E se?

Todo mundo fala da importância do “carisma” do político. Mas em que pese isso ter uma influência muito grande com os eleitores não tem muito impacto no parlamento, a não ser que impulsionado por outros pontos fortes. Os romanos tinham um checklist útil. […] A prioridade principal eram os amici, os aliados políticos entre os grandes. Eles automaticamente incluíam aqueles conectados pelo sangue, pelo casamento ou por outras associações, mas precisavam espalhar-me muito mais além, em redes de relacionamentos que incorporassem homens com uma ampla gama de históricos políticos, jurídicos e sociais. Essas relações precisavam ser trabalhadas e mantidas por favores feitos e recebidos ao longo de um grande período de tempo: uma tarefa nada fácil. Seu sucesso em estabelecê-las dependia da percepção de que você era confiável – você estava sempre a postos para ajudar os amici – e que você normalmente tinha boa vontade em relação a eles. Seus amici precisavam sentir que no que se refere a obrigações mútuas, você não os decepcionaria. Essas eram as pesadas exigências da amicitia.

Trecho retirado do artigo “Estranhos e irmãos” escrito pelo classicista britânico Peter Jones

As democracias sempre foram espetáculos de turbulência e disputa; sempre se constatou serem incompatíveis com a segurança pessoal e os direitos de propriedade, e no geral tiveram vida curta, pelo fato de terem tido morte violenta.

Trecho retirado do artigo nº 10 do Federalista, escrito por James Madison (1751-1836), 4º Presidente dos Estados Unidos

 

    Prezados leitores, neste artigo proponho uma série de perplexidades que me acometeram nos últimos dias diante da chegada tonitruante do Exército de Brancaleone do presidente eleito Jair Bolsonaro. Minha qualificação refere-se ao fato de o grupo do nosso novo chefe do Executivo que tomará posse em 1º de janeiro ter se mostrado bastante mal organizado e atrapalhado, como o foi o grupo comandado pelo cavaleiro Brancaleone da Nórcia, interpretado no cinema por Vittorio Gasmmann. Como parênteses estive no local em que foi rodado o filme, uma antiga fortaleza em Ravenna, na Itália, que hoje é um tranquilo parque, onde se pode sentar em um banco e apreciar a natureza.

    Esse amadorismo similar ao dos maltrapilhos medievais comandados por Brancaleone não é de se espantar, considerando que o povo brasileiro fez questão de escolher um membro do baixo clero do Congresso Nacional que não tomava parte em grandes esquemas de corrupção, mas também nunca participou das grandes negociações para a aprovação de projetos no Parlamento. O capitão reformado do Exército precisará aprender rápido como lidar com os outros três Poderes da República, algo que lhe é estranho, já que sua habilidade até agora foi a de criticar a cartilha ideológica da esquerda e a sem-vergonhice generalizada. Então, abaixo coloco muitas perguntas que depois das idas e vindas do “Mito” a respeito da embaixada brasileira em Jerusalém, da extinção do Ministério do Meio Ambiente, da reforma da previdência, vieram-me à mente.

    E se a renovação histórica que o povo brasileiro fez de 85% no Senado, e de 54% na Câmara dos Deputados, não adiantar nada porque os neófitos não têm conhecimento dos rituais de funcionamento do Legislativo? E se tiverem que pedir a ajuda de veteranos como Rodrigo Maia para fazer as coisas funcionarem? E se ao pedir a ajuda terão que dar algo em troca? E se ao se recusarem a participar de tomas-lá-dá-cá forem alijados das atividades parlamentares, o que de fato mudará na prática política?

    E se a aprovação relâmpago pelo Senado do aumento de 16% ao STF for reveladora da face negra dos processos criminais contra os políticos, a saber, que todos eles agora têm medo do poder do STF de aprovar a prisão ou ordenar a soltura dos que gozam de foro privilegiado? E se essa aprovação surpresa de uma benesse foi obra de um conchavo entre Dias Toffoli, o presidente do STF, e Eunício Oliveira, presidente do Senado, na base da troca de favores entre os amici descritos por Peter Jones? E se tal conchavo for evidência clara de que o Legislativo é refém do Judiciário, que tem o poder de desconstruir qualquer reputação política? E se a fala do ministro Marco Aurélio, ironizando o voto de pobreza da Ministra Cármen Lúcia, que havia se pronunciado contra o aumento, mostra que o Judiciário tem pouca sensibilidade com os problemas nacionais e dedica-se precipuamente a defender seus próprios interesses, dignos do Premier État?

    E se o comentário de Eunício Oliveira “Não me importo se o Bolsonaro gostará ou não” a respeito da crítica do presidente eleito sobre a aprovação do aumento for um recado a Bolsonaro? E se a mensagem subliminar seja: “não seja ingênuo em achar que o mandato das urnas vai permitir a você fazer o que quiser e ditar ordens, você precisa cultivar os amici para conseguir algo? E se Bolsonaro teimar em não aprender a lição? Vai governar por medidas provisórias respaldadas por seus generais? Vai render-se à negociação de cargos e abandonar o ideal tantas vezes propalado de pautar-se pela competência técnica na escolha de colaboradores?

    E se a aprovação no último dia sete de outra medida-bomba pelo Congresso Nacional, o Rota 2030, que prevê créditos tributários de um bilhão e meio de reais para a indústria automobilística revela-nos uma sinistra verdade, a saber que os deputados e senadores não são representantes do povo, mas de certos grupos de interesse com poder de pressão que pouco se importam com a res publica?  E se a bancada 3 B da bala, do boi e da bíblia, que apoiou maciçamente Bolsonaro, fizer dele refém de suas pautas, reforçando a visão maniqueísta que ele tem demonstrado até agora sobre o meio ambiente, sobre a educação e sobre a segurança?

