Sobre drones, robôs e castelos de areia

Um vislumbre do futuro de destruição dos empregos foi dado no início de setembro por um estudo detalhado realizado pela famosa empresa de consultoria McKinsey. O estudo estimou que 60% dos empregos atuais nos Estados Unidos sofrerão impacto da inteligência artificial até 2030. E um terço, 33%, daqueles 60% sofrerá redução no empregos e /ou horas trabalhadas. […] De acordo com a pesquisa da McKinsey, o ‘custo’ para os trabalhadores será de $ 7 trilhões. A inteligência artificial cortará o número de empregos nas empresas em 50% quando ela for implementada, aumentando assim os ‘lucros’ em $ 13 trilhões. Em outras palavras, a IA vai acelerar dramaticamente as tendências de desigualdade, que já são avassaladoras nos Estados Unidos.  Tendo já diminuído de 64% para 56% do total da renda nacional, a participação do trabalho vai diminuir ainda mais até 2030

Trecho retirado do artigo Amazon, a destruidora de empregos hoje, ontem e amanhã publicado em 7 de setembro por Jack Rasmus, doutor em economia política e professor de economia e política no St. Mary’s College, na Califórnia

Os estados universais […] são essencialmente instituições negativas. […] são produtos de minorias dominantes: isto é, de minorias criativas que perderam seu poder criativo.

Trecho retirado do livro “Um Estudo da História”, de Arnold Toynbee, historiador britânico (1889-1975)

Sob Trajano, o Império Romano atingiu sua máxima extensão e o ouro que vinha da Dácia permitiu a Trajano realizar construções monumentais, em que pese elas terem feito muito pouco para diminuir as dificuldades econômicas da Itália.

Trecho retirado do Guia Arqueológico de Roma, de Adriano La Regina

    Prezados leitores, quem de vocês já não comprou um livro pela Amazon, a multinacional do comércio eletrônico? Confesso que já o fiz muitas vezes, por causa da mesma comodidade usufruída pelos usuários do Uber, outra empresa global surgida nos Estados Unidos. Com alguns cliques, você faz sua compra do livro que só existe no exterior e pode aproveitar e pedir vários ao mesmo tempo, para que o frete por unidade saia mais barato. É um modelo de negócios inovador e por enquanto imbatível. E, no entanto, como mostra Jack Ramus, esse modelo, baseado nas vendas virtuais e que vem sendo copiado por outras empresas americanas como a WalMart e a Macys, tem seu lado negro. Ele acabou com o emprego das pessoas que trabalhavam nas ultrapassadas livrarias físicas. A Amazon, que investe pesadamente em inteligência artificial, está investindo em drones para a entrega de produtos, o que vai forçar serviços de entrega como Fedex e o UPS a deixar de lado os caminhões e levar os caminhoneiros à obsolescência.

    É verdade que milhares de depósitos de produtos são abertos em todo o território americano e no mundo que precisam de trabalhadores, mas de acordo com o artigo, esses empregos serão de curta duração. A empresa de Jeff Bezos está desenvolvendo robôs que reconhecem a voz humana e conseguem realizar tarefas simples do ponto de vista cognitivo, como colocar produtos em prateleiras, receber e processar pedidos. A conclusão de Jack Ramus é que em que pese o valor de mercado da Amazon ser de um trilhão de dólares e o patrimônio do seu presidente de 165 bilhões de dólares, os malefícios causados por esse novo modo de fazer negócios, baseado na digitalização e na automatização total dos processos, superam os benefícios, que acabam sendo usufruídos majoritariamente pelos acionistas da empresa.

    Criou-se um círculo virtuoso para os muito ricos e um círculo vicioso para os deploráveis. Os cortes de impostos de Donald Trump, que em 2018 somaram 300 bilhões de dólares e responderam por 49% dos lucros das 500 maiores empresas americanas, têm sido usados para pagar dividendos aos acionistas e para a recompra das próprias ações, o que aumenta o valor delas na bolsa de valores e os rendimentos dos investidores.  Quanto aos trabalhadores, a quem foi dito que as benesses fiscais dadas às empresas as levariam a investir e a criar empregos, sobra pagar a conta em termos de desemprego ou empregos de meio período ou temporários, que oferecem menos benefícios como assistência médica e fundo de pensão. Isso, por sua vez, leva à estagnação da renda, à incapacidade de consumo e de poupança, à impossibilidade de aprimoração de competências, o que diminui ainda mais a empregabilidade futura num mundo de drones e robôs.

    Ao mesmo tempo que a Bolsa de Nova York e a Nasdaq batem recordes e os deploráveis se veem em situação cada vez mais precária, vivendo à base de crédito e de dívidas, os Estados Unidos continuam presentes em todo os cantos do mundo, gastando o dinheiro que o americano médio já não tem em seu bolso em intervenções militares. Essa dicotomia foi bem descrita por Arnold Toynbee quando fala em seu livro sobre os impérios, a que ele chama de estados universais, dos quais ele dá vários exemplos, a começar do Império Romano: de um lado há uma minoria dominante que é incapaz de dar respostas aos desafios do mundo e que se vale de seu poder para criar uma entidade política forte e militarizada que a protege do colapso iminente e cria a ilusão de grandeza e de eternidade; de outro lado há um proletariado interno que vive sob o jugo da elite, mas que em algum momento acaba achando uma brecha e  criando suas próprias respostas.

