É preciso educar a avaliação para que sirva ao seu verdadeiro papel: indicar se a educação está oferecendo a cada pessoa, desde a infância, o mapa para sua vida pessoal e para suas atividades sociais na direção de aumentar o grau de riqueza, liberdade, justiça, civilidade no país onde vive. Não há outro caminho para encaminhar um Brasil mais justo.
Trecho retirado do artigo “A Educação da Educação”, do ex-senador Cristóvam Buarque, publicado na revista VEJA de 29 de novembro
Quem cuida da educação brasileira não pode ignorar uma notícia do dia 30 de outubro. Nela, é apresentada uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), identificando as 29 ocupações (dentre 231) com mais gente abandonando do que entrando. Pois não é que ali estão sete categorias ligadas ao ensino? Isso apesar de ganhos salariais de mais de 50%.
Trecho do artigo “Tabela do ‘Estadão’ é grito da profissão docente, de Cláudio de Moura Castro, publicado no jornal o Estado de São Paulo de 1º de dezembro
“De todos os motores sociais, a escola provavelmente é o mais eficaz, porque exerce três tipos de influência sobre os jovens que ela abraça e dirige: uma por meio do mestre, outra por meio dos colegas e a última por meio de regras e regulamentos”. […] Napoleão pensava sobre a educação pública em termos políticos: sua função era a de produzir cidadãos inteligentes mas obedientes. “Ao estabelecer um corpo de professores,” ele disse, com uma franqueza incomum em governos, “meu principal objetivo é o de assegurar os meios para direcionar as opiniões morais e políticas… Enquanto o indivíduo crescer sem saber se é republicano ou monarquista, católico ou agnóstico, o estado nunca formará uma nação; permanecerá sobre pilares vagos e incertos; ficará constantemente exposto à desordem e à mudança.”
Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a educação como fundação da ordem moral
Prezados leitores, sou de uma geração que teve aulas de Educação Moral e Cívica. Não lembro muito bem do conteúdo, porque a matéria não era levada muito a sério e não fazia com que o aluno repetisse de ano, como fazia o Português ou a Matemática. Lembro também que na última página dos cadernos que eu usava no ensino primário havia o Hino Nacional. Até hoje eu o sei de cor, como sei cantar o Hino da Bandeira e o Hino da Independência. Certamente esse conteúdo educacional era resquício da ditadura militar (1964-1985), duvido que hoje as crianças sejam obrigadas a decorar hinos, quaisquer que sejam. Enfim, todo esse civismo e moralismo foi jogado na lata de lixo da história, considerados tão ultrapassados como a sucessão de generais-presidentes.
E no entanto, há um fundamento histórico para tal educação, independentemente da ideologia do governo. Já falei aqui neste meu humilde espaço, no texto “As Otárias”, sobre a Concordata que Napoleão Bonaparte assinou com a Igreja Católica em 1801 para que a religião voltasse a ter um papel na formação moral dos franceses depois dos loucos anos da Revolução, em que tudo foi permitido, inclusive e principalmente a violência e a desordem. Conforme o trecho que abre este artigo, o imperador também considerava que a educação deveria desempenhar o mesmo papel pragmático: o de inculcar regras e o hábito de respeitá-las não porque aquelas regras fossem verdadeiras, mas porque fazer com que cada cidadão se enquadrasse no molde proposto era bom por si mesmo, levando ao respeito à hierarquia e à ordem e assim à prosperidade de todos.
Nesse sentido, Napoleão estava longe de ser um ideólogo, ele não tinha paciência com pessoas que pensavam muito e elucubravam sistemas que não levavam em conta a realidade da natureza humana e a experiência histórica. O único exercício filosófico válido era o estudo da História, porque permitia ao homem ter contato com as alegrias e vicissitudes dos que viveram antes dele e a lição a ser tirada era que se a sociedade desse liberdade em demasia aos indivíduos eles abusariam dela e dariam vazão aos seus instintos e paixões, chafurdando na violência, na ganância, na busca do prazer sem medidas. Então tratemos de educar as pessoas para aprenderem as regras da vida em sociedade e assim torná-la mais estável e menos sujeita a revoluções dos radicais da esquerda que queriam a justiça social a qualquer preço e a contrarrevoluções dos reacionários da direita, que queriam a volta da monarquia e do feudalismo.