    E se Bolsonaro mantiver-se fiel à sua rede primária de amigos entre os militares e não angariar outros amici como Eunício de Oliveira? A reforma da previdência será um arranjo meia-boca em que quem vai pagar o pato serão os empregados do setor privado? E se o déficit de 43 bilhões gerado pelos benefícios dados aos militares não for levado em conta porque Bolsonaro defenderá os interesses da sua própria casta e aqueles que o apoiarão no governo, como Augusto Heleno? E se o déficit de 44 bilhões gerados pelos servidores também for deixado de lado porque a bancada dos servidores públicos é firme e atuante no Congresso? Será feita justiça considerando que o regime geral com déficit de 218 bilhões atende cerca de 30 milhões de brasileiros, enquanto o regime próprio dos servidores públicos e militares tem rombo de 90 bilhões, mas atende apenas um milhão de pessoas?

    E se a escolha mais reluzente para a equipe ministerial, a de Sérgio Moro para Ministro da Justiça revelar-se um erro? E se as qualidades de Moro em sua atuação judiciária – capacidade de leitura, de aplicar conceitos abstratos a fatos concretos – não for suficiente para ter sucesso como executor de políticas públicas e gestor de grandes equipes? E se houver conflito entre as responsabilidades de Moro como detentor de um cargo executivo e seus interesses como futuro Ministro do STF, cargo que já lhe foi prometido por seu chefe? E se Moro usar as informações que adquiriu ao longo dos anos da Lava Jato para direcionar as investidas da Polícia Federal contra aqueles que criticarem sua atuação antes da passagem pelo ministério de Bolsonaro e durante ela? E se o combate à corrupção no Executivo e no Judiciário tornar-se uma caça às bruxas travestida de indignação moral? E se passarmos toda a classe política por debaixo do rolo compressor de Sérgio Moro quem sobrará?

    E se Bolsonaro, devido a sua inexperiência de deputado do baixo clero frustrar-se com as negociações demoradas e infrutíferas no Congresso? Atacará os Congressistas pelo Twitter chamando-os todos de corruptos? E se o Judiciário tentar limitar as iniciativas do Presidente em prol da implementação da vontade da maioria conservadora que o elegeu, que quer mais armas, mais bandidos na cadeia e menos direitos das minorias, Bolsonaro irá acatar as decisões de um ministro progressista como Barroso como aplaude de pé as decisões de Moro, que o ajudaram a alçar-se à Presidência? E se Bolsonaro desgostar-se com o Legislativo e o Judiciário, ele pensará na sugestão de seu filho Eduardo dada em julho deste ano?

    E se nossa democracia continuar refém das redes de amici que se distribuem benesses mútuas e das disputas irreconciliáveis por recursos públicos cada vez mais escassos, ela sobreviverá?

    Prezados leitores, reflitam, e deem respostas sim ou não a depender do seu viés otimista ou pessimista.

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Luz e Sombras

Onde se veem arbustos de galhos retorcidos há o mais importante sistema de captação e reserva de água do Brasil fora da Amazônia. Um sistema baseado em vegetação e que garante nove das principais bacias hidrográficas do país. Ameaçado pela expansão do agronegócio, reduzido a cerca da metade de seu tamanho original, ele agora caminha para a maior extinção de plantas já registrada no mundo, com consequências para a oferta de água e a regulação do clima do centro-sul do país, alerta um estudo.

Trecho de artigo intitulado “Cerrado em Risco” publicado no jornal O Globo de 14 de outubro

A vida é repleta de incertezas, mudanças, confusão, informações erradas, algumas vezes de maneira leve e outras de maneira intensa. Do nascimento à morte, a vida exige que nós continuamente saibamos lidar com abstrações, resolver problemas, fazer inferências e realizar julgamentos com base em informações inadequadas. […] Os profissionais e executivos de alto nível classificam sua ocupação como altamente exigente do ponto de vista intelectual, mas somente os primeiros tendem a considerar credenciais educacionais, a leitura e a escrita como essenciais.

Trecho do artigo intitulado “Por que o coeficiente de inteligência importa: a complexidade da vida cotidiana” escrito por Linda S. Gottfredson, psicóloga e professora da Universidade de Delaware

    Prezados leitores, o estudo sobre inteligência humana é sempre motivo de polêmica, pois seus autores são muitas vezes acusados de racistas e preconceituosos por estabelecer diferenças entre as pessoas com base em testes de QI, os quais eles assumem como sendo uma mensuração válida de capacidade mental. A professora doutora Linda Gottfredson foi vítima das paixões que envolvem tais estudos quando o convite que havia recebido para ministrar uma palestra em Gothenburg, na Suécia, em uma conferência do Conselho da Associação Internacional de Orientação Educacional e Vocacional realizada no começo de outubro, foi retirado. No artigo citado acima, a professora Linda fala da repercussão da inteligência, ou da falta dela, sobre a vida de cada um de nós, particularmente sobre a ocupação profissional: cada tipo de profissão exige determinadas habilidades cognitivas, relacionadas por Gottfredson, tais como lidar com situações inesperadas, aprender informações relacionadas ao trabalho e lembrá-las, comparar informações de uma ou mais fontes e tomar uma decisão, aplicar o bom senso para resolver problemas, reagir rapidamente quando problemas inesperados ocorrem. A inteligência não está necessariamente ligada a habilidades acadêmicas: aprender a ler e escrever cada vez melhor não aumenta a inteligência das pessoas, de acordo com os estudos mencionados pela professora em seu artigo, mas é claro que as pessoas inteligentes conseguem adquirir tais capacidades de maneira mais fácil do que as pessoas menos inteligentes.