    Os fatos mostram que o império americano vive esse abismo. O prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz e colegas calcularam que as guerras no Iraque e no Afeganistão tenham custado entre cinco e seis trilhões de dólares, o que dá 50.000 dólares por cada lar americano. Dinheiro esse, diga-se de passagem, ainda não pago, já que o império, que tem o monopólio de emissão da moeda mais usada nas operações comerciais no mundo, pode emitir bônus do tesouro à vontade, porque sempre haverá compradores, ou pelo menos tem havido até agora. Por outro lado, o economista Edward Wolff estimou que a grande recessão de 2018 e seus desdobramentos tenham diminuído o patrimônio médio de cada família americana para 57.000 dólares em 2010, sendo que três anos antes ele era de quase o dobro.

    Arnold Toynbee afirma que a queda dos estados universais é inevitável, porque eles são intrinsecamente frágeis, obra de elites que perderam a capacidade de criação e permaneceram apenas com a cobiça e a sede de poder. Os Estados Unidos, desde 11 de setembro de 2001, invadiram o Iraque, o Afeganistão (para combater o grupo terrorista Al-Qaeda), a Líbia, possibilitaram a invasão do Iêmen (fornecendo ajuda militar à Arábia Saudita) e agora estão na Síria (acreditem se quiser, para proteger a Al-Qaeda, que agora transmutou-se em rebeldes acossados pelo ditador Assad em Idlib).  Talvez o próximo na lista seja o Irã. Donald Trump, que prometeu na campanha defender os interesses do proletariado americano, até agora tem falhado, pois a política externa continua tão agressiva e portanto tão perdulária quanto antes,  e a  recuperação econômica tem sido usufruída pelos que investem em ativos financeiros, não pelos que vivem do trabalho. Provavelmente suas boas intenções não eram páreo para os poderosos interesses daqueles que querem que o império continue suas esplendorosas exibições mundo afora.

    Talvez o ocaso da Pax Americana demore anos ou décadas, ou talvez um evento próximo desencadeie um completo desmoronamento do castelo de areia, fundado na cobrança da conta dos americanos sem emprego e sem esperanças. Uma coisa é certa: o pó gerado pela demolição, controlada ou não, causará muitos transtornos aos espectadores. Esperemos não estar por perto.

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Versalhes, nunca mais

A história tem a realidade atroz de um pesadelo; a grandeza do homem consiste em fazer obras belas e permanentes com s substancial real desse pesadelo. Ou em outras palavras: transfigurar o pesadelo em visão, libertar-nos, nem que seja por um instante, da realidade disforme por meio da criação.

Trecho retirado do ensaio “Conquista e Colônia” escrito pelo escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998)

D. João, com D. Pedro, d. Miguel e o sobrinho de 22 anos, d. Pedro Carlos, foi morar em uma propriedade rural, a Quinta da Boa Vista, a seis quilômetros da cidade. A casa lhe fora cedida, em troca de dinheiro, postos e condecorações, por Elias Antônio Lopes, nome aportuguesado do comerciante sírio-libanês Elie Antun Lubbus, traficante de escravos. […] O nome do local, Quinta da Boa Vista, fazia jus ao cenário que se descortinava ali. À frente da residência, era possível avistar o mar; em uma de suas laterais, o morro do Corcovado e a floresta da Tijuca dominam a paisagem até os dias de hoje.  

Trecho retirado do livro D. Pedro, A história não contada, de Paulo Rezzutti

 

Uma das páginas do guia sobre A Villa Romana del Casale inscrita no Patrimônio da Unesco em 1997

    Prezados leitores, desculpem se pareço pedante, mas viajo para conhecer museus. Por enquanto a área do meu interesse é a Europa e lá em qualquer museu que eu visitei uma presença constante é a dos piccolinos com as respectivas professoras. Em Ravenna, Itália, no Mausoléu de Galla Placidia, filha do imperador Teodósio, eles estavam lá. Fazem muito barulho, tiram fotos, muitos nem prestam atenção às maravilhas que estão vendo, no caso os mosaicos do quinto século depois de Cristo, e nem ao que a professora tenta explicar a respeito do contexto histórico. De qualquer forma, um ou outro aluno consegue responder às perguntas da tis, e eles sempre tem que preencher algum questionário, ou anotar alguma coisa. Nas igrejas, os funcionários invariavelmente precisam pedir que os piccolinos fiquem quietos, para não atrapalhar os adultos que estão lá por sua livre e espontânea vontade de ser turistas. Em certos museus, os estudantes sentam-se no chão e enquanto ouvem as explicações  desenham copiando alguma obra de arte.

