Da ficção dos fatos e dos fatos da ficção

Ninguém mais quer admitir que inventa. A única coisa que importa é o documento, que deve ser preciso, datado, provado e autêntico. Os frutos da imaginação estão banidos, porque são inventados… Para que o público possa acreditar no que lhe é dito, é preciso convencê-lo de que não está sendo “gozado”. A única coisa que conta hoje, é o “fato verdadeiro”. […] Faz parte do espírito desta era acreditar que qualquer acontecimento, não importa quão suspeito possa parecer, é superior a qualquer exercício de imaginação, não importa quão verdadeiro.

Trecho retirado da coleção de ensaios “De fato e de ficção”, de autoria do escritor americano Gore Vidal (1925-2012)

Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima de sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.

Trecho retirado do livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago (1922-2010)

 

Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo, na perspectiva da sua ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros. […] A apregoada beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor.

Comentário feito em 1992 pelo bispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueiras sobre a obra “O Evangelho segundo Jesus Cristo”

    Prezados leitores, há algumas semanas eu tratei do exercício de imaginação do escritor português José Saramago ao contar sob o seu ponto de vista de ateu a vida de Jesus Cristo, enfocando o pai de Jesus, José, que morre crucificado. Teci elogios ao autor pelo fato de a invencionice dele ter permitido mostrar as condições difíceis dos pobres, agora e sempre. Nesta semana, pretendo tratar do personagem principal, o Cordeiro de Deus, como o chama a Igreja Católica.

    O trecho que abre este humilde artigo faz referência a um encontro de Jesus Cristo com Deus em uma barca no meio do mar. Naquela ocasião, Deus revela a Jesus suas intenções em relação a ele, intenções estas que se revelam um puro e simples projeto de poder. O objetivo é conquistar novos crentes, aumentar a participação do Deus único no mercado de deuses e deusas, deixando assim o nicho do povo judeu para atingir outro público. A ideia de Deus é engenhosa para alargar sua base de devotos: fazer Jesus morrer de forma inocente e ignominiosa como mártir para causar comoção; contar parábolas e histórias e dar exemplos morais que não terão a taxatividade da lei mosaica e que servirão para obscurecer o entendimento dos possíveis fiéis, dando assim uma aura de mistério à religião e aumentando a admiração dos homens pela inescrutabilidade da divindade.

    Jesus, inquieto ante a morte na cruz que o espera, pergunta a Deus que sofrimentos e mortes serão necessários para que Deus seja vitorioso. Deus reticente, começa a contar então a história da Igreja Católica,  enumerando os santos que serão torturados e sofrerão mortes atrozes em nome da fé. Jesus insiste em saber mais detalhes e Deus revela que haverá guerras em nome DELE, as Cruzadas e haverá a Inquisição, em que pessoas serão queimadas vivas na fogueira.  Tendo dado as instruções a seu Filho sobre como deverá ser seu ministério, Deus vai embora, deixando Jesus insatisfeito com o papel que irá desempenhar.

    O Cordeiro de Deus não quer ser responsável por causar tanto sofrimento aos homens e ao longo de sua pregação pela Palestina elabora um estratagema. Ao ser apresentado perante os príncipes dos sacerdotes e escribas e depois a Pôncio Pilatos, o governador romano, Jesus identifica-se como rei dos Judeus, mas ao ser questionado se é Filho de Deus, ele nega considerar-se como tal, alegando que jamais afirmou isso. A ideia de Jesus é que se for visto como o rei dos Judeus e não Filho de Deus, ele poderá frustrar o projeto divino. Pôncio Pilatos acaba condenando-o à morte na cruz por ser inimigo de César e atende ao seu pedido de que uma placa seja colocada em cima de sua cruz dizendo: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Como mostra a descrição de Saramago dos últimos instantes de vida do primeiro mártir da Igreja, a tentativa de burla de Jesus dá em nada, ao contrário só concretiza as intenções divinas, pois Deus mesmo sorri a ele mostrando sua satisfação que tudo tenha saído conforme ELE queria.

