Os Três Estados da Previdência

O uso do Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos levou esse poder a funcionar em Portugal como uma espécie de órgão emissor da moeda da diferença social […] A derrogação de um direito adquirido – fosse a propriedade de bens, a posse de ofícios, a detenção de um privilégio irrevogável, o direito de não pagar impostos ilegalmente criados – só era possível em sede judicial.

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil” de Jorge Caldeira

O princípio da solidariedade é que está implícito em qualquer análise que se faça do Direito de Seguridade Social. O art. 3º da Constituição da República positiva que: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I –construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Trecho retirado do livro “Curso de Direito da Seguridade Social”, de Augusto Massayuki Tsutiya

Para mim, não dá para cair abaixo do R$1 trilhão [impacto fiscal da reforma] (em 10 anos) que se propôs. Pensando friamente, acho que vamos ter uma reforma boa, mas, possivelmente, limitada. E aí o problema vai seguir. As pessoas mais otimistas acreditam que essa reforma, ainda que um pouco desidratada no final, pode significar o início de um ciclo virtuoso de outras reformas, mas, na minha leitura, as probabilidades jogam contra.

Trecho da entrevista dada pelo ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, ao jornal O Estado de São Paulo, em 3 de março

    Prezados leitores, sei que é época de Carnaval e é tempo de nos divertir, mas o assunto da Previdência, que vem nos atormentando desde 2017, dominará a pauta do Congresso neste ano e determinará o sucesso ou o fracasso do governo Bolsonaro. Não sou eu quem digo isso, são os especialistas, os economistas, os professores universitários, os banqueiros. É preciso reformar a Previdência para diminuir o rombo nas contas públicas, permitir uma queda nos juros e viabilizar um aumento dos investimentos públicos e privados. A essa altura do campeonato há pouca discordância em relação a esse ponto. O problema começa no conteúdo apresentado pela equipe econômica que assumiu em janeiro deste ano, ou talvez até na falta dele. Considerada pela revista VEJA como uma proposta ambiciosa por atacar privilégios, ela é vendida pelo governo como uma “Nova Previdência: É para Todos, É Melhor para o Brasil.” Será?

    Tentarei responder a essa pergunta descrevendo a situação nas “Terras Baixas da América do Sul”, para tomar emprestada uma expressão de Jorge Caldeira usada quando ele descreve o que os europeus encontraram ao chegar aos trópicos americanos. Para tanto, recorrerei a uma analogia, a dos Três Estados do Antigo Regime que vigoraram na Europa até a Revolução Francesa: cada estamento tinha seus próprios direitos e obrigações garantidos por leis escritas, a que o próprio rei de Portugal obedecia, como é explicado em A História da Riqueza no Brasil.

    Em termos previdenciários, o Primeiro Estado brasileiro é formado por aqueles que não só já adquiriram o direito a uma polpuda aposentadoria integral, como já a usufruem. Quando digo polpuda falo de filhas e viúvas de militares que recebem 59.000 reais, como foi noticiado pelo jornal O Globo há duas semanas, membros do Judiciário, que de forma perfeitamente legal ganham benefícios previdenciários que ultrapassam o teto do funcionalismo público. Isso porque os auxílios de diversos tipos que foram sendo incorporados à remuneração são considerados como de natureza indenizatória e portanto puderam ser incorporados gradual e inexoravelmente aos rendimentos totais, sem que fossem considerados parte do salário de contribuição para fins de incidência da alíquota previdenciária e sem que fossem considerado salário que ultrapasse aquele ganho pelos ministros do STF. Considerando o aumento substancial da expectativa de vida verificado no Brasil nos últimos anos, esses agraciados vão usufruir de benefícios que excederão em muito a contribuição previdenciária que pagaram e pagarão ao longo da vida. Pelo princípio da solidariedade, nós que estamos trabalhando atualmente estamos financiando essas benesses, sem que nós pobres mortais possamos sequer sonhar com elas, porque a porteira já está fechada para novos entrantes nesse clube exclusivo. Benesses essas que, como diria um ex-Ministro do Trabalho, são “imexíveis”, porque de acordo com o artigo 194, parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal, os benefícios previdenciários são irredutíveis. Resumindo, só refundando a ordem jurídica brasileira, ou em português claro, só uma guerra civil diminuiria ou cortaria os benefícios pagos a essas pessoas.

    Coloco nesse grupo também aqueles funcionários públicos que ingressaram no serviço até 2003, e portanto, têm direito à aposentadoria integral. É verdade que estes não têm um direito inexpugnável como aqueles que já recebem a aposentadoria ou pensão têm, mas o que a turma do Posto Ipiranga propõe para fechar a lacuna entre aquilo que a lei lhes dá como direito e aquilo que contribuíram para dele gozar é um aumento da alíquota de contribuição de até 22%. Associações de funcionários públicos já começaram a estrilar dizendo que tal taxa tem natureza confiscatória e é portanto inconstitucional, mas o fato de ela incidir sobre a porção de rendimentos que é considerada salário e não indenização fará com que em muitos casos a mordida seja bem menor do que seria se não houvesse essas distinções formalistas ente salário e indenização destinadas a consolidar privilégios.

    Passemos ao Segundo Estado, formado pelos funcionários públicos que ingressaram no serviço entre 2004 e 2013. Se hoje eles têm direito a se aposentar à média de 80% dos maiores salários de contribuição, Paulo Guedes e companhia propõem colocá-los na vala comum do Terceiro Estado, que têm direito a receber no máximo R$ 5.839,45, que é o teto do INSS. Vejamos se os deputados que os representam no Congresso vão deixar que haja uma tal reversão de expectativas de direito. Duvido.