    Mas a Itália e seu fabuloso patrimônio artístico não atraem só os jovens nativos. Em Piazza Armerina, uma cidade na Sicília que abriga a Villa Romana del Casale, em pleno fevereiro chuvoso e frio, estávamos eu e uma turma de estudantes alemães, estes não muito piccolinos, pelo contrário, deviam ser alunos do ensino médio. Andavam pelas passarelas construídas como andaimes do alto dos quais veem-se mosaicos de uma residência que se acredita tenha pertencido a algum senador ou governador romano, e alguns estudiosos acreditam até que ela tenha sido refúgio de verão de algum imperador, considerando a sofisticação da decoração. Gastei uma pequena fortuna, indo de ônibus à cidade, pegando um táxi à Vila e pagando o ingresso que foi de 18 euros, o preço padrão para atrações que são patrimônio histórico da humanidade.

    Sempre quando olho esses grupos escolares nos museus, penso que aqueles meninos e meninas não dão o devido valor, porque não têm consciência do privilégio de que desfrutam. Eu preciso cruzar o Atlântico, economizar em reais para comprar moeda forte, enquanto eles, que displicentemente olham os celulares, conversam com os amigos e riem do que veem, podem pegar um ônibus a qualquer época do ano e dar uma passadinha lá para ver as moçoilas de biquíni jogando tênis  na Vila ou Jesus Cristo sendo batizado nas águas translúcidas de um riacho feito de pequeninos ladrilhos coloridos no Mausoléu. E no entanto, duvido que o façam. Pelo menos a maioria certamente não. Dito isso, quero eu dizer que esses passeios por monumentos históricos, repositórios de quadros e esculturas e construções de grande valor artístico são uma perda de tempo das escolas? Certamente que não. Essa obrigação dos educadores de colocar as crianças em contato com o patrimônio do seu país e de sua civilização deve ser cumprida, mesmo que esses piccolinos, ao chegarem à vida adulta, adquiram uma atitude blasée em relação a museus e nunca mais ponham os pés em um deles, por estarem fartos de tanta velharia. A Itália pode ter atualmente um índice de desemprego de 37% entre os mais jovens e uma dívida pública de 132% do PIB, mas qualquer italiano sabe da beleza que foi produzida na península desde os tempos em que os gregos colonizaram a parte meridional da bota.

    Agora corto o parêntese europeu e exercito o meu pedantismo aqui no Brasil. Ao contrário de muitos que derramam lágrimas politicamente corretas pelo Museu Nacional, destruído ontem pelo fogo da incompetência, mas que nunca nem tinham ouvido falar dele, eu visitei a Quinta da Boa Vista, a Versalhes brasileira. Não é exagero chamá-la assim, como fez Mariana Amaral no Twitter, visto que a família real brasileira lá fixou residência, para fugir da insalubridade da cidade do Rio de Janeiro.  Para quem não tem carro e não é nativo da Cidade Maravilhosa, foi um passeio aventuroso, para dizer o mínimo. É preciso pegar o trem, descer em uma estação já no subúrbio, e quando entrei no parque, tive a impressão de estar no Parque da Luz em São Paulo, que é povoado de desocupados e bolivianos que vão lá desfrutar de lazer com as respectivas famílias, porque sai de graça.

    A Quinta da Boa Vista, ao menos quando estive lá, há cinco anos, era um lugar de passeio de pretos e pobres. Talvez por não estar na Zona Sul, o museu tinha tanta dificuldade de captar recursos e era tão pouco atraente. Lembro que o prédio era velho à maneira tropical, não à maneira europeia (aqui solto mais um pedantismo): prédio em que se vê claramente que o único dinheiro existente para manutenção é para pagar faxineiras e faxineiros para passarem pano no chão e não deixarem que os piolhos, carrapatos e cupins tomem conta do local. As coleções eram dispostas em vitrines com parcas explicações e exígua luminosidade, e as tábuas de madeira lembravam-me as lojas de balcão da cidade natal da minha mãe, Dourado, onde eu passava as férias na década de 80. Para falar a verdade, nada do que vi ficou na minha cabeça, era apenas um monte de objetos dispostos sem muita organização, e no fim da tarde depois do fechamento do museu tive o cuidado de caminhar rápido para a estação de trem e não correr o risco de estar lá em São Cristóvão ao anoitecer.

    Em suma, o velho padrão da segregação e da estratificação se repete. A classe média não frequenta a periferia e portanto, não vai à Quinta da Boa Vista porque apesar de ali estar o museu mais antigo do Brasil, é um local frequentado pelas classes baixas. Não importa a importância histórica que ele tenha, pois para os brasileiros que não são pretos e nem pobres,  mais importante do que a história que poderia nos unir em torno de um legado comum, é estabelecer com segurança seu lugar sob o céu de brigadeiro tropical, longe da esqualidez de um parque do povo como a Quinta da Boa Vista.