    Dessa forma, o fruto principal da imaginação do autor português é um Jesus Cristo que tem uma profunda compaixão pelo ser humano, e que se rebela contra o fato de ser um instrumento para a constituição de uma Igreja que será fonte de opressão e de sofrimento.  Sua rebeldia, no entanto, é inútil, em face da onipotência de Deus. Sob essa perspectiva, os destinos de José, o pai, crucificado por obra dos romanos, e de Jesus, o filho, crucificado por obra de Deus, se assemelham na narrativa materialista e antireligiosa de Saramago: ambos morrem nas mãos dos poderosos deste mundo, quer estes estejam no céu ou em algum palácio. Contra esses poderosos, os miseráveis nada podem porque os que estão em cima sempre vencem e trucidam os que estão embaixo.

    Prezados leitores, não é de estranhar que “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, lançado em 1991, tenha provocado reações virulentas como as do bispo de Braga citado acima, o que levou José Saramago a sair de Portugal e mudar-se para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde viveu até morrer. Gore Vidal, em suas reflexões sobre a arte da literatura nos ensaios que compõem “De fato e de ficção”, lamenta que ela não seja mais cultivada pelas pessoas mais talentosas porque atualmente as pessoas descartam a ficção por ser uma mentira e preferem meras descrições de fatos que comprovadamente aconteceram. Mas o ponto defendido pelo ensaísta americano é que a mentira ficcional é mais verdadeira do que todo o conteúdo das revistas, dos jornais e hoje em dia – algo que Gore Vidal não chegou a testemunhar – de toda a mídia social porque ao se propor como pura criação fruto de uma determinada técnica a literatura almeja a beleza, que para um cultor dos valores da antiguidade clássica como Vidal está associada à verdade.

    Sob essa perspectiva “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é um delírio que distorce a vida de Jesus Cristo, tal como narrada nos livros  canônicos da Igreja, mas em sendo delírio, ele lança luz sobre a condição humana dos impotentes que compõem a esmagadora maioria da humanidade desde que o mundo é mundo. José Saramago pode ter se deixado arrebatar pelo seu ateísmo inflexível no último trecho de sua obra, e simplificado em demasia uma criatura complexa como Jesus Cristo, a meio caminho entre o mundo do espírito e o mundo da matéria, mas seu exercício de imaginação permanece de pé por nos fazer olharmo-nos no espelho e vermos em nós o indivíduo que luta de maneira quase sempre inglória contra a autoridade.

    Prezados leitores, Gore Vidal tinha razão: jamais duvidem do poder revelador da ficção, por mais mentirosa que ela seja.

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Que conselhos dar?

Tome cuidado, Pávlucha, estude, não seja bobo e nada de travessuras, acima de tudo seja bom com os professores e com os superiores. Se agradar a um superior, ainda que você não tire boas notas nas matérias e que Deus não tenha lhe dado talento, tudo vai andar nos trilhos, e você vai passar na frente de todos. Não fique muito ligado a seus colegas, eles não vão lhe ensinar nada de bom; mas se isso tiver de acontecer, ande com os mais ricos, para o caso de poderem ser úteis a você. Não convide nem ofereça nada para ninguém comer ou beber, é melhor que os outros ofereçam a você, e, acima de tudo, guarde e acumule copeques: é a coisa mais confiável que existe no mundo. Um colega ou amigo vai enganar você, e quando você estiver em apuros ele será o primeiro a denunciá-lo, já que o copeque nunca vai denunciar você, por maior que seja seu apuro. Com o copeque, tudo no mundo se arranja e tudo se consegue.