    Não é difícil entender a utilidade de tais estudos para as empresas selecionarem profissionais: tomando como pressuposto que os testes de QI avaliam a capacidade geral de inteligência, saber o QI dos candidatos é importante para descobrir se demonstrarão as habilidades necessárias para desempenhar as tarefas inerentes a determinado cargo: para um trabalhador de chão de fábrica basta que ele consiga aprender com a experiência, fazendo o serviço, errando, repetindo até acertar; ao passo que na outra ponta, a um CEO de uma empresa, não basta experiência prática: é preciso que ele consiga coletar e associar informações das fontes mais díspares, saber ler as pessoas, isto é, saber se estão mentindo ou falando a verdade, que tipo de personalidade têm, quais são seus defeitos e virtudes, de modo que ele consiga mobilizá-las para executar as decisões do chefe e concretizar as metas do negócio.  O mesmo pode ser dito a respeito do Presidente da República. Para ser bem-sucedido no cargo de líder, o presidente precisa demonstrar as habilidades daquele que tem inteligência suficiente para exercer um cargo de tanta responsabilidade, em que tantas decisões devem ser tomadas e tantas e tão diversas pessoas precisam ser levadas, direta ou indiretamente, a executá-las, do Oiapoque ao Chuí. É aqui que mora o perigo para nós brasileiros, que escolheremos nosso CEO no dia 28 de outubro, Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad.

    Na falta de teste de QI dos candidatos, o que seria politicamente incorreto nos nossos tempos, temos que nos valer do nosso conhecimento sobre a trajetória passada do indivíduo para verificar se ele já exerceu algum cargo em que teve que gerir pessoas, montar equipes e apresentar resultados. Em um primeiro momento, o histórico de Haddad é mais robusto, porque ele já foi Ministro da Educação e prefeito de São Paulo. Entre suas realizações, independentemente do mérito ou demérito delas, constam o Prouni (Programa Universidade para Todos), o FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior), o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o SISU (Sistema de Seleção Unificada) e as ciclovias na cidade de São Paulo. De maneira consistente com os ensinamentos da Dra. Gottfredson, não considerarei que ele tem título de Mestrado e de Doutorado, pois isso não é relevante para determinar sua capacidade de liderança. Jair Bolsonaro, ao contrário, na qualidade de deputado federal desde 1990, até hoje não teve experiência executiva e portanto, não liderou pessoas em quantidade suficiente para que pudéssemos ter certeza se ele consegue realizar algo de concreto, além de pronunciar discursos polêmicos.

    Os defensores de Jair Bolsonaro dirão que não adianta ter experiência no executivo se ela se resumiu à experiência de roubar bilhões como foi o caso do PT em seus 14 anos no poder. Voilà, então apliquemos um outro critério que não seja experiência de liderança em postos no Poder Executivo brasileiro para verificar se Bolsonaro exibe a capacidade mental para ser CEO do quinto maior país do mundo em extensão territorial e sexto em população. Com base naquilo que fala à TV Record, em registros antigos de palestras que ele proferiu pelo Brasil (disponíveis no youtube) e naquilo que falou na entrevista que deu ao programa Roda Viva, em 30 de julho deste ano,  Bolsonaro parece ter um tipo de raciocínio maniqueísta pelo qual ele aborda os problemas exclusivamente sob a óptica do bem e do mal, do amigo e do inimigo: para fazer a economia voltar a crescer é preciso que estimulemos o agronegócio sem que os “ambientalistas xiitas”  e o MST (que ele qualificou como organização terrorista) atrapalhem os fazendeiros de soja e de gado; para acabar com o desemprego é preciso se livrar da CLT ou pelo menos domesticá-la, pois as leis trabalhistas tornam difícil para o empresário contratar (a opção é ter direito e não ter emprego, ou ter emprego e não ter direitos, disse ele no Jornal Nacional em 28 de agosto); para resolver o problema da segurança é preciso dar aos policiais licença para livrar a sociedade dos maus elementos (e dar-lhes condecoração quando voltarem); para conseguir dinheiro para investimentos públicos o inimigo é a corrupção e acabar com ela fará o dinheiro surgir; para dar dinamismo à economia brasileira em todos os setores, além da agricultura o inimigo é a burocracia e o excesso de regulamentações.

    Alguns dirão que ter ideias claras sobre o que combater é louvável, mostra energia e firmeza de princípios. Sem dúvida, sem princípios não há como traçar metas. O desafio e passar das metas à concretização delas e esses princípios sólidos precisam ser matizados para adaptar-se a uma realidade que no mais das vezes é cinza e nunca preta e branca. O perigo é que Bolsonaro tome decisões com base em tais esquemas simplistas de destruir o inimigo. Afinal, a política é a arte do possível: para quem quer realizar algo é preciso ter os amigos por perto e os inimigos ainda mais perto, para saber-lhes as intenções, antecipar os movimentos, negociar, chegar a compromissos. Eliminá-los, quer seja fisicamente pelo assassinato, pela recusa em debater com os esquerdistas, pela categorização de grupos como fora da lei (no caso dos sem-terra), não diminui as complexidades da vida, no máximo trará uma sensação de estabilidade no curto prazo, fazendo com que tudo o que foi estigmatizado e varrido para debaixo do tapete pulule no longo prazo.

