Flores balzaquianas

Ao chamar a atenção de todos os burgueses sobre os abusos da Igreja Romana, ela disse, Lutero e Calvino fizeram nascer na Europa um espírito de investigação que iria levar os povos a querer examinar tudo. O exame conduz à dúvida. No lugar de uma fé necessária às sociedades, eles carregaram consigo e muito tempo depois deles uma filosofia curiosa, armada de martelos, ávida por ruínas. A ciência lançou-se brilhante com suas falsas clarezas a partir do seio da heresia. Tratava-se muito menos de uma reforma da Igreja do que da liberdade indefinida do homem que é a morte de todo poder.

Trecho retirado do ensaio histórico “Sur Catherine de Médicis”, escrito por Honoré de Balzac (1799-1850)

 

    Prezados leitores, depois de muito tempo estou de volta. Como é cada vez mais perigoso e inútil falar sobre o presente, pretendo falar sobre o passado. Se antes da pandemia da covid-19 já tínhamos polêmicas amargas sobre quem é a favor ou contra Bolsonaro, Lula, Moro, Donald Trump, Vladimir Putin, agora foi adicionada à nossa carteira de assuntos que causam cizânia ser a favor ou contra a cloroquina, a vacina, a quarentena.

    É inútil dar opiniões sobre tais assuntos porque as pessoas discordam sobre os fatos, então não há fundamentos para a discussão. E elas discordam sobre os fatos porque há uma infinidade de meios de obter informações. Em última análise é preciso confiar na fonte pela qual você decidiu optar, mesmo porque será impossível ao pobre leitor de jornais, revistas, sites da internet, ir em loco confirmar o que foi relatado. Talvez todos nós acabemos optando em confiar naqueles provedores de informações que confirmam nossos pré-conceitos e valores arraigados. O que hoje chamam de fake news nada mais é do que antes chamávamos de meias-verdades, uma tentativa de mostrar os fatos sob o ângulo que melhor confirma aquilo em que acreditamos profundamente.

    Nesse sentido, também é perigoso falar sobre o presente, porque se estamos irremediavelmente atados à nossa concepção do mundo e procuramos narrativas dos fatos que se encaixam nela, tendemos a estigmatizar aqueles que discordam de nós, atribuindo-lhes um valor oposto àquele que atribuímos a nós mesmos. Afinal, estamos convencidos de estarmos certos a respeito da visão do quer acontece no mundo a ser adotada pelas pessoas que compartilham conosco os mesmos valores éticos, sociais e culturais.

    Daí minha opção por não mais tratar de questões da atualidade. O melhor a fazer é admitir que vivemos em um mundo em que o conjunto de crenças básicas está cada vez mais fragmentado, então para evitar disputas ferozes como as que vemos nas mídias sociais, com ataques pessoais, epítetos distribuídos a torto e a direito (racista, supremacista branco, facista, homofóbico, comunista, islamofóbico e por aí vai) achei por bem falar de flores. Flores, estas já esmaecidas, aliás tragadas pelo tempo, mas que deixaram alguma marca de sua passagem pelo mundo e dão ensejo a uma reflexão.

    Minha flor desta semana é Catarina de Médici (1519-1589), rainha da França de 1547 a 1559 e regente de 1560 a 1563 durante a minoridade do seu segundo filho, Carlos IX, na maneira pela qual ela foi descrita no livro mencionado na abertura deste artigo. Balzac não descreve a vida da florentina, bisneta do grande Lourenço, o Magnífico, sobrinha-neta de dois papas, Leão X e Clemente VII, do começo ao fim da sua vida. Como seu propósito é ilustrar o julgamento de valor que ele faz a respeito da sua atuação política, o escritor prefere enfocar alguns episódios que ilustram a qualidade de Catarina como líder, que tinha um objetivo, qual seja manter a monarquia que àquela época estava convulsionada pelas guerras de religião entre católicos e protestantes, das quais participavam a nobreza da França: o lado católico era liderado pelos Guise, que se diziam descendentes de Carlos Magno, e o lado protestante pelos Bourbon. A dinastia reinante, dos Valois, que seria extinta com a morte do último filho de Catarina, Henrique III, tentava equilibrar-se no poder em meio às ferozes disputas.

    Catarina teve a visão premonitória de que a reforma protestante, se não fosse extirpada, seria o fim da monarquia, porque em última análise só o pensamento único proporcionado por uma religião que se pretendia universal, a católica, poderia sustentar o poder dos reis. Balzac, com a visão retrospectiva proporcionada pela Revolução Francesa, pela derrubada da monarquia, e por sua frágil retomada depois da Era Napoleônica, considera a florentina uma gênia mal compreendida e caluniada que fez tudo o que podia para evitar que o edifício do poder fosse destruído pela eterna dúvida. E a tática que ela usou à exaustão foi dividir para governar, colocar os diferentes grupos sempre uns contra os outros para que eles se enfraquecessem mutuamente e permitissem que a Coroa sobrevivesse. Para tanto, Catarina ora apoiava os católicos, ora apoiava os protestantes.

    Um dos episódios descritos em “Sur Catherine de Médicis” que ilustram o maquiavelismo de Catarina ocorre ainda no reinado do seu primeiro filho, François II, fortemente influenciado pelos Guise e por sua esposa, Mary Stuart, que depois seria decapitada por ordem da rainha da Inglaterra, Elizabeth I. Os protestantes planejavam retirar os Guise do poder pela força e sabedores que Catarina encontrava-se refém deles, valem-se do filho do fornecedor de casacos de pele das duas rainhas Marie e Catarina, Christophe Lacamus, para entregar uma carta à rainha-mãe em que Luís de Bourbon, o príncipe de Condé, detalhe os planos de ataque militar. Christophe era um burguês convertido à reforma e se dispõe a correr imensos riscos pela causa. Ele é pego pelos homens dos Guise, torturado para confessar a participação de Catarina no complô, mas ele não confessa, o que salva a pele da florentina, que correu o risco de ser envida de volta à sua terra natal. Livre do perigo e grata, a rainha-mãe permite que o pai de Christophe, rico burguês, compre terras da Coroa, fazendo com que o filho se tornasse membro do parlamento e claro, católico para sempre.