    Finalmente o Terceiro Estado é formado pela maior parte do povo brasileiro, englobando uma grande disparidade de pessoas em termos de renda e de perspectivas de aposentadoria. Os que estão em melhor situação são aqueles que têm carteira assinada pelo patrão no regime CLT e que contribuem à Previdência pela alíquota máxima, de 11%. Nos termos da reforma essa alíquota passaria a 11,68%. Mas há os que têm contribuído de maneira intermitente ao INSS pelo fato de terem tido carteira assinada de maneira não contínua, aqueles que contribuem pela alíquota mínima por trabalharem de maneira autônoma, aqueles que não contribuíram porque nunca tiveram carteira assinada ou porque sempre trabalharam fazendo bicos, empreendendo à maneira brasileira, isto é na informalidade, sem pagar impostos, sem comprovar renda. Para não falar dos jovens que ainda não entraram no mercado de trabalho: a estes será negada a solidariedade do sistema de repartição, oferecendo-se no lugar a poupança individual do regime de capitalização. Em suma, o jovem brasileiro, quando tornar-se trabalhador, não poderá contar com um naco do bolo da receita previdenciária corrente ao tempo em que ele se aposentar para financiar seus benefícios. Ele terá que por si só juntar dinheiro em sua conta para arcar com seu ócio, a depender de sua carreira e rendimento profissional ao longo da vida, e o máximo que o governo por enquanto oferece é garantir um salário mínimo.

    Prezados leitores, considerando quão amador tem se mostrado o exército de Brancaleone que se instalou no Palácio do Planalto em 2019, o quão seu Bolsonaro está sujeito a chantagens veladas do Judiciário e do Ministério Público por conta dos deslizes do seu filho Flávio, é de esperar que o que seja aprovada seja a idade mínima e o tempo de contribuição para os trabalhadores do setor privado e algo no meio do caminho para os funcionários públicos que não os coloque no saco de gatos esquálidos do INSS. Continuaremos a ter Três Estados, com graus decrescentes de privilégios e crescentes de obrigações. E considerando que o princípio da solidariedade terá sido rompido pela ideia da capitalização, a confiança das pessoas na previdência se esvairá rapidamente. Por que contribuir se sei que estou financiando a aposentadoria dos afortunados que têm direitos adquiridos, mas ninguém financiará a minha no futuro, porque cheguei tarde demais ou por que não pertencia ao estamento correto? Afinal, o trabalho intermitente e o estímulo à terceirização, permitidos pela reforma trabalhista de 2017, torna possível àqueles que deixarem de ser empregados em tempo integral e passarem a trabalhar alguns dias por mês para o empregador ou a abrir empresas prestadoras de serviços optar por não contribuir para o INSS ou contribuir o menos possível. Em suma, o que o Posto Ipiranga anuncia para nós não é uma Nova Previdência para Todos, mas uma Previdência de um lado remendada para permitir o financiamento, por mais alguns anos, a depender do crescimento da economia, dos benefícios daqueles cujo direito é inatacável e de outro mutilada pela introdução do conceito de capitalização que oficializa o salve-se quem puder. Será esse projeto uma maneira de renovar a previdência ou de começar o seu desmonte por um círculo vicioso de menos receitas, menos benefícios, menos expectativas de benefícios, menos receitas? Veremos.

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O Greenwashing das favelas

Casas pré-fabricadas em ruínas? Não, casas ecológicas! Assim como Bruno Gimond, trinta e seis famílias compraram na planta, em 2009, uma residência no Hameau de Plantoun. O Office HLM (órgão público francês encarregado da construção e gerenciamento de moradias populares) na cidade de Bayonne supervisionava um programa de acesso à propriedade nesse bairro ecológico. Materiais naturais, novas técnicas … os novíssimos bairros ecológicos eram considerados representativos da excelência da moradia e ao mesmo tempo abaixavam o consumo de energia.

Trecho retirado do artigo “As casas da mentira de Bayonne” publicado em 9 de fevereiro de 2018

Infelizmente, os bairros ecológicos são muito frequentemente o resultado do greenwashing por parte de um conselho municipal que procura aumentar a reputação de uma cidade e esconder a falta de medidas realmente ecológicas (construção de ciclovias, vias somente para pedestres, taxas sobre a coleta de lixo com base no peso…).

Trecho retirado do dossiê “Os Limites dos Bairros Ecológicos” publicado na revista eletrônica francesa “Silence” em outubro de 2013

    Prezados leitores, permitam-me explicar-lhes o termo em inglês greenwashing, pois ele será tema do meu humilde artigo. De acordo com o wikipedia, greenwashing é a “injustificada apropriação de virtudes ambientalistas por parte de organizações (empresas, governos, etc.) ou pessoas, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas”. Vou lhes dar dois exemplos de greenwashing sobre os quais fiquei sabendo assistindo a um documentário sobre os bairros ecológicos que estão se espalhando rapidamente pela França, prometendo economia de energia por meio do uso de fontes ecologicamente corretas, como a luz solar e a biomassa, do reaproveitamento da água da chuva e da facilitação da mobilidade urbana de modo a permitir aos habitantes prescindir do carro.

    O primeiro exemplo é aquele cuja descrição abre este artigo. Bruno Gimond pagou ao redor de 160.000 euros por uma casa feita em madeira em meio às arvores. Em pouco tempo de uso constatou que ela era um “inferno térmico”. A madeira das paredes, utilizada em substituição ao ecologicamente incorreto concreto, apresentava infiltrações de modo que o vento entrava na casa no inverno, tornando-a desconfortável com uma temperatura interna de 10 graus. O frio era tanto que ele teve que usar aquecedor elétrico, mas como a conta de luz foi a 500 euros em dois meses, ele mandou a mudança climática às favas e começou a queimar madeira em casa para aquecer-se. O chão de madeira descolou ou afundou em várias partes, os pregos soltavam, tornando perigoso caminhar dentro de casa sem sapatos. Sua indignação foi tanta que ele grafitou a parte da frente de sua casa com os dizeres FAVELAS 2 (aparentemente os europeus ainda não se deram conta de que favela hoje no Brasil é um nome politicamente incorreto e que devemos usar o termo mais brando de comunidade). Ele e outros enganados entraram com processo na justiça e acabam de obter uma vitória, depois de 10 anos, pois o judiciário francês reconheceu-lhes o direito de ter as casas reconstruídas. Para aqueles que quiserem ver o aspecto das casas: https://www.francetvinfo.fr/economie/video-les-maisons-du-mensonge-dun-ecoquartier-a-bayonne_2595926.html.