O meio que Napoleão encontrou para isso foi criar uma Universidade Imperial, encarregada da formação de professores para atuarem em toda a França. Haveria uma carreira em que cada pessoa só poderia ser promovida se tivesse ocupado anteriormente um posto inferior. 6.400 bolsas de estudo foram incialmente oferecidas para atrair pessoas: em troca da possibilidade de ascensão até os mais altos postos, o indivíduo comprometia-se a dedicar-se ao ensino e a só casar com 25 anos de idade para viabilizar tal comprometimento. E qual era o currículo básico nesta Universidade para os soldados do ensino? Nada de discussões políticas ou morais sobre se a república era melhor que a monarquia ou se a religião era uma opção filosoficamente válida. As matérias eram línguas, literatura e ciências. De acordo com Will Durant, o resultado das bolsas e da reorganização do currículo foi que os franceses ficaram na crista da onda do ponto de vista intelectual na Europa por 50 anos.
Transformar a escola em um local para aprender como ser um bom cidadão, útil para a sociedade, sem discussões inúteis sobre filosofia que levassem apenas ao embate de ideologias, esse era o ideal de Napoleão. Talvez algumas dessas características possam ser aproveitadas no Brasil em pleno século XXI, sem o ranço da moral e do civismo da década de 1970. Afinal, a tarefa de regenerar a docência é urgente em nosso país, conforme mostra a pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) citada na abertura deste artigo, que identificou 29 ocupações no ramo educacional entre as mais indesejadas no Brasil, a despeito do aumento salarial. Se os professores estão fugindo de dar aulas, independentemente do quanto ganham, deve haver algum problema no ambiente escolar que o torna repugnante.
Será a violência? Será a falta de respeito pelo professor? Será em última análise que a sociedade brasileira como um todo não vê a educação como uma ferramenta estratégica para a construção da cidadania, como Napoleão via há mais de 200 anos? Afinal, se ninguém dá importância à educação fora do ambiente escolar porque aqueles que atuam dentro dele dariam? Como agiriam diferente se os valores da sociedade na prática não estabelecem uma missão ao esforço de educar? Como teriam motivação para permanecer dentro da escola se ninguém vê sentido para aquela atividade?
Uma prova de que o brasileiro no geral fala da boca para fora do valor da educação para o bom funcionamento da sociedade é o insucesso político de um homem claramente comprometido com tal princípio, Cristovam Buarque. É verdade que ele foi reitor da Universidade de Brasília, governador de Brasília, ministro da Educação e eleito duas vezes para o Senado Federal. No entanto, em 2006, quando foi candidato à Presidência da República, propondo a ênfase na educação como chave para construir um Brasil mais justo, teve apenas 2,4% dos votos dados. Conforme o trecho que abre este artigo, para Cristovam Buarque a educação de qualidade, desde a infância, é o mapa que norteará o indivíduo, permitindo-lhe fazer escolhas que farão a sociedade como um todo ser mais próspera, livre, justa e civilizada.
Prezados leitores, seja como mapa pessoal, como propõe Cristovam Buarque, seja como instrumento para inculcar bom comportamento no indivíduo e criar uma sociedade ordeira, como queria Napoleão, a educação deveria ser sempre um dos meios mais estratégicos para conseguirmos atingir objetivos de longo prazo. Será que algum dia de fato teremos esse valor e o concretizaremos na prática? Ou será que continuaremos a falar da educação como exercício de retórica para nos sentirmos bem com nós mesmos e perante os outros? Esperemos que da próxima vez que um outro Cristovam Buarque apareça para disputar cargos no executivo sejamos mais receptivos a sua mensagem.