    Prezados leitores, não nos iludamos: haverá muitas manchetes nos jornais e revistas nos próximos dias sobre o finado Museu Nacional, planos serão elaborados e divulgados para revitalizar os museus brasileiros, os presidenciáveis – que tenho certeza nunca passaram perto da Quinta da Boa Vista para desfrutar nem mesmo dos jardins – farão menção da tragédia em seus programas eleitorais. Depois de algum tempo voltaremos a nossa realidade brasileira: diferentemente dos adultos europeus que, forçados ou não, adquirem consciência da sua herança cultural, continuaremos alegremente ignorantes dessas coisas empoeiradas, insossas e chatas que colocam em prédios caindo aos pedaços a que chamam de museus. Viva nossa modernidade, porque somos um país novo, livre de cacarecos.

    Este texto foi uma tentativa tosca de superar minha tristeza em ver o prédio onde nasceu a rainha de Portugal D. Maria II e nosso segundo imperador D. Pedro II, arder em chamas. Versalhes, nunca mais: RIP.

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Desintegração criativa?

Nos períodos “orgânicos”, socialmente coerentes e harmoniosos, os membros de uma sociedade são unidos por um acordo comum sobre a organização social e suas finalidades; as relações individuais e políticas são estáveis e aceitas, e a posse do poder reflete as diversas capacidades de contribuir para o bem-estar da sociedade. Os períodos “críticos”, por contraste, são marcados pelo colapso do consenso e pela desintegração da sociedade em fragmentos dissidentes e mutuamente hostis; o status é questionado, as relações se enfraquecem, e, na consequente luta pelo poder, as capacidades relativas das classes e dos indivíduos discordantes são esquecidas.

Trecho retirado do livro “Um Estudo da História”, de Arnold Toynbee, historiador britânico 1889-1975)

Jair Bolsonaro vai mesmo anunciar oito dos seus 15 ministros antes das eleições. Alguns já estão escolhidos, ou quase certos. […]No Ministério da Educação, o franco favorito é o diretor executivo da FGV Online, Stavros Xanthopoylos, especialista em educação à distância. Foi apresentado a Bolsonaro por Paulo Guedes.

Nota na coluna de Lauro Jardim, na edição do jornal O Globo de 26 de agosto.

   Prezados leitores, depois de uma longa ausência, eis que estou de volta. Não foram os acontecimentos recentes no Brasil motivos suficientes para que eu resolvesse voltar a escrever, ao menos por enquanto, mas minha leitura do livro acima citado. Nele, o autor, do alto do seu conhecimento enciclopédico sobre o que aconteceu ao longo de milhares de anos de atividades do homo sapiens em todos os quatro cantos do mundo, estabelece um padrão de como as civilizações desenvolvem-se, atingem o apogeu e fenecem. Para Toynbee, a liderança criativa da sociedade exerce o papel-chave no processo: é ela que, ao apresentar respostas satisfatórias aos desafios colocados pelo meio ambiente e pelas ameaças externas, ascende ao poder, controlando as massas, que aderem ao seu projeto por beneficiarem-se pela prosperidade trazida pelas decisões acertadas tomadas pela elite. No entanto, a vida em sociedade é dinâmica, e os desafios mudam ao longo do tempo. Pode ocorrer de aquelas respostas dadas pela liderança em um determinado momento não servirem mais depois. Se ela não for capaz de exercer a criatividade e encontrar novas soluções, a civilização começa a desintegrar-se, porque o que funcionava antes não funciona mais: a nata da sociedade que antes era criativa e ascendeu pelo mérito, transforma-se em um grupo fechado, preguiçoso, que se apega ao poder de qualquer forma, corrompido que foi pelos privilégios que a posição dominante lhe dá.

    Como todo esquema de interpretação da realidade, ele é simplista porque divide as eras em compartimentos estanques, o que quase nunca ocorre no lusco-fusco da miríade de interações humanas que fazem a história, e é mais facilmente aplicado a sociedades do passado, sobre as quais já sabemos o desfecho, ou a causa do óbito, como diriam os médicos-legistas. Difícil é fazer uso desse conceito dialético no momento presente, do qual participamos neste território brasileiro. Em que ponto estamos da linha de desenvolvimento? Estamos no começo da decadência, que levará à derrocada pelos múltiplos erros de julgamento da elite, ou estamos já na fase em que a incompetência da elite já está tão escancarada que ela está pronta para ser defenestrada e outros grupos na sociedade já se encontram capazes de dar respostas novas?