    O segundo exemplo de uso marqueteiro de pretensas qualidades ecológicas é o de um écoquartier em Limoges, outra cidade na França. O problema nesse caso não são as casas mal construídas, bem ao contrário. Elas têm bom isolamento térmico e tem certificado de eficiência energética, algo que somente 7% das residências no país possuem. A questão é outra, mais precisamente dois detalhes importantes. A conta de luz, apesar de toda a preocupação em não desperdiçar energia, é do mesmo valor que os simples mortais que vivem em bairros não ecológicos pagam: foi instalada uma usina de biomassa no bairro para fornecer energia aos moradores, mas será preciso pagar pelo investimento ao longo de trinta anos.

    O detalhe sinistro em Limoges fica por conta do fato de que o bairro foi construído em um local onde havia anteriormente não só uma fábrica como um lixão a céu aberto que foi destruído. Foi feita uma descontaminação parcial do local, mas não o suficiente para que seja seguro comer frutos colhidos nas árvores lá plantadas. Os metais pesados presentes no solo lá permanecerão por muitos anos lá, pois uma limpeza total custaria mais de 20 milhões de euros, quantia que a construtora encarregada da descontaminação nem pensou em gastar, limitando-se a investir quatro milhões de euros para tornar o local razoavelmente salubre. Além disso os vapores tóxicos exalados pelos metais podem causar câncer. Um morador sensato, que acredita na necessidade de tomar medidas concretas para salvar o planeta, considera com certa dose de orgulho, que ele e seus vizinhos estão pagando o preço de ser os precursores nas ações para diminuirmos nossa pegada de carbono.

    Tais caso concretos que se desenrolaram em um país de Primeiro Mundo mostram que a ecologia muitas vezes não é nada mais do que um nicho de mercado, uma estratégia de marketing utilizada para satisfazer as demandas de consumo de um determinado público que tem certos valores e preferências. Os capitalistas conseguem vender seu produto apresentando-se como salvadores do planeta e no final das contas eles estão inventando novas maneiras de obter lucros. Aliás, como a Companhia Vale tem feito no Brasil ao não só usar tecnologia inadaptada ao clima úmido em que vivemos para construir suas barragens de rejeitos de minérios, como ao mantê-las mal e porcamente. Aqui a mineradora economiza nos custos ao investir em barragens meia-boca sujeitas a infiltrações, lá o incorporador imobiliário compra um terreno contaminado, faz uma recauchutagem, contrata marqueteiros para vender o sonho do combate ao aquecimento global aos incautos e constrói “favelas” com materiais ecologicamente corretos (isto é mais baratos), embolsando o prêmio pago pelos compradores pelo plus a mais do selo verde. É claro que a ficha da construtora francesa é infinitamente mais limpa do que a de uma empresa que explora minério, mas tanto uma quanto outra lidam com o desafio da diminuição da pegada humana no meio ambiente da mesma forma: como um custo que precisa ser repassado para terceiros tão logo quanto possível, seja embutindo-o no preço de seus produtos, como fazem as incorporadas dos écoquartiers, seja investindo na eleição de políticos para que aprovem leis que ao, afrouxarem as exigências ambientais, fazem com que as comunidades que vivem em torno das barragens arquem com o ônus das externalidades criadas pela atividade mineradora.

    Quem nos salvará dos vendilhões da ecologia e nos colocará no caminho da redenção do planeta? Serão as crianças que nos últimos dias na Suécia, na Bélgica, na Alemanha, na Austrália e na Grã-Bretanha têm protestado contra a inércia em relação à mudança climática sob os gritos de “Não há Planeta B” ou “O aquecimento global não é uma previsão  está acontecendo agora”? O problema é que por mais poético que seja ver crianças indo às ruas por uma causa nobre, elas mesmas estavam lá enfrentando o frio do Hemisfério Norte encapotadas com casacos de náilon, que leva 400 anos para degradar-se na natureza, e de posse de seus celulares, que em breve serão trocados por outro mais recente. E mais, não tinham proposta nenhuma sobre o que fazer na prática, apenas tinham slogans criativos.

    No final das contas, considerando o excesso de boas intenções e a falta de conscientização sobre quem lucra e quem paga a conta tanto da inação quanto do ativismo ecológico, será o capitalismo quem resolverá o problema da poluição do planeta e da escassez cada vez maior de bens naturais fazendo aquilo em que ele é inigualável: decidindo a alocação de recursos por meio da precificação, neste caso estabelecendo um preço para a vida sustentável, tornando-a cada vez mais cara pelo aumento da demanda e pela diminuição dos meios para garanti-la, e assim alijando do consumo milhões de pessoas ao redor do mundo que não terão acesso às comodidades básicas da vida por falta de dinheiro. O que os governantes globais farão para lidar com esses deserdados? Serão mortos? Serão deixados à mingua em zonas ecologicamente degradadas? Veremos.

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A lama nossa de cada dia

A tecnologia, que foi outrora a chave desta dominação ocidental, parece agora ter-se voltado contra si mesma, e estar exigindo penalidades onde outrora dava recompensas. A injustiça social, o sofrimento espiritual e o desperdício do patrimônio natural do homem têm sido a inesperada colheita de um século de ilimitada expansão industrial no mundo ocidental; e parece que um crescente número de conversos, até aqui, ao credo industrial do Ocidente, começaram a duvidar da conveniência de pagar seu preço similarmente desastroso por uma porção atrasada e também provavelmente exígua da riqueza material do Ocidente.