Trecho retirado do livro “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)

A primeira coisa que eu sugeriria a você é que você deve ser grato a Deus, e lembrar sempre que não é por causa dos seus méritos, da sua prudência ou da sua solicitude que este acontecimento ocorreu, mas por meio do favor DELE, o qual você só pode retribuir levando uma vida piedosa, casta e exemplar. Em eventos públicos deixe que sua carruagem e suas vestimentas fiquem abaixo da mediocridade e não acima dela. […] Uma bela residência e uma família bem ordenada serão preferíveis a um grande séquito e a uma residência esplêndida. […] Seu gosto será mais bem mostrado na aquisição de algumas poucas antiguidades elegantes, ou na coleção de belos livros e pelo fato de seus serviçais serem instruídos e bem educados em vez de serem numerosos. Convide pessoas a sua casa de maneira mais frequente do que aceite convites e não exagere nem num nem noutro.

Trecho retirado da carta que Lourenço, o Magnífico (1449-1492) escreveu em 12 de março de 1492 para seu filho Giovanni de Medici (1475-1521), o futuro papa Leão X, quando o adolescente de 16 anos parte para Roma para juntar-se ao Colégio dos Cardeais

    Prezados leitores, em um momento em que recebemos cada vez mais conselhos das nossas autoridades e cada vez menos as obedecemos, nesta semana eu saí à procura de exemplos de conselhos dados por outras pessoas em outros tempos e o efeito que tiveram nos aconselhados.

    Para isso, valho-me uma vez mais de Tchítchikov, o herói criado por Nikolai Gógol, que em um certo momento do livro revela que o especulador de São Petersburgo que dá um golpe em vários nobres em uma província distante é um rematado canalha. E para provar seu ponto, o autor narra as origens de Tchítchikov, começando por sua infância. O trecho que abre este humilde artigo é o sermão que o pai do herói-canalha dá ao filho quando o manda a uma outra cidade estudar. É um roteiro perfeito para um moço pobre e medíocre intelectualmente navegar em um mundo hobbesiano, em que o homem é o lobo do próprio homem.

    O pai de Tchítchikov não recomenda esperar muito de Deus. Pode ser que ESTE não tenha lá muita simpatia pelo ainda menino e não o agracie com alguma qualidade que o faça sobressair pelos méritos. O mais prudente é preparar-se para o pior cenário, em que Tchítchikov não saia nem bonito, nem espirituoso, nem espiritual, nem perspicaz, nem sábio, nem criativo nem nada. Assim, a melhor qualidade é funcionar de maneira implacável no modo sobrevivência, cuidando sempre dos seus próprios interesses e protegendo-se. Para isso, dois elementos são fundamentais, o dinheiro e o poder. Um garoto pobre e que não herdará nada de relevante, como é o caso do Tchítchikov criança, só consegue um e outro engraçando-se com as pessoas que os têm de sobra, os ricos e as autoridades.

    Para conseguir o favor das autoridades é preciso sempre obedecê-las em tudo e por tudo, fazer-lhes homenagens e ser afável com elas. A primeira autoridade em relação à qual Tchítchikov aplica o sermão do pai é o professor do colégio, que o menino estuda atentamente para saber como agradá-lo. E Tchítchikov faz isso tão bem que é sempre o melhor aluno e forma-se com louvor, não porque soubesse escrever ou argumentar melhor, mas simplesmente porque sabe colocar-se à sombra do professor, reforçando sua autoridade sobre os alunos que por seus méritos intelectuais autênticos irritavam a mediocridade do instrutor. Quanto a conseguir o favor dos ricos, é preciso estar perto deles e fazer-lhes favores quando eles precisam de modo que paguem pela graça recebida de um garoto mais pobre do que eles, mas sempre solícito e camarada.

    Ficando perto dos ricos e das autoridades, sem nunca confiar neles e sempre esperando conseguir algo em troca, Tchítchikov atinge o bem supremo estabelecido pelo credo de seu pai, isto é a autossuficiência, a capacidade de cuidar de si sozinho, de não depender de ninguém, mas apenas do dinheiro, que sempre protege e ampara. Nada de compartilhar, de trocar experiências, emoções, pensamentos: Tchítchikov estabelece relações sociais não para aprimorar-se espiritual ou intelectualmente, mas para objetificar as pessoas, tornando-as instrumento para ele acumular mais dinheiro e mais poder. Seguindo à risca os conselhos do pai, o herói-canalha sai da pobreza da província e transforma-se em um sofisticado especulador na reluzente capital da Rússia.