    O maquiavelismo de Catarina revela-se na capacidade que ela tinha de analisar o caráter e manipular as pessoas para seus fins. Christophe era protestante convicto, mas ele também era um jovem ambicioso e inteligente que não queria morrer por uma causa. Quando o representante de Calvino na França pede que ele assassine o Duque de Guise, Christophe decide manter-se fiel à Coroa e avisa Catarina, pois esta soube reconhecer o valor do jovem, ao contrário do chefe dos protestantes, o príncipe de Condé, que via no fervor religioso de burgueses reformados como Christophe um mero instrumento para conquistar o poder, e revelou-se ingrato depois de Christophe ter sido torturado e não ter revelado nada de comprometedor.

    Nesse sentido Balzac não admira Catarina por suas qualidades morais, mas por sua liderança política. Era uma mulher com vocação para exercer o poder, pois não lhe faltava capacidade intelectual, e em fazendo isso não teve escrúpulos em fazer o que tinha de ser feito para que a Coroa permanecesse intacta, mesmo porque o próprio Calvino, implacável nas suas certezas religiosas, fez uso de violência repetidas vezes para destruir a Igreja Católica.

    Quando o rei Francisco II fica doente, Catarina impede que um cirurgião, Ambroise Paré, faça uma operação no cérebro do seu filho que lhe salvaria a vida, porque considerava que se ele continuasse rei a influência nefasta dos Guise continuaria. E em 24 de agosto de 1572, na noite do casamento da sua filha Marguerite com Henrique de Bourbon, o irmão mais velho de Luís e protestante como ele, foi de Catarina a ordem de massacrar os protestantes, no que ficou conhecido como a Noite de São Bartolomeu. Tudo para que nenhum grupo ficasse por demais forte que ameaçasse o trono dos Valois.

    Assim como Balzac não admira Catarina por ter sido boa mãe, porque ela nunca foi, ele também não admira a florentina por ter sido boa católica, pois ela claramente tinha como única crença as ciências ocultas, tais como praticadas por seu astrólogo, Cosimo Ruggiero. Catarina sabia que o catolicismo era o único fundamento possível para o poder monárquico, pois a fé única proporcionaria coesão social e impediria atos de rebeldia, mas nunca praticou as virtudes cristãs, apesar de ter sido criada em conventos. A grandeza dela esteve no papel que exerceu de tentar retardar a ruína do edifício da monarquia cristã que tinha permanecido incólume por séculos. Se as lutas religiosas continuaram por quase sessenta anos depois de sua morte, até a assinatura da Paz de Westfália, em 1648, que estabeleceu o direito de cada Estado de decidir qual seria a religião nacional, não foi culpa de Catarina que foi ultrapassada pelas paixões coletivas, ela uma mulher pouco dada à paixão.

    A sutileza do retrato pintado por Balzac faz jus à sutileza da personagem: nem santa, nem monstra, mas uma mulher que sabia ver o que os outros não viam, detectar as fraquezas e qualidades das pessoas, estabelecer prioridades e ser implacável na consecução delas, mostrando consistência no longo prazo. Enfim, alguém que deixou um legado de preservação da monarquia das facções, e não, como observa Balzac em outro livro (Splendeurs et Miséres des Courtisanes) um rastro de destruição, um Robespierre, o incorruptível líder dos jacobinos durante o Terror (1792-1794) que mandou à guilhotina milhares de pessoas e acabou acelerando o fim da Revolução Francesa e o advento do império de Napoleão.

    Prezados leitores, quem quiser aproveitar este mergulho no passado para fazer reflexões sobre o presente que o façam. Mas neste ponto deixo-os à vontade, porque, guardadas as devidas proporções, cada um pertence a uma tribo e não há hoje uma Catarina de Médici, para perceber para onde caminha o vento da História e estabelecer aonde devemos ir ou o que devemos evitar. Cada um que navegue seu barquinho com sua própria bússola.

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O campo minado da democracia e dos mosquitos

Jonathan Sumption, até recentemente um juiz na Suprema Corte, dedicou suas recentes palestras no rádio, patrocinadas pela BBC, ao declínio da política e à ascensão do direito, argumentando que as ações judiciais são agora simplesmente a política por outros meios. Aqueles que se saem perdedores no processo político (incluindo até ex primeiros-ministros, que deveriam agir melhor) estão cada vez mais dispostos a recorrer à justiça para conseguir uma vantagem política. Ou para impor às autoridades políticas e ao povo sua visão do que deveria ser feito.

    Trecho retirado do artigo “Quem governa – tribunais superpoderosos são ruins para a democracia” escrito por Richard Ekins, professor de direito da Universidade de Oxford e publicado em 21 de setembro de 2019

    ‘O que quer que a rainha promulgue no parlamento é a lei’ é uma expressão adequada da regra sobre a competência jurídica do Parlamento sendo aceita como o critério final para a identificação do que é o direito…

    Trecho retirado do livro “O Conceito do Direito” de Herbert Lionel Adolphus Hart, filósofo do direito britânico (1907-1992)

    Prezados leitores, assisti a uma entrevista do deputado federal Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre e ele revelou a Marcelo Tas, no programa Provocações, o desejo de fazer uma pós-graduação em Direito Constitucional. De um lado isso é positivo, porque ele sensatamente percebeu que esse assunto tem profundas repercussões no Brasil atual, em que o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Constituição, está nas manchetes dos jornais praticamente todos os dias. De outro lado, é triste que já em seu primeiro ano o cofundador do MBL dê mais prioridade a um assunto técnico que deveria ficar restrito aos operadores do direito em vez de estudar os problemas econômicos, sociais e educacionais do nosso país. Isso é sintomático da doença que acomete nossa democracia e que é compartilhada por uma democracia muito mais antiga e robusta do que a nossa, a do Reino Unido. Explico-me.

