Círculo virtuoso aqui e acolá

A exportação em larga escala dos produtos agrícolas americanos para pagar pela importação de produtos industriais causava a perda dos minerais incorporados a esses produtos agrícolas. E ao criar um interior rural escassamente povoado atrás de uma costa leste congestionada, o livre comércio fazia com que o retorno dos resíduos urbanos às áreas de plantio fosse custoso e não econômico. […] Um fluxo circular equilibrado entre a cidade e o campo poderia ser estabelecido e os resíduos urbanos sistematicamente restaurados à terra como fertilizante somente quando os produtos agrícolas não fossem mais exportados ou seus componentes minerais dilapidados em grandes cidades congestionadas como as grandes cidades portuárias estavam se tornando.

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Acre é o quarto estado com o maior percentual de famílias vivendo na pobreza: 47,7%. Para cada vez mais gente a pecuária tem sido a alternativa econômica mais viável. Segundo o IBGE, entre 2004 e 2017, o rebanho bovino do estado aumentou 38%, enquanto a média nacional foi de um incremento de 4%. – A economia verde ainda não consegue dar segurança econômica para os mais pobres. Muitas vezes, isso faz com que elas acabem aderindo à pecuária para ter algum tipo de estabilidade – diz a professora do departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Acre (UFAC) Sabina Ribeiro.

Trecho retirado do artigo “Miséria é vista como estímulo ao uso indevido da terra”, publicado no jornal O Globo em 1º de setembro

    Prezados leitores, em meu último artigo, eu abordei o desafio proposto por alguns pensadores americanos à ideologia do livre comércio que então dominava as cabeças pensantes daquela época, ideologia esta que claramente favorecia a Inglaterra, a potência industrial do século XIX. Homens como Simon Patten, Peshine Smith e Henry Clay, dos quais eu tenho quase certeza que, assim como eu, nunca tinham ouvido falar, propuseram uma teoria do desenvolvimento interno da economia americana que deveria ter como uma de suas medidas práticas a imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados ingleses como forma de estimular a produção local. Neste artigo de hoje, abordarei um outro aspecto dessa teoria que é a preocupação ecológica, que nada tinha de xiita, mas ao contrário era extremamente pragmática, ao ponto de propor cálculos de quanto dinheiro os Estados Unidos perdiam com o livro comércio prejudicial ao meio ambiente.

    A relação nefasta entre livre comércio e danos ambientais consistia no fato de que as trocas entre a América e a Europa estimulavam a monocultura agrícola exportadora nos estados sulinos. À luz das então recentes descobertas sobre a química agrícola, isto é, nos anos de 1840, quando relatórios sobre o assunto eram publicados pelo órgão de patentes do Estados Unidos, a monocultura levava à exaustão do solo. Quer seja plantando fumo, algodão ou cana de açúcar, os grandes proprietários de terras que os exportavam para a Inglaterra em troca de bens industriais retiravam da terra seus nutrientes básicos sem repô-los. Aliás, faziam pior: perdiam esses minerais, essenciais para a fertilidade do solo, para sempre, pois eram embarcados para o outro lado do Atlântico, incorporados aos produtos agrícolas, para nunca mais voltarem. A comparação da receita obtida com a venda das commodities agrícolas com o prejuízo causado pela retirada definitiva dos minerais dos solos americanos, que os levava a tornar-se estéreis depois de alguns anos, mostrava que de um ponto de vista prático não valia a pena continuar nesse caminho, era preciso mudar de rota agrícola para quebrar o círculo vicioso de quanto mais exportação mais perdas econômicas.

    A chave para a geração de um círculo virtuoso era o plantio de uma variedade de produtos que atendessem o mercado interno, representado pelos moradores das cidades. A rotação de culturas permitiria a recuperação dos solos, a qual seria ainda reforçada pela utilização como fertilizante dos resíduos produzidos nas cidades pelos consumidores desses produtos. Para que isso fosse possível, a atividade agrícola deveria desenvolver-se perto das zonas urbanas, de forma que as respectivas economias pudessem complementar-se. O aumento da oferta interna de gêneros alimentícios baratearia o preço da comida para os trabalhadores, que poderiam assim alimentar-se melhor e produzir mais. A imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados por sua vez geraria uma receita para o Estado, o que lhe permitiria investir em infraestrutura de transportes para estimular a atividade econômica, ligando as diferentes regiões dos Estados Unidos e unificando assim o mercado interno. Ao facilitar os negócios colocando os agentes mais em contato, a atividade governamental acabaria também estimulando os investimentos dos capitalistas e a mecanização da produção, criando empregos mais qualificados para os trabalhadores, os quais ganhando e mais alimentando-se melhor poderiam aprimorar suas qualificações e suas necessidades, fazendo a roda da economia girar pela criação de novas demandas.

    Nesse sentido, a ideia de economia da escassez, representada por baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade e baixos investimentos, uma visão pessimista respaldada pelas visões apocalípticas de Malthus sobre o perigo do excedente populacional que não pudesse ser alimentado, era substituída pela ideia otimista de economia da abundância: nesta conjugavam-se altos investimentos, altos salários, alta qualificação e alta produtividade em prol da prosperidade geral, não só dos seres humanos como do ambiente em que ele estava inserido, ao menos no que diz respeito à saúde dos solos agrícolas.