    Prezados leitores, considero que até o momento, as habilidades cognitivas demonstradas por Jair Bolsonaro nos seus 63 anos de vida não estão à altura do desafio de governar o Brasil, um país decididamente diverso e complexo, dadas nossas disparidades étnicas, regionais, sociais e econômicas. Se ao tornar-se presidente Bolsonaro tomar decisões com base nesse raciocínio binário que ele demonstra ao falar sobre suas propostas, corremos o risco, só para falar da questão ambiental, de ver o Brasil transformar-se numa plantation de soja, o que nos trará divisas no curto prazo, mas que ao final nos fará um grande deserto. Aguardemos os últimos lances dessa eleição que está mais para luta UFC do que exercício democrático.

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Uma apologia das fake news

As raízes de apologia eram apo (“retirada”) do logos (caso) que alguém tivesse apresentado a você. Logos (fonte da nossa ‘lógica’ – logia´) é de fato o substantivo mais comum em toda a literatura grega: ‘estimativa, razão, descrição razoável, história, discurso, tese’ dão uma ideia da sua amplitude. Aquela palavra está por trás do comprometimento pelo debate franco e público que estava no cerne da conquista intelectual grega. Na qualidade de político, professor, litigante, doutor, artista, filósofo (e assim por diante) em uma democracia radical, as pessoas esperavam que você apresentasse um logos – uma descrição razoável e inteligível para o público – de suas ações ou ideias e estar aberto para uma resposta similar.

Trecho retirado do artigo “Vamos ouvir o ‘logos’ de Corbyn” do classicista inglês Peter Jones, publicado em 11 de agosto

Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral.

Trecho retirado do livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga (1872-1945), historiador holandês e um dos países da moderna história cultural.

Brasão da cidade suíça de Genebra do século XV

    Prezados leitores, qual a relação entre uma rosa branca que floresce entre os espinhos e uma mulher virgem? A rosa branca é símbolo da mulher porque as duas compartilham características essenciais: são brancas, puras, belas e ternas. Essa era a associação que se fazia no final da Idade Média entre dois objetos aparentemente não relacionados, mas que o pensamento simbólico então florescente ligava de maneira indissolúvel, tão indissolúvel que essa imagem de rosa associada à figura feminina perdurou por séculos em poemas, em pinturas e em outras obras artísticas. A hóstia consagrada era símbolo de Jesus Cristo e mais, era a própria personificação de Jesus Cristo, pois a concepção filosófica então em voga era a denominada realista ou idealismo platônico, em contraposição ao nominalismo: os nomes que damos às coisas revelam a natureza delas, não são meras convenções: ‘rosa’ não é só um substantivo utilizado para descrever a realidade, ele é a própria realidade, é algo que existe eternamente e apresenta certos predicados. Assim explica Johan Huzinga no livro mencionado acima, um dos clássicos da historiografia ocidental cujo objetivo foi retratar o modo como as pessoas pensavam e sonhavam nos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

    Ao detalhar o pensamento simbólico na Idade Média, o historiador holandês mostra-nos seu lado positivo e negativo.  De um lado, ele permite dar vazão ao sentimento religioso de uma maneira bela e criativa, ligando-o à arte e expressando as aspirações da alma. O fiel cristão ao ver um ostensório no formato do sol radiante, algo que surgiu no século XIV, comovia-se com a beleza do objeto e o adorava como símbolo de Jesus Cristo, cuja luz aquece e ilumina a vida dos pobres fiéis que muitas vezes perdem-se na escuridão do pecado. De outro lado o pensamento simbólico, ao estabelecer relações entre qualquer coisa, acaba tornando a criação de símbolos e alegorias um mero jogo, uma fantasia superficial. Huzinga exemplifica esse exagero citando os exercícios aritméticos que eram feitos: “os doze meses eram os doze apóstolos, as quatro estações, os evangelistas, e o ano inteiro, só pode ser Cristo.” Em suma, o simbolismo era uma manifestação típica da fase de decadência da Idade Média: bela e poética, mas ao mesmo tempo podendo resvalar para a religiosidade supersticiosa, que ao ver significado em tudo, acaba mistificando o mundo natural, tornando o pensamento estéril e infrutífero, pois incapaz de lidar com os fatos de maneira a descobrir sua origem e suas consequências. Não é de admirar que a caça às bruxas tenha ocorrido nos últimos anos daquele período. Da mesma forma que as mulheres podiam ser idolatradas como rosas brancas imaculadas e belas, elas também podiam ser vilipendiadas e associadas a toda sorte de coisas ruins, independentemente de terem de fato contribuído com seus atos para uma má colheita, para uma doença ou para uma guerra. Não importavam as relações causais, importavam as relações simbólicas, como demonstra Huizinga.

    Não é por acaso que os espíritos racionalistas do Iluminismo, que apelidaram a Idade Média de Idade das Trevas, têm como germe a Reforma Protestante, que se insurgiu contra as superstições católicas, o culto das relíquias, dos santos, dos objetos religiosos como personificações de Deus, da Virgem Maria, de Jesus Cristo e de todos os personagens da narrativa cristã. Nesse sentido, a Reforma Protestante pavimentou o caminho para a retomada do ideal do discurso lógico, prevalente nas assembleias democráticas das cidades-estados gregas: a palavra usada não para emocionar, elevar o indivíduo aos céus, mas para convencê-lo sobre um determinado rumo a tomar a respeito de um problema concreto qualquer da cidade: seja ir à guerra, construir um novo porto ou condenar ou não alguém ao ostracismo. O desenvolvimento científico e tecnológico no Ocidente a partir do século XVI, baseado no estabelecimento de relações de causa e efeito, é fruto dessa nova perspectiva sobre a vida, e os sistemas parlamentares, de democracia representativa, que aos poucos foram sendo consolidadas nos países mais prósperos da Europa e das Américas, expressaram no plano político o primado da argumentação racional.