    Na terra da Rainha Elizabeth prevalecia um direito constitucional extremamente simples, que prescindia da leitura de caudalosos volumes, conforme é o uso aqui no Brasil nas faculdades de ciências jurídicas. A competência para dizer o direito sempre esteve com o Parlamento, considerado desde 1688 como soberano para promulgar leis que passavam a ter validade automática. Desde o governo de Tony Blair (1997-2007), tal sistema tem sido mudado para alinhar o Reino Unido às práticas jurídicas do continente europeu. De acordo com Richard Ekins no artigo citado acima, isso significou dar novos poderes aos tribunais britânicos, aceitar a jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos e promulgar em 1998 a Lei de Direitos Humanos, oferecendo um leque de oportunidades às pessoas entrarem na justiça para demandar direitos que possam se enquadrar no largo conceito de direito humano, conforme definido naquele estatuto. Essa conspurcação do antigo sistema de que o que dizia o Parlamento era a lei foi ainda facilitada pela criação de uma Suprema Corte em 2009 que, embora não tenha o poder de revogar uma lei promulgada pelo Parlamento, pode declará-la incompatível com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a qual serviu de inspiração à lei de 1998.

    Os frutos dessa mudança gradativa para um direito constitucional em que o controle final sobre o que é o direito fica a cargo dos juízes de um tribunal constitucional, isto é, para um “judicial review system”, estão sendo colhidos agora com a crise do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, aprovada em 2016 em referendo popular. Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico, havia aconselhado a rainha a suspender o Parlamento, como uma medida que lhe permitisse entrar em acordo com a União Europeia para que o Reino Unido saia do bloco até 31 de outubro, já que o Parlamento negou-se até agora a aprovar todos os acordos de saída já submetidos a sua homologação. Os descontentes com a decisão do primeiro-ministro recorreram à Suprema Corte e em 24 de setembro os 11 juízes consideraram ilegal a suspensão das atividades legislativas o que obrigou Boris Johnson a reformular sua estratégia de saída da EU, ainda incerta. Esses episódios recentes mostram a que ponto chegou a crise constitucional no Reino Unido, o outrora exemplo lapidar de democracia representativa: observando o triângulo amoroso formado pelo primeiro-ministro, pelo Parlamento e pelo Judiciário, não se tem clareza de quem deve tomar as decisões políticas mais importantes, de quem deve dizer qual lei vale no país.

    Minha menção às tribulações do Reino Unido, dividido entre Remainders e Leavers, serve para iluminar a crise por que passa o Brasil, em que o Judiciário é acionado constantemente para resolver disputas entre grupos que são incapazes de chegar a um entendimento pelas vias parlamentares. A novela mexicana em torno da prisão em segunda instância é o exemplo mais acabado disso. Para o bem da nossa democracia, que requer a convivência dos diferentes, se o que a maioria do povo deseja é que haja punições mais céleres, o texto da Constituição deveria ser mudado por emenda aprovada no Congresso de maneira a deixar absolutamente claro que a condenação por órgão colegiado já tira a presunção de inocência e portanto permite a prisão. Infelizmente, os arautos da luta contra a corrupção, que incluem os que querem ver Lula longe do poder, como os militares, e os arautos do garantismo em matéria penal, acharam por bem escolher como local das disputas o Supremo Tribunal Federal, encarregado de interpretar o que a Constituição quer dizer.

    O resultado é a perda de credibilidade de um órgão que não mais diz o direito de maneira final, mas simplesmente segue o vento da opinião pública e dos acontecimentos que são enfatizados pela mídia, como se sua atuação tivesse que ser política e não jurídica. Se antes prevaleciam nas manchetes as operações espetaculares da Polícia Federal, que levaram os ministros do STF a aceitar a legalidade da prisão na segunda instância, agora reina a dúvida, insuflada pelas revelações do site Intercept Brasil sobre as combinações entre Sérgio Moro e os procuradores federais, e sobre as loucuras de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República de2013 a 2017. Daí que o que é direito no STF desmancha-se no ar e surge novamente sob outro formato, à esquerda ou à direita do que antes era direito. Diante de tal relatividade, não admira que o povo ache que os ministros sejam venais e apenas defendam interesses e não a lei.

    Nosso sistema de controle de constitucionalidade foi copiado do sistema americano, cujos defensores alegam que permitiu aos Estados Unidos adaptar um texto escrito sucintamente no século XVIII aos desafios da modernidade. Mas será que nossa Constituição de 1988, de 250 artigos, precisa de tanto preenchimento de lacunas e de tanta adaptação assim? Ou devemos concordar com Richard Ekins, para quem recorrer à justiça para resolver questões constitucionais é solapar a democracia, tornando-a refém de grupos de interesse?