Trecho retirado do livro Um Estudo da História, publicado pela primeira vez em 1972, do historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975)

Indicado pelo MDB como candidato do partido à presidência do Senado, Renan Calheiros recebeu na noite desta quinta-feira (31) uma ligação do presidente Jair Bolsonaro. No telefonema, o presidente parabenizou o senador pela vitória na bancada. A informação foi confirmada pela assessoria do senador.

Notícia retirada do site G1.

    Prezados leitores, uma das questões abordadas por Arnold Toynbee em sua obra-prima, citada acima, é o desafio posto pela superioridade técnica ocidental às civilizações não ocidentais. O que fazer? Fechar-se ao Ocidente, como fez o Japão até o advento da Era Meiji em 1868 e a China até 1842, quando perdeu a Guerra do Ópio contra o império britânico e viu-se obrigada a abrir seus mercados aos produtos ocidentais? Ou abrir-se ao Ocidente, tentando aprender com ele para não perecer sob suas garras, como fizeram Pedro, o Grande (1672-1725), que deu o pontapé inicial na construção do Império Russo, tal como ele veio consolidar-se no século XX, e Mustafá Kemal Ataturk (1881-1938), fundador da Turquia moderna? O historiador inglês, embasado em seu conhecimento enciclopédico, descreve as diferentes respostas dadas a esse desafio nos quatro cantos do mundo, comparando esse contato com o Ocidente como a exposição do corpo a um elemento estranho. Nesse sentido as consequências podem ser de diferentes tipos para as culturas receptoras da novidade.

    Tal elemento alienígena pode causar uma revolução na sociedade que fica exposta a ele, retirar-lhe o equilíbrio e levá-la à destruição, pela obstinação da cultura tradicional em não contemporizar com os “invasores” ou pode ser absorvido por ela, permitindo-lhe atingir um novo equilíbrio em novas bases mais sintonizadas aos novos tempos, e portanto torná-la capaz de sobreviver ao abalo sísmico provocado pelo Ocidente e até a obter vantagens dele. Há também um meio-termo: a sociedade tradicional adota algumas instituições ocidentais, mas de maneira retirada do contexto em que elas surgiram e ao fazê-lo distorcem seu sentido original e criam arremedos daquilo que foi criado originalmente em países ocidentais. Toynbee menciona explicitamente a democracia e a industrialização, que, introduzidas na África, por exemplo, levam à corrupção da vida pública e à destruição do meio ambiente, respectivamente.

    Para ele, isso se deve ao fato de os países africanos terem sido criados ao sabor dos interesses geopolíticos dos países europeus sem levar em conta o importante detalhe de que os africanos se diferenciavam entre si em termos tribais. Dessa forma, a sociedade de cada nação africana ficou sendo constituída de grupos antagônicos que ao chegarem ao poder por vias democráticas, depois da independência das antigas colônias e da adoção das instituições ocidentais símbolos do progresso, só se importaram em destruir seus inimigos e encher de privilégios seus amigos. As ideias de nação e de democracia, que na Europa do século XIX eram baseadas na unidade étnica e na coesão social, ao serem transplantadas para a África solaparam as autoridades tradicionais, representados pelos chefes de tribo, e criaram países artificiais e instáveis, pois diferentes tribos foram colocadas sob o mesmo teto político, tornando o exercício da democracia difícil. Nesse sentido, os esforços de industrialização empreendidos nesses países foram sempre influenciados por essa democracia falha, que colocava o Estado nas mãos do grupo dominante, e lhes dava as benesses econômicas que o Estado, que exerce o monopólio da tributação, pode dar, às expensas da maioria da população.

    Como não ver semelhanças entre as características econômicas e políticas da África e o nosso Brasil? Esse rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho não é um caso emblemático de industrialização manca e de democracia manca? O fato é que as mineradoras que atuam no Brasil, produtoras de uma das nossas principais commodities de exportação, estão destruindo uma boa parte do nosso patrimônio histórico, cultural e ambiental, e o fazem impunemente porque contam com a conivências das autoridades: dos deputados e senadores que são eleitos com ajuda de doações delas e não endurecem as leis aplicáveis ao setor para não encarecer os custos de produção; dos órgãos ambientais que concedem licenças às mineradoras sem fazerem um estudo aprofundado dos riscos e dos impactos ambientais da atividade.

    Não é só a Vale, especializada em transformar Minas Gerais em sua cloaca, como mostrou em Mariana em 2015 e agora, em 2019, que se beneficia da leniência do Estado Brasileiro. Para quem não se lembra ou não foi informado de maneira apropriada, em fevereiro de 2018, foi constatado vazamento da barragem da mineradora norueguesa Hydro, que atua em Barcarena, no nordeste do Pará, na extração de bauxita. Os rejeitos continham metais pesados como chumbo, que se espalharam pelos igarapés e rios da região devido às fortes chuvas. A Hydro já tinha sido multada pelo Ibama em 2009, mas sabemos que multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização no Brasil, incluindo as agências reguladoras, raramente são pagas. No caso da empresa norueguesa, foram 17 milhões de reais acumulados. No caso da Samarco, subsidiária da Vale responsável pela barragem que destruiu o povoado de Bento Rodrigues, fundado pelos bandeirantes no século XVII, a multa aplicada pelo Ibama, de 350 milhões foi solertemente ignorada e as multas impostas pelo governo estadual. Totalizando 127 milhões de reais, estão sendo pagas em suaves prestações mensais, a perder de vista.

