O monge e os nerds

Lutero era tão utópico quanto os pioneiros do Vale do Silício na nossa própria época. Na sua cabeça, a Reforma criaria uma nova e poderosa rede de cristãos piedosos, todos com capacidade de ler a Bíblia no vernáculo e estabelecer relações mais diretas com Deus do que as indiretas mediadas por uma hierarquia eclesiástica corrupta. A visão de São Pedro de uma “fraternidade de todos os crentes” seria finalmente colocada em prática. Mas a consequência verdadeira da Reforma não foi harmonia, mas polarização e conflito. Nem todo mundo inspirou-se pela mensagem de Lutero. Alguns tentaram ir mais além. Outros reagiram violentamente contra as reformas propostas. A Contrarreforma adotou as novas técnicas de propaganda dos protestantes e as utilizou contra os hereges.

Trecho do artigo Tecnologia x Trump do jornalista Niall Ferguson, publicado em 14 de outubro de 2017

Que os olhos de todos os trabalhadores devem mirar a integridade do trabalho é o único meio de tornar o trabalho bom em si mesmo e assim bom para a humanidade.

Trecho retirado do livro “The Mind of the Maker” da escritora e tradutora inglesa Dorothy Sayers (1893-1957)

Martinho Lutero retratado por Lucas Cranach (1472-1553)

     Meus prezados dois leitores, vocês devem ter notado meu sumiço prolongado, fruto em parte de circunstâncias alheias à minha vontade, leia-se falta de tempo, mas também de uma decisão da minha parte de permanecer calada. Meu desânimo em escrever foi parcialmente mitigado pelas lições que tirei do livro que menciono acima. Segundo Dorothy Sayers, todo ser humano deveria ver seu trabalho, independentemente de ser manual ou intelectual, como um ato de criação em que o autor expressa sua ideia em um meio material e obtém assim algo concreto, seja um livro escrito, um carro produzido ou uma joia feita. O trabalhador precisa ver o fruto do seu trabalho completo, apto a ter um efeito sobre os outros indivíduos. Com a tênue esperança de que um artigo que desenvolve uma argumentação possa ser aproveitado de alguma forma por aquele que o lê, eu resolvi voltar à labuta, mas menos excitada a respeito do maravilhoso mundo novo proporcionado pela internet.

     O jornalista Niall Ferguson em seu artigo traça um paralelo entre os ideais de Lutero (1483-1546), o pai da Reforma Protestante que acabou com a hegemonia da Igreja Católica no Ocidente, e os ideais daqueles que foram os primeiros a dedicar-se a desenvolver a internet, que acabou com a hegemonia da mídia tradicional, isto é, rádio, TV e jornais, sobre a veiculação de informações e opiniões sobre os fatos correntes. Tanto o monge agostiniano de Wittenberg quanto os engenheiros nerds da Califórnia vislumbravam a possibilidade de os seres humanos livrarem-se dos donos do poder e das explicações, que haviam se corrompido até a medula, e discutirem entre si livremente de acordo com sua consciência individual.

     Lutero sonhava com um mundo em que a popularização da Bíblia pela tradução para as línguas nacionais e sua impressão em massa levaria os cristãos a cultivar a verdadeira fé, baseada no contato direto com a letra do Evangelho. Na prática, a história mostrou que nossa semelhança genética com os gorilas fez aflorar o instinto tribal nas guerras entre católicos e protestantes que duraram mais de século. As discussões filosóficas dos intelectuais que foram a vanguarda da contestação dos dogmas católicos logo descambaram para uma disputa com base em fidelidades de classe e de país. Os huguenotes na França eram normalmente burgueses bem-sucedidos, os países que permaneceram ortodoxamente católicos, como a Espanha e Portugal, eram frequentemente aqueles em que a iniciativa individual, fomentada pelo Protestantismo, era menos desenvolvida.

     Pior, ou melhor, a depender da convicção religiosa de cada um, o Protestantismo, ao deixar por conta do indivíduo isolado gerenciar sua relação com Deus, permitiu um certo relaxamento. Longe dos olhos dos padres confessores,  o cristão pôde estabelecer seu próprio código de conduta,  de acordo com suas próprias convicções  e ao cabo dos séculos,  por que não dizer? isso levou a uma diminuição radical no número de pessoas adeptas dos preceitos religiosos. Daí à descrença total foi um passo. O Ocidente atual é decidida e irremediavelmente um mundo pós-cristão. Talvez Lutero, se visse as igrejas vazias na Europa, o secularismo da sociedade, que aboliu totalmente a religião para o seu balizamento moral, substituindo os padres por médicos, psicólogos e outros letrados, ficaria horrorizado com a caixa de Pandora que ele ajudou a abrir com sua crítica à venda de indulgências pela Igreja Católica.