    Prezados leitores, confesso não ter uma resposta. No Reino Unido voltar ao antigo sistema de supremacia incondicional do Parlamento é mais fácil, pois as pessoas que fazem política lá ainda tem uma memória de como as coisas funcionavam antes de 1998 e melhor, tem orgulho de sua tradição centenária de discussão parlamentar, registrada nos livros de história. Em nosso Brasil, nossa prática legislativa consiste em sua maior parte em tornar o Congresso um palco de discussões que muitas vezes descambam para a violência verbal e física, pura e simples. O que sei é que enquanto a agenda do país for ditada por filigranas jurídicas discutidas por juízes, nossos deputados e senadores eleitos tornar-se-ão cada vez mais irrelevantes e desacreditados e a nossa democracia de 513 deputados federais e 81 senadores na prática funcionará como uma tecnocracia de 11 Ministros do Supremo Tribunal Federal.  Oxalá que um dia Kim Kataguiri termine seus estudos constitucionais e se ainda for deputado, debruce-se sobre algo mais prosaico, como os cerca de 450.000 mosquitos machos geneticamente modificados que foram soltos na cidade de Jacobina na Bahia e que deveriam ter acasalado com as fêmeas nativas e gerado ovos inviáveis, incapazes de transformar-se em adultos, o que diminuiria a população de mosquitos. No dia 10 de setembro de 2019 a revista Nature publicou um artigo alertando sobre a descoberta, um ano após a liberação, que uma parte desses supostos ovos tinham chegado à vida adulta e transmitiram seu material genético para as populações nativas de mosquitos, com efeitos imprevisíveis sobre a transmissão de doenças como a febre amarela, a dengue, a zika e a chicungunha ( mais informações em https://www.dw.com/en/genetically-modified-mosquitoes-breed-in-brazil/a-50414340, o site com o artigo das revista Nature está inacessível no momento em que escrevo).

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Círculo virtuoso aqui e acolá

A exportação em larga escala dos produtos agrícolas americanos para pagar pela importação de produtos industriais causava a perda dos minerais incorporados a esses produtos agrícolas. E ao criar um interior rural escassamente povoado atrás de uma costa leste congestionada, o livre comércio fazia com que o retorno dos resíduos urbanos às áreas de plantio fosse custoso e não econômico. […] Um fluxo circular equilibrado entre a cidade e o campo poderia ser estabelecido e os resíduos urbanos sistematicamente restaurados à terra como fertilizante somente quando os produtos agrícolas não fossem mais exportados ou seus componentes minerais dilapidados em grandes cidades congestionadas como as grandes cidades portuárias estavam se tornando.

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Acre é o quarto estado com o maior percentual de famílias vivendo na pobreza: 47,7%. Para cada vez mais gente a pecuária tem sido a alternativa econômica mais viável. Segundo o IBGE, entre 2004 e 2017, o rebanho bovino do estado aumentou 38%, enquanto a média nacional foi de um incremento de 4%. – A economia verde ainda não consegue dar segurança econômica para os mais pobres. Muitas vezes, isso faz com que elas acabem aderindo à pecuária para ter algum tipo de estabilidade – diz a professora do departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Acre (UFAC) Sabina Ribeiro.

Trecho retirado do artigo “Miséria é vista como estímulo ao uso indevido da terra”, publicado no jornal O Globo em 1º de setembro

    Prezados leitores, em meu último artigo, eu abordei o desafio proposto por alguns pensadores americanos à ideologia do livre comércio que então dominava as cabeças pensantes daquela época, ideologia esta que claramente favorecia a Inglaterra, a potência industrial do século XIX. Homens como Simon Patten, Peshine Smith e Henry Clay, dos quais eu tenho quase certeza que, assim como eu, nunca tinham ouvido falar, propuseram uma teoria do desenvolvimento interno da economia americana que deveria ter como uma de suas medidas práticas a imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados ingleses como forma de estimular a produção local. Neste artigo de hoje, abordarei um outro aspecto dessa teoria que é a preocupação ecológica, que nada tinha de xiita, mas ao contrário era extremamente pragmática, ao ponto de propor cálculos de quanto dinheiro os Estados Unidos perdiam com o livro comércio prejudicial ao meio ambiente.

    A relação nefasta entre livre comércio e danos ambientais consistia no fato de que as trocas entre a América e a Europa estimulavam a monocultura agrícola exportadora nos estados sulinos. À luz das então recentes descobertas sobre a química agrícola, isto é, nos anos de 1840, quando relatórios sobre o assunto eram publicados pelo órgão de patentes do Estados Unidos, a monocultura levava à exaustão do solo. Quer seja plantando fumo, algodão ou cana de açúcar, os grandes proprietários de terras que os exportavam para a Inglaterra em troca de bens industriais retiravam da terra seus nutrientes básicos sem repô-los. Aliás, faziam pior: perdiam esses minerais, essenciais para a fertilidade do solo, para sempre, pois eram embarcados para o outro lado do Atlântico, incorporados aos produtos agrícolas, para nunca mais voltarem. A comparação da receita obtida com a venda das commodities agrícolas com o prejuízo causado pela retirada definitiva dos minerais dos solos americanos, que os levava a tornar-se estéreis depois de alguns anos, mostrava que de um ponto de vista prático não valia a pena continuar nesse caminho, era preciso mudar de rota agrícola para quebrar o círculo vicioso de quanto mais exportação mais perdas econômicas.

    A chave para a geração de um círculo virtuoso era o plantio de uma variedade de produtos que atendessem o mercado interno, representado pelos moradores das cidades. A rotação de culturas permitiria a recuperação dos solos, a qual seria ainda reforçada pela utilização como fertilizante dos resíduos produzidos nas cidades pelos consumidores desses produtos. Para que isso fosse possível, a atividade agrícola deveria desenvolver-se perto das zonas urbanas, de forma que as respectivas economias pudessem complementar-se. O aumento da oferta interna de gêneros alimentícios baratearia o preço da comida para os trabalhadores, que poderiam assim alimentar-se melhor e produzir mais. A imposição de tarifas alfandegárias aos produtos industrializados por sua vez geraria uma receita para o Estado, o que lhe permitiria investir em infraestrutura de transportes para estimular a atividade econômica, ligando as diferentes regiões dos Estados Unidos e unificando assim o mercado interno. Ao facilitar os negócios colocando os agentes mais em contato, a atividade governamental acabaria também estimulando os investimentos dos capitalistas e a mecanização da produção, criando empregos mais qualificados para os trabalhadores, os quais ganhando e mais alimentando-se melhor poderiam aprimorar suas qualificações e suas necessidades, fazendo a roda da economia girar pela criação de novas demandas.