    Como já mencionei aqui quando abordei a questão dos incentivos fiscais dados a determinados grupos sem análise do custo/benefício, nossos representantes no parlamento são na verdade agentes de grupos de interesse num toma lá dá cá que ignora completamente os interesses gerais e de longo prazo do povo brasileiro, em prol dos interesses econômicos de determinados setores, sob a justificativa de criação de empregos e desenvolvimento. Nesse ponto cabe uma pergunta: será que os dólares gerados pela Vale ao longo dos seus 77 anos de vida compensam a destruição dos rios Doce e Paraopeba, o aumento da incidência de doenças como câncer, dengue, zika, leptospirose devido à contaminação da água e do solo? Será que a destruição do potencial turístico dessa região de Brumadinho, que se transformou num cemitério de lama, à la Chernobyl, onde não se pode plantar, pescar nem colher é compensado pelos empregos e pela riqueza proporcionados pela mineração? O que será de Inhotim, o mais importante museu a céu aberto de arte contemporânea do mundo? Atrairá visitantes, estando cercado por essa destruição? Independentemente do cálculo que se faça para responder a essa pergunta, em termos de valorizar os bens intangíveis do povo brasileiro face aos bens tangíveis das empresas aqui instaladas, será que tal ponderação não deveria estar a cargo da sociedade como um todo e não de uma patota que decide entre si o que é melhor para o Brasil com base em seus interesses?

    Sob esse aspecto, nossa democracia tupiniquim padece das mesmas falhas detectadas por Arnold Toynbee na África: a obtenção de status, de prebendas e de postos pelos detentores do poder lá em detrimento do resto é a mesma que aqui. E não tenhamos ilusão: as eleições a cada dois anos em terras brasileiras servem apenas para efetuar um rodízio enganador, pois os princípios de “aos nossos tudo e ao povo cabe pagar a conta” permanecem válidos. Quem acha que a ligação de felicitação feita por Jair Bolsonaro, que se colocou no pleito presidencial como o único homem honesto no mar de lama da política, a Renan Calheiros, senador desde 1995, prenuncia algo bom está querendo manter a fé até o último instante. O mais provável é que o capitão, que pertencia ao baixo clero do Congresso, já percebeu como a coisa funciona e está agitando a bandeira da paz para ser aceito na patota e conseguir algumas concessões. Quem sabe um refresco para seu filho Flávio Bolsonaro ou uma aprovação da reforma da Previdência a toque de caixa, para ele mostrar algum serviço? Vejamos.

    Prezados leitores, a nós, que não pertencemos à patota ou à tribo dominante, resta rezar para que a próxima vítima do capitalismo e da democracia tupiniquins não sejam a Via Sacra e os 12 profetas esculpidos por Aleijadinho, localizados em Congonhas do Campo.

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Esperanças aqui e acolá

Bônus excepcional, desoneração das horas extras, aumento do bônus por atividade. O parlamento adotou definitivamente, na sexta-feira, 21 de dezembro, uma série de medidas a favor do poder de compra decididas pelo Executivo para tentar colocar um fim à crise dos “coletes-amarelos”. Depois que a Assembleia, na noite de quinta para sexta-feira, votou, o Senado, em um procedimento sumário, aprovou na sexta-feira à noite em votação aberta o projeto de lei com “medidas econômicas e sociais urgentes”.

 

Trecho retirado do artigo intitulado “Coletes-amarelos: as medidas de urgência adotadas na Assembleia e no Senado”, publicado na versão eletrônica do jornal francês Le Monde em 21 de dezembro

Isenções de impostos concedidas pelo governo federal a empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento (P & D) aumentaram consideravelmente nos últimos anos: de aproximadamente R$ 5 bilhões em 2008, essas renúncias fiscais somaram R$ 11.3 bilhões em 2015. A ampliação dos incentivos, contudo, não alavancou os investimentos privados em inovação conforme se esperava, como indica um estudo publicado em julho pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA). Em vez disso, houve um efeito de substituição do uso de recursos privados por públicos, explica André Rauen, economista do IPEA e coautor do trabalho. “A desoneração de tributos não incentivou as empresas a investirem em P & D mais do que já investiriam sem o estímulo público”, diz Rauen.

Trecho retirado do artigo intitulado “Zona de Conforto” publicado na edição de dezembro de 2018 da revista pesquisa FAPESP

    Prezados leitores, para quem deseja ter uma outra visão do movimento dos gilets jaunes (coletes-amarelos) que se desenrola na França desde 17 de novembro de 2018, sugiro que assistam no Youtube a um documentário de 23 minutos, de autoria de Vincent Lapierre, legendado em inglês, cujo título é “Les Gilets Jaunes, Acte III Au Couer de la Révolte Jaune”. A visão que tem prevalecido nos nossos jornais e revistas, quando cobrem um evento tão distante da nossa realidade, é que é um movimento sem liderança, de pessoas descontentes que são insufladas a revoltarem-se por meio do compartilhamento de fake news espalhadas pelos russos (A manchete no jornal O Estado de São Paulo de 18 de dezembro era “França vê sinais de incentivo russo na internet a protestos de coletes amarelos”).

    Não vou aqui discutir se os russos estão atuando como influenciadores digitais ou não, pois não tenho e nem terei informações confiáveis que possam embasar uma confirmação ou uma negação das alegações feitas pela Secretaria-Geral da Defesa Nacional da França. É do interesse do governo minimizar a amplitude do movimento e denegri-lo porque ele está ocorrendo em várias cidades do país e ameaça a estabilidade do governo do Presidente Emmanuel Macron, eleito em maio de 2017. Marionetes de Vladimir Putin ou não, ressentidos, enganados pelo conteúdo das mídias sociais ou não, o fato, mostrado no documentário por meio de entrevistas com os participantes no calor da refrega, enquanto escapavam do gás lacrimogêneo, das balas de festim e dos jatos d’água da polícia, é que são franceses comuns, que não conseguem pagar as contas e cujo dinheiro dá até o dia 15 do mês, porque depois entram no vermelho até que o próximo salário seja depositado.