     Os sinais de que estamos em um período de grande discordância, como descreve Toynbee, são óbvios demais para serem ignorados. No Brasil de 2018, os especialistas não nos dão mais segurança, ao contrário, confundem-nos ainda mais. Afinal, prisão depois de sentença penal condenatória em segunda instância é constitucional ou não? Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, decidiram em 26 de junho soltar José Dirceu, condenado a 30 anos de prisão no âmbito da Operação Lava-Jato, sob a alegação de que a pena dele pode ser diminuída se os recursos que ele impetrou forem acatados. Um argumentando tortuoso para dizer o mínimo, que parece ter sido tirado da cartola para que os três partidários da presunção de inocência absoluta até o esgotamento de todos os recursos não tivessem que admitir claramente que estão se lixando para a decisão colegiada do STF que estabeleceu a prisão em segunda instância em 11 de novembro de 2016 por seis votos a cinco.  Decisão esta que embasou a colocação de Lula na prisão por decisão do colegiado do STF de 4 para cinco de abril neste ano. Tal inconsistência não é de espantar, considerando o que diz Conrado Hübner Mendes, professor do Departamento de Direito do Estado da USP: “é óbvio que o STF não funciona como órgão colegiado, não é um lugar que leva a colegialidade a sério.”

    Se nossos especialistas em Direito Penal se digladiam a respeito do que significa ser culpado no ordenamento jurídico brasileiro, os doutos em Direito Internacional também o fazem em sua seara. Afinal, a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU em 17 de agosto, recomendando que o Brasil tome todas as medidas necessárias para assegurar que Lula possa exercer seus direitos políticos na prisão, como candidato às eleições presidenciais, é o quê? Vincula o governo brasileiro ou é simplesmente uma recomendação que pode ser ignorada sem grande peso na consciência do país? Um pouco antes, em 30 de julho o Ministério Público Federal reabriu as investigações sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, depois que o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos em junho por não punir os responsáveis pelo “suicídio” dele em 1975.

    É verdade que o Brasil em 10 de dezembro de 1998 reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos e que o Comitê da ONU não tem característica de tribunal. Por outro lado, aqui também há um quê de inconsistência das nossas autoridades jurídicas. Afinal, o STF, em 29 de abril de 2010, decidiu rejeitar o pedido da OAB para que anulasse o perdão dado aos policiais e militares que foram acusados de praticar tortura e modificasse a Lei da Anistia, de 1979. Naquele mesmo ano, em novembro de 2010, a CIDH ao julgar o Caso Gomes Lund a respeito da Guerrilha do Araguaia, considerou que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana”. Em suma, o Brasil, de 2010 a 2018, quando o caso Vladimir Herzog, foi reaberto, não seguiu a ordem da CIDH de investigar e punir os torturadores do aparato estatal, apesar de estarmos vinculados a ela por tratado internacional. Será que a recomendação da ONU a respeito da garantia a Lula do direito de ser candidato está sendo solertemente ignorada porque é a conveniência política do momento ou por uma razão estritamente técnica?

    Esses são meros exemplos da cacofonia que reina em nosso Brasil. Cabe perguntarmo-nos se estamos no fundo do poço e se a eleição de 7 de outubro significa que elegeremos um presidente que derrubará a velha ordem e dará uma resposta nova aos desafios do século XXI, em que a socialdemocracia vislumbrada pela Constituição de 1988 parece não ter espaço. Será a solução Posto-Ipiranga de Jair Bolsonaro mais uma falsa solução ou um lampejo de criatividade que nos tirará da areia movediça em que nos encontramos? Os sinais são contraditórios. De um lado, a ideia dele de enxugar o número de ministérios e fazer escolhas de nomes para ocupar os cargos de primeiro escalão sem toma-lá-dá-cá com partidos vai ao encontro do desejo do povo brasileiro de acabar com o presidencialismo de coalizão que tanta corrupção tem gerado na gestão do Estado. De outro lado, a solução Paulo Guedes de privatização de tudo o que é possível soa como mais do nosso velho conhecido capitalismo dos amigos (ou crony capitalism como os anglo-saxões referem-se a esse tipo de sistema), que vende a parte boa das estatais e deixa as dívidas com o povo brasileiro, como foi feito com as distribuidoras de energia elétrica e como pretendia ser feito com a Eletrobrás por Michel Temer. E a reforma da previdência: Bolsonaro proporá uma regra única a todos, funcionários públicos e privados, ou protegerá o grupo ao qual pertence, os militares, que gozam de tantas regalias a respeito da aposentadoria? Será que o novo de Bolsonaro será uma mera cortina de fumaça para que a minoria dominante continue a usufruir dos seus privilégios mandando a conta para outros? Provavelmente, nem o genial Arnold Toynbee, professor do King’s College de Londres e membro da delegação inglesa presente na Conferência de Paz que levou ao Tratado de Versalhes, se estivesse a analisar a discórdia em que o Brasil se encontra, não conseguisse chegar a nenhuma conclusão.

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Reflexões no Dia do Trabalhador

O relatório “O futuro do emprego”, publicado em 2013 pelos economistas Carl Frey e Michael Osborne, da Oxford Martin School, avaliou que algoritmos sofisticados podem substituir 140 milhões de profissionais que atuam em atividades intelectuais em todo o mundo. O documento menciona exemplos como a crescente automatização das decisões tomadas no mercado financeiro e até mesmo o impacto no trabalho dos engenheiros de software – por meio do aprendizado de máquina, a programação pode ser aperfeiçoada e acelerada com o auxílio de algoritmos.