    Era esse o caminho estabelecido como o mais sensato, e que no Brasil bem ou mal foi adotado aos trancos e barrancos desde a proclamação da República, em 1889, e de maneira mais firme a partir de 1989, com as primeiras eleições diretas para a Presidência da República depois da saída dos militares do poder. Mas eis que no século XXI tivemos o advento das mídias sociais e cujos frutos estamos vendo nesta campanha presidencial. O mais resplandescente deles sem dúvida são as fake news. O horário eleitoral gratuito, em que os candidatos outrora bem ou mal explicavam suas propostas, esteve longe de ser relevante. Tanto assim que o candidato à Presidente pelo PSDB, Geraldo Alckmin, que possui o maior tempo de TV, não conseguiu avançar nas pesquisas de intenção de voto. O ritmo da campanha é ditado pelas mensagens de WhatsApp, com memes e histórias repassadas em cadeia de um eleitor a outro. No momento em que escrevo, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, alegou em petição apresentada no Tribunal Superior Eleitoral que os partidários de Bolsonaro estão espalhando a notícia por meio de vídeos de que o PT é apoiado pelos guerrilheiros e narcotraficantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, e que Haddad criou o kit gay para ensinar homossexualismo às crianças nas escolas. O Partido dos Trabalhadores solicita que esse conteúdo seja removido da internet.

    Os petistas têm motivos para querer que esse conteúdo seja banido, porque as fake news têm tido uma eficácia extraordinária, haja vista a disparada de Bolsonaro nas pesquisas, a despeito de ele não ter participado de nenhum debate. Mas para que servem debates se o que conquista votos não é a discussão, mas a construção de símbolos? Tenho certeza que muitas pessoas que recebem e repassam mensagens sobre FARCs e kit gays sabem que aquilo não é verificável na prática, e portanto, foi criado por artistas virtuais, mas é algo que se encaixa em uma narrativa. A narrativa de que o Partido dos Trabalhadores é o partido dos guerrilheiros de esquerda (Dilma Rousseff de fato o foi), dos ateus, dos revolucionários que querem subverter o capitalismo, dos que querem destruir a família tradicional formada pelo pai, pela mãe e pelos filhos. Fernando Haddad transforma-se então em símbolo de tudo o que é ruim, imoral, o bolivarianismo, a Venezuela, a distribuição de renda à força, e Bolsonaro transforma-se naquilo que é bom, a ordem, a segurança, a pátria, a religião, a família. Nesse sentido, não importa se as fake news são mentiras deslavadas, ou meias-verdades. O que importa é que elas amedrontam e maravilham ao mesmo tempo, dando vazão aos sentimentos de amor e ódio que cada um dos eleitores/usuários de smartphones nutre pelos candidatos.

    E assim é que no domingo 7 de outubro, embalados pelos nossos compartilhamentos virtuais, pelos nossos likes e dislikes, escolheremos dois símbolos, não com base no que de fato fizeram para o Brasil, ou possam fazer concretamente por meio da execução de seus planos de governo (que aliás ninguém sabe quais são e sobre os quais ninguém têm interesse). Pobre democracia brasileira, sem logos, só na base dos símbolos, da mitologia, das fantasias, dos bodes expiatórios, temo que ela tenha vida cada vez mais atribulada nessa era das fake news.

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É proibido proibir: pior que tá não fica

O fato é que as crianças infectadas com o vírus da “afluência” vêm de famílias da elite, e raramente elas arcam com as consequências do comportamento imoral, ilegal ou desonesto. […] Elas sempre foram capazes de cometer seus “excessos da juventude” e raramente ser prejudicadas por eles. O que quero dizer é que esse é o tipo de comportamento que nos traz ao ponto em que estamos hoje com uma sociedade corrupta em todos os níveis, que degrada nossa humanidade de todas as maneiras, a política brutal que não significa nada para ninguém exceto para aqueles que saem-se vitoriosos, e uma civilização – caso queria chamá-la desse nome – que está se despedaçando.

Trecho retirado do artigo “Bêbados, promíscuos e com pais ausentes? Isso é tudo o que resta afinal da liderança dos Estados Unidos?” publicado em 25 de setembro por Cynthia McKinney, que foi seis vezes deputado no Congresso Americano representando o Estado da Geórgia.

Controle-se

Ajude os amigos

Controle a raiva

Não fale mal de ninguém

Seja imparcial

Ouça todo mundo

Teste o caráter

Alguns dos 147 aforismos de Delfos atribuídos aos Sete Sábios da Grécia

    Prezados leitores, no artigo mencionado acima Cynthia McKinney tem como alvo Brett Kavanaugh, indicado pelo Presidente Donald Trump para uma vaga na Suprema Corte dos Estados Unidos, e Christine Blasey Ford, que o acusa de ter tentado forçá-la a fazer sexo quando ela tinha 15 e ele tinha 17 em uma festa onde todos, inclusive ela (como ela própria admitiu parta justificar certas lacunas em sua versão do que ocorreu), estavam bêbados. Para os defensores de Kavanaugh, a história é totalmente falsa, uma invenção dos democratas a respeito de um juiz cuja vida já tinha sido escrutinada pelo FBI, que não havia encontrado nada de desabonador. O propósito é tentar barrar de maneira desesperada e de última hora a confirmação de Kavanaugh. Para os defensores de Christine, ela fala uma verdade traumática, que veio à tona pela primeira vez em 2012 quando fazia terapia de casal com o marido.

