Sobre rituais antropofágicos

[…] o Brasil era uma sociedade antropófaga. Ele deve voltar a ser antropófago. O gênio da França deve ser buscado em Clóvis, no vaso dos Soissons e nos druidas, o do Brasil se esconde no ventre dos antigos indígenas, no moquém dos tupis sobre os quais eles grelhavam os soldados ou quaisquer missionários holandeses, portugueses e alemães. Até alguns franceses.

Trecho retirado do verbete “Literatura e Antropofagia” sobre o Manifesto Antropofágico lançado em 1928 pelo escritor Oswald de Andrade (1890-1954) em prol de uma produção artística autenticamente brasileira, retirado do livro “Dictionnaire amoureux du Brésil” do escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020)

[…] não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança […]

Em boa e sã consciência tenho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente.

Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de que tem vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair do nosso país, para ver coisas tão monstruosas.

Trechos retirados do livro “Viagem à terra do Brasil” de Jean de Léry (1534-1611) sobre o ritual de antropofagia dos índios tupinambás, que ocupavam a costa do Brasil do atual Ceará ao Rio Grande do Sul

    Prezados leitores, na semana passada mostrei como Gilles Lapouge tenta explicar o Brasil aos seus conterrâneos franceses estabelecendo semelhanças e diferenças com acontecimentos aqui e acolá. No trecho que abre estre artigo, Lapouge defende a ideia de que se a essência do caráter dos franceses deve ser buscada na figura do rei Clóvis (481-511), que foi o primeiro monarca a unir as tribos dos francos e converter-se ao catolicismo, o caráter dos brasileiros deve ser buscado nas nossas raízes indígenas, particularmente nos índios Tupinambás, que comiam carne humana de maneira ritualística. Nesta semana, o objetivo é mostrar um outro olhar francês sobre o nosso país, o de Jean de Léry, que partiu para o Brasil em novembro de 1556 para habitar a colônia francesa fundada no Rio de Janeiro por Nicolas de Villegagnon (1510-1571), a chamada França Antártica, que existiu de 1555 a 1570.

    Lery era protestante e ficou oito meses na colônia, mas foi expulso com outros compatriotas da mesma religião, acusados de heresia por Villegagnon. Ele ainda ficou mais dois meses na região da Baía de Guanabara, vivendo com os tupinambás e depois da volta à Europa, em maio de 1558, acaba estabelecendo-se em Genebra e escreve “Viagem à Terra do Brasil”. Ao contrário de Lapouge, um homem letrado do século XX que se vale de seus conhecimentos sobre literatura, pintura e música para entender o país, Léry adota como ponto de vista para descrever os indígenas com quem ele conviveu os princípios da religião reformada, que pregava valores morais austeros, uma vida livre de vícios, de paixões, de vaidade, de luxúria, mas ao contrário, imbuída dos valores da castidade, da fidelidade, do comportamento regrado que agradasse a Deus.  Três exemplos ilustrarão este ponto.

    O primeiro deles é a respeito do ritual antropofágico dos tupinambás, que Léry apresenta no capítulo XV de sua obra. Os prisioneiros de guerra são engordados, recebem uma mulher para lhes fazer companhia durante o período de engorda e depois são mortos com um golpe na nuca ou na testa. O corpo é então esquartejado e as partes colocadas em uma grelha de madeira, o moquém (daí a origem da nossa moqueca), para ser defumadas e ficar prontas para o consumo. Comer o inimigo não é só um ato de vingança, que para os indígenas é a única justiça possível. É também uma homenagem a ele, tanto que os tupinambás esfregavam o sangue dos prisioneiros mortos e moqueados nos filhos, para que estes adquirissem a valentia daqueles.

    Conforme mostra o trecho citado na abertura deste artigo, para Léry o ritual adquire uma conotação mais benevolente quando ele compara o sofrimento rápido proporcionado pelo golpe mortal dado pelos tupinambás com o sofrimento lento infligido pelos agiotas europeus àqueles a quem emprestavam dinheiro e que mantinham na miséria pela cobrança de juros escorchantes. Nesse sentido, se a antropofagia é algo que chama a atenção dos homens civilizados pela flagrante barbárie do ato, o olhar de um homem de fé como Lery, que recebeu o título de burguês em Genebra em 1560, relativiza a crueldade considerando o comportamento dos que na Europa viviam à custa do trabalho alheio, o que não era o caso da burguesia calvinista genebrina.

    Um segundo exemplo do código moral protestante determinando a  visão de Léry sobre os habitantes originais do Brasil encontra-se no capítulo VIII, que descreve a indumentária dos homens e mulheres tupinambás. O nudismo prevalente para ele não é motivo para escandalizar-se e considerá-los pecaminosos por exporem suas partes pudendas. Ao contrário, a simplicidade do vestuário contrasta com o luxo dos europeus, que se esmeravam em usar roupas inúteis, cujo objetivo era atrair a admiração de todos e despertar a lascívia e a luxúria em alguns. Nesse sentido, a nudez indígena torna-se sinônimo de pudor, de recato, de decência, ao passo que todos os enfeites que as mulheres europeias usam, as golas, as rendas, os postiços, os cabelos encrespados e tal despertam muito mais as paixões sexuais.