     Nesse sentido, se levarmos adiante o paralelismo traçado por Niall Ferguson entre a Reforma e a internet, não há como deixar de inquirir a respeito de quais serão as consequências de longo prazo de as pessoas não mais se informarem lendo artigos em respeitáveis jornais ou revistas, mas compartilhando vídeos, memes e twitters pelo smartphone. Atualmente, fica claro que o acesso de todos a uma plataforma digital onde podem trocar figurinhas não aprimorou o debate de ideias. Ao contrário, a possibilidade e a necessidade de trocas instantâneas fez com que perdêssemos a capacidade de medir as palavras. Trocamos insultos o tempo todo,  fazemos ataques pessoais àqueles com os quais não concordamos, tratamos de assuntos da mais alta relevância na sociedade fazendo piada. A internet transformou-se em um ringue de MMA em cada grupo de internautas fecha-se em si mesmo, pronto para a luta contra os outros, imune a argumentos contrários, para deleitar-se com a própria certeza de ter as ideias corretas.

     É neste ponto que cabe a pergunta: se não há possibilidade de os diferentes grupos debaterem suas ideias, como podemos  exercer a democracia sem que ela se transforme em uma eterna sucessão de vencedores e perdedores do jogo eleitoral? Se não somos capazes de esclarecer nossos termos de referência, constatarmos nossas diferenças e buscar pontos em comum, como construiremos consensos a respeito da gestão dos destinos da sociedade? Será que a internet veio para tornar a prática da democracia um exercício ainda mais delicado do que já é em um país como o Brasil, considerando nossas desigualdades históricas?

     Ao tempo em que Dorothy Sayers escreveu seu livro sobre qual deveria ser a natureza do trabalho humano, em 1941, ela mostrava-se preocupada com a crescente incapacidade das pessoas de distinguir o que era propaganda do que era uma declaração de fato. A solução para a autora era uma volta à educação tal como ministrada na Idade Média: o ensino da gramática, isto é, da arte de escrever e falar corretamente, da dialética, isto é, da arte de elaborar argumentos lógicos e colocá-los à prova pelo debate, e da retórica, isto é, da arte de escrever e falar elegante e persuasivamente. A instantaneidade e a acessibilidade da era digital leva-nos a falar qualquer coisa, o tempo todo, sem nos importarmos em fundamentar nada, no afã de darmos nossa opinião na plataforma acessível a todos que é a internet. O resultado é o diálogo dos surdos e o monólogo das tribos que escutam o eco da própria voz propagada nas fotos, nas montagens, nas charges.

     Prezados leitores, em 1517 Lutero publicou suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg e em 1648 os países europeus assinaram  a Paz de Westfália, que marcou o fim das disputas entre católicos e protestantes pela aceitação do princípio da soberania dos Estados Nacionais para escolherem sua própria religião. Oxalá que o faroeste que atualmente é a internet transforme-se em um local mais pacífico, mas não às custas da democracia.

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As Valquírias

A coragem física dela parecia não conhecer limites. Em 1942, ela sofreu um acidente no protótipo de avião a jato que ela estava testando; mas a despeito de ter fraturado a coluna em vários lugares, e ter tido seu nariz arrancado do rosto, ela voltou a voar depois de um ano. Foi a primeira mulher alemã a tornar-se Capitã da Aeronáutica, a primeira a receber a Cruz de Ferro, primeira classe. ‘Ela era a única e insubstituível Hanna Reitsch’, afirmou um dos seus colegas homens, ‘um símbolo da mulher alemã e ídolo da aviação alemã’.

Trecho de uma crítica do livro: As Mulheres que Voaram para Hitler: A Verdadeira História das Valquírias de Hitler, escrito por Claire Mulley

As mulheres no geral estão mais “abertas aos sentimentos e à estética em vez de ideias,” “têm um interesse maior nas pessoas do que nas coisas, em relação aos homens,” de maneira que elas acabam trabalhando atendendo o público e não elaborando códigos de computador, o autor do memorando argumenta. As mulheres também demonstram “uma extroversão que se expressa como inclinação para a sociabilidade ao invés da assertividade,” portanto, são mais “agradáveis,” e consequentemente, as “mulheres normalmente têm mais dificuldade para negociar salários, pedir aumento, expressar sua opinião de maneira pública e enfática e para liderar,” de acordo com o memorando.

Trecho de um artigo intitulado “A diferença de gêneros é natural, afirma um funcionário da Google em um memorando de 10 páginas que viralizou internamente”

    Prezados leitores, devo confessar-lhes que nunca havia ouvido falar de Hanna Reistch (1912-1979), cujas façanhas são parcialmente descritas no parágrafo introdutório deste meu humilde artigo. Ela até esteve no Rio de Janeiro, voando em um planador em 1934. Também não sabia quem era Melitta Schiller (1903-1945), engenheira aeronáutica e pilota de testes, cujas pesquisas permitiram o aprimoramento da tecnologia empregada para voos noturnos. Judia por parte de pai nascida na Polônia, Melitta participou da conspiração para assassinar Hitler em 1944 e foi a segunda mulher a ser agraciada com a Cruz de Ferro, primeira classe, condecoração militar instituída no Reino da Prússia em 1813. Mulheres excepcionais, que se sobressaíram em áreas dominadas por homens, e o detalhe mais importante é que foram os homens que as reconheceram num momento da história da Alemanha em que os nazistas enfatizavam o papel das mulheres como procriadoras sob o famoso slogan Kinder, Kuche, Kirche (filhos, cozinha, igreja), condecorando com a Cruz de Honra da Mulher Alemã as mulheres que tinham mais de quatro filhos.