    Não é difícil perceber que o modo caricatural com que Gógol pinta Tchítchikov, a começar pelo sermão de uma crueza perturbadora dado pelo pai, é uma crítica à autocracia tzarista e dá um novo sentido ao título do livro, Almas Mortas. Em um regime em que são bem-sucedidos os sicofantas, os bajuladores, os estelionatários, os especuladores, não há espaço para o cultivo das qualidades da mente e do espirito, que acabam morrendo por falta de cultivo. O fundamental é não desagradar a autoridade, porque dela e somente dela emanam as coisas boas da vida: a proteção, a segurança, o conforto.

    Que diferença em relação aos conselhos dados por Lourenço, o Magnífico! Não estamos no mundo do arbítrio, dos caprichos dos poderosos, a começar por aquele que tem o poder supremo, Deus. O Deus a que Lourenço faz referência não é o Deus tirânico do pai de Tchítchikov que pode ou não agraciar o ser humano com algum talento, a depender da sua vontade. É um Deus que conferiu muitos favores a Giovanni, fazendo-o nascer em uma família podre de rica e tornando-o cardeal da Igreja Católica Apostólica Romana na tenra idade de 16 anos. Nessas circunstâncias, o sermão de Lourenço é exatamente o oposto da luta implacável pela sobrevivência: Giovanni não precisa ganhar o pão de cada dia, pois seu sustento material está garantido até o seu último suspiro. Cabe ao adolescente-cardeal ou cardeal-adolescente mostrar a Deus sua gratidão imensa por tais privilégios levando uma vida virtuosa e comedida. Giovanni de Medici não é um sanguessuga da elite como Tchítchikov, ele é a própria personificação da elite e a casta superior deve buscar sempre altos padrões de excelência, mostrando-se digna de permanecer no topo: não deve esfregar sua riqueza na cara dos menos privilegiados, deve cultivar o belo para ser imitado por todos, deve dar mais do que receber, pois a magnanimidade ofusca a mesquinhez e a cobiça dos arrivistas e dos pilantras que querem tomar o lugar dos melhores.

    Cabe a pergunta: será que os conselhos de Lourenço ao filho surtiram efeito como os do pai de Tchítchikov? Giovanni torna-se Leão X em 1513 e será um grande patrocinador das artes plásticas, da literatura, dos estudos acadêmicos. Em 1515 toma uma decisão importantíssima que talvez seja o seu maior legado: nomeia o grande pintor Rafael (1483-1520), que trabalhava para ele no Vaticano, como supervisor de antiguidades, com a missão de preservar o legado arquitetônico e artístico de Roma, que depois de séculos de dilapidações, tornara-se uma sombra daquilo que fora na época imperial. Em suma, Leão X, à sua maneira, retribuiu a graça do privilégio que Deus lhe havia concedido, contribuindo pelo seu patrocínio à cultura e à civilização ocidentais.

    Prezados leitores, que conselhos dar a um filho no século XXI? Ser interesseiro e egoísta como Tchítchikov porque este é o único modo para uma pessoa sobreviver se não tiver nenhuma qualidade especial, ou ser generoso e cultivar o belo e o melhor como Leão X, que nasceu e morreu em berço de ouro? Difícil resposta. Só uma coisa é certa: o caminho seguido por um e por outro depende do tipo de autoridade que lhes dá conselhos. Oxalá que ao longo deste nosso tempo de incertezas surjam conselheiros mais à moda italiana renascentista do século XV do que à moda russa autocrata do século XIX.

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Somos todos palpiteiros?

Na cabeça não fica nada, é como depois de uma conversa com um homem da sociedade, ele fala de tudo, a tudo se refere de passagem, diz tudo que extraiu de uns livrinhos aqui e ali, tudo é colorido, bonito, mas se de tudo aquilo algo que ficou dentro da nossa cabeça vem para fora, a gente vê então que até uma conversa com um vendedor modesto, que só sabe falar do seu ofício, mas o conhece com firmeza e experiência, é melhor do que todas essas bugigangas.