    Para Cynthia, não importa o claro uso político que esse caso de violência sexual está tendo, evidenciado pelo fato de que Ford só prestou depoimento publicamente agora, às vésperas de o juiz ser sabatinado pelo Senado americano. O ponto importante é o que ele revela sobre a qualidade dos líderes que os Estados Unidos estão formando. Se os jovens americanos crescem participando de festas regadas a bebida, onde as oportunidades para o sexo são infinitas, mesmo porque os pais os deixam livres e soltos e ainda lhes dão cartão de crédito para financiar a diversão, como esperar que se transformem em adultos responsáveis? Se nenhum limite lhes é imposto desde que são jovens, se tudo o que fazem de errado sai barato, como esperar que saibam cumprir suas obrigações quando iniciarem uma carreira profissional qualquer? A corrupção, o sectarismo que ela observa na vida pública do seu país é o resultado agregado do comportamento desses indivíduos que podem tudo, que têm suas necessidades e desejos como única referência, e não têm que lidar com as consequências dos seus atos, porque o dinheiro esconde tudo debaixo do pano. De acordo com Cynthia, que pasmem, escreveu sua tese de doutorado sobre a liderança transformativa de Hugo Chavez, uma sociedade sem líderes dignos do nome é um sintoma de colapso da civilização, que fica sem compasso moral.

    Minhas humildes observações ao meu redor, no lado de baixo do Equador, levam-me a compartilhar da opinião de Cynthia. É só passar em uma noite qualquer na rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, para constatar que nossa juventude dourada, que está oficialmente matriculada na Universidade Mackenzie, faz seu aprendizado nas calçadas, bebendo cerveja e conversando. Em uma sexta-feira em que eu voltava do teatro havia tantos estudantes cultuando o Deus Baco que para avançar eu precisei andar pela rua. Eu mesma passei pelos bancos escolares na Universidade de São Paulo uma segunda vez de 2009 a 2013, e pude testemunhar que o empenho dos alunos era em sua maioria o de jogar pebolim no Centro Acadêmico e fazer outras coisas indignas de menção neste espaço, incluindo o esforço de obter o diploma com o menor dispêndio de energia intelectual possível, na base da cola, da compra de trabalhos feitos por outros, do uso de smartphones em pleno momento da prova.

    Corro o risco de ser acusada de puritana, evangélica, moralista, mas considero que o grande mote da década de 60, do é proibido proibir, teve um efeito nefasto em todos os países que o adotaram, em menor ou maior grau, e neste rol incluo os Estados Unidos e o Brasil, em que houve manifestações estudantis nesse sentido, em que pese as diferenças de contexto cultural e econômico. Se é verdade que houve causas nobres naquela época, a luta contra a Guerra do Vietnã lá e a luta contra a ditadura aqui, o legado que deixou, de total esfacelamento da autoridade, teve e terá consequências terríveis. Na Universidade de São Paulo, cujos professores são todos filhos intelectuais de Daniel Cohn-Bendit, o líder estudantil francês de maio de 1968, presume-se que os alunos sejam adultos e livres, que não precisam de orientação nem supervisão. Se fazem algo teoricamente errado raramente são punidos, porque os esclarecidos mestres presumem que punir é algo inerentemente autoritário, ultrapassado num mundo em que cada um de nós pode e deve realizar suas próprias escolhas. Se o garoto ou garota de 17 ou 18 anos escolhe não se preparar como deve para a avaliação e usar de subterfúgios para conseguir nota, o problema é dele ou dela, que tem autonomia para escolher seu caminho, não cabendo ao professor, que é um mero facilitador do aprendizado, interferir.

    Alguns poderão argumentar que essa postura liberalizante na escola e na universidade é a correta, porque cabe à família fornecer as orientações suficientes para que o jovem saiba comportar-se fora do lar. No entanto, como denuncia Cynthia em seu artigo, pais que deixam os filhos ir a festas para divertir-se sem supervisão de adultos não são a bússola moral dos pimpolhos, são meros facilitadores de consumo. E nesse ponto vem os psicólogos, os pedagogos, os terapeutas para quem a solução é o diálogo franco e transparente. Mais uma manifestação do “é proibido proibir”: presumir que uma criança ou adolescente só irá fazer o que os pais recomendam porque elas serão convencidas com argumentos é abdicar da autoridade, é estabelecer uma relação entre iguais. Será que todas as escolhas sobre o certo e o errado têm um fundamento universalmente válido? Será que todo tipo de comportamento pode ser analisado objetivamente em termos de riscos e benefícios?

    É fácil convencer com argumentos um filho sobre os malefícios de uma overdose de cocaína, mas como convencê-lo quando o prazer proporcionado pela droga é muito maior do que o mal que ela causa, se ela não for ingerida em quantidade exagerada? Como exercer a autoridade paterna ou materna só na base dos argumentos baseados em fatos e informações? Não será mais fácil pressupor que o sopesamento dos prós e contras de um determinado comportamento tem um grau de arbitrariedade, porque fruto de uma valoração subjetiva e cultural? Optando pela segunda via os pais podem proibir o uso de qualquer substância química dizendo pura e simplesmente: você não vai beber ou cheirar ou fumar porque eu não quero isso para você, e não quero isso para você porque de acordo com minha concepção religiosa ou moral isso é feio, degradante. Ponto final.