    Portanto, se Hanna e Melitta foram portadoras da Cruz de Ferro em seu peito, o mérito é indiscutível, elas devem ser aplaudidas de pé, independentemente de terem servido o regime nazista, porque na minha modesta opinião é uma leviandade julgarmos moralmente o comportamento e as atitudes que as pessoas tiveram no passado, submetidas a determinadas circunstâncias que nós no presente não temos como reproduzir para verificar se era possível ou não agir de outra forma. Por outro lado, nada mais natural e necessário do que fazer julgamentos morais no presente, porque precisamos fazer opções ao longo da vida que envolvem a escolha de certos valores que determinam as decisões sobre com quem casar, onde e em que trabalhar, em quem votar. Infelizmente, no mundo ocidental desenvolvido, e aqui refiro-me aos países da Europa e da América do Norte, em que supostamente o direito à livre manifestação das opiniões está consolidado, há certos valores que simplesmente não podem ser professados, pois são considerados heréticos. Violam a religião dominante que é aquela que professa a igualdade de gêneros, isto é, a ideia de que homens e mulheres têm direito às mesmas oportunidades de desenvolvimento profissional e à mesma remuneração. Essa ideia vai além e postula que não há muitas mulheres engenheiras, matemáticas, aviadoras simplesmente porque sofrem discriminação dos homens, que não querem largar sua posição de privilégio.

    Assim, em prol da realização prática da igualdade de gêneros é preciso estabelecer cotas para as mulheres, de forma que os homens sejam obrigados a “engolir” as mulheres nos laboratórios de pesquisa, nas empresas de tecnologia, no exército, enfim em qualquer área em que há a predominância do sexo masculino, pois tal predominância é artificial e fruto simplesmente do preconceito e machismo. Quem quer que postule que certas diferenças entre homens e mulheres são inatas é considerado um troglodita, um ser desprezível, indigno de habitar a civilização avançada do Ocidente que caminha a passos céleres rumo ao mundo ideal em que machos e fêmeas realizarão as mesmas atividades e serão recompensados da mesma forma por isso.

    A mais recente manifestação de intolerância ocorreu nos Estados Unidos, onde um engenheiro da Google, James Damore, doutor em Harvard, escreveu um memorando intitulado “A Câmara Acústica Ideológica da Google” em que expressava a opinião de que a discriminação positiva para conseguir a igualdade de representação de homens e mulheres no trabalho é injusta, polêmica e ruim para os negócios. Quando se descobriu a identidade do autor, a Vice-Presidente de Diversidade, Integridade e Governança, Danielle Brown, exigiu do CEO da Google, Sundar Pichai, que demitisse James, o que o indiano fez sob a justificativa de que o agora ex-funcionário “promoveu perigosos estereótipos sobre gênero no ambiente de trabalho”. Para quem não sabe, de acordo com a religião da igualdade de gênero, um discurso como o de Damore, que usa expressões como “no geral”, “normalmente”, e portanto, refere-se à média das mulheres, e não a cada uma das mulheres individualmente existentes no planeta Terra, é um pecado porque veicula uma ideia pré-concebida do sexo feminino. Não importa que a realidade corrobore as assertivas do engenheiro, o que importa é que é preciso promover a igualdade simplesmente suprimindo os fatos em campo do universo mental das pessoas. Para os adeptos dessa religião, essa sanitização mental permitirá que um dia haja tantas mulheres aficionadas por programação de computadores e matemática, quanto há homens.

    Prezados leitores, fiz questão de associar a religião da igualdade de gêneros aos países desenvolvidos porque fica mais fácil demonstrar o disparate das suas premissas em países em que as pessoas têm acesso à educação de maneira muito mais fácil. Afinal, se Lawrence Summers, o ex-reitor de Harvard, pôde constatar, e foi crucificado por isso com a perda do cargo, que não há muitas mulheres cientistas ou engenheiras no país mais rico do mundo, isso significa, como ele próprio concluiu, que às mulheres falta aptidão para essas áreas, não sendo um problema de discriminação. Essa religião já chegou ao Brasil e já tem muitos adeptos, mas não seria justo tirar as mesmas conclusões que Summers tirou, com base em sua experiência acadêmica estadunidense, em um país como o nosso, em que somente 8% dos brasileiros têm diploma de ensino superior, de acordo com o IBGE. O Brasil é um país em que o ser humano, masculino e feminino, vale pouco, tão pouco que ele é o primeiro a ser sacrificado quando a coisa aperta, como demonstra a reforma trabalhista que acaba de ser aprovada. Não há como argumentar que nós mulheres brasileiras temos a oportunidade de provar nosso valor nas áreas dominadas pelos homens e falhamos.