    A indignação deles com o Chefe do Executivo deve-se ao fato de este pedir sacríficos ao povo, na forma de cortes de benefícios sociais, diminuição da cobertura do sistema nacional de saúde, corte de conexões de trem não lucrativas, enquanto abaixa os impostos sobre os mais ricos e as grandes fortunas como incentivo para que potenciais investidores fixem residência no país. Alguns dos coletes-amarelos entrevistados pedem que Macron vá embora e seja inaugurada uma Sexta República, em que o povo tenha voz mais ativa, por meio de referendos e de consultas por meio da internet. Há assim uma clara insatisfação com a democracia parlamentar que, no caso da França, em nome da manutenção do euro como moeda única e da austeridade fiscal necessária para tanto, atende muito mais os interesses dos que pouco dependem dos serviços públicos e por isso impõem sua limitação como medida para cortar os gastos e aumentar a eficiência da economia.

    O interessante de ver no documentário é que essas pessoas, cuja paciência com a indiferença dos políticos se esgotou, sabem que o caminho é árduo: é preciso lidar com as acusações lançadas contra eles, inclusive pelo luminar da esquerda francesa, o filósofo Bernard Henri-Levy, que acusou muitos de serem fascistas, com a repressão violenta da polícia, que tem causado ferimentos graves nos manifestantes, inclusive em idosos, para não falar do frio e da chuva típicos dessa época do ano no país. Um jovem fala que é preciso ir a todas as manifestações e que a luta está apenas começando, apesar das concessões já feitas pelo governo francês, e aprovadas pelo Legislativo, descritas na abertura deste artigo, que já valerão a partir do começo de 2019. Em suma, os representantes políticos do povo, diante da pressão incessante dos coletes-amarelos cantando a Marselhesa por toda parte, perceberam que era preciso ceder imediatamente para que a cólera fosse dissipada ou ao menos mitigada.

    Independentemente das falhas estruturais da democracia parlamentar, em um país como a França, cuja população tem consciência de que quem chora não mama e de que não se podem esperar benesses gratuitas dos donos do poder, ela consegue responder aos clamores do povo. Nesse sentido, por mais que os franceses estejam insatisfeitos com a queda da qualidade de vida, eles têm motivos para esperar que as coisas melhorem, porque as instituições ainda não estão surdas aos seus apelos, feitos em alto e bom som. E aqui no Brasil? Será que temos motivos para esperar mudanças em 2019? Esperança temos de sobra, se devemos crer nos números revelados pela Pesquisa CNI/Ibope, segundo a qual 64% dos brasileiros estão otimistas com o governo Bolsonaro e 75% dos entrevistados consideram que o presidente eleito e sua equipe estão no caminho certo. Mas será que nossas esperanças são fundadas ou infundadas? Será que o nosso Parlamento é capaz de agir celeremente como o francês fez para dar uma satisfação aos coletes-amarelos?

    Após o final das eleições presidenciais em outubro de 2018, o Congresso Nacional trabalhou febrilmente, e muitas benesses foram aprovadas para determinados grupos que têm poder de pressão sobre nossos representantes políticos, em suma sabem chorar alto, e por muito tempo, para mamarem nas tetas do Estado: prefeitos endividados, que receberam como recompensa para déficits orçamentários o mimo de não ter que respeitar os limites de comprometimento da receita com despesas de pessoal impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal; juízes que prometeram em troca de conseguir aumento de salário renunciar ao benefício do auxílio-moradia, mas que no final das contas conseguiram, mediante resolução do Conselho Nacional de Justiça regulamentando a concessão do benefício da ajuda de custo, mantê-lo e ao mesmo tempo garantir o reajuste nos vencimentos; setores econômicos que receberam isenções tributárias. A respeito desta última benesse, há um aspecto bastante sinistro na parte concedida à indústria automobilística.

    As desonerações do Inovar Auto, programa de fomento aos investimentos de P & D por meio da concessão de crédito presumido de IPI e que esteve em vigor até dezembro de 2017, somaram um bilhão e duzentos milhões de reais em 2017. No entanto, de acordo com o artigo mencionado acima, o objetivo de aumentar os investimentos em inovação por parte das empresas não foi atingido, pois os dados da Pesquisa de Inovação (Pintec) e do IBGE mostram que “o investimento interno em P & D na indústria automobilística recuou de 1,28% da receita líquida das empresas em 2011 para 1,1% em 2014”. Em suma, o custo do programa é muito grande em vista de seus benefícios pífios, e apesar disso o Congresso Nacional, em outubro de 2018, aprovou o “Rota 2030, cuja renúncia fiscal total deverá ser superior a R$ 2 bilhões em 2019.” Qual será o motivo? Ignorância crassa dos nossos representantes políticos dos resultados da pesquisa do IPEA? Ou simplesmente receberam generosas doações das montadoras para fazer suas vontades? Pelo visto não é só a Odebrecht que corrompe nossa democracia parlamentar.

    Todas essas medidas foram aprovadas no apagar das luzes do governo Temer e comprometeram sobremaneira a margem de manobra do Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes, para tentar equilibrar as contas públicas e ao mesmo tempo permitir que o Estado invista em serviços para a população. Não teria sido o caso de o Presidente eleito ter se pronunciado de maneira mais enfática a respeito da aprovação dessas bombas denunciando o quanto elas são nefastas? Ou será que a reação tímida do “Mito” mostra que ele já está rendendo-se à realidade de que terá que se compor com os grupos que ditam a pauta do Congresso e que o ajuste fiscal será no final das contas pagos pelos patos de sempre, que não têm lobby no parlamento e só são chamado a quatro anos para apertar umas teclas coloridas e mostrar ao mundo que praticamos a dita democracia?