    As condições atuais são outras, há outras maneiras de garantir a fertilidade do solo pelo uso de adubos químicos, mas a lição permanece a mesma. Como os pioneiros americanos que desafiaram os dogmas então em voga perceberam, crescimento é diferente de desenvolvimento. Os Estados sulistas que se dedicavam à monocultura geravam receitas de exportação, expandiam a área cultivada quando os solos se esgotavam, produziam mão de obra escrava em abundância viabilizando a formação de famílias negras. A longo prazo, como a história mostrou, estavam condenados ao fracasso, porque era um modelo que não criava o círculo virtuoso da prosperidade para todos, ainda que em níveis desiguais.

    Prezados leitores, de que lado o Brasil está nessa clássica dicotomia entre crescimento e desenvolvimento? Ou estamos aquém dela, em uma areia movediça da economia da escassez, em um eterno círculo vicioso? Considerando a situação atual da Amazônia, em que desmatar faz mais sentido econômico do que preservar, ao menos no curto prazo, como mostra o trecho citado acima, , o crescimento pífio do PIB no segundo trimestre, de 0,4% comparado ao primeiro trimestre de 2019, o déficit de 139 bilhões de reais previsto para o governo federal em 2019, os 38 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade e portanto pouco produtivos, pois incapazes de investir na própria formação, a taxa de investimentos 24,8% menor do que aquela verificada antes de abril de 2014 (de acordo com a Abdib – Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base), parece que temos reunidos em nós os elementos fatais: baixos investimentos, baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade. Como sairmos disso? Como conseguirmos dinheiro para incentivar a agricultura verde na Amazônia de modo que preservar a mata se torne rentável para quem lá vive? Como colocar os milhões vivendo de bicos, de empregos precários, de volta à formalidade, às ocupações em que eles tenham a chance de melhorar suas qualificações? Qual será nosso coelho na cartola para inaugurar um novo círculo virtuoso de desenvolvimento?

    A reforma da previdência pode até economizar alguns bilhões para o governo, mas não acabou com as injustiças do sistema e neste cenário de alta informalidade em que vivemos ela pode acabar reforçando essa tendência de não regularização das relações de trabalho pela perda do estímulo à contribuição por parte dos trabalhadores autônomos, já que os benefícios serão menores e serão gozados por menor tempo. Resta-nos esperar que a reforma tributária prometida tenha algum efeito na quebra do círculo vicioso. Nesse ínterim, não nos esqueçamos da lição dos desenvolvimentistas americanos, que aliás recebeu o nome de Teoria dos Altos Salários: garantir condições boas de vida ao povo não é receita de socialismo desastroso mas de capitalismo sustentável.

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Amarras ideológicas e previdenciárias

Ou seja, o Brasil é o único país com um sistema universal público como é o SUS em que o gasto privado é maior. Não se criou um mecanismo de coordenação entre os setores privado e público.  O previsto era que o setor privado fosse suplementar, mas o que se configurou foi um modelo que duplica a produção de serviços e compete por recursos financeiros, pessoal, provimento de médicos, na forma de incorporação de tecnologias… E isso é ruim para o setor público, pois é uma marca da iniquidade brasileira.

Trecho retirado de entrevista dada ao jornal o Globo pelo médico sanitarista brasileiro Adriano Massuda e publicada em 14 de julho de 2019

E constatar-se-á que a economia política, cuja introdução em nossos cursos populares foi tão vilipendiada, tem preeminência sobre as outras ciências ao atuar como um sedativo, e não como estímulo a todos os tipos de turbulência e desordem. […] De todos os ramos da educação, não há nenhum outro que contribuirá mais para a aquiescência da multidão, do que aquele cuja admissão em nossas escolas técnicas estamos solicitando agora. 

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

    Prezados leitores, o segundo trecho mencionado acima faz parte de um livro em que o autor discute a elaboração e desenvolvimento de uma escola americana de economia política que defendeu o protecionismo como ferramenta de desenvolvimento. Michael Hudson contrapõe essa teoria autóctone que foi sendo burilada ao longo do século XIX, com as “tábuas da lei” recebidas da Inglaterra e propagadas nas principais instituições de ensino estadunidenses, entre as quais Harvard, Yale, Brown, Columbia e Princeton. A sabedoria reinante era aquela de Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus, que haviam estudado a economia e a história da Inglaterra e cada qual com suas respectivas contribuições deram origem ao sistema geral do livre comércio, pelo qual o melhor para a riqueza dos indivíduos era que cada país produzisse aquilo em que tinha mais vantagens comparativas de forma que pudesse oferecer produtos no mercado ao preço justo. No mundo de então, isso significava que a Inglaterra seria a fornecedora de produtos manufaturados, já que ela havia atingido um alto grau de mecanização que tornava seus preços imbatíveis, e compraria dos países cuja economia era predominantemente agrícola os gêneros alimentícios e as matérias primas que os ingleses não podiam produzir por não terem mais terras aráveis. Afinal, de acordo com Malthus, a produção agrícola crescia a um ritmo muito menor que o da população, e a única solução era cultivar mais terras, pois em seu modelo ele não vislumbrava que aumentos de produtividade poderiam resolver essa discrepância.