    Em suma, para mim é bom saber que as valquírias de Hitler existiram, foram mulheres de carne e osso, e detalhe, não eram feministas, talvez porque elas mesmas soubessem que fugiam do padrão.  Por outro lado, sei perfeitamente que eu correspondo à média das mulheres, e por isso escolhi uma profissão ligada à língua e não aos números. Uma pena que nos dias de hoje falar de tendências gerais seja visto como instrumento de opressão feminina.

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Sobre crocodilos e o que eles comem

A meu ver, Ivan Matviéitch, como um verdadeiro filho de sua pátria, deve ainda alegrar-se e orgulhar-se com o fato de ter duplicado, ou talvez triplicado, com a sua pessoa, o valor de um crocodilo estrangeiro. Isto é necessário para atrair os capitais.

Isto é necessário para atrair os capitais.Trecho do conto “O Crocodilo” de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) sobre um funcionário público que é engolido por um crocodilo que estava sendo exibido em São Petersburgo

Dos 535 membros da Çâmara dos Representantes e do Senado, 530 votaram a favor de um projeto de lei que viola a separação dos poderes e impede o Presidente Trump de suspender as sanções contra a Rússia. Como a votação foi tão acachapante que impede o veto, a Casa Branca anunciou que Trump vai sancionar a lei, assim rendendo-se e abandonando seu projeto de restabelecer relações normais com a Rússia. A Casa Branca acredita que o projeto de lei está à prova de vetos, tudo o que Trump conseguiria vetando-o seria provar as acusações de que é um agente russo e que está usando seu cargo para proteger a Rússia, o que facilmente poderia levar a um processo de impeachment.

Trecho do artigo “As Escolhas de Trump” de Paul Craig Roberts, ex-subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos de 1981 a 1982

    Prezados leitores, se quiserem rir um pouco leiam o conto O Crocodilo. Nele Dostoiévski descreve as reações dos moradores da então capital da Rússia, São Petersburgo, à chegada de um crocodilo trazido por um alemão que expõe a fera em uma galeria cobrando ingresso e faturando rios de dinheiro. A história é totalmente absurda, claro, pois o funcionário Ivan Matviéitch que vai fazer umas cosquinhas no crocodilo e acaba sendo engolido não morre e continua a falar com seu amigo de repartição das profundezas de onde está.  Mas como toda boa ficção ela lança luz sobre a realidade em que vivemos e sobre a natureza humana. No caso específico desse conto, o autor mostra o deslumbramento dos russos com os avanços europeus nas ciências, na tecnologia e nos costumes, e o complexo de inferioridade que os acomete por não estarem no mesmo nível. Tamanho é o complexo que ninguém vê nada de ruim no fato de o pobre Ivan permanecer na barriga do crocodilo e até achar vantagem nisso, como sinal de o progresso estar chegando nas estepes. Em muitas das obras de Dostoiévski há o embate entre os eslavistas, que queriam manter-se fiéis às tradições da Rússia, e os integracionistas, que queriam que o país se tornasse mais europeu.

    Essa discussão sobre que rumo tomar enquanto nação pode parecer ultrapassada, mas considerando que há exatos 100 anos, em 1917, os russos decidiram importar as ideias de Karl Marx e colocá-las em prática, o que repercutiu no mundo todo ao longo do século XX e ainda repercute no século XXI, falar sobre modismos crocodilianos parece mais pertinente do que nunca. Não há dúvidas de que estamos em plena Segunda Guerra Fria entre as potências nucleares. A primeira acabou em 1989 quando o Presidente Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev se entenderam sobre o desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sobre a reunificação da Alemanha e sobre a emancipação dos países do Leste Europeu do jugo comunista. O toma lá dá cá, que valeu com Reagan e com seu sucessor George H. W. Bush, que foi presidente dos Estados Unidos de 1989 a 1993, era de que não haveria expansão da OTAN no Leste Europeu e de que os Estados Unidos respeitariam a zona de influência da Rússia.

    Desde o governo de Bill Clinton, passando por George Bush filho e por Barack Obama, não houve cumprimento do pacto por parte dos americanos. A Sérvia, histórica amiga da Rússia, foi bombardeada pela OTAN para que fosse criado o Kosovo na década de 1990. A OTAN expandiu-se para incluir países como Albânia, República Tcheca, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Croácia, Montenegro, Eslovênia, Polônia e Hungria. E mais, foram instaladas bases de mísseis na Polônia, na Romênia, na República Tcheca, e em 2016 tropas foram colocadas na Estônia, Letônia e Lituânia, com a explicação de que tal mobilização de material humano era uma resposta defensiva à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Enfim, o crocodilo chegou na tina, como havia chegado em 1865, data em que o conto de Dostoiévski foi publicado. Qual será a reação que os russos terão neste início do século XXI? Acharão o crocodilo um avanço da civilização ou decidirão rasgar-lhe a barriga para salvar o pobre russo lá dentro?