    Prezados leitores, por mais que nós brasileiros tenhamos vocação para o otimismo e a esperança com o novo, os fatos mostram que o buraco aqui é negro e fundo: ele engole as pombas da paz que soltamos na praia de Copacabana para pedir o fim da violência, ele engole os pixulecos que inflamos para construir bodes expiatórios e que nada mais fazem do que esconder problemas que são institucionais e culturais, e não simplesmente pessoais ou partidários. Comparando as reivindicações dos coletes-amarelos franceses e dos manifestantes pelo impeachment de Dilma e do Fora PT e Fora Temer percebe-se que nós brasileiros estamos muito longe de ter uma atuação realmente eficaz que obrigue as instituições a levarem em conta os interesses de outros que não sejam os velhos grupos com dinheiro para influenciar os tomadores de decisão. Lá eles exigem maior repartição dos recursos e dos sacrifícios, aqui vamos à rua para colocarmos um ou outro corrupto na cadeia e nos damos por satisfeitos quando isso acontece, tão satisfeitos que nunca mais fomos à rua massivamente como fizemos em 2015, e soltamos rojões quando Lula foi preso, como se isso tivesse tido algum efeito benéfico no nosso bolso. Mas não quero ser uma estraga-prazeres nesta época natalina e me juntarei aos brasileiros otimistas e esperançosos e direi: bem-vindo ao poder, Senhor Salvador da Pátria, Jair Messias Bolsonaro, Bem-Vindo, Mito! E vivas à democracia brasileira em 2019!

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Quem é xiita ecológico?

Usamos os modelos desenvolvidos pelos centros climáticos de todo o mundo, inclusive do Brasil, que contribuem para os relatórios do IPCC. O modelo é uma representação matemática da realidade. Todo o processo é representado por sistemas de equações que são resolvidas com ajuda de um supercomputador. Mas os diferentes centros de modelagem – da Europa, Ásia, América Latina, Austrália, África do Sul e dos Estados Unidos – têm cada um o seu próprio modelo, desenvolvido pelos seus pesquisadores. Todos esses modelos são utilizados para projetar o clima futuro até 2050 e 2100. Sobre algumas áreas, e para algumas variáveis do clima, os modelos convergem. […] Na questão da temperatura todos os modelos indicam aquecimento global e regional. Todos. Há consenso.

 

Trecho de entrevista dada pelo climatologista José Antonio Marengo Orsini, chefe do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) à revista da FAPESP de novembro de 2018

Tanto que é que o próprio presidente francês, Emmanuel Macron, já sinalizou que não lhe interessa fazer acordos comerciais com quem não tem compromisso com a agenda ambiental.

Trecho de entrevista dada ao site UOL por Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência do Brasil, criticando a escolha de Ricardo Salles para ocupar a pasta que foi dela de 2003 a 2008

O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses e em seu benefício para tirar a competitividade da indústria americana.

Twitter de Donald Trump em 6 de novembro de 2012

    Prezados leitores, não há dúvida de que o meio ambiente transformou-se há muito em pomo de discórdia entre os partidários da visão apocalíptica à la Al Gore a respeito das consequências do aquecimento global para a Terra e os partidários da ideia de que o aquecimento global é uma fake news inventada por globalistas que usam a desculpa do acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera para impor mais controles e mais encargos financeiros à população de modo que possam aumentar seu poder. As partes em conflito acusam-se mutuamente de negar os fatos, de distorcerem a realidade pelo “viés ideológico” para tomar emprestada uma expressão muito cara ao nosso presidente eleito, que definitivamente pertence à categoria dos que desconfiam do aquecimento global, e por tabela do Acordo de Paris, assinado em 2015 por 195 países.

    A meta do Acordo é limitar o aumento da temperatura global a dois graus Celsius a mais do que era antes da era industrial e quiçá chegar a diminuir o ritmo de aumento para um grau Celsius e meio a mais do que era antes de o homem começar a queimar combustíveis fósseis como fonte de energia para a indústria. Jair Bolsonaro deu indicações de que pode sair do Acordo de Paris, mas como fica cada vez mais claro que ele é o chefe do Exército de Brancaleone, em termos de idas e vindas, trapalhadas, disse, desdisse, é possível que ele mude de ideia. Possível porque ainda não sabemos que tipo de líder será Bolsonaro, já que essa experiência é inédita na carreira dele. Será que ele será o tipo de pessoa que ouvirá opiniões contrárias a seus instintos e as ponderará? Ou será que sempre seguirá seus instintos ideológicos, em quaisquer circunstâncias, para mostrar que não cede a pressões?

    As pressões já se fizeram sentir, como observou Marina Silva na sua entrevista quando mencionou a ameaça do presidente francês Emmanuel Macron de impor retaliações ao Brasil se nós abandonarmos nossos compromissos de diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Angela Merkel, a primeira-ministra alemã, também já se pronunciou a respeito da dificuldade de assinatura de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia se Bolsonaro colocar sua agenda ambiental em prática. Será que nosso presidente eleito deveria seguir a trilha proposta por nossa ex-ministra do Meio Ambiente e considerar um meio ambiente saudável como parte dos direitos humanos fundamentais, perseguindo esse objetivo a todo custo para garantir o bem-estar das gerações futuras e nossa posição no plano internacional como bons moços do verde? Ou será que ele deve seguir o exemplo do seu ídolo Donald Trump, que retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris por considerá-lo injusto para seu país e mandar tudo para o inferno? Tentarei humildemente argumentar aqui que ele não deve fazer nem uma coisa nem outra e o farei com base na seguinte premissa: o aquecimento global não é nem uma conspiração marxista contra o capitalismo e nem uma certeza absoluta. Explico-me.