    Em tal arranjo, todos sairiam ganhando, pois cada país seguiria sua vocação natural. Para muitos americanos, os Estados Unidos com suas vastas extensões de terra no Oeste, estavam destinados a ser uma potência agrícola, e muitos políticos sonhavam em estender as fronteiras do país até Cuba e quem sabe até o Canadá, com base em culturas exportáveis, como o algodão e o fumo. Ocorre que muitos Estados americanos, no chamado Meio Atlântico, já tinham uma produção manufatureira e não lhes era interessante simplesmente ter uma economia complementar à da Inglaterra, como era o caso dos Estados agrícolas do Sul. Propostas de aumento de tarifas alfandegárias sobre os produtos industriais da Inglaterra eram feitas por vários políticos, jornalistas e intelectuais, o que estimulou um debate feroz com os proponentes do livre comércio à l’anglaise. Se de início essas ideias de imposição de tarifas eram incipientes e pontuais, elas foram gradualmente constituindo-se em uma série de princípios para o desenvolvimento nacional. Tais disputas entre os Estados que queriam mais tarifas para a proteção da indústria nacional e aqueles que queriam o livre comércio acabariam resolvendo-se por meio da Guerra Civil Americana (1861-1865), que ao contrário do que mostra Hollywood por meio de Steven Spielberg, não foi uma guerra pela libertação dos escravos. Explico-me.

    Os Estados do Sul decidiram desligar-se da União porque consideravam que a política tarifária protecionista era uma ingerência indevida do governo central que acabaria por destruir a economia deles, por obrigá-los a comprar produtos mais caros e de pior qualidade dos Estados americanos de base industrial ao invés de comprar da Inglaterra, a grande potência industrial da época, a quem forneciam commodities agrícolas. Abraham Lincoln, o presidente dos Estados Unidos então, só libertou os escravos como meio de desestruturar a atividade produtiva do Sul e diminuir-lhe a capacidade de combate. Para quem duvida da minha versão, leiam “Uma Nota sobre Abraham Lincoln” escrito por |Gore Vidal (1925-2012) e publicado em uma coleção de ensaios denominada “De fato e de ficção”. O fim da Guerra Civil marcou o surgimento dos Estados Unidos como nação independente, livre das amarras ideológicas e econômicas que a prendiam à pátria-mãe, a Inglaterra, a defensora do livre comércio entre as nações como meio mais eficiente de criar riqueza.

    Esse introito serve para eu abordar as nossas amarras tropicais, que mostraram quão forte são ao longo desses meses em que a reforma da previdência foi debatida no Congresso e defendida pelos bem-pensantes de maneira unânime. O Brasil envelheceu, é preciso que nos adaptemos à nova realidade. Com a economia de dinheiro proporcionada pela postergação das aposentadorias, haverá uma diminuição da dívida pública, diminuição dos juros, mais investimentos, a economia voltará a girar e entraremos num círculo virtuoso de crescimento e geração de empregos. Esse mantra é um reflexo exato da receita de bolo trazida pelo Posto Ipiranga, Paulo Guedes, como fruto do seu PhD na Universidade de Chicago. O problema do Brasil é que o governo gasta muito, se resolvermos a questão fiscal, tudo caminhará.

    Independentemente de concordar ou não com a teoria econômica da equipe econômica no poder, que inclui entre outros Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central que estudou na Universidade da Califórnia em Los Angeles, a velha questão permanece relevante: os doutos economistas levam em conta a realidade do nosso país para aplicar o tal do choque fiscal? Sem abordar as minúcias das modificações nas regras, o fato é que para ter direito ao benefício integral, o candidato a aposentado terá que contribuir por 40 anos. Considerando que a idade mínima para pleitear a aposentadoria será de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, isso significa que quem começou a trabalhar aos 14 anos e teve a sorte de ter carteira assinada durante toda sua vida ativa, a aposentadoria, que poderia ser aos 54 anos, terá que ser postergada por 8 e 11 anos, respectivamente. Isso será bem problemático para brasileiros que passaram a vida exercendo atividades braçais e que podem ao final de sua carreira não mais conseguirem emprego que lhes permita pagar contribuições previdenciárias, por não mais conseguirem usar o corpo como o faziam quando jovens.

    É nesse ponto que se revela a deficiência dos sábios que nos governam em termos de levar em conta the facts on the ground e não apenas a aplicação de teorias elaboradas alhures. Uma reforma da previdência descolada de uma política de saúde e de uma política de emprego é apenas um truque dos fiscalistas que querem melhorar as contas públicas como se isso fosse uma poção milagrosa. É claro que os brasileiros estão vivendo mais, mas em que condições? A massa do povo conseguirá chegar aos 60 anos com saúde e qualificações para continuar a trabalhar? Será que Tabata Amaral, a cientista política de 25 anos formada em Harvard e que está sendo elogiada por quebrar com “as amarras ideológicas” (expressão pro ela usada em um artigo na Folha de São Paulo) da esquerda e por ter votado a favor da reforma da previdência, considera que fazer uma reforma dessas no vácuo é algo que deve ser apoiado? Quem mais merece críticas: a esquerda que é “contra tudo” ou a turma dos sábios que é a favor de tudo que tira direitos do povo sem dar nada em troca?

    A respeito dos doutos membros do governo que estão nos tirando o benefício previdenciário, onde está o Ministro da Saúde de Bolsonaro com medidas concretas para aumentar o dinheiro disponível para o SUS e melhorar a gestão dos recursos? Alguém ouviu falar de alguma ação do Ministério da Saúde nesses 200 dias de governo? E o que o Posto Ipiranga, que incorporou ao Ministério da Economia as atribuições do antigo Ministério do Trabalho, tem em mente em termos de políticas públicas para a qualificação e reciclagem de trabalhadores que ficaram desempregados depois da recessão de 2014 a 2016 e hoje vivem de bicos? Por acaso Paulo Guedes pensou que ao mesmo tempo que tira direitos da população por uma questão atuarial é preciso dar-lhe oportunidade de adaptar-se às novas circunstâncias? Será que a reforma da previdência terá só como objetivo resolver o problema fiscal e deixará o trabalhador ao deus-dará para virar-se nos trinta? Em sendo assim, será que no longo prazo o problema fiscal será resolvido mesmo? Afinal, se os brasileiros não tiverem saúde e nem qualificação para terem emprego e poderem ser contribuintes do INSS como o sistema será financiado? Ou será que o objetivo final é simplesmente acabar com qualquer proteção para a incapacidade laboral e a velhice? Será que a meta implícita da política econômica dos sábios de Chicago e de outras universidades americanas é que deixemos de ser trabalhadores e todos sejamos empreendedores?