    Digo que o crocodilo chegou porque a essa altura parece claro que os Estados Unidos definitivamente querem ver a fera solta, ao impor novas sanções econômicas aprovadas por unanimidade no Congresso americano em 25 de julho. As boas intenções que Trump havia manifestado durante a campanha presidencial de 2016 de celebrar a paz com a Rússia parecem ter ficado definitivamente para trás. O que aconteceu com The Donald? Agiu como vendedor que promete algo que não pode entregar? Subestimou as resistências do complexo industrial-militar, que sempre precisa de um inimigo para justificar seus gastos estratosféricos? Escolheu mal seus assessores, que não compartilham sua agenda de colaborar com a Rússia para conseguir resolver a guerra na Síria? O fato é que o Aprendiz até agora não se mostrou à altura dos desafios que lhe foram postos desde o dia em que colocou os pés na Casa Branca. A pecha de ter sido ajudado pelos russos a ganhar a eleição o assombra e o impede de agir livremente, obrigando-o a colocar-se na defesa em relação às relações dos Estados Unidos com a Rússia e a dançar conforme a música que toca a bandados partidários da Segunda Guerra Fria . Na era dos pós-fatos, a história de que hackers russos invadiram os computadores do Partido Democrata e divulgaram fatos desabonadores sobre Hillary Clinton para facilitar a eleição do magnata do setor imobiliário colou, independentemente de qualquer evidência em contrário.

    Essas evidências em contrário chegaram dia 24 de julho, quando um grupo de ex-funcionários dos órgãos de inteligência dos Estados Unidos, denominado Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS), divulgou sua conclusão sobre o assunto depois de analisar os metadados do Guccifer 2.0, o ente cibernético que invadiu o servidor do Comitê Nacional dos Democratas. Esse grupo já publicou 50 memorandos, incluindo uma advertência em 2003 de que as informações confidenciais de que o Iraque tinha armas de destruição em massa eram fraudulentas. Segundo o VIPS não pode ter havido hackeamento, mas um vazamento realizado por alguém de dentro do Comitê, que simplesmente copiou na costa Leste dos Estados Unidos, as informações desairosas em um pen drive. Os especialistas cibernéticos chegaram a essa conclusão com base na velocidade com que as informações foram transmitidas, alta demais para que pudesse ter havido o acesso remoto de um hacker. Esse relatório de especialistas em cibernética (para quem tiver interesse, https://consortiumnews.com/2017/07/24/intel-vets-challenge-russia-hack-evidence/) enviado ao Presidente Donald Trump, não terá nenhuma repercussão, porque a história de que Trump é criatura de Putin já está consolidada.

    Prezados leitores, de acordo com o Boletim dos Cientistas Atômicos, a crescente tensão entre os dois países que têm a capacidade de destruir a vida na Terra com suas armas nucleares faz com que atualmente estejamos a dois minutos e meio da meia-noite, a hora do juízo final para nós, se houver a eclosão da Terceira Guerra Mundial, o pior índice desde a década de 80. De Donald Trump aparentemente não se pode esperar mais nada em termos de mudança dos rumos da política externa dos Estados Unidos, porque ele foi totalmente neutralizado pelos habitantes do pântano de Washington que ele prometera drenar. Quem sabe os europeus reajam a tais sanções econômicas que lhes prejudicam enormemente? Em dois de agosto, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou que a União Europeia saberá defender seus interesses econômicos vis-à-vis os Estados Unidos. Quem sabe os europeus acordem e percebam que eles serão literalmente pegos no meio do fogo cruzado? Quem sabe eles enfrentem os Estados Unidos nessa questão? Caso os europeus permaneçam inertes só resta esperar que Putin de eslavista que é transforme-se num dócil integracionista e aceite cair na boca do crocodilo e submeter-se ao poder do Império Americano. Pois se ele não quiser cair e não se sinta confortável dentro da fera, o risco é que todos os habitantes desse lindo planeta azul acabem sendo levados de roldão. Catastrofismo de minha parte? Sim, mas se o pior acontecer não digam que uma humilde escriba não avisou.

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E o nosso Tattoo?

Assim, em que pese serem facilmente enganados, eles [os jovens] também são corajosos por causa do seu otimismo e confiança, e portanto não têm medo. Não tendo sido desgastados pela vida ou prejudicados por limitações, ele são magnânimos, que é “achar-se digno de grandes coisas, o que é característico das pessoas que nutrem grandes esperanças.” […] Presa fácil da exploração, em outras palavras por um fantasista como Corbyn que, com sua política de distribuir benesses e prometer um mundo ideal, caiu nas graças daqueles com potencial e muitas qualidades, mas nenhuma experiência (usus) ou memória (memoria), as duas qualidades que o poeta romano Lucius Afranius disse que eram os ‘pais da sabedoria’ (sapientia).