    Nesse sentido, a ideia de economia da escassez, representada por baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade e baixos investimentos, uma visão pessimista respaldada pelas visões apocalípticas de Malthus sobre o perigo do excedente populacional que não pudesse ser alimentado, era substituída pela ideia otimista de economia da abundância: nesta conjugavam-se altos investimentos, altos salários, alta qualificação e alta produtividade em prol da prosperidade geral, não só dos seres humanos como do ambiente em que ele estava inserido, ao menos no que diz respeito à saúde dos solos agrícolas.

    As condições atuais são outras, há outras maneiras de garantir a fertilidade do solo pelo uso de adubos químicos, mas a lição permanece a mesma. Como os pioneiros americanos que desafiaram os dogmas então em voga perceberam, crescimento é diferente de desenvolvimento. Os Estados sulistas que se dedicavam à monocultura geravam receitas de exportação, expandiam a área cultivada quando os solos se esgotavam, produziam mão de obra escrava em abundância viabilizando a formação de famílias negras. A longo prazo, como a história mostrou, estavam condenados ao fracasso, porque era um modelo que não criava o círculo virtuoso da prosperidade para todos, ainda que em níveis desiguais.

    Prezados leitores, de que lado o Brasil está nessa clássica dicotomia entre crescimento e desenvolvimento? Ou estamos aquém dela, em uma areia movediça da economia da escassez, em um eterno círculo vicioso? Considerando a situação atual da Amazônia, em que desmatar faz mais sentido econômico do que preservar, ao menos no curto prazo, como mostra o trecho citado acima, , o crescimento pífio do PIB no segundo trimestre, de 0,4% comparado ao primeiro trimestre de 2019, o déficit de 139 bilhões de reais previsto para o governo federal em 2019, os 38 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade e portanto pouco produtivos, pois incapazes de investir na própria formação, a taxa de investimentos 24,8% menor do que aquela verificada antes de abril de 2014 (de acordo com a Abdib – Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base), parece que temos reunidos em nós os elementos fatais: baixos investimentos, baixos salários, baixa qualificação, baixa produtividade. Como sairmos disso? Como conseguirmos dinheiro para incentivar a agricultura verde na Amazônia de modo que preservar a mata se torne rentável para quem lá vive? Como colocar os milhões vivendo de bicos, de empregos precários, de volta à formalidade, às ocupações em que eles tenham a chance de melhorar suas qualificações? Qual será nosso coelho na cartola para inaugurar um novo círculo virtuoso de desenvolvimento?

    A reforma da previdência pode até economizar alguns bilhões para o governo, mas não acabou com as injustiças do sistema e neste cenário de alta informalidade em que vivemos ela pode acabar reforçando essa tendência de não regularização das relações de trabalho pela perda do estímulo à contribuição por parte dos trabalhadores autônomos, já que os benefícios serão menores e serão gozados por menor tempo. Resta-nos esperar que a reforma tributária prometida tenha algum efeito na quebra do círculo vicioso. Nesse ínterim, não nos esqueçamos da lição dos desenvolvimentistas americanos, que aliás recebeu o nome de Teoria dos Altos Salários: garantir condições boas de vida ao povo não é receita de socialismo desastroso mas de capitalismo sustentável.

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Amarras ideológicas e previdenciárias

Ou seja, o Brasil é o único país com um sistema universal público como é o SUS em que o gasto privado é maior. Não se criou um mecanismo de coordenação entre os setores privado e público.  O previsto era que o setor privado fosse suplementar, mas o que se configurou foi um modelo que duplica a produção de serviços e compete por recursos financeiros, pessoal, provimento de médicos, na forma de incorporação de tecnologias… E isso é ruim para o setor público, pois é uma marca da iniquidade brasileira.

Trecho retirado de entrevista dada ao jornal o Globo pelo médico sanitarista brasileiro Adriano Massuda e publicada em 14 de julho de 2019

E constatar-se-á que a economia política, cuja introdução em nossos cursos populares foi tão vilipendiada, tem preeminência sobre as outras ciências ao atuar como um sedativo, e não como estímulo a todos os tipos de turbulência e desordem. […] De todos os ramos da educação, não há nenhum outro que contribuirá mais para a aquiescência da multidão, do que aquele cuja admissão em nossas escolas técnicas estamos solicitando agora. 

Trecho retirado do livro “America’s Protectionist Takeoff 1815-1914” do professor de economia da Universidade de Missouri Michael Hudson

    Prezados leitores, o segundo trecho mencionado acima faz parte de um livro em que o autor discute a elaboração e desenvolvimento de uma escola americana de economia política que defendeu o protecionismo como ferramenta de desenvolvimento. Michael Hudson contrapõe essa teoria autóctone que foi sendo burilada ao longo do século XIX, com as “tábuas da lei” recebidas da Inglaterra e propagadas nas principais instituições de ensino estadunidenses, entre as quais Harvard, Yale, Brown, Columbia e Princeton. A sabedoria reinante era aquela de Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus, que haviam estudado a economia e a história da Inglaterra e cada qual com suas respectivas contribuições deram origem ao sistema geral do livre comércio, pelo qual o melhor para a riqueza dos indivíduos era que cada país produzisse aquilo em que tinha mais vantagens comparativas de forma que pudesse oferecer produtos no mercado ao preço justo. No mundo de então, isso significava que a Inglaterra seria a fornecedora de produtos manufaturados, já que ela havia atingido um alto grau de mecanização que tornava seus preços imbatíveis, e compraria dos países cuja economia era predominantemente agrícola os gêneros alimentícios e as matérias primas que os ingleses não podiam produzir por não terem mais terras aráveis. Afinal, de acordo com Malthus, a produção agrícola crescia a um ritmo muito menor que o da população, e a única solução era cultivar mais terras, pois em seu modelo ele não vislumbrava que aumentos de produtividade poderiam resolver essa discrepância.