    Empreendedor pode ser tanto o criador de uma start-up que se transforma em unicórnio quanto o indivíduo dono de sua própria bicicleta ou motocicleta e de seu celular que entrega comida trabalhando sábados, domingos e feriados, sem vínculo empregatício e sem proteção social nenhuma. Desburocratização, desregulamentação, incentivo à abertura de empresas, todas são ideias dos sábios que estudam nos Estados Unidos, mas deixam sempre para depois o cuidado com o povo, ou para usar uma expressão mais moderna, o capital humano. E sem cuidado com o povo, permaneceremos eternamente uma economia de terceiro mundo, de entregadores de quentinhas, de doceiras, de fazedoras de bolo, de taxistas, de auxiliares de serviços gerais, em suma de pessoas que exercem atividades que agregam pouco valor.

    Prezados leitores, os Estados Unidos no século XIX, por meio de ferozes debates entre protecionistas e defensores do livre comércio desafiaram a Inglaterra e tomaram seu lugar como potência mundial. Atualmente, eles obviamente têm interesse em que as coisas permaneçam como estão, e para isso eles propagam as teorias econômicas que beneficiam, se não todos os americanos, ao menos aqueles que detêm o poder político e intelectual de formar opiniões. Não estou aqui a propor que comecemos a lançar impropérios inúteis contra o governo americano como Hugo Chavez fez da tribuna da ONU, mas que ao menos antes de aplicarmos as receitas que nos ensinam, tenhamos um olhar crítico e consciência de que não foram feitas para resolver nossos problemas. Enfim, não custa sonhar com uma nova direita e uma nova esquerda que discutam mas cheguem a um meio termo que não seja simplesmente rendição de um lado ao outro. Enquanto isso, nós que vendemos nossa força de trabalho no mercado teremos que contar com a ajuda de nós mesmos para conseguirmos continuar a trabalhar e poder na velhice desfrutar de uma renda mínima de sobrevivência.

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Outros Juristas

A política de Rui Barbosa tinha o objetivo oposto daquele que até então dominara a esfera maior de governo no território. E tal objetivo vinha a ser o mesmo do governo de qualquer outro país na era capitalista: fomentar a riqueza da nação, favorecer os produtores ligados ao mercado interno e transferir os riscos das oscilações cambiais para os importadores – garantindo a renda dos produtores nacionais. […] a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo, somada às garantias de crédito e à maior oferta monetária, provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado.

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira, sobre as reformas econômicas realizadas por Rui Barbosa (1849-1923), Ministro da Fazenda do Primeiro Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca

Mas as receitas estaduais tiveram um efeito importante: permitiram um emprego novo do dinheiro público, com alta concentração de investimentos em capital humano. As despesas com educação, saúde, imigração e segurança – quase sempre visando a melhoria das condições de formação da população – representaram, em 1896, 62% dos gastos totais do estado. As obras públicas, investimentos em infraestrutura, totalizaram 35% dos gastos no mesmo ano.

Trecho retirado do mesmo livro sobre os efeitos das reformas econômicas sobre o setor público do Estado de São Paulo na década inicial da República

Para construir uma sociedade ideal é preciso que o governo controle os serviços públicos básicos — terra, finanças, riqueza mineral, recursos naturais e monopólios de infraestrutura (incluindo a internet hoje em dia), produtos farmacêuticos e assistência médica de forma que os serviços básicos possam ser fornecidos ao menor preço. Isso tudo foi descrito no século XIX por analistas nos Estados Unidos. Foi Simon Patten [1852-1922] quem disse que o investimento público é o “quarto fator de produção”.

Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Michael Hudson, professor de Economia na Universidade do Missouri “O Oráculo de Delfos era o Davos deles”, em 5 de abril

    Prezados leitores, vocês conseguem imaginar no Brasil um jurista que tenha tido uma atuação notável e louvável em área não jurídica? Pelo menos desde a deflagração da Operação Lava Jato, em março de 2014, a pauta das discussões nacionais é ditada pelos causídicos, e ela invariavelmente diz respeito a assuntos como interpretação da Constituição e das leis infraconstitucionais, prerrogativa de foro, e por aí vai. O mais recente tópico, o artigo publicado na revista Crusoé sobre o suposto envolvimento do Ministro do STF Dias Toffoli com a famigerada Odebrecht, que acaba de ser corresponsável pelo suicídio do ex-presidente do Peru, Alan Garcia, no último dia 17, girou basicamente em torno destas duas questões: Quem tem a titularidade da ação penal no ordenamento jurídico brasileiro quando o ofendido é membro do STF, o órgão de cúpula do Judiciário? Como devem ser sopesados direitos fundamentais conflitantes, garantidos pela Constituição Federal, a saber a liberdade de expressão, e o direito à honra? Enquanto Raquel Dodge dava carteirada em Dias Toffoli ordenando o arquivamento do inquérito de investigação de fake news contra o STF, incluindo a reportagem da Crusoé, e Alexandre de Moraes, companheiro dileto do presidente do Supremo, revidava ignorando a ordem da Procuradora-Geral da República, a grande maioria do povo brasileiro, 26 milhões dos quais estão ou desempregados ou subempregados, tinha preocupações mais prementes, para dizer o mínimo. No nosso contexto atual, em que não sabemos se teremos emprego nas próximas décadas que nos permita aposentarmo-nos com uma renda mínima, essas disputas se assemelham a discutir o sexo dos anjos como forma de matar o tempo de quem tem a vida ganha ou afagar a vaidade ferida.