    Por fim, é importante mencionar a observação que Léry faz no capítulo XII sobre a estranheza e o desprezo que causavam nos autóctones o comportamento avaro dos europeus, que cá vinham, atravessando o mar, sofrendo grandes incômodos, em busca de pau-brasil e riquezas.  Para os tupinambás, essa ênfase no acúmulo era inconcebível porque consideravam que a natureza e a terra proveriam sempre às necessidades suas e de seus familiares. Daí porque detestavam os piratas vindos da Europa, movidos pela pura cobiça e afã de acumular. Novamente aqui Léry coloca-se ao lado dos indígenas, ou melhor, do retrato por ele pintado sobre os valores morais dos indígenas, pois à luz dos seus princípios protestantes, aqueles que se dizem cristãos, mas angariam riquezas muito além do que precisam para sobreviver, pelo mero deleite que o dinheiro causa, sem intenção de estabelecer-se na terra que estavam saqueando,  eram simplesmente avarentos, “espuma do mar”, “gente sem país”, “homens sem descanso”. Um burguês como Léry preferia trabalhar de modo honesto, para sustentar sua família com o fruto dos seus esforços, assim como os tupinambás faziam nas terras brasileiras, cultivando a terra e caçando de acordo com o que precisavam.

    Prezados leitores, neste ponto cabe a pergunta: “Viagem à terra do Brasil” é uma descrição dos costumes e da visão de mundo dos povos com que Jean Léry conviveu na Baía de Guanabara ou simplesmente uma oportunidade a um membro da religião reformada de lançar um manifesto em defesa dos valores protestantes, que ele em certa medida projeta nos autóctones com que tem contato na América? Nunca saberemos, pois nunca teremos de novo a oportunidade de encontrarmos os habitantes originais do Brasil litorâneo, tal como eram, antes do contato com os europeus.

    De qualquer forma, à luz da descrição que Léry faz do que viu nos trópicos, a exortação de Mário de Andrade, citado por Gilles Lapouge no seu verbete sobre o Movimento Antropofágico do Modernismo brasileiro torna-se mais fácil de ser entendida. O Brasil deve se servir do ritual dos antigos tupinambás para encontrar seu caminho espiritual e cultural: deglutir o estrangeiro para adquirir-lhe as qualidades, mas nunca se esquecendo que ele é o inimigo.

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O Fim do Mundo

O triângulo da desgraça, que se estende do interior da Bahia aos Estados vizinhos, é povoado por seres humanos que não são nem brancos, nem negros, nem mesmo índios, que são não importa o quê, seres nos quais amontoa-se um pouco do negro, um pouco do indiano, um pouco do turco, um pouco do japonês, do português e da desgraça.

O “crime fundador” de Canudos prenuncia todas as guerras travadas há 100 anos pelos pobres e oprimidos contra os opressores, a guerra dos esfarrapados da África contra os casuares de Saint-Cyr, a guerra dos mendigos do Vietnã contra os computadores do Pentágono e dos trogloditas do Afeganistão contra os blindados soviéticos e contra os drones do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

 

Trechos retirados do verbete o “Fim do Mundo” sobre a Guerra de Canudos e o livro os Sertões, retirado do livro “Dictionnaire amoureux du Brésil” do escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020)

 

    Prezados leitores, na semana passada tratei de uma das grandes damas do Renascimento na Itália, Isabella D’Este, do papel político que ela exerceu, na qualidade de Marquesa de Mântua, e do papel cultural, por ter sido uma apreciadora de arte. Isabella tinha olheiros em várias cidades europeias encarregados de garimpar e comprar obras para ela e é por isso que ela possuía estátuas feitas por Michelangelo e pinturas de Mantegna (1431-1506) e Perugino (1448-1523). Além disso, ela teve retratos feitos de si ao longo da vida, sendo que o pintor veneziano Ticiano (1488 ou 89-1576) em 1529 foi a Mântua especialmente para tal. Este quadro considera-se hoje perdido, mas o pintor holandês Rubens (1577-1640) fez uma cópia dele, mostrando a Marquesa vestida do vermelho que realçava a pintura, os tecidos preciosos e as festas do Renascimento. E este vermelho tão expressivo da época era obtida da Caesalpinia echinata, a árvore que deu nome ao Brasil.

    Quem nos dá tal informação sobre a relação entre o Brasil e o Renascimento é Gilles Lapouge no livro citado acima, de uma maneira típica de todos os verbetes ali relacionados. Sua cultura lhe permite fazer associações das mais inusitadas que fazem todo o sentido e que tornam sua obra pertinente ao leitor brasileiro porque Lapouge, a fim de mostrar o Brasil a um francês, procura sempre fazer comparações entre o que ocorreu ou foi criado na terra do pau-brasil e acontecimentos e invenções de outras partes do mundo, não só da França. O interesse para nós tropicais reside no fato de que, em traçando esses paralelos, ele contextualiza fenômenos que consideramos tipicamente brasileiros, mas que na verdade inserem-se em um quadro geral e guardam semelhanças com os de outros países. O verbete o “Fim do Mundo” é ilustrativo da técnica usada pelo correspondente do jornal O Estado de São Paulo na França, que desembarcou no Brasil pela primeira vez em 1951.