Trecho do artigo “O voto dos jovens em Corbyn” do classicista britânico Peter Jones

    Prezados leitores, aqueles que acompanham os acontecimentos internacionais sabem que no Reino Unido houve eleições em 8 de junho, convocadas pela primeira-ministra Theresa May. O objetivo dela era conquistar uma vitória esmagadora que lhe desse um mandato para negociar as condições da saída do país da União Europeia em uma posição de força. Parecia fácil a princípio, considerando que o líder do Partido Trabalhista era considerado como um aloprado, defensor do IRA, do Hesbollah e do Hamas, grupos considerados terroristas pela soi-disant comunidade internacional. Pois bem, a líder do partido Conservador deu com os burros n’água, pois levou os tories a perder 13 assentos no parlamento em relação ao que tinham antes, o que os obrigou a ter que compor-se com o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte para formar um governo. Enquanto isso, o até então impensável Jeremy Corbyn conquistou 30 assentos no parlamento em relação ao que os trabalhistas tinham antes, o melhor desempenho do partido desde a vitória acachapante de Tony Blair em 2001.

    Como explicar a vitória de Jeremy Corbyn? Seu principal feito foi ter tocado o coração dos jovens, prometendo universidade de graça para eles. A identificação com o líder trabalhista aumentou o comparecimento às urnas dos eleitores na faixa etária de 18 a 24 anos, em que os trabalhistas deram uma lavada de 35 pontos sobre os conservadores. Além disso, a realidade econômica do país, não muito favorável aos jovens, faz com que a conversa socialista de Corbyn seja música nos ouvidos daqueles para os quais está cada vez mais difícil entusiasmar-se com o capitalismo quando não é possível ser capitalista. De fato, nos últimos 20 anos a idade média daqueles que adquirem casa própria no Reino Unido aumentou 10%, de forma que se 1994-1995 era aos 30 anos que isso ocorria, em 2014-2015 passou a ser aos 33 anos, sendo que o número de pessoas com casa própria está no nível mais baixo desde 1986.

    Esse papel surpreendente e crucial dos jovens britânicos na transformação de um político que parecia fora de compasso em um candidato factível ao posto de primeiro-ministro dá o que pensar se considerarmos o Brasil e as eleições de 2018. Atualmente a taxa de desemprego daqueles entre 18 e 24 anos está em 31,8% em nosso país, ante a média geral de 13,7% no primeiro trimestre de 2017. Essa geração já tem um nome aqui, é chamada nem-nem, formada por um contingente de pessoas que nem estuda nem trabalha. Mas vota, e pode decidir a eleição presidencial se ela for apertada como foi a de 2014, o que deixou um rastro de rancor e desejo de vingança cujos desdobramentos estamos testemunhando desde o impeachment da “pedaleira” Dilma Rousseff. Em que pese constituírem só 16% dos eleitores brasileiros, os indivíduos de 17 a 24 anos de idade, que estão sendo os mais atingidos pela recessão no país, podem, se atuarem de maneira consistente, serem os fiéis da balança eleitoral de 2018.

    Como descreveu Lucius Afranius no século I a.C., os jovens não têm experiência e nem memória e por isso não são sábios, o que os leva a serem mais propensos a encantarem-se com alguém que lhes prometa uma Ilha da Fantasia, à la Jeremy Corbyn, onde benesses são distribuídas a quem não tem. Nos Estados Unidos, nas eleições de 2016, Bernie Sanders desempenhou esse papel, conquistando a maioria dos votos dos jovens americanos (mais de dois milhões deles nas primárias) mas a máquina política capitaneada pelos Clinton passou sobre ele como um trator e destruiu suas chances de ser o candidato democrata. Quem poderá ser o Tatoo da política brasileira, o personagem que dará as boas-vindas aos hóspedes da Ilha da Fantasia? E que tipo de Ilha da fantasia ele irá prometer aos jovens brasileiros?

    Essas perguntas são pertinentes considerando as palavras de Lula, que já se lançou candidato, depreciando Jair Bolsonaro, o maior expoente da bancada da bala no Congresso brasileiro. Talvez Lula considere Bolsonaro risível considerando sua própria história de vida, sua formação política na sombra da ditatura militar, sua participação na campanha das Diretas Já em 1984. Mas quem tem até 24 anos de idade nasceu em um Brasil em que as eleições acontecem normalmente, não sendo mais novidade. Apontar o fato de que Jair Bolsonaro é claramente um defensor dos militares que estiveram no poder de 1964 a 1985 não é tão relevante para esse grupo de pessoas quanto é para aqueles que têm alguma memória do período, seja porque já eram conscientes quando João Baptista Figueiredo era Presidente da República, seja porque tiveram pais que viveram nos anos 70. Se Lula puder ser candidato em 2018 e continuar batendo na tecla de que uma de suas credenciais para ser líder do povo é ter combatido a ditadura, ele corre o risco de fazer papel de idiota para a geração dos nem-nem, cujos problemas mais prementes são a falta de oportunidade de estudo e a falta de emprego, não a falta de eleições.