Trecho retirado do artigo “O mundo mediado por algoritmos”, de Bruno de Pierro, publicado na revista Pesquisa FAPESP de abril de 2018

Os economistas e juristas afirmam ser cedo ainda para avaliar a real dimensão da nova lei. Mas, em ao menos um caso, ela já deu mostras inequívocas de ter alcançado um de seus principais objetivos: desafogar a Justiça do Trabalho das ações oportunistas e restringir a indústria de processos. Assim que a lei entrou em vigor o número de novos casos apresentados nas varas do Trabalho de todo o país caiu pela metade. A média mensal foi de 244.000 processos, antes da reforma, para 110.000 depois dela.  

Trecho retirado do artigo “Adeus à Indústria de Ações” de Marcelo Sakate, publicado na edição da revista Veja de 2 de maio de 2018

Cartão do Bolsa Família, o mais importante programa de assistência social do governo federal

    Prezados leitores, em comemoração ao Dia do Trabalhador, o excelentíssimo Presidente da República Michel Temer anunciou o reajuste do benefício do Bolsa Família em 5,67%, válido a partir de julho deste ano. Para quem não sabe, a ajuda mensal, tão polêmica no Brasil, é concedida a famílias pobres, isto é, com renda mensal entre R$ 85,01 e R$ 175,00, e a famílias extremamente pobres, isto é, aquelas cuja renda mensal é inferior a R$ 85,00. A apresentação que o governo federal faz do aumento no valor do benefício como uma conquista dos trabalhadores no seu dia é estranha, mas reveladora.

    Estranha porque o Bolsa Família não tem nada a ver com trabalhadores, bem ao contrário (e aqui não há nenhum julgamento de valor a respeito da conveniência ou não desse benefício de assistência social). Uma família que vive com R$ 175 reais por mês é uma família em que não há um único membro que tenha um emprego digno do nome, ou que tenha tido algum emprego recentemente. Afinal, se houvesse um membro desempregado na família, ele estaria recebendo seguro-desemprego, cujo valor é a média dos três últimos salários antes da dispensa.  Como o valor máximo do Bolsa Família é de R$ 195, fica claro que seu público-alvo não é a figura clássica, alguns diriam jurássica, do trabalhador, que já teve ao menos um registro de emprego em carteira ganhando salário mínimo, que hoje é de R$ 954 reais.

    Se o Bolsa Família não é um benefício previdenciário, a ser usufruído por um indivíduo que já tenha contribuído para a Previdência Social por ter emprego registrado em carteira de trabalho, qual a razão de Temer fazer questão de anunciar o reajuste às vésperas do 1º de maio? Será por que ele não tem nada de concreto a oferecer àqueles que não são suficientemente desprovidos para nunca terem tido o status de trabalhador? Será que essa boa notícia encobre uma situação no mínimo incerta na seara daqueles que são os legítimos alvos da comemoração do dia?

    Afinal, o Brasil ainda tem 13 milhões de desempregados, e embora a reforma trabalhista tenha diminuído o número de ações na Justiça do Trabalho, fato comemorado pelos empresários, a sua aprovação às pressas teve como justificativa a necessidade premente de resolver o problema da desocupação. Como a própria revista VEJA admite, a nova CLT ainda está longe de dar frutos nesse quesito, se é que algum dia vai dar. Para ficarmos num único exemplo, o contrato intermitente permanece uma incógnita do ponto de vista previdenciário: se não há jornada fixa e o pagamento de contribuições ao INSS é proporcional ao número de horas trabalhadas, como o trabalhador conseguirá fazer jus às férias, ao salário-maternidade, ao auxílio-doença, à aposentadoria por invalidez, os quais exigem um mínimo de contribuições previdenciárias? De fato, se o trabalhador em contrato intermitente ficar um mês inteiro sem trabalhar, o que é possível, nem ele nem o empregador farão pagamentos ao INSS. Tanto é um buraco negro gerador de muita perplexidade esse tipo de vínculo empregatício que de novembro a março “apenas 12.800 trabalhadores foram admitidos por esse novo regime!”, de acordo com a revista.

    A chance de resolver algumas das dúvidas relativas ao contrato intermitente foi desperdiçada quando a Medida Provisória 808 de 17 de novembro de 2017, que garantia o pagamento de salário-maternidade e de auxílio-doença aos trabalhadores intermitentes, perdeu a validade sem ter sido transformada em lei no Congresso Nacional. Talvez os deputados e senadores não tenham achado o aprimoramento da lei para que os novos regimes de contratação não levassem à pulverização dos benefícios previdenciários um assunto prioritário.  Afinal, a reforma da previdência cedo ou tarde virá e ela com certeza, ao tornar a aposentadoria um sonho muito mais longínquo ou impossível, vai compensar em muito a erosão da base das contribuições previdenciárias causada pelo desemprego e pela realização de uma reforma trabalhista que introduz jornadas parciais e jornadas flutuantes que não garantem receitas periódicas ao INSS.