    O fim do mundo é o Arraial de Canudos, fundado por Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897) e que chegou a ter 5.200 casas habitadas por sertanejos. Para explicar ao público europeu quem eram essas pessoas que seguiam a orientação espiritual e política de Antônio Conselheiro, como era chamado o líder do local, Gilles descreve-os como resultado da miscigenação racial típica que ocorreu no Brasil desde nossa fundação como país, particularmente entre a população mais pobre, conforme mostra o trecho que abre este artigo.

    Pelo fato de Antônio Conselheiro ser um reacionário, que queria a volta da monarquia e odiava os maçons que haviam proclamado a República em 1889, ele representava um desafio ao novo regime e por isso era preciso mandar tropas para acabar com a insurreição desses sertanejos, que esperavam o retorno de Dom Sebastião, o rei português morto pelos mouros no século XVI. Mas foram necessárias três expedições para fazê-lo, porque as duas primeiras foram rechaçadas pelos bravos canudenses. Foi só quando levou 8.000 homens, canhões Krupp e metralhadoras Nordenfelt que o exército brasileiro conseguiu não só vencê-los, mas destruir o arraial e trucidar a população, deixando um saldo de 15.000 homens, mulheres e crianças mortos.

    Mas a Guerra de Canudos foi um acontecimento específico do Brasil? Afinal, em que outro lugar poderiam estar reunidas populações miscigenadas, e por isso desprezadas pela elite que comandava o país, que pregavam o fim do mundo e o advento de uma nova era em que um rei ressuscitado comandaria todos? Gilles Lapouge compara a luta desigual entre os esfarrapados da caatinga e o exército de soldados bem nutridos do litoral, com seu aparato bélico, a vários episódios da história mundial: a descolonização da África,  da qual a guerra pela independência da Argélia (1954-1962) contra os franceses é emblemática, pois os oficiais formados na Escola Militar de Saint-Cyr, fundada em 1808, não puderam evitar que os argelinos conquistassem o direito de se autogovernarem; a guerra do Vietnã (1955-1975), em que os vietcongs conseguiram fazer com que os americanos desistissem de tentar vencê-los apesar do napalm, dos helicópteros, dos aviões, das minas, dos fuzis, das metralhadoras; a guerra do Afeganistão (1979-1989) entre os jihadistas islâmicos e o exército soviético, cujo fracasso em tornar aquele país comunista foi um dos catalizadores da derrocada do Império Soviético; a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos em 2001, com o objetivo de remover o Talibã, os herdeiros dos jihadistas de 1979, considerados pelo governo americano como responsáveis pelos ataques terroristas de 11 de setembro, invasão esta que até hoje não mostrou resultados conclusivos, pois o Talibã continua a dominar parte do país.

    Assim, com base em seu conhecimento da história mundial, Lapouge mostra que os canudenses são os precursores de um fenômeno que  consiste no fato de que povos destituídos conseguem muitas vezes vencer o poder bélico baseado no uso maciço da tecnologia pela força bruta da sua vontade, pelo comprometimento com a causa, seja a independência política ou a volta de um regime monárquico. E mais, essa fé inquebrantável em um ideal, essa loucura coletiva que leva os desesperados a lutar até o fim em prol do que acreditam, foi o que Euclides da Cunha, o repórter do jornal O Estado de São Paulo que cobriu  a guerra e que depois de seis anos publicou a narrativa completa em Os Sertões, percebe e que torna o livro especial. Lapouge explica a gênese da obra traçando mais paralelismos.

    Na visão do jornalista francês, como narrativa da epopeia dos sertanejos nordestinos, Os Sertões é, para os brasileiros, o que é a Ilíada e a Odisseia para os gregos, a Eneida para os romanos, A Canção de Roland para os franceses ou Os Lusíadas para os portugueses. Na primeira parte do livro, em que Euclides da Cunha descreve a paisagem do sertão, seu clima e como isso determina o caráter do povo que nele habita, o autor antecipa em 50 anos aquilo que o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985)  faria ao escrever a história do Mar Mediterrâneo: tornar a história uma geografia, isto é tornar os acontecimentos históricos fruto das interações de longa duração que ocorrem em um determinado espaço geográfico, e que criam uma determinada cultura material e mentalidade.