    Será que Bolsonaro apelará a essa faixa etária, prometendo-lhes esquemas de facilitação do primeiro emprego, empréstimos estudantis ou cotas nas universidades públicas? Ou ele acabará focando nos eleitores entre 25 e 44 anos de idade que correspondem a 42% do eleitorado e como têm mais a perder dos que os nem-nem querem mais é segurança? Menciono Jair Bolsonaro porque ele vem viajando pelo Brasil e fazendo comícios há algum tempo, e até o momento parecer ser o fato novo das eleições do ano que vem. João Dória, o prefeito de São Paulo, tem sido inflado pela mídia como o político da eficiência administrativa, mas será que ele tem carisma suficiente para criar uma Ilha da Fantasia aos olhos dos eleitores? Até outubro de 2018 poderá surgir um Tattoo na política brasileira a partir do local mais inusitado, a depender do que ocorra na economia. O que parece certo é que os políticos que até 2014 vendiam-se como legítimos democratas que ou combateram a ditadura, como Lula, FHC, Serra, Cristovam Buarque – para mencionar alguns candidatos a presidente nos últimos anos – ou estiveram relacionados de alguma forma àqueles que combateram a ditadura, como Geraldo Alckmin, herdeiro políticos de Mário Covas, ou Aécio Neves, herdeiro político de Tancredo Neves, em 2018 terão que remodelar seus discursos se quiserem ter uma chance. Atacar Bolsonaro como fez Buarque ao chamá-lo de excrescência da democracia não fará muito sentido para brasileiros cuja experiência da democracia não foi como uma conquista longamente almejada, mas como uma condição dada em que a corrupção, a irresponsabilidade fiscal, o baixo crescimento econômico e o desemprego são atualmente as características mais marcantes.

    Prezados leitores, os detratores de Jeremy Corbyn no Reino Unido reclamam do fato de que a nova geração que se encantou com as platitudes socialistas dele não terem noção do que foi o socialismo real nos países em que foi praticado. Talvez em 2018, os jornalistas brasileiros versados na história do país estarão denunciando aqueles que elegeram para presidente um candidato que relativiza a importância da democracia, que não a coloca como bem absoluto, como tem sido feito desde que voltamos a eleger nossos representantes. Veremos se um Tattoo surgirá no nosso cenário político.

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Pós-verdades

Dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-Presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-Presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-Presidente

Trecho da sentença do juiz federal Sérgio Fernando Moro, prolatada em 12 de julho de 2017 que condenou Lula

 Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente

Decisão prolatada em 18 de julho por Sérgio Moro rejeitando os embargos de declaração propostos pelos advogados de defesa de Lula contra a sentença que o condenou por corrupção passiva

No entanto, os especialistas estão começando a nos dizer que algo mudou nos últimos anos. Não é que os políticos pararam de mentir ou de fingir que os fatos são outros; o que ocorre é que eles começaram a falar como se não houvesse distinção entre fatos e invenções. Vivemos em um mundo da pós-verdade este é o mantra.

Trecho do artigo “Pós-verdade, pura bobagem” do filósofo inglês Roger Scruton, de 73 anos

    Prezados leitores, não posso deixar de retomar o assunto de que tratei na semana passada, e perdoem-me se insisto nisso, especialmente considerando que um grupo de juristas elaborará comentários sobre a sentença de Moro. No entanto, os efeitos dessa sentença terão repercussões ao longo dos próximos meses e certamente nas eleições presidenciais do ano que vem. Há os que comemoraram a sentença como um marco na luta contra a corrupção no Brasil, outros que a denunciaram como perseguição política contra o mais legítimo líder da esquerda brasileira. Quem tem razão aqui? Ou será que o embate Lula x Moro é um exemplo perfeito do mundo da pós-verdade, em que, como disse Nietzsche “não há fatos, mas interpretações”. Será que estamos condenados a nos dividir em guetos, os golpistas, os petistas, os que não estão nem aí, sem possibilidade de diálogo? Será que o debate político no Brasil ficará restrito a uma questão de fé? Daqueles que acreditam no Lula, que se negam a ver seus defeitos, e daqueles que consideram o Lula a encarnação de tudo o que há de ruim na política brasileira?

    A minha própria fé pessoal é que é possível e desejável chegarmos a um meio-termo. Possível se tentarmos estabelecer os fatos sobre o que aconteceu e sobre o que está acontecendo. Desejável porque, a partir da constatação dos fatos podemos projetar nossos interesses e aspirações em relação ao futuro por meio da ação política. Assim falou Aristóteles em Arte da Retórica no quarto século antes de Cristo. Não é minha intenção aqui destrinchar a sentença de Moro, o que estaria além da minha humilde capacidade jurídica. Apenas quero chamar a atenção para aquilo que atualmente é um dos principais focos da comoção e da detração dos argumentos do juiz curitibano pelos defensores de Lula.