    Nem sempre os maiores juristas brasileiros mostraram-se tão insensíveis à realidade econômica e social do povo. E o exemplo  que quero citar é o de Rui Barbosa, que, para quem conhece tem uma certa má fama: mandou destruir livros com registros de entrada de escravos no Brasil, o que dificultou a vida dos historiadores que tentam estudar a escravidão, e foi o autor da política conhecida como Encilhamento, que levou à emissão descontrolada de moeda e a uma crise financeira. O objetivo aqui não é negar os dois fatos, mas dar nuances a esse retrato, conforme houve o avanço dos estudos econométricos e estatísticos no Brasil, nas últimas décadas, refletido no livro de Jorge Caldeira acima mencionado. E ao dar mais detalhes sobre o que Rui Barbosa fez como Ministro da Fazenda, perguntar se não poderíamos tirar uma ou duas lições daqueles primeiros tempos da República e aplicá-las à nossa combalida Nova República?

    Em janeiro de 1890, Rui Barbosa fez publicar quatro decretos que rompiam com as restrições da época imperial. O primeiro decreto dava permissão às empresas ou sociedades anônimas de estabelecerem-se sem a autorização do governo e estipulava que os acionistas teriam responsabilidade limitada ao capital aplicado. O segundo decreto permitia que os proprietários de terras emitissem títulos de penhor sobre elas, por meio de um contrato direto entre o dono da terra e o fornecedor de crédito, o que acabava com a restrição que então vigorava no Brasil em relação à execução de fazendas e engenhos. O terceiro decreto regulamentava a hipoteca e as formas de cobrança, mercantilizando a propriedade das coisas. O quarto decreto estabelecia como garantia do meio circulante os títulos da dívida nacional, tornando a moeda passível de flutuação e cujo valor não seria mais zelosamente mantido pela vontade de D. Pedro II.

    Conforme Caldeira exemplifica em seu livro por meio de dados sobre volume de produção, número de empresas criadas e extensão da malha viária, essas medidas criaram um círculo virtuoso na economia: o crédito aumentou, os bancos expandiram suas atividades e pasmem, emprestaram dinheiro para fazendeiros plantarem e para empreendedores criarem fábricas e construírem ferrovias, as quais fomentaram o mercado interno de produtos que não aqueles destinados à exportação. Em São Paulo, o aumento das receitas governamentais permitiu que o Estado cumprisse o papel crucial de prover os serviços públicos que permitiam aos agentes econômicos produzirem de maneira mais fácil. Esse modelo de expansão do crédito para estimular a economia passou por um grande atropelo logo em novembro de 1890, quando o banco inglês Barings anunciou uma suspensão de pagamentos devido a problemas com seus investimentos em títulos argentinos. Isso levou a um efeito de manada e os investidores europeus desovaram suas posições em títulos de governos latino-americanos.  Assim, se de um lado a expansão do crédito trouxe efeitos de longo prazo na economia brasileira porque ele foi aplicado na produção, de outro o lastro da moeda em títulos a tornava vulnerável à fuga de capitais. Vejam que a crise da dívida na América Latina não começou na década de 80 do século XX, mas um século antes.

    Que lições o advogado baiano Rui Barbosa pode dar aos juristas que hoje ditam a pauta do Brasil? Ou até ao encarregado da política econômica atual, Paulo Guedes? Rui Barbosa, em sua Campanha Civilista, quando foi candidato a presidente contra Hermes da Fonseca em 1910, viajou por Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo comícios, conversando com a população. Será que a cúpula do Judiciário brasileiro não faria bem se desse ouvidos ao povo a respeito do que deve ser prioridade em termos de justiça? Como acelerar o andamento dos processos, como diminuir a sensação de incerteza sobre as decisões judiciais? A Paulo Guedes Rui Barbosa poderia dizer que à luz da sua breve e marcante experiência como Ministro da Fazenda, é preciso ter como foco a “prosperidade do trabalho”, o “movimento industrial”. Será que a reforma da previdência, se aprovada, por si só acelerará a atividade econômica como Rui Barbosa o fez por meio de seus quatro decretos? Ou será apenas uma maneira de o governo economizar dinheiro para poder continuar pagando dívidas, sem realizar investimentos públicos? Aguardemos, e enquanto isso saudemos Rui Barbosa como um jurista com o pé na estrada e não encastelado em sua Torre de Marfim, discutindo tecnicalidades.

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Os Três Estados da Previdência

O uso do Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos levou esse poder a funcionar em Portugal como uma espécie de órgão emissor da moeda da diferença social […] A derrogação de um direito adquirido – fosse a propriedade de bens, a posse de ofícios, a detenção de um privilégio irrevogável, o direito de não pagar impostos ilegalmente criados – só era possível em sede judicial.