   Nesse sentido, se as difíceis condições de vida no sertão moldam o caráter rude daquele povo miscigenado, carente de comida, de educação, de saúde, e os torna propensos a acreditar em fantasias apocalípticas, por outro lhes dá uma força interior que eles mostram ao enfrentar o exército brasileiro e colocá-lo duas vezes para correr. É então que, segundo Lapouge, o tom de Os Sertões muda: se na primeira parte é o engenheiro militar que analisa objetivamente o solo, a vegetação e o clima no quais os sertanejos construíam sua vida, na segunda parte da obra, em que a luta é descrita, o poeta em Euclides da Cunha coloca o cientista de lado.

    É o poeta que vê a humanidade daqueles seres brutos, que foram degolados e estripados por um exército que usou a tecnologia não para colocar os ideais iluministas de progresso e razão de que o próprio Euclides da Cunha estava imbuído, como militar e positivista que era, em prática. O Estado Brasileiro não foi a Canudos para construir escolas, hospitais, dar apoio técnico à agricultura familiar no semiárido que permitisse àqueles sertanejos começarem a ter uma vida normal e deixarem de cultivar obsessões sobre o fim do mundo. O único objetivo foi a destruição do povo, e isso Euclides vê e descreve, tal como o pintor espanhol Goya (1746-1828), em sua série Os Desastres da Guerra, mostrou com suas pinceladas e traços as barbáries cometidas pelo Exército Napoleônico na Espanha (1808-1814).

    Prezados leitores, o verbete o “Fim do Mundo” do “Dictionnaire amoureux du Brésil” sobre Canudos e a obra Os Sertões, ao explorar um acontecimento histórico e cultural específico do Brasil colocando-o ao lado de fatos históricos, artistas e escritores europeus, dá a nós brasileiros a oportunidade de refletir sobre o velho epigrama plus ça change, plus c’est la meme chose, criado em 1849 pelo crítico e jornalista francês Jean-Baptiste Alphonse Karr e aplicá-lo a nossa realidade: o povo brasileiro, tal como ele é, seus problemas, seus desafios, nunca foram prioridade para o governo de nosso país. E quando eles se tornam muito conspícuos e nos causam vergonha, como foi o caso dos sertanejos nordestinos descritos por Euclides da Cunha, temos uma tendência em nossa história de tratar o caso à bala. Por oferecer a nós um espelho no qual nos vemos e nos colocamos em perspectiva, o livro de Gilles Lapouge merece ser consultado.

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O Renascimento Feminino

As mulheres educadas do Renascimento emanciparam-se a si mesmas sem nenhuma propaganda de emancipação, somente por sua inteligência, personalidade e tato, e pelo aumento da sensibilidade dos homens aos charmes tangíveis e intangíveis do sexo feminino. Elas influenciaram sua época em todas as áreas: na política pela sua capacidade de governar estados na ausência dos maridos; na moral pela sua combinação de liberdade, boas maneiras e devoção; na arte por terem adquirido uma beleza matronal que serviu de modelo a centenas de Madonnas; na literatura por abrirem sua casa e seu sorriso a poetas e intelectuais.

Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano

 Provavelmente ela cultivava os livros mais como uma colecionadora do que como uma leitora ou estudante; ela respeitava Platão, mas na verdade preferia os romances de cavalaria que divertiam até os Ariostos da sua geração e os Tassos da próxima. Ela amava coisas finas e jóias, mais do que os livros e a arte; mesmo quando já era mais velha, as mulheres da Itália e da França tinham-na como espelho da moda e rainha do gosto. Era parte da sua diplomacia convencer embaixadores e cardeais pelo atrativo da sua pessoa, seu modo de vestir, suas maneiras e sua mente; eles achavam que estavam admirando sua erudição ou sua sabedoria, quando na verdade estavam desfrutando da sua beleza, seu traje ou sua graça. Raramente ela era profunda, exceto em questões de estado. Como praticamente todos os seus contemporâneos, ela consultava os astrólogos e punha em prática seus planos no momento do alinhamento das estrelas.

Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano sobre Isabella D’Este (1474-1539), Marquesa de Mântua

    Prezados leitores, na semana passada tentei resumir neste meu humilde espaço o retrato que Will Durant nos dá de Michelangelo, de como as obras deixadas pelo escultor, arquiteto e pintor nascido em Caprese ficaram muito aquém daquilo que ele vislumbrou ao longo de toda sua vida em termos de ideais e projetos a serem colocados em prática. O fato de ele ter deixado um legado que sobrevive, a despeito de obras que foram destruídas por terceiros e pelo próprio artista, legado este que é admirado por milhões de pessoas a cada ano, mostra a famosa terribilità michangelesca em ação, lutando contra tudo e todos em prol da arte.