    Em tal arranjo, todos sairiam ganhando, pois cada país seguiria sua vocação natural. Para muitos americanos, os Estados Unidos com suas vastas extensões de terra no Oeste, estavam destinados a ser uma potência agrícola, e muitos políticos sonhavam em estender as fronteiras do país até Cuba e quem sabe até o Canadá, com base em culturas exportáveis, como o algodão e o fumo. Ocorre que muitos Estados americanos, no chamado Meio Atlântico, já tinham uma produção manufatureira e não lhes era interessante simplesmente ter uma economia complementar à da Inglaterra, como era o caso dos Estados agrícolas do Sul. Propostas de aumento de tarifas alfandegárias sobre os produtos industriais da Inglaterra eram feitas por vários políticos, jornalistas e intelectuais, o que estimulou um debate feroz com os proponentes do livre comércio à l’anglaise. Se de início essas ideias de imposição de tarifas eram incipientes e pontuais, elas foram gradualmente constituindo-se em uma série de princípios para o desenvolvimento nacional. Tais disputas entre os Estados que queriam mais tarifas para a proteção da indústria nacional e aqueles que queriam o livre comércio acabariam resolvendo-se por meio da Guerra Civil Americana (1861-1865), que ao contrário do que mostra Hollywood por meio de Steven Spielberg, não foi uma guerra pela libertação dos escravos. Explico-me.

    Os Estados do Sul decidiram desligar-se da União porque consideravam que a política tarifária protecionista era uma ingerência indevida do governo central que acabaria por destruir a economia deles, por obrigá-los a comprar produtos mais caros e de pior qualidade dos Estados americanos de base industrial ao invés de comprar da Inglaterra, a grande potência industrial da época, a quem forneciam commodities agrícolas. Abraham Lincoln, o presidente dos Estados Unidos então, só libertou os escravos como meio de desestruturar a atividade produtiva do Sul e diminuir-lhe a capacidade de combate. Para quem duvida da minha versão, leiam “Uma Nota sobre Abraham Lincoln” escrito por |Gore Vidal (1925-2012) e publicado em uma coleção de ensaios denominada “De fato e de ficção”. O fim da Guerra Civil marcou o surgimento dos Estados Unidos como nação independente, livre das amarras ideológicas e econômicas que a prendiam à pátria-mãe, a Inglaterra, a defensora do livre comércio entre as nações como meio mais eficiente de criar riqueza.

    Esse introito serve para eu abordar as nossas amarras tropicais, que mostraram quão forte são ao longo desses meses em que a reforma da previdência foi debatida no Congresso e defendida pelos bem-pensantes de maneira unânime. O Brasil envelheceu, é preciso que nos adaptemos à nova realidade. Com a economia de dinheiro proporcionada pela postergação das aposentadorias, haverá uma diminuição da dívida pública, diminuição dos juros, mais investimentos, a economia voltará a girar e entraremos num círculo virtuoso de crescimento e geração de empregos. Esse mantra é um reflexo exato da receita de bolo trazida pelo Posto Ipiranga, Paulo Guedes, como fruto do seu PhD na Universidade de Chicago. O problema do Brasil é que o governo gasta muito, se resolvermos a questão fiscal, tudo caminhará.

    Independentemente de concordar ou não com a teoria econômica da equipe econômica no poder, que inclui entre outros Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central que estudou na Universidade da Califórnia em Los Angeles, a velha questão permanece relevante: os doutos economistas levam em conta a realidade do nosso país para aplicar o tal do choque fiscal? Sem abordar as minúcias das modificações nas regras, o fato é que para ter direito ao benefício integral, o candidato a aposentado terá que contribuir por 40 anos. Considerando que a idade mínima para pleitear a aposentadoria será de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, isso significa que quem começou a trabalhar aos 14 anos e teve a sorte de ter carteira assinada durante toda sua vida ativa, a aposentadoria, que poderia ser aos 54 anos, terá que ser postergada por 8 e 11 anos, respectivamente. Isso será bem problemático para brasileiros que passaram a vida exercendo atividades braçais e que podem ao final de sua carreira não mais conseguirem emprego que lhes permita pagar contribuições previdenciárias, por não mais conseguirem usar o corpo como o faziam quando jovens.

    É nesse ponto que se revela a deficiência dos sábios que nos governam em termos de levar em conta the facts on the ground e não apenas a aplicação de teorias elaboradas alhures. Uma reforma da previdência descolada de uma política de saúde e de uma política de emprego é apenas um truque dos fiscalistas que querem melhorar as contas públicas como se isso fosse uma poção milagrosa. É claro que os brasileiros estão vivendo mais, mas em que condições? A massa do povo conseguirá chegar aos 60 anos com saúde e qualificações para continuar a trabalhar? Será que Tabata Amaral, a cientista política de 25 anos formada em Harvard e que está sendo elogiada por quebrar com “as amarras ideológicas” (expressão pro ela usada em um artigo na Folha de São Paulo) da esquerda e por ter votado a favor da reforma da previdência, considera que fazer uma reforma dessas no vácuo é algo que deve ser apoiado? Quem mais merece críticas: a esquerda que é “contra tudo” ou a turma dos sábios que é a favor de tudo que tira direitos do povo sem dar nada em troca?