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil” de Jorge Caldeira

O princípio da solidariedade é que está implícito em qualquer análise que se faça do Direito de Seguridade Social. O art. 3º da Constituição da República positiva que: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I –construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Trecho retirado do livro “Curso de Direito da Seguridade Social”, de Augusto Massayuki Tsutiya

Para mim, não dá para cair abaixo do R$1 trilhão [impacto fiscal da reforma] (em 10 anos) que se propôs. Pensando friamente, acho que vamos ter uma reforma boa, mas, possivelmente, limitada. E aí o problema vai seguir. As pessoas mais otimistas acreditam que essa reforma, ainda que um pouco desidratada no final, pode significar o início de um ciclo virtuoso de outras reformas, mas, na minha leitura, as probabilidades jogam contra.

Trecho da entrevista dada pelo ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, ao jornal O Estado de São Paulo, em 3 de março

    Prezados leitores, sei que é época de Carnaval e é tempo de nos divertir, mas o assunto da Previdência, que vem nos atormentando desde 2017, dominará a pauta do Congresso neste ano e determinará o sucesso ou o fracasso do governo Bolsonaro. Não sou eu quem digo isso, são os especialistas, os economistas, os professores universitários, os banqueiros. É preciso reformar a Previdência para diminuir o rombo nas contas públicas, permitir uma queda nos juros e viabilizar um aumento dos investimentos públicos e privados. A essa altura do campeonato há pouca discordância em relação a esse ponto. O problema começa no conteúdo apresentado pela equipe econômica que assumiu em janeiro deste ano, ou talvez até na falta dele. Considerada pela revista VEJA como uma proposta ambiciosa por atacar privilégios, ela é vendida pelo governo como uma “Nova Previdência: É para Todos, É Melhor para o Brasil.” Será?

    Tentarei responder a essa pergunta descrevendo a situação nas “Terras Baixas da América do Sul”, para tomar emprestada uma expressão de Jorge Caldeira usada quando ele descreve o que os europeus encontraram ao chegar aos trópicos americanos. Para tanto, recorrerei a uma analogia, a dos Três Estados do Antigo Regime que vigoraram na Europa até a Revolução Francesa: cada estamento tinha seus próprios direitos e obrigações garantidos por leis escritas, a que o próprio rei de Portugal obedecia, como é explicado em A História da Riqueza no Brasil.

    Em termos previdenciários, o Primeiro Estado brasileiro é formado por aqueles que não só já adquiriram o direito a uma polpuda aposentadoria integral, como já a usufruem. Quando digo polpuda falo de filhas e viúvas de militares que recebem 59.000 reais, como foi noticiado pelo jornal O Globo há duas semanas, membros do Judiciário, que de forma perfeitamente legal ganham benefícios previdenciários que ultrapassam o teto do funcionalismo público. Isso porque os auxílios de diversos tipos que foram sendo incorporados à remuneração são considerados como de natureza indenizatória e portanto puderam ser incorporados gradual e inexoravelmente aos rendimentos totais, sem que fossem considerados parte do salário de contribuição para fins de incidência da alíquota previdenciária e sem que fossem considerado salário que ultrapasse aquele ganho pelos ministros do STF. Considerando o aumento substancial da expectativa de vida verificado no Brasil nos últimos anos, esses agraciados vão usufruir de benefícios que excederão em muito a contribuição previdenciária que pagaram e pagarão ao longo da vida. Pelo princípio da solidariedade, nós que estamos trabalhando atualmente estamos financiando essas benesses, sem que nós pobres mortais possamos sequer sonhar com elas, porque a porteira já está fechada para novos entrantes nesse clube exclusivo. Benesses essas que, como diria um ex-Ministro do Trabalho, são “imexíveis”, porque de acordo com o artigo 194, parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal, os benefícios previdenciários são irredutíveis. Resumindo, só refundando a ordem jurídica brasileira, ou em português claro, só uma guerra civil diminuiria ou cortaria os benefícios pagos a essas pessoas.

    Coloco nesse grupo também aqueles funcionários públicos que ingressaram no serviço até 2003, e portanto, têm direito à aposentadoria integral. É verdade que estes não têm um direito inexpugnável como aqueles que já recebem a aposentadoria ou pensão têm, mas o que a turma do Posto Ipiranga propõe para fechar a lacuna entre aquilo que a lei lhes dá como direito e aquilo que contribuíram para dele gozar é um aumento da alíquota de contribuição de até 22%. Associações de funcionários públicos já começaram a estrilar dizendo que tal taxa tem natureza confiscatória e é portanto inconstitucional, mas o fato de ela incidir sobre a porção de rendimentos que é considerada salário e não indenização fará com que em muitos casos a mordida seja bem menor do que seria se não houvesse essas distinções formalistas ente salário e indenização destinadas a consolidar privilégios.

    Passemos ao Segundo Estado, formado pelos funcionários públicos que ingressaram no serviço entre 2004 e 2013. Se hoje eles têm direito a se aposentar à média de 80% dos maiores salários de contribuição, Paulo Guedes e companhia propõem colocá-los na vala comum do Terceiro Estado, que têm direito a receber no máximo R$ 5.839,45, que é o teto do INSS. Vejamos se os deputados que os representam no Congresso vão deixar que haja uma tal reversão de expectativas de direito. Duvido.