    Mas nem todos os seres humanos que passaram pela vida de Michelangelo foram obstáculos à concretização dos seus ideais estéticos. Se houve príncipes da Igreja e dos Estados caprichosos e imprevisíveis que o fizeram fazer coisas que ele não queria, ou deixar pela metade obras que lhe eram caras, Michelangelo também pôde contar com o apoio emocional e espiritual de uma mulher, Vittoria Colonna (1490-1547), viúva do Marquês de Pescara, que encarnou para o artista esta mulher renascentista  descrita por Durant na abertura deste artigo: a mulher que é mais livre e mais educada porque goza dos confortos materiais proporcionados pela geração de riqueza com o comércio e por isso pode dialogar de igual para igual com os homens igualmente letrados, e não simplesmente ficar restrita a realizar atividades femininas e a conviver somente com mulheres; ao mesmo tempo, é uma mulher educada na religião cristã e que não deixa de cultivá-la. Vittoria, além de poetisa, era adepta do evangelismo, uma corrente religiosa que procurou renovar a fé ante o desafio do luteranismo, pregando a imitação de Cristo e um cristianismo voltado para o espírito e não para os rituais repetidos mecanicamente na Igreja Católica.

    Vittoria conheceu Michelangelo quando ela já tinha 50 anos e ele 67, e a ela o artista escreveu poesias em que a descrevia como a mediação entre ele e o Céu, em uma época em que Michelangelo passou a se preocupar com a salvação da sua alma. A devoção, a bondade e a fidelidade da sua “Deusa” amenizavam o pessimismo do gênio sempre frustrado e ranzinza por conta dos seus fracassos. Michelangelo estava com Vittoria quando ela morreu e depois disso “ele sucumbiu muitas vezes ao desespero, agindo como um homem que havia perdido a razão”, nos informa Ascânio Condivi (1524/1525-1574) em sua biografia intitulada “Vita di Michelangelo Buonarotti”.

    A Marquesa de Pescara certamente não foi a musa inspiradora das obras de Michelangelo, pois a força e a motivação eram internas a ele, mas contribuiu para tornar-lhe a vida mais doce e menos pesada. Em uma dimensão menos espiritual, pode-se dizer que a vitalidade, o otimismo, e a vasta cultura de Isabella D’Este contribuíram para tornar leve a vida no Marquesato de Mântua, para onde Isabella mudou-se definitivamente aos 14 anos para casar-se com o herdeiro, Gianfrancesco D’Este. De fato, a capacidade de Isabella de exercer seus charmes femininos com tato, delicadeza e inteligência, além de lhe permitir ajudar o marido a governar, salvaram Mântua das garras de César Bórgia, dos reis franceses Luís XII e Francisco I e depois do Imperador Carlos V durante as Guerras Italianas (1494-1559).

    Os feitos de Isabella não param por aí. Além de garantir a independência de Mântua, ela conseguiu tornar seu segundo filho Ercole cardeal e convenceu Carlos V a tornar o primogênito  Federigo duque. Em um mundo dominado por homens fazedores de guerras, a Marquesa de Mântua fez uso da palavra e das suas graças femininas para dobrar a força aos seus desejos. Nesse sentido, o empoderamento das mulheres da elite na época do Renascimento era um esforço sutil cujo objetivo não era desafiar frontalmente os homens e garantir prerrogativas, como fazemos hoje, mas amolecê-los, torná-los menos brutais e implacáveis. As virtudes cristãs eram inúteis e contraproducentes para conquistar e manter o poder, como ensinara Maquiavel. Mas a conciliação praticada por diplomatas hábeis como Isabella D’Este acabavam dando um papel a tais virtudes na medida em que buscava a paz e o perdão recíproco das partes na disputa.

    Prezados leitores,  Will Durant em sua História da Civilização na Itália nos mostra que, cada uma a seu modo, Vittoria Colona e Isabella D’Este colocaram em prática o Renascimento sob o ponto de vista feminino: ao mesmo tempo emancipadas para atuar no mundo como raramente a mulher havia atuado na Idade Média, elas não deixavam de reforçar o papel feminino de transmissoras e cultivadoras da herança cristã quer por sua prática religiosa no caso de Vittoria, quer por sua atuação política e cultural como diplomata de seu Estado de adoção, Mântua, e patrona de artistas, no caso de Isabella. O Renascimento feminino: uma combinação de fé no poder da tradição e da mudança em prol de um mundo mais belo, mais pacífico e ordeiro, onde as mulheres pudessem florescer.

 

 

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Formas Michelangelescas

Não podemos saber o que é Deus, nem entender um mundo com tanta mistura do bem e do mal, do sofrimento e da beleza, da destruição e do sublime; mas na presença de uma mãe tomando conta do seu filho, ou de um gênio dando ordem ao caos, dando significado à matéria, nobreza à forma ou ao pensamento, nós nos sentimos o mais perto que podemos estar da vida, da mente e da lei que constituem a inteligência ininteligível do mundo.

