arte de escrever e falar elegante e persuasivamente. A instantaneidade e a acessibilidade da era digital leva-nos a falar qualquer coisa, o tempo todo, sem nos importarmos em fundamentar nada, no afã de darmos nossa opinião na plataforma acessível a todos que é a internet. O resultado é o diálogo dos surdos e o monólogo das tribos que escutam o eco da própria voz propagada nas fotos, nas montagens, nas charges.
Prezados leitores, em 1517 Lutero publicou suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg e em 1648 os países europeus assinaram a Paz de Westfália, que marcou o fim das disputas entre católicos e protestantes pela aceitação do princípio da soberania dos Estados Nacionais para escolherem sua própria religião. Oxalá que o faroeste que atualmente é a internet transforme-se em um local mais pacífico, mas não às custas da democracia.