    Finalmente o Terceiro Estado é formado pela maior parte do povo brasileiro, englobando uma grande disparidade de pessoas em termos de renda e de perspectivas de aposentadoria. Os que estão em melhor situação são aqueles que têm carteira assinada pelo patrão no regime CLT e que contribuem à Previdência pela alíquota máxima, de 11%. Nos termos da reforma essa alíquota passaria a 11,68%. Mas há os que têm contribuído de maneira intermitente ao INSS pelo fato de terem tido carteira assinada de maneira não contínua, aqueles que contribuem pela alíquota mínima por trabalharem de maneira autônoma, aqueles que não contribuíram porque nunca tiveram carteira assinada ou porque sempre trabalharam fazendo bicos, empreendendo à maneira brasileira, isto é na informalidade, sem pagar impostos, sem comprovar renda. Para não falar dos jovens que ainda não entraram no mercado de trabalho: a estes será negada a solidariedade do sistema de repartição, oferecendo-se no lugar a poupança individual do regime de capitalização. Em suma, o jovem brasileiro, quando tornar-se trabalhador, não poderá contar com um naco do bolo da receita previdenciária corrente ao tempo em que ele se aposentar para financiar seus benefícios. Ele terá que por si só juntar dinheiro em sua conta para arcar com seu ócio, a depender de sua carreira e rendimento profissional ao longo da vida, e o máximo que o governo por enquanto oferece é garantir um salário mínimo.

    Prezados leitores, considerando quão amador tem se mostrado o exército de Brancaleone que se instalou no Palácio do Planalto em 2019, o quão seu Bolsonaro está sujeito a chantagens veladas do Judiciário e do Ministério Público por conta dos deslizes do seu filho Flávio, é de esperar que o que seja aprovada seja a idade mínima e o tempo de contribuição para os trabalhadores do setor privado e algo no meio do caminho para os funcionários públicos que não os coloque no saco de gatos esquálidos do INSS. Continuaremos a ter Três Estados, com graus decrescentes de privilégios e crescentes de obrigações. E considerando que o princípio da solidariedade terá sido rompido pela ideia da capitalização, a confiança das pessoas na previdência se esvairá rapidamente. Por que contribuir se sei que estou financiando a aposentadoria dos afortunados que têm direitos adquiridos, mas ninguém financiará a minha no futuro, porque cheguei tarde demais ou por que não pertencia ao estamento correto? Afinal, o trabalho intermitente e o estímulo à terceirização, permitidos pela reforma trabalhista de 2017, torna possível àqueles que deixarem de ser empregados em tempo integral e passarem a trabalhar alguns dias por mês para o empregador ou a abrir empresas prestadoras de serviços optar por não contribuir para o INSS ou contribuir o menos possível. Em suma, o que o Posto Ipiranga anuncia para nós não é uma Nova Previdência para Todos, mas uma Previdência de um lado remendada para permitir o financiamento, por mais alguns anos, a depender do crescimento da economia, dos benefícios daqueles cujo direito é inatacável e de outro mutilada pela introdução do conceito de capitalização que oficializa o salve-se quem puder. Será esse projeto uma maneira de renovar a previdência ou de começar o seu desmonte por um círculo vicioso de menos receitas, menos benefícios, menos expectativas de benefícios, menos receitas? Veremos.

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O Greenwashing das favelas

Casas pré-fabricadas em ruínas? Não, casas ecológicas! Assim como Bruno Gimond, trinta e seis famílias compraram na planta, em 2009, uma residência no Hameau de Plantoun. O Office HLM (órgão público francês encarregado da construção e gerenciamento de moradias populares) na cidade de Bayonne supervisionava um programa de acesso à propriedade nesse bairro ecológico. Materiais naturais, novas técnicas … os novíssimos bairros ecológicos eram considerados representativos da excelência da moradia e ao mesmo tempo abaixavam o consumo de energia.

Trecho retirado do artigo “As casas da mentira de Bayonne” publicado em 9 de fevereiro de 2018

Infelizmente, os bairros ecológicos são muito frequentemente o resultado do greenwashing por parte de um conselho municipal que procura aumentar a reputação de uma cidade e esconder a falta de medidas realmente ecológicas (construção de ciclovias, vias somente para pedestres, taxas sobre a coleta de lixo com base no peso…).

Trecho retirado do dossiê “Os Limites dos Bairros Ecológicos” publicado na revista eletrônica francesa “Silence” em outubro de 2013

    Prezados leitores, permitam-me explicar-lhes o termo em inglês greenwashing, pois ele será tema do meu humilde artigo. De acordo com o wikipedia, greenwashing é a “injustificada apropriação de virtudes ambientalistas por parte de organizações (empresas, governos, etc.) ou pessoas, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas”. Vou lhes dar dois exemplos de greenwashing sobre os quais fiquei sabendo assistindo a um documentário sobre os bairros ecológicos que estão se espalhando rapidamente pela França, prometendo economia de energia por meio do uso de fontes ecologicamente corretas, como a luz solar e a biomassa, do reaproveitamento da água da chuva e da facilitação da mobilidade urbana de modo a permitir aos habitantes prescindir do carro.

    O primeiro exemplo é aquele cuja descrição abre este artigo. Bruno Gimond pagou ao redor de 160.000 euros por uma casa feita em madeira em meio às arvores. Em pouco tempo de uso constatou que ela era um “inferno térmico”. A madeira das paredes, utilizada em substituição ao ecologicamente incorreto concreto, apresentava infiltrações de modo que o vento entrava na casa no inverno, tornando-a desconfortável com uma temperatura interna de 10 graus. O frio era tanto que ele teve que usar aquecedor elétrico, mas como a conta de luz foi a 500 euros em dois meses, ele mandou a mudança climática às favas e começou a queimar madeira em casa para aquecer-se. O chão de madeira descolou ou afundou em várias partes, os pregos soltavam, tornando perigoso caminhar dentro de casa sem sapatos. Sua indignação foi tanta que ele grafitou a parte da frente de sua casa com os dizeres FAVELAS 2 (aparentemente os europeus ainda não se deram conta de que favela hoje no Brasil é um nome politicamente incorreto e que devemos usar o termo mais brando de comunidade). Ele e outros enganados entraram com processo na justiça e acabam de obter uma vitória, depois de 10 anos, pois o judiciário francês reconheceu-lhes o direito de ter as casas reconstruídas. Para aqueles que quiserem ver o aspecto das casas: https://www.francetvinfo.fr/economie/video-les-maisons-du-mensonge-dun-ecoquartier-a-bayonne_2595926.html.