Trecho retirado do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano

E na verdade a multitude de figuras, a terribilità e a grandeza da obra são tais que não se podem descrever, porque está cheia de todos os tipos humanos possíveis, e todos maravilhosamente representados: soberbos, invejosos, avaros e luxuriosos, e outros da mesma natureza podem ser amplamente reconhecidos por qualquer espírito belo […]

Trecho retirado do livro “Vidas” de Giorgio Vasari (1511-1574), pintor, decorador, arquiteto, escritor, historiador, teórico e colecionador italiano

 

    Prezados leitores, um panorama do Renascimento na Itália não poderia deixar de lado a arte produzida naquele período e naquele local. Para abordar esse assunto, William Durant – o qual já introduzi a vocês na semana passada –, conforme ele explica no prefácio do livro, estudou ao vivo e a cores praticamente todas as obras de arte que ele menciona, o que lhe permite abordar a vida e a obra de cada pintor ou escultor e ao final elaborar uma apreciação final que embora não seja a de uma pessoa com conhecimento técnico especializado em pintura, escultura e arquitetura, é a de um homem sensível à beleza e ao poder da arte, conforme mostra o trecho que abre este artigo, o qual encerra a descrição que Durant faz de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), o pintor da Capela Sistina, o escultor da Pietà e do David, suas obras mais conhecidas. É da descrição feita por Durant em seu livro que tratarei neste artigo.

    Durant divide a vida de Michelangelo em cinco períodos. O primeiro é a juventude de 1475 a 1505, quando ele frequentou os jardins de São Marcos, onde os Médicis expunham suas coleções de estatuária e arquitetura antigas para que os jovens artistas pudessem aprender com os mestres da Grécia e de Roma. Lorenzo de Médici (1449-1492), o chefe da família então e governante de Florença, percebeu o talento de Michelangelo e o levou para morar em sua casa. De 1490 a 1492 o jovem artista comeu na mesma mesa que Lorenzo e os humanistas a quem o homem mais poderoso da cidade patrocinava: Policiano, Pico, Ficino e Pulci e presenciou as discussões  sofisticadas que eles travavam sobre política, literatura, filosofia e arte. Digna de nota em sua juventude foi sua atuação como falsário. Michelangelo esculpiu um cupido dormindo, hoje perdido, o qual ele envelheceu artificialmente e vendeu ao cardeal Riario como uma antiguidade. O contrato para a realização da Pietà foi assinado em 1498, durante a primeira estadia de Michelangelo em Roma. O sucesso da escultura, considerada pelo rei da França, Francisco I, como a principal realização do artista, trouxe a Michelangelo fama e fortuna. É desse período também o David, esculpido de 1501 a 1504 mediante solicitação da guilda dos produtores de lã de Florença.

    O segundo período da vida de Michelangelo vai de 1505 a 1513, quando realiza trabalhos para o papa Júlio II (1443-1513): a escultura em bronze do pontífice, colocada em 1508 na frente da Igreja de São Petrônio, em Bolonha, mas que foi destruída em 1511, a mando de Giovanni II Bentivoglio, o senhor de Bolonha então e a pintura da Capela Sistina, na qual o artista trabalhou de 1508 a 1512, com a ajuda de assistentes que seguiam suas instruções. A respeito dessa obra, Durant comenta que Michelangelo não se via como pintor, mas como escultor e por isso todas as figuras sugerem a escultura, exibindo o corpo humano como a mais alta corporificação da energia, da vitalidade e da vida. Tanta vitalidade, que permitiu ao artista traçar um painel completo das possibilidades humanas, tal como descrito por Vasari no trecho citado acima, fez com que a obra fosse também duramente criticada pela indecência dos corpos nus que fugiam ao tema religioso do Julgamento Final. Após o encerramento do Concílio de Trento em 1563, reunido para reformar a Igreja Católica e combater a heresia protestante, decidiu-se que os nus seriam cobertos e a tarefa coube inicialmente, de 1564 a 1565, ao pintor Daniele de Volterra, discípulo de Michelangelo, que por isso passou à história sob a infeliz alcunha de “Il Braghettone”, o fazedor de calças.

    O terceiro período da vida de Michelangelo vai de 1513 a 1520, quando o artista trabalha sob as ordens do novo papa Leo X (1475-1521), filho de Lorenzo de Médici. Leo queria terminar a construção da Igreja de São Lourenço, o santuário da família, onde se encontravam os túmulos de Cosimo de Médici (1389-1464), avô de Lorenzo e do próprio Lorenzo. O trabalho, no entanto, não caminhou, porque o afável papa não conseguiu relacionar-se bem com Michelangelo, famoso por sua terribilità. Durant define essa qualidade como uma energia, uma força selvagem que sustentou o corpo do artista por oitenta e nove anos, mas também um poder da vontade que mantinha aquela energia canalizada para um único propósito, a arte, fazendo seu detentor ignorar todo o resto, incluindo a limpeza do corpo e das roupas, as boas maneiras com as pessoas. Por outro lado, sua terribilità permitiu a Michelangelo continuar inquebrantável até o fim, a despeito das promessas não honradas, das amizades desfeitas, da saúde e do espirito em frangalhos. O corpo e a mente ao final estavam destroçados, mas o trabalho fora feito: a maior pintura, a maior escultura da época.