    A respeito dos doutos membros do governo que estão nos tirando o benefício previdenciário, onde está o Ministro da Saúde de Bolsonaro com medidas concretas para aumentar o dinheiro disponível para o SUS e melhorar a gestão dos recursos? Alguém ouviu falar de alguma ação do Ministério da Saúde nesses 200 dias de governo? E o que o Posto Ipiranga, que incorporou ao Ministério da Economia as atribuições do antigo Ministério do Trabalho, tem em mente em termos de políticas públicas para a qualificação e reciclagem de trabalhadores que ficaram desempregados depois da recessão de 2014 a 2016 e hoje vivem de bicos? Por acaso Paulo Guedes pensou que ao mesmo tempo que tira direitos da população por uma questão atuarial é preciso dar-lhe oportunidade de adaptar-se às novas circunstâncias? Será que a reforma da previdência terá só como objetivo resolver o problema fiscal e deixará o trabalhador ao deus-dará para virar-se nos trinta? Em sendo assim, será que no longo prazo o problema fiscal será resolvido mesmo? Afinal, se os brasileiros não tiverem saúde e nem qualificação para terem emprego e poderem ser contribuintes do INSS como o sistema será financiado? Ou será que o objetivo final é simplesmente acabar com qualquer proteção para a incapacidade laboral e a velhice? Será que a meta implícita da política econômica dos sábios de Chicago e de outras universidades americanas é que deixemos de ser trabalhadores e todos sejamos empreendedores?

    Empreendedor pode ser tanto o criador de uma start-up que se transforma em unicórnio quanto o indivíduo dono de sua própria bicicleta ou motocicleta e de seu celular que entrega comida trabalhando sábados, domingos e feriados, sem vínculo empregatício e sem proteção social nenhuma. Desburocratização, desregulamentação, incentivo à abertura de empresas, todas são ideias dos sábios que estudam nos Estados Unidos, mas deixam sempre para depois o cuidado com o povo, ou para usar uma expressão mais moderna, o capital humano. E sem cuidado com o povo, permaneceremos eternamente uma economia de terceiro mundo, de entregadores de quentinhas, de doceiras, de fazedoras de bolo, de taxistas, de auxiliares de serviços gerais, em suma de pessoas que exercem atividades que agregam pouco valor.

    Prezados leitores, os Estados Unidos no século XIX, por meio de ferozes debates entre protecionistas e defensores do livre comércio desafiaram a Inglaterra e tomaram seu lugar como potência mundial. Atualmente, eles obviamente têm interesse em que as coisas permaneçam como estão, e para isso eles propagam as teorias econômicas que beneficiam, se não todos os americanos, ao menos aqueles que detêm o poder político e intelectual de formar opiniões. Não estou aqui a propor que comecemos a lançar impropérios inúteis contra o governo americano como Hugo Chavez fez da tribuna da ONU, mas que ao menos antes de aplicarmos as receitas que nos ensinam, tenhamos um olhar crítico e consciência de que não foram feitas para resolver nossos problemas. Enfim, não custa sonhar com uma nova direita e uma nova esquerda que discutam mas cheguem a um meio termo que não seja simplesmente rendição de um lado ao outro. Enquanto isso, nós que vendemos nossa força de trabalho no mercado teremos que contar com a ajuda de nós mesmos para conseguirmos continuar a trabalhar e poder na velhice desfrutar de uma renda mínima de sobrevivência.

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Outros Juristas

A política de Rui Barbosa tinha o objetivo oposto daquele que até então dominara a esfera maior de governo no território. E tal objetivo vinha a ser o mesmo do governo de qualquer outro país na era capitalista: fomentar a riqueza da nação, favorecer os produtores ligados ao mercado interno e transferir os riscos das oscilações cambiais para os importadores – garantindo a renda dos produtores nacionais. […] a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo, somada às garantias de crédito e à maior oferta monetária, provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado.

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira, sobre as reformas econômicas realizadas por Rui Barbosa (1849-1923), Ministro da Fazenda do Primeiro Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca

Mas as receitas estaduais tiveram um efeito importante: permitiram um emprego novo do dinheiro público, com alta concentração de investimentos em capital humano. As despesas com educação, saúde, imigração e segurança – quase sempre visando a melhoria das condições de formação da população – representaram, em 1896, 62% dos gastos totais do estado. As obras públicas, investimentos em infraestrutura, totalizaram 35% dos gastos no mesmo ano.

Trecho retirado do mesmo livro sobre os efeitos das reformas econômicas sobre o setor público do Estado de São Paulo na década inicial da República

Para construir uma sociedade ideal é preciso que o governo controle os serviços públicos básicos — terra, finanças, riqueza mineral, recursos naturais e monopólios de infraestrutura (incluindo a internet hoje em dia), produtos farmacêuticos e assistência médica de forma que os serviços básicos possam ser fornecidos ao menor preço. Isso tudo foi descrito no século XIX por analistas nos Estados Unidos. Foi Simon Patten [1852-1922] quem disse que o investimento público é o “quarto fator de produção”.

Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Michael Hudson, professor de Economia na Universidade do Missouri “O Oráculo de Delfos era o Davos deles”, em 5 de abril

    Prezados leitores, vocês conseguem imaginar no Brasil um jurista que tenha tido uma atuação notável e louvável em área não jurídica? Pelo menos desde a deflagração da Operação Lava Jato, em março de 2014, a pauta das discussões nacionais é ditada pelos causídicos, e ela invariavelmente diz respeito a assuntos como interpretação da Constituição e das leis infraconstitucionais, prerrogativa de foro, e por aí vai. O mais recente tópico, o artigo publicado na revista Crusoé sobre o suposto envolvimento do Ministro do STF Dias Toffoli com a famigerada Odebrecht, que acaba de ser corresponsável pelo suicídio do ex-presidente do Peru, Alan Garcia, no último dia 17, girou basicamente em torno destas duas questões: Quem tem a titularidade da ação penal no ordenamento jurídico brasileiro quando o ofendido é membro do STF, o órgão de cúpula do Judiciário? Como devem ser sopesados direitos fundamentais conflitantes, garantidos pela Constituição Federal, a saber a liberdade de expressão, e o direito à honra? Enquanto Raquel Dodge dava carteirada em Dias Toffoli ordenando o arquivamento do inquérito de investigação de fake news contra o STF, incluindo a reportagem da Crusoé, e Alexandre de Moraes, companheiro dileto do presidente do Supremo, revidava ignorando a ordem da Procuradora-Geral da República, a grande maioria do povo brasileiro, 26 milhões dos quais estão ou desempregados ou subempregados, tinha preocupações mais prementes, para dizer o mínimo. No nosso contexto atual, em que não sabemos se teremos emprego nas próximas décadas que nos permita aposentarmo-nos com uma renda mínima, essas disputas se assemelham a discutir o sexo dos anjos como forma de matar o tempo de quem tem a vida ganha ou afagar a vaidade ferida.

    Nem sempre os maiores juristas brasileiros mostraram-se tão insensíveis à realidade econômica e social do povo. E o exemplo  que quero citar é o de Rui Barbosa, que, para quem conhece tem uma certa má fama: mandou destruir livros com registros de entrada de escravos no Brasil, o que dificultou a vida dos historiadores que tentam estudar a escravidão, e foi o autor da política conhecida como Encilhamento, que levou à emissão descontrolada de moeda e a uma crise financeira. O objetivo aqui não é negar os dois fatos, mas dar nuances a esse retrato, conforme houve o avanço dos estudos econométricos e estatísticos no Brasil, nas últimas décadas, refletido no livro de Jorge Caldeira acima mencionado. E ao dar mais detalhes sobre o que Rui Barbosa fez como Ministro da Fazenda, perguntar se não poderíamos tirar uma ou duas lições daqueles primeiros tempos da República e aplicá-las à nossa combalida Nova República?

    Em janeiro de 1890, Rui Barbosa fez publicar quatro decretos que rompiam com as restrições da época imperial. O primeiro decreto dava permissão às empresas ou sociedades anônimas de estabelecerem-se sem a autorização do governo e estipulava que os acionistas teriam responsabilidade limitada ao capital aplicado. O segundo decreto permitia que os proprietários de terras emitissem títulos de penhor sobre elas, por meio de um contrato direto entre o dono da terra e o fornecedor de crédito, o que acabava com a restrição que então vigorava no Brasil em relação à execução de fazendas e engenhos. O terceiro decreto regulamentava a hipoteca e as formas de cobrança, mercantilizando a propriedade das coisas. O quarto decreto estabelecia como garantia do meio circulante os títulos da dívida nacional, tornando a moeda passível de flutuação e cujo valor não seria mais zelosamente mantido pela vontade de D. Pedro II.

    Conforme Caldeira exemplifica em seu livro por meio de dados sobre volume de produção, número de empresas criadas e extensão da malha viária, essas medidas criaram um círculo virtuoso na economia: o crédito aumentou, os bancos expandiram suas atividades e pasmem, emprestaram dinheiro para fazendeiros plantarem e para empreendedores criarem fábricas e construírem ferrovias, as quais fomentaram o mercado interno de produtos que não aqueles destinados à exportação. Em São Paulo, o aumento das receitas governamentais permitiu que o Estado cumprisse o papel crucial de prover os serviços públicos que permitiam aos agentes econômicos produzirem de maneira mais fácil. Esse modelo de expansão do crédito para estimular a economia passou por um grande atropelo logo em novembro de 1890, quando o banco inglês Barings anunciou uma suspensão de pagamentos devido a problemas com seus investimentos em títulos argentinos. Isso levou a um efeito de manada e os investidores europeus desovaram suas posições em títulos de governos latino-americanos.  Assim, se de um lado a expansão do crédito trouxe efeitos de longo prazo na economia brasileira porque ele foi aplicado na produção, de outro o lastro da moeda em títulos a tornava vulnerável à fuga de capitais. Vejam que a crise da dívida na América Latina não começou na década de 80 do século XX, mas um século antes.

    Que lições o advogado baiano Rui Barbosa pode dar aos juristas que hoje ditam a pauta do Brasil? Ou até ao encarregado da política econômica atual, Paulo Guedes? Rui Barbosa, em sua Campanha Civilista, quando foi candidato a presidente contra Hermes da Fonseca em 1910, viajou por Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo comícios, conversando com a população. Será que a cúpula do Judiciário brasileiro não faria bem se desse ouvidos ao povo a respeito do que deve ser prioridade em termos de justiça? Como acelerar o andamento dos processos, como diminuir a sensação de incerteza sobre as decisões judiciais? A Paulo Guedes Rui Barbosa poderia dizer que à luz da sua breve e marcante experiência como Ministro da Fazenda, é preciso ter como foco a “prosperidade do trabalho”, o “movimento industrial”. Será que a reforma da previdência, se aprovada, por si só acelerará a atividade econômica como Rui Barbosa o fez por meio de seus quatro decretos? Ou será apenas uma maneira de o governo economizar dinheiro para poder continuar pagando dívidas, sem realizar investimentos públicos? Aguardemos, e enquanto isso saudemos Rui Barbosa como um jurista com o pé na estrada e não encastelado em sua Torre de Marfim, discutindo tecnicalidades.

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