    Conforme explicado por José Antonio Marengo Orsini, toda a ciência do aquecimento global e as projeções sobre as doenças, a destruição da infraestrutura e a diminuição da produção de alimentos baseiam-se em modelos matemáticos, não em extrapolações de dados. Uma coisa é os cientistas fazerem projeções sobre o que vai ocorrer com o clima na Terra com base no que já está ocorrendo hoje, pois basta que as tendências atuais continuem para que as projeções se concretizem. Coisa bastante diferente é montar equações com n variáveis, que de tão complexas só podem ser resolvidas por computadores com grande capacidade de processamento, e obter os resultados dessas equações. É preciso cotejar tais resultados com a realidade e se não houver correspondência mudar as variáveis, em suma é um processo de ajuste contínuo que dá margem a previsões mais ou menos sombrias a respeito do futuro da Terra se continuar a ter como seu senhor absoluto o homo sapiens. Não se está aqui a dizer que modelos matemáticos são simples jogos de videogame para enganar trouxas ou servir aos interesses de ecoxiitas. O que se está a dizer é que as equações, que tentam expressar as interações entre os diferentes elementos que determinam o clima, serão aprimoradas ao longo do tempo e que daqui a 20 ou 30 anos muitas das previsões que se fizeram com base nas equações montadas agora podem revelar-se falsas.

    A lição que se deve tirar disso é que temos que ter cautela. Mudar a matriz energética, hábitos de consumo e estilos de vida custa dinheiro e demanda sacrifícios. Fazer sacrifícios e gastar dinheiro agora com base nos resultados produzidos por modelos matemáticos requerem um concerto internacional, fruto da boa fé, e é aí que as coisas começam a complicar-se. Se é verdade que devemos agir agora porque a catástrofe, embora não seja certa, é provável e possível, como distribuir os sacrifícios? Quem vai abdicar mais do bem-estar material em prol do meio ambiente? No final das contas, as ações de preservação do ecossistema terrestre são uma questão política, pois envolvem a distribuição do poder no mundo, não só entre países, mas entre as classes sociais em um único país.

    Donald Trump foi execrado como monstro insensível, mas ele jogou luz sobre um ponto importante: pelo Acordo de Paris, os Estados Unidos, como país desenvolvido, teria que diminuir as emissões de gás carbônico em até 26%, o que aumentaria sobremaneira o dinheiro gasto com eletricidade.  A China é considerada como país em desenvolvimento e valendo-se desse status o país comprometeu-se com metas muito mais modestas: aumentar o uso de fontes alternativas aos combustíveis fósseis para 20% da sua matriz energética até 2030 e diminuir o ritmo de CRESCIMENTO da emissão de gás de efeito estufa. Fica claro que os chineses, como sempre, estão defendendo seus interesses econômicos, como vêm fazendo desde 1976, quando Deng Xiao Ping iniciou a abertura econômica do Império do Meio. Afinal, a China tornou-se a maior produtora de painéis de energia solar do mundo e incentivar o uso dessa fonte alternativa só fará aumentar o mercado consumidor dos produtos chineses pelo planeta afora. Assim, matam dois coelhos com uma só cajadada: incentivam a atividade econômica do país e ao mesmo tempo posam de defensores do meio ambiente na cena internacional. Os Estados Unidos atualmente têm uma base industrial menor que a China, cujo mercado consumidor é agora quatro vezes maior que o americano. Se os Estados Unidos tiverem que reduzir a emissão de gases de efeito estufa poderão ver essa diferença em relação ao seu maior rival econômico aumentar ainda mais.

    Não é de se admirar que os Estados Unidos, que não têm complexo de inferioridade e estão comendo poeira dos asiáticos, tenham mandado o Acordo de Paris às favas. A União Europeia chiou e Emannuel Macron, como um de seus defensores mais ferrenhos, também o fez, mas sabemos que não haverá retaliações por causa do status geopolítico dos EUA no mundo. Já em relação ao Brasil a coisa é diferente. Macron nos deu lições de moral e infelizmente não temos poder de barganha suficiente para agir à la Trump. É verdade que o bom mocismo ambiental do presidente francês levou um sério golpe e um chamado à realidade quando ele se viu obrigado a suspender o aumento no imposto sobre o combustível como resultado dos protestos dos coletes amarelos, que diante da carestia na França não têm mostrado muita preocupação com o futuro da humanidade. Seja como for, nós precisamos colocar as barbas de molho e refletir sobre o melhor caminho a perseguir, considerando a hipocrisia de europeus e chineses e o cinismo dos americanos.

    Daí que o Brasil faria melhor se evitasse tanto o romantismo de Dona Marina quanto a paranoia do Senhor Bolsonaro. Achar que sermos protagonistas na luta pela diminuição da emissão de gases de efeito estufa nos fará ganhar o reino dos céus é uma bobagem. Fazermos a lição de casa ambiental respeitando acordos internacionais sobre o clima vale a pena se obtivermos vantagens materiais para o país em termos de novos mercados para os nossos produtos ecologicamente corretos, caso contrário fazer isso sem negociar nada em troca para agradarmos o mundo é sinal de fraqueza. Por outro lado, considerar, como parece ser o caso de Bolsonaro, que a preservação do meio ambiente sempre deve estar subordinada ao crescimento econômico é perder de vista que o Brasil, o maior detentor de florestas tropicais e biodiversidade do mundo, não pode simplesmente imitar os Estados Unidos de Donald Trump porque se assim o fizermos inviabilizaremos nosso desenvolvimento não só no curto prazo quanto no longo prazo.

    Prezados leitores, esperemos que nosso presidente eleito, ao tomar posse em 1º de janeiro, acorde gradual, lenta e seguramente para as complexidades da vida e perceba que a preservação do meio ambiente não é nem conspiração da esquerda nem uma oportunidade de mostrar o quanto os diferentes países estão dispostos a cooperar sinceramente pelo futuro da humanidade. Ela é uma necessidade e um desafio, cuja concretização é cheia de armadilhas. Que o futuro presidente esteja à altura de suas responsabilidades e não seja um xiita ecológico com o sinal trocado.

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