    O quarto período da vida de Michelangelo vai de 1520 a 1534, quando o artista realiza a Nova Sacristia da Igreja de São Lourenço para o papa Clemente VII (1478-1534), sobrinho de Lorenzo de Médici e portanto primo do papa Leo X. Ele consegue esculpir somente dois dos seis túmulos contratados inicialmente para ocupar o local. Além disso, Michelangelo projeta a Biblioteca Laurentiana em 1523, que foi finalizada mais tarde por Vasari para abrigar a enorme coleção de livros da família. A quinta e última fase da vida do gênio que sabia direcionar sua energia por uma vontade consistente, conforme a definição de Durant, vai de 1534 a 1564, ano de sua morte. Tendo experimentado repetidas frustrações ao longo da vida – a fachada inacabada da Igreja de São Lourenço, a estátua do papa Júlio II destruída em Bolonha, os túmulos dos Médici não finalizados, Michelangelo é um homem azedo, cansado. Aos 75 anos, em 1550 termina de pintar, a contragosto, A Conversão de São Paulo e o Martírio de São Pedro na capela construída a mando do Papa Paulo III (1468-1549) no Vaticano. Durant considera tudo um exagero da forma humana por um artista que ao pintar esculpia. Em 1539 realiza um busto de Brutus, o homem que matou Júlio César para salvar a república romana.

    Prezados leitores, apesar do muito que se perdeu da obra de Michelangelo, incluindo muitos desenhos que ele distribuía a artistas para que realizassem pinturas, sua Batalha de Cascina, ilustração elaborada em uma competição com Leonardo da Vinci para decorar a parede da Sala do Conselho Maior do Palácio Vecchio, a Leda que teria sido queimada a mando da rainha Ana da Áustria da França por ser excessivamente lasciva, quem já viu o David de perto pôde admirar a determinação e a virilidade contidas no olhar do herói. Quanto à Capela Sistina, em nossa época, de turismo em massa, ao menos antes da pandemia do covid-19, a multidão de pessoas em um espaço pequeno e os guardas repetidamente pedindo silêncio impedem uma apreciação digna da obra. E sobre a Pietà, apesar de enclausurada dentro de um vidro por razões de segurança, Durant foi feliz na sua expressão da impressão que a escultura causa, citada na abertura deste artigo.

    Ao percorrer os 89 anos de vida do gênio do Renascimento, o escritor nos mostra a complexidade do período, povoado de homens que se abriam para o secularismo, para a vida em todas as suas manifestações, livres das amarras morais colocadas pela religião cristã, mas ao mesmo tempo se preocupavam com a salvação da alma, como mostra o Julgamento Final. Se a obra de Maquiavel mostra essa dialética no campo da arte da conquista e da manutenção do poder, as formas contorcidas e musculosas de Michelangelo também expressam o embate entre o cristianismo que já não mais fazia a cabeça das elites intelectuais, mas ao mesmo tempo era parte da cultura enraizada de todos, e o mundo de possibilidades aberto pela redescoberta da civilização greco-romana. Caso o mundo algum dia volte ao normal e pudermos voltar a viajar para encontrar os chineses pelo mundo, corramos à Galeria da Academia, ao Museu Barghello e ao Vaticano para testemunharmos o legado deste grande misantropo, Michelangelo Buonarotti!

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Espinhos maquiavélicos

A moralidade cristã enfatizava as virtudes femininas [gentileza, humildade, não resistência] porque os homens tinham as qualidades opostas de maneira ruinosamente abundante; algum antídoto e contra ideal tinha que ser pregado aos sádicos romanos do anfiteatro, aos bárbaros grosseiros que estavam entrando na Itália, aos povos sem lei que lutavam para se misturar à civilização. As virtudes que Maquiavel desprezava permitiam a construção de sociedades ordenadas e pacíficas; aquelas que ele admirava (e, como Nietzsche, porque ele não as tinha) permitiam a construção de Estados fortes e bélicos e a existência de ditadores capazes de matar milhões para impor a conformidade e manchar de sangue o planeta para expandir seu domínio. Ele confundia o bem do governante com o bem da nação; ele pensava demais a respeito da preservação do poder, raramente das obrigações inerentes a ele e nunca da corrupção a ele associada.  

Mas seu [de Rodrigo Bórgia] insight foi inspirado pela falta de moralidade política; ele não tinha nada da sabedoria mais elevada que compreende as características e prevê a tendência de uma época, e ele não sabia o que era um princípio.

Trechos retirados do livro “The Renaissance, A History of Civilization in Italy from 1304-1576 A.D.” de William James Durant (1885-1981), filósofo, historiador e escritor americano

   

    Prezados leitores, na semana passada falei neste meu humilde espaço de Catarina de Médici e do retrato favorável elaborado por Balzac no ensaio escrito em 1828 a respeito de sua atuação na preservação da monarquia francesa. Aos olhos do escritor, o fato de a florentina ser uma mãe desnaturada e não ter escrúpulos morais, mesmo porque não tinha nenhuma fé religiosa, era irrelevante à luz do seu gênio político, da sua vocação para o exercício do poder.