    De qualquer forma, tenhamos fé que a razão pela qual nossos parlamentares não se importaram em regulamentar a Lei 13.467 de 2017 é porque sabem que no futuro tudo será esclarecido pelos próximos legisladores que se debruçarem sobre o problema do financiamento da seguridade social, ou melhor pelo mercado, pois agora empregados e empregadores estão livres para negociar os termos do contrato de trabalho. Se antes quando a lei era rígida já havia sonegação de contribuições previdenciárias pelo registro a  menor do salário na carteira, agora, quando a flexibilidade é muito maior para estabelecer as condições de contratação, os agentes econômicos certamente preocupar-se-ão muito mais com a viabilidade financeira do sistema de previdência social do Brasil, pois estão conscientes que o preço da maior liberdade deve ser uma maior conscientização sobre o bem-estar coletivo. É ver para crer. Ou ver para chorar.

    Prezados leitores, pelo andar da carruagem do governo Temer, a reforma da CLT terá sido seu único legado. Sabendo quão frágil esse legado permanece em vista do persistente índice de desemprego, nosso douto Presidente cola o Bolsa Família ao trabalhador certamente por falta de algo melhor a oferecer em termos de política social, e talvez em virtude de sua consciência de que no frigir dos ovos o futuro do trabalhador poderá ser o de recipiente de Bolsa Família. Se a combinação dos algoritmos e do Big Data, que é o acúmulo de uma quantidade astronômica de dados, permitir aos computadores tomar decisões melhores do que um ser humano conseguiria, é provável que a profecia dos economistas citada no início deste artigo não seja mero alarmismo, mas concretize-se gradual e inexoravelmente. Isso significaria transformar milhões de trabalhadores de hoje em desempregados estruturais amanhã. Quando esse dia chegar, contribuições e benefícios previdenciários ficarão obsoletos e a única coisa que teremos à disposição será a garantia de renda mínima proporcionada pela assistência social. Esperemos que os privilegiados que conseguirão manter-se operantes na Quarta Revolução Industrial tenham simpatia por nós pobres redundantes. O excelentíssimo Michel Temer já está lhes mostrando o caminho da caridade.

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A democracia ou o clube dos ressentidos

O apelo mais constante que ele fazia era ao ressentimento, a mais sustentável das emoções (pode durar toda uma vida e, sendo facilmente transferível, pode ser herdada). Barrera em seu romance certamente não pretende dizer que a Venezuela era uma espécie de paraíso antes da ascensão de Chávez, com sua diferença abissal entre os ricos ou mesmo moderadamente bem de vida e os pobres, ou que não havia nenhuma razão para alguém estar descontente. Mas o charlatanismo ressentido de Chávez, sua atitude de vendedor agressivo de soluções políticas e econômicas rápidas foi um desastre para o país do qual este levará várias gerações para se recuperar. 

Trecho retirado do artigo “Pensamento revolucionário” do médico e escritor inglês Theodore Dalrymple, publicado em 21 de abril

Eu cometi esse crime e eles não querem que eu cometa mais. É por conta desse crime que já tem uns dez processos contra mim. E se for por esses crimes, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria. Se esse é o crime que eu cometi eu quero dizer que vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou fazer muito mais. Vou fazer muito mais.

Trecho do discurso do ex-presidente Lula antes de ser preso em 8 de abril

Todas as vezes em que o Estado constatar que há problema grave de sub-representação de grupos minoritários – negros, mulheres -, esse dado estatístico deve ser levado em conta para a tomada de decisões, tendentes a corrigir essa anomalia.

Fala de Joaquim Barbosa, provável candidato à Presidência da República

Quadro pintado por Maria Auxiliadora da Silva (1935-1972), pintora negra brasileira autodidata

    Prezados leitores, as citações que abrem este artigo mostram que a prática democrática na América Latina tem se mostrado o palco da expressão dos nossos recalques e ressentimentos, fruto das nossas desigualdades atávicas. Para quem não sabe, dos 20 países com os índices Gini mais altos (e, portanto, mais desiguais), oito estão na América Latina e o resto está na África Subsaariana. De acordo com o Banco Mundial, o Brasil tinha um índice Gini de 51,3 em 2015, a Noruega de 27,5 e o da Venezuela em 2006 era de 46,9.

    Menciono os números referentes a Brasil e Venezuela porque os dois líderes latino-americanos que mais souberam trabalhar esses ressentimentos dos que não têm contra os que têm e vice-versa foram Hugo Chávez e Lula. O perfil da Venezuela no CIA Fact Book mostra como os investimentos sociais de Chávez reduziram a pobreza de 50% em 1999 para 27% em 2011. Bravo, diria Gleisi Hoffmann, a presidente do PT. Esse resultado seria realmente motivo para celebração se fosse sustentável, mas a ênfase de Chávez na confrontação, no nós contra eles, sejam eles as elites brancas venezuelanas ou o império americano, fez com que mais de um milhão de cidadãos qualificados deixassem a Venezuela rumo aos países europeus de seus antepassados, ao Canadá, à Colômbia e aos Estados Unidos.