    O segundo exemplo de uso marqueteiro de pretensas qualidades ecológicas é o de um écoquartier em Limoges, outra cidade na França. O problema nesse caso não são as casas mal construídas, bem ao contrário. Elas têm bom isolamento térmico e tem certificado de eficiência energética, algo que somente 7% das residências no país possuem. A questão é outra, mais precisamente dois detalhes importantes. A conta de luz, apesar de toda a preocupação em não desperdiçar energia, é do mesmo valor que os simples mortais que vivem em bairros não ecológicos pagam: foi instalada uma usina de biomassa no bairro para fornecer energia aos moradores, mas será preciso pagar pelo investimento ao longo de trinta anos.

    O detalhe sinistro em Limoges fica por conta do fato de que o bairro foi construído em um local onde havia anteriormente não só uma fábrica como um lixão a céu aberto que foi destruído. Foi feita uma descontaminação parcial do local, mas não o suficiente para que seja seguro comer frutos colhidos nas árvores lá plantadas. Os metais pesados presentes no solo lá permanecerão por muitos anos lá, pois uma limpeza total custaria mais de 20 milhões de euros, quantia que a construtora encarregada da descontaminação nem pensou em gastar, limitando-se a investir quatro milhões de euros para tornar o local razoavelmente salubre. Além disso os vapores tóxicos exalados pelos metais podem causar câncer. Um morador sensato, que acredita na necessidade de tomar medidas concretas para salvar o planeta, considera com certa dose de orgulho, que ele e seus vizinhos estão pagando o preço de ser os precursores nas ações para diminuirmos nossa pegada de carbono.

    Tais caso concretos que se desenrolaram em um país de Primeiro Mundo mostram que a ecologia muitas vezes não é nada mais do que um nicho de mercado, uma estratégia de marketing utilizada para satisfazer as demandas de consumo de um determinado público que tem certos valores e preferências. Os capitalistas conseguem vender seu produto apresentando-se como salvadores do planeta e no final das contas eles estão inventando novas maneiras de obter lucros. Aliás, como a Companhia Vale tem feito no Brasil ao não só usar tecnologia inadaptada ao clima úmido em que vivemos para construir suas barragens de rejeitos de minérios, como ao mantê-las mal e porcamente. Aqui a mineradora economiza nos custos ao investir em barragens meia-boca sujeitas a infiltrações, lá o incorporador imobiliário compra um terreno contaminado, faz uma recauchutagem, contrata marqueteiros para vender o sonho do combate ao aquecimento global aos incautos e constrói “favelas” com materiais ecologicamente corretos (isto é mais baratos), embolsando o prêmio pago pelos compradores pelo plus a mais do selo verde. É claro que a ficha da construtora francesa é infinitamente mais limpa do que a de uma empresa que explora minério, mas tanto uma quanto outra lidam com o desafio da diminuição da pegada humana no meio ambiente da mesma forma: como um custo que precisa ser repassado para terceiros tão logo quanto possível, seja embutindo-o no preço de seus produtos, como fazem as incorporadas dos écoquartiers, seja investindo na eleição de políticos para que aprovem leis que ao, afrouxarem as exigências ambientais, fazem com que as comunidades que vivem em torno das barragens arquem com o ônus das externalidades criadas pela atividade mineradora.

    Quem nos salvará dos vendilhões da ecologia e nos colocará no caminho da redenção do planeta? Serão as crianças que nos últimos dias na Suécia, na Bélgica, na Alemanha, na Austrália e na Grã-Bretanha têm protestado contra a inércia em relação à mudança climática sob os gritos de “Não há Planeta B” ou “O aquecimento global não é uma previsão  está acontecendo agora”? O problema é que por mais poético que seja ver crianças indo às ruas por uma causa nobre, elas mesmas estavam lá enfrentando o frio do Hemisfério Norte encapotadas com casacos de náilon, que leva 400 anos para degradar-se na natureza, e de posse de seus celulares, que em breve serão trocados por outro mais recente. E mais, não tinham proposta nenhuma sobre o que fazer na prática, apenas tinham slogans criativos.

    No final das contas, considerando o excesso de boas intenções e a falta de conscientização sobre quem lucra e quem paga a conta tanto da inação quanto do ativismo ecológico, será o capitalismo quem resolverá o problema da poluição do planeta e da escassez cada vez maior de bens naturais fazendo aquilo em que ele é inigualável: decidindo a alocação de recursos por meio da precificação, neste caso estabelecendo um preço para a vida sustentável, tornando-a cada vez mais cara pelo aumento da demanda e pela diminuição dos meios para garanti-la, e assim alijando do consumo milhões de pessoas ao redor do mundo que não terão acesso às comodidades básicas da vida por falta de dinheiro. O que os governantes globais farão para lidar com esses deserdados? Serão mortos? Serão deixados à mingua em zonas ecologicamente degradadas? Veremos.

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