    Muito arbitrário certamente, muito preconceito nesse exercício unilateral de autoridade, não é mesmo? Quem é você papai ou mamãe para estabelecer o que é feio e que é bonito, o que é edificante e o que é degradante? Afinal tudo depende do ponto de vista, da ideologia, da classe social, não podemos pretender chegar em denominadores comuns absolutos, que desde o movimento filosófico do Iluminismo no século XVIII vem sendo desacreditados. E assim chegamos ao ponto em que estamos nós, que levamos o “é proibido proibir” às ultimas consequências: a autoridade se desmanchou por completo, não há modelo de conduta, e cada indivíduo é a medida de todas as coisas.  E por isso cada um de nós se acha no direito de falar o que quer, ouvir só o que lhe é interessante, fazer o que é bom para nós mesmos.

    O fenômeno recentíssimo da violência nas mídias sociais é manifestação desse nosso olhar para o próprio umbigo, da nossa certeza de que temos superioridade moral sobre aquele que é diferente meramente pelo fato de que nós individualmente nos bastamos. E se cada um tem o direito de ter sua própria verdade, no fim das contas ninguém tem verdade nenhuma, ninguém pode arvorar-se como padrão de alguma coisa. Não é de se espantar que pelo andar da carruagem nossa eleição presidencial de 2018 vai resolver-se num “voto Tiririca, pior que tá não fica”: nenhum eleitor de Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad vota pelas qualidades manifestas de liderança de cada um deles, pois pressupomos que toda autoridade é arbitrária, que todo líder é hipócrita e corrupto. Votamos num ou noutro por uma idiossincrasia qualquer, por simpatizar com uma característica de cada um deles, irredutível, que EU escolhi como fundamental, e com a qual ninguém tem nada que interferir. E assim nossa tenra democracia, fruto da nossa derrubada dos milicos autoritários, avança na base dos ataques virtuais ou físicos.

    Prezados leitores, neste universo Tiririca meu consolo como antiquada moralista que sou é ler o oráculo de Delfos. Garanto-lhes que se seguíssemos aqueles conselhos, ou ao menos se os tomássemos como parâmetros, estaríamos mantendo a civilização ocidental, ao invés de destruí-la pouco a pouco.

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De Ahenobarbus a Ciro

O que está em jogo é se a economia dos Estados Unidos e a economia dos países da Europa Ocidental vão terminar como as da Grécia, da Letônia e da Argentina – ou mesmo como a Roma Imperial.  Os neoliberais aplaudem o capitalismo financeiro vitorioso de hoje como o “fim da história.” Tal desfecho já ocorreu antes, no final da Antiguidade Clássica. Ele é lembrado como a Idade das Trevas. O progresso foi interrompido à medida que os credores e os latifundiários dominavam o resto da sociedade. O comércio sobreviveu somente entre aqueles que estavam no topo da pirâmide econômica. O sonho atual do “Fim da História” ameaça ocorrer de maneira análoga. Trata-se do poder relativo do grupo do um por cento mais rico.

Trecho do artigo “The Lehman 10th Anniversary Spin as a Teachable Moment” publicado em 18 de setembro pelo professor de economia da Universidade de Missouri, Michael Hudson

O percentual de famílias que relataram ter dívidas entre cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro alcançou 60,7% em agosto de 2018, o que representa uma alta em relação ao patamar observado em julho de 2018 – a segunda alta mensal consecutiva. Entretanto, houve redução em relação a agosto de 2017, quando o indicador alcançou 61,2% do total de famílias.

Trecho retirado da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor de agosto de 2018, publicado pela CNC, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

Lucius Domitius Ahenobarbus, vulgo Nero, imperador de Roma

    Prezados leitores, no artigo mencionado acima, Michael Hudson lembra o dia 15 de setembro de 2008, quando houve a falência do Banco Lehman Brothers no Estados Unidos, que desencadeou uma crise financeira. A solução encontrada pelo então Presidente Barack Obama, aconselhado pelo Secretário do Tesouro Tim Geithner, pelo Banco Central Americano e pelo Departamento de Justiça, foi um pacote de ajuda de 4,3 trilhões de dólares dado às instituições financeiras americanas, que lhes garantiu liquidez e disponibilidade de caixa para continuar emprestando. Não houve cancelamento de dívidas, não houve redução de juros ao consumidor e os bancos não tiveram que baixar as hipotecas tóxicas como prejuízo. Ao contrário, pelo fato de o juro cobrado pelo FED americano ser irrisório, 0,1%, isso lhes permitiu obter margens extraordinárias de lucro: 5-6% sobre hipotecas, 9% sobre empréstimos a estudantes; 11-29% no rotativo do cartão de crédito.

    Essa abundância de dinheiro fácil disponível aos bancos não permitiu aos humildes devedores nenhum refresco: ou tiveram a casa confiscada por falta de pagamento do financiamento imobiliário, ou tomaram emprestado mais dinheiro para pagar os juros do empréstimo, seja ele qual fosse, para comprar um automóvel, para fazer compras de gêneros de primeira necessidade com o cartão, para financiar os estudos universitários na esperança de encontrar um emprego com melhor remuneração. Tanto é assim que em dezembro de 2017, de acordo com o Bureau of Economic Analysis, a taxa de poupança no Estados Unidos caiu ao nível mais baixo desde 2005, 2,4%, o que mostra que os americanos mal e mal estão tendo dinheiro para pagar suas contas, não sobrando nada.