    Felizmente essa fuga em massa de cérebros ainda não ocorreu no Brasil, e Lula no auge da sua popularidade nunca caiu na burrada de demitir 20.000 funcionários da estatal do petróleo, incluindo os valiosíssimos engenheiros, como fez Hugo Chávez em 2002-2003 para punir seus adversários por terem realizado uma greve na Petróleos de Venezuela S.A.. É verdade que atualmente, como mostra seu discurso de oito de abril, Lula tem explorado cada vez mais a verve do ressentimento para caracterizar sua posição de vítima de um Judiciário de conluio com as elites, mas o faz num momento em que tem poucas perspectivas de voltar ao poder. Para o bem do Brasil, as políticas sociais de Lula diminuíram a desigualdade de renda de uma maneira mais contemporizadora e malemolente, no estilo “lento, gradual e seguro” mais afeito à nossa herança portuguesa e africana, que garantiu que não houvesse uma reação violenta da classe média qualificada como houve na Venezuela. Digo que foi para o bem do Brasil, porque por mais que a classe média na América Latina queira ficar longe dos pretos, índios, mestiços e pobres, ruim com ela, pior sem ela. Sem mão de obra qualificada não há como fazer a economia girar.

    A saída para esse impasse talvez seja a proposta por Joaquim Barbosa, aumentar a participação dos negros nas universidades e nos cargos públicos por meio das cotas, de forma a mudar o perfil da classe média no Brasil e torná-la menos identificada com os interesses das elites, como tem ocorrido historicamente no Brasil, algo tão bem mostrado por Machado de Assis nos personagens de seus romances que gravitam em torno dos membros da elite, como Escobar e Capitu o fizeram em relação a Bentinho.  Mas esse caminho tem suas armadilhas, como mostra o sucesso de um candidato como Jair Bolsonaro, que já criticou os quilombolas de Eldorado Paulista por não fazerem nada nas terras que lhes foram concedidas. É provável que a denúncia da procuradora-geral da República, Raquel Dodge contra o ex-capitão do Exército, a quem ela acusa de crime de racismo contra quilombolas, indígenas, mulheres e LGBTs, permita a Bolsonaro colocar-se no papel de vítima de perseguição da esquerda. Dessa forma, se Joaquim Barbosa tentar explorar sua condição de negro para vender sua candidatura àqueles que se beneficiariam de cotas, ele talvez perca votos em uma classe média zelosa da sua posição longe da “senzala”.

    Se é inevitável que a democracia em países diversos e desiguais como o Brasil e a Venezuela funciona movida pelo ressentimento mútuo dos eleitores chamados a escolher aquele que será seu amigo no poder, então talvez a essa altura o ressentimento cuja exploração seja menos nociva em nosso país seja aquele que nutrimos contra os corruptos. Afinal, ao contrário do ressentimento dos que têm contra os que não têm, que pode levar a uma distribuição de renda contraproducente no longo prazo, como ocorreu na Venezuela, o pior efeito que o ressentimento contra os corruptos pode ter é o de levar a uma diminuição das garantias dos acusados e um reforço do direito penal do inimigo, o direito das transações penais, do toma lá dá cá entre promotores e acusados, aquele que foi aplicado para condenar Lula e que eu tentei humildemente explicar neste espaço há duas semanas. Por mais que a OAB esperneie contra as limitações colocadas à presunção da inocência, as eventuais injustiças cometidas pelo exercício desse novo direito penal não terão grande efeito sobre a grande maioria da população delinquente brasileira, que não terá grandes coisas para revelar em delações premiadas porque não faz parte da cúpula de grandes esquemas criminosos.

    Seja como for, esse clube de ressentidos de que é refém a democracia na América Latina não promete nos levar por um caminho de escolhas mais sensatas sobre o que fazer para resolver os problemas do Brasil. Seja o juiz implacável defensor das minorias oprimidas e da punição dos corruptos, seja o defensor da lei e da ordem para que o Brasil não vire a Venezuela, essa exploração de vinganças e recalques fará com que deixemos de lado a qualidade que para mim deveria ser essencial: quem tem mais capacidade de gerir, isto é de mobilizar recursos humanos e materiais em prol de um objetivo? Para responder a tal pergunta seria preciso confrontar o currículo dos respectivos candidatos para verificar quem mais obteve resultados nessa categoria. Tanto Barbosa quanto Bolsonaro receberiam nota zero, porque nunca administraram nada, nem loja de 1,99 muito menos uma prefeitura ou um governo estadual. Pelo andar da carruagem democrática, o ganhador das batatas será aquele que souber dar melhor expressão aos sentimentos descritos por Dalrymple em seu artigo sobre o caudilho venezuelano. Quem perde somos todos nós.

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