    Nesta semana, meu foco será em uma obra muito mais volumosa, de 728 páginas, escrita em 1953, com vocação enciclopédica, que pretendeu contar a história do Renascimento na Itália em todas as regiões em que ele se desenvolveu, Milão, Toscana e Úmbria, Mântua, Ferrara, Veneza, Emília-Romanha e Nápoles. Além de ter escrito capítulos sobre cada área geográfica, Will Durant também elaborou retratos específicos dos grandes personagens da época, papas, artistas, príncipes, duques, condottieres, filósofos. Para não deixar de lado a rainha da França, escolhi, como primeiro assunto de análise nessa fonte inesgotável de erudição que constitui a quinta parte da História da Civilização do historiador americano, o retrato que ele pinta de Nicolò Machiavelli (1469-1527).

    A ligação entre Catarina e Nicolò se dá pelo fato de ela ter levado o livro para a França quando para lá foi para casar-se com o segundo filho do rei Francisco I, de acordo com o que nos informa “A História da Civilização  na Itália de 1304 a 1576 A.D. Não é difícil ver traços maquiavélicos na atuação política de Catarina, no dividir para governar, na violência como método deliberado de manutenção do poder (Noite de São Bartolomeu). Mas se no ensaio balzaquiano a mulher implacável e fria se redime pelos esforços heroicos em prol da manutenção da unidade política da França em torno do regime monárquico, na “História da Civilização na Itália” os governantes que foram maquiavélicos na prática não recebem elogios desenfreados, porque a ótica do filósofo, historiador e escritor que passou a infância em Massachusetts e Nova Jersey e frequentou escolas católicas, é diferente.

    Durant traça em linhas gerais o âmago do pensamento político de Maquiavel, de que a moral individual cristã, de comportamento pacífico, de respeito ao próximo,  é incompatível com a conquista e manutenção do poder, os quais requerem força, malícia, astúcia, a famosa virtù que permite ao homem sobreviver aos caprichos da fortuna e ser bem-sucedido, conquistando a glória. Em suma, o príncipe de Maquiavel nas suas relações privadas pode ser um bom cristão, mas na sua atuação pública deverá ter um comportamento adequado para a preservação do Estado e a manutenção da lei e da ordem. Nesse sentido, primeiro o líder deve ser forte, cruel, implacável, usar de todas as armas para destruir seus inimigos e estabelecer seu regime, depois uma vez seu poder consolidado, ele deve exigir que a lei seja respeitada por todos os cidadãos para que haja paz e prosperidade.

    Essa é a receita maquiavélica, mas Durant na sua avaliação crítica da filosofia política do florentino levanta os problemas de tal abordagem, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. Até que ponto a moral cristã deve ser abandonada em prol das virtudes romanas de força física e intelectual e da coragem? Pois se em certos momentos a boa fé, a gentileza, a compaixão, o perdão tornam o indivíduo fraco e vulnerável aos mais ambiciosos e inescrupulosos, por outro não há como haver justiça nem estabilidade sem que as pessoas possam confiar umas nas outras. Será que a doutrina maquiavélica de abandono total da moral religiosa não leva à fetichização do poder? Será que o exercício da violência para a criação e manutenção do Estado pelo príncipe acaba sendo simplesmente um meio de manter no poder um líder que ao agir amoralmente acabará corrompendo-se e abandonando qualquer ideia do bem comum? Como atingir o equilíbrio entre a necessidade do príncipe de afirmar seu poder e de deixar um legado para as gerações presentes e futuras em termos de ordem, paz, prosperidade e instituições sólidas?

    Durant não apresenta respostas, claro, mas ao mostrar a trajetória, dentre outros, de Cesare Bórgia (1475-1507) e de seu pai Rodrigo Bórgia (1431-1503), que foi o papa Alexandre VI, mostra os dilemas enfrentados pelos homens do Renascimento que colocaram as lições de Maquiavel em prática. Liberando-se das amarras do cristianismo, eles abraçaram o culto do intelecto e do gênio, dos ideais pagãos da Fortuna, do Destino e da Natureza em detrimento da ideia cristã de Deus. Mas em fazendo isso, muitos se perderam na violência, na cobiça e acabaram não deixando nada como legado. O caso do papa Alexandre VI é emblemático: preocupado em manter o poder temporal da Igreja Católica na Itália contra as investidas das potências estrangeiras, Rodrigo Bórgia negligenciou as reformas de que o catolicismo necessitava para continuar como bússola moral da sociedade e em fazendo isso deu margem à ascensão da Reforma Protestante, que faria a Igreja Católica perder um terço dos seus fiéis. Obcecado em manter o poder pelo poder, em fortalecer os Estados papais por meio das guerras travadas por seu filho, Rodrigo negligenciou por completo a origem do cristianismo nos pescadores pobres da Galileia. No longo prazo, essa falta de princípios morais contribuiu para o enfraquecimento da Igreja.

    Prezados leitores, os espinhos da coroa de louros maquiavélica são apenas um exemplo do instrutivo e equilibrado panorama proporcionado por Will Durant. O próximo assunto de análise será a arte no Renascimento. Aguardem.

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