    Se o programa de socorro aos bancos, chamado de Quantitative Easing permitiu ao trabalhador médio ir rolando as dívidas, às empresas permitiu dar grandes retornos aos seus acionistas pelas operações que geram receita financeira como aquisições e fusões, investimentos no mercado imobiliário pela oferta das casas que foram tomadas daqueles que não conseguiram pagar o financiamento e buybacks (já mencionadas em meu humilde artigo da semana passada). O foco no valor proporcionado ao acionista é ainda maior porque como os dirigentes das empresas recebem remuneração em ações, ao aumentar o valor de mercado delas na bolsa de valores eles aumentam seu próprio salário. A função social da empresa de geradora de empregos, que por sua vez viabiliza o consumo dos trabalhadores, fica prejudicada. Como é mais fácil e mais lucrativo obter receita de acrobacias financeiras do que investir na produção, os ganhos da venda de produtos e serviços ficam em segundo plano.

    Assim explica Michael Hudson o capitalismo financeiro que hoje predomina nos Estados Unidos e que ele considera vai levar à volta da escravidão no Ocidente, no sentido de que os trabalhadores ficarão sem emprego, sem renda e endividados, sujeitos aos caprichos da elite que ganha dinheiro cobrando juro, investindo na bolsa de valores, especulando no mercado imobiliário. O show provavelmente continuará enquanto o FED puder imprimir dólares à vontade, mas causará grandes estragos nas condições de vida dos “deploráveis”. A razão de ele mencionar o Ocidente como um todo é que dinheiro fácil foi colocado à disposição pelo Banco Central Europeu também aos países da zona do euro, que provocou, entre outros, a bolha imobiliária na Espanha e a dêbacle na Grécia.

    A razão deste meu longo introito é que nós no Brasil enfrentamos problemas semelhantes. Não tivemos quebradeira no setor financeiro em 2008 e nem colocamos à disposição dos bancos uma liquidez extraordinária, mesmo porque não conseguiríamos fazê-lo. Afinal, nosso pobre real não tem a U.S. Navy para fazê-lo singrar todos os cantos do globo, precisamos oferecer juros nas alturas para os investidores comprarem nossa moeda e financiarem nosso déficit em conta corrente. De um certo ponto de vista, isso faz a situação aqui no lado de baixo do Equador infinitamente dramática, porque estamos há décadas submetidos a juros escorchantes. A predominância do capitalismo financeiro é novidade nos Estados Unidos, tendo sido construída ao longo dos últimos 30 anos, começando com a assinatura do NAFTA no governo de Bill Clinton em 1994 e a terceirização da produção industrial pelas empresas globais americanas,  passando pela revogação da lei Glass-Steagall em 1999, que desde 1932 havia impedido os bancos americanos de misturas suas atividades comerciais com suas atividades de investimento, o que evitava o uso do dinheiro dos pequenos poupadores para investir em instrumentos de risco. Já entre nós, nossa necessidade de recorrer a empréstimos bancários para tocar a vida vem desde a década de 80, quando fomos ao FMI para cobrir nossos rombos nas contas externas.

    Para além da situação fiscal do Estado brasileiro, que gasta mais do que arrecada e precisa pedir dinheiro aqui e alhures, quem há de negar que os bancos são onipresentes na nossa vida cotidiana de cidadãos? Quer comprar um imóvel? Se não tem nota sobre nota, precisará de um financiamento bancário, mesmo que você seja um afortunado que tenha acumulado uma bolada no FGTS: o artigo 20 da lei 8.036 de 1990 só permite o uso do saldo acumulado de maneira vinculada a algum empréstimo. Quer poupar para a aposentadoria? Escolha um PGBL ou VGBL, pague a taxa de administração cobrada pelo banco e não tenha expectativas exageradas: não há garantia de benefício definido, mesmo porque os investimentos feitos pelos gestores sempre apresentam algum risco, já que são feitos no mercado financeiro.  O quadro pintado pela pesquisa da CNC mostra que assim como as três instâncias político-administrativas, a União, os Estados e Municípios, as famílias brasileiras vivem à base do rolo.

    Considerando esse nosso grande calcanhar de Aquiles, eu vi com bons olhos a ideia do candidato à presidência Ciro Gomes de um programa para ajudar os brasileiros endividados a limpar o nome no Serasa e no SPC. Pode ser que a proposta ainda não tenha sido suficientemente detalhada para soar como viável, mas é algo relevante para a vida da grande maioria de nossa população.  Essa novidade em si é louvável, em uma campanha em que a tônica tem sido perguntar aos eleitores, subliminar ou diretamente, se são a favor ou contra o kit gay, se acham o Lula, o Bolsonaro, o Hugo Chavez e o Sérgio Moro monstros ou mártires, ou se acham que os filhos de mães arrimos de família são delinquentes ou coitados.

    Prezados leitores, pelo andar da carruagem política as questões principais, e entre elas eu incluo nossa excessiva dependência do capital financeiro, passarão ao largo dos debates até 7 de outubro. Para não esquecer do império romano, Nunzio Geostozzi informa-nos que Nero, o imperador que NÃO colocou fogo na Cidade Eterna, mas foi um símbolo de decadência pelos seus gastos excessivos na Construção da sua joia arquitetônica, a Domus Aurea, hoje quase totalmente soterrada e desaparecida, desvalorizou a moeda reduzindo a porcentagem de ouro no aureus e no denarius.

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