    Não há como não concordar com Ciro Gomes, ex-Ministro da Fazenda e ex-governador do Ceará, de que não há prova cabal contra Lula. Prova cabal, para configurar o crime de corrupção passiva de maneira inquestionável, seria o recebimento de uma vantagem indevida e a realização de um ato próprio do funcionário visado pela oferta da vantagem indevida. No caso específico de Lula, não há nem um nem outro de maneira inequívoca. Não foi achada uma conta em algum paraíso fiscal em nome de Lula, cujo dinheiro tenha origem inexplicada, que possa ser atribuída a pagamento de propina. Quanto a ato próprio do cargo, se houve fraude nas licitações de contratos da Petrobrás, Lula não era diretamente responsável por tais processos.

    Daí a defesa de Lula ter apontado como um ponto fraco da decisão de 12 de julho o fato de que o algoz de Lula ter admitido que não há como afirmar que os valores obtidos pela OAS nos contratos com a Petrobrás terem sido pagos a Lula, ao menos em parte. Se houvesse tal demonstração, haveria uma clara configuração de uma vantagem recebida em troca de um contrato com uma empresa de economia mista, cujo controle acionário pertence à União, isto é, ao governo federal, à época presidido por Lula, que poderia ter exercido uma influência indevida sobre aqueles que eram diretamente responsáveis pelos processos licitatórios da estatal. Em que pese o crime de corrupção passiva ser de mera atividade, para usar o jargão jurídico, o que significa que o ato de ofício do agente público corrompido não precisa ter sido realmente praticado, é necessário “que se possa deduzir com clareza qual a classe de atos em troca dos quais se solicita ou se recebe a vantagem indevida,” conforme ensina Luiz Regis Prado, em seu Curso de Direito Penal Brasileiro.

    Por outro lado, é inegável que Moro soube fazer uso de argumentação jurídica para tornar sua condenação sustentável ante essa falta de prova cabal de que o dinheiro dos contratos da Petrobrás foram parar no colo de Lula. O fundamento ele buscou nas delações premiadas que narram a história do esquema de pagamentos realizados ao longo dos anos para políticos do PT, na reforma de um apartamento que pode ser ou ter sido de Lula bancada pela OAS e principalmente em uma quebra dos paradigmas para a configuração do crime de corrupção passiva, quebra esta que ele ajudou a introduzir em nossas terras tropicais tomando emprestado o direito americano. Se antes era preciso um ato individualizado em troca da vantagem indevida, que já houvera sido praticado ou que com toda a probabilidade seria praticado, hoje os tribunais brasileiros, aceitando os argumentos desenvolvidos por Moro em suas condenações ao longo da Operação Lava Jato, deve-se reconhecer, estão aceitando a tese de que é suficiente para caracterizar a corrupção passiva “uma pluralidade de atos de difícil individualização” conforme afirmou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gurgel de Faria em uma decisão proferida em 17 de março.

    Em suma, Moro condenou Lula por ele ter mantido ao longo dos anos relações incestuosas com empreiteiras que prestavam serviços à Petrobras em forma de cartel ajustado entre elas e que pagavam propinas a uma rede de políticos que incluía membros do partido do Presidente. Essa é uma versão dos fatos sustentada por indícios mais ou menos fortes de que as empreiteiras faziam agrados para Lula e pela presunção de que tais agrados estavam ligados ao esquema montado dentro da Petrobrás para superfaturar contratos e financiar campanhas políticas com os valores em excesso pagos pela Petrobras. É uma história crível, levando em consideração o histórico brasileiro em matéria de licitações de obras públicas para inglês ver. Minha primeira memória a esse respeito data do governo de José Sarney (1985-1989) e a construção da Ferrovia Norte-Sul, cuja licitação foi fraudada.

    Prezados leitores, a lição que fica deste imbróglio em torno da Lava Jato é que todas as condenações da lavra de Moro foram possíveis porque ele inovou em matéria de argumentação e fundamentação jurídica, inovações essas inspiradas naquilo que aprendeu do que se faz nos Estados Unidos. Pode-se argumentar que tais novos conceitos foram especialmente tropicalizados para criminalizar a ação política do PT, e que há interesses não estritamente jurídicos por trás da condenação de Lula com base em provas não cabais e meramente indiciárias. Oxalá que as inovações jurídicas introduzidas por Sérgio Moro se consolidem nos tribunais brasileiros e não sejam um mero modismo, de forma que possam pegar peixes graúdos à direita do espectro político. Do contrário, em 2018 os ânimos estarão tão acirrados que em vez de discutirmos os problemas que nos afligem e propormos soluções para o futuro, acabaremos envolvidos em um plebiscito sobre quem é a favor ou contra Lula, o que para o país será uma desgraça.

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