Trecho retirado do livro “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)

O CFM não incentiva o tratamento precoce ou o condena, tampouco bane. Falar que a hidroxicloroquina e a ivermectina matam é falácia. Quem quer fazer o tratamento precoce, que faça. Quem não quiser, não faça.

Trecho da entrevista que o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, deu ao programa Jornal da Manhã na rádio Jovem Pan

    Prezados leitores, nas últimas semanas tenho acompanhado a saga de Tchítchikov pela província russa longínqua na qual ele quer ganhar dinheiro aproveitando-se da boa vontade dos proprietários locais que o tomam como um homem muito respeitável, porque fala as coisas certas para agradar as pessoas e assim consegue arrancar o que quer delas. No ponto da narrativa em que o trecho que abre este artigo aparece, Tchítchikov acabou de assinar as escrituras de compra e venda de mujiques mortos, pagando uma ninharia por eles aos proprietários.

    Espalha-se então na cidade que ele irá levar os camponeses comprados, que segundo os registros oficiais ainda estão vivos, para uma nova província do Império para criar um novo assentamento e esse boato, totalmente infundado, faz com que a sociedade local o admire ainda mais. Lisonjeado com tanta atenção e feliz da vida com o sucesso da sua empreitada ele vai ficando na cidade, frequentando os bailes, os banquetes e as reuniões que se sucedem. As damas imaginam que Tchítchikov é um homem rico e tentam por isso chamar-lhe a atenção. Ele, como fino escroque, desempenha seu papel, e ao mesmo tempo sabe ver o fundo das coisas, sabe que por trás das conversas civilizadas dos leitores dos “livrinhos” há um bando de tolos que não têm o discernimento de perceber que tipo de negócio  Tchítchikov realmente fez, mas que se acham muito letrados porque fazem uma citação “douta” para mostrar que fazem parte da fina flor da sociedade.

    Em suma, o mundo onde habitam as almas mortas é o mundo não só dos camponeses cuja morte não foi comunicada às autoridades, mas a dos aristocratas que usam palavras belas tiradas de alguma fonte respeitável, mas que acabam sendo totalmente desprovidas de significado, pois seu uso não é fruto de reflexão, mas de um esforço cotidiano de fazer crer aos outros e a si mesmos que pertencem à casta dos melhores porque sabem comportar-se em sociedade falando com desenvoltura e citando as autoridades.  Mas Tchítchikov sabe que é o mujique que sabe fazer ferraduras, que sabe fazer móveis e botas de couro que duram ou consertar a cerca de arame da propriedade que tem o conhecimento verdadeiro que sustenta aquela sociedade de nobres frívolos e otários.

    Todo esse introito tem o objetivo de tecer um paralelo com nossa distopia sanitária atual e colocar-lhes uma pergunta: quem de vocês ainda não deu um palpite nas mídias sociais sobre o uso da hidroxicloroquina para tratamento precoce da COVID? Quem não tem uma opinião sobre a picaretagem ou a sensatez do uso do remédio? Nesta semana uma amiga mandou-me uma mensagem de WhatsApp com uma série de fatos que ela diligentemente coletou a partir das suas fontes: a médica do Emílio Ribas que afirma que como para 80% das pessoas a COVID não é grave, tomar ou não hidroxicloroquina é indiferente porque o indivíduo ficaria bem de qualquer forma; que cinco pessoas morreram por problemas no fígado causados pelo tratamento precoce; que a AMB proibiu o tratamento, entre outros.

    Não desconfio de jeito nenhum que minha amiga mente, pois ela consulta os “livrinhos” corretos: Jornal da Cultura e outros veículos tradicionais da imprensa, depoimentos de médicos de hospitais públicos renomados. Apesar de todo esse cuidado, considero ser leviano da parte dela usar essas passagens coloridas e bonitas para formar uma opinião definitiva sobre o tratamento precoce da COVID e condenar de maneira furibunda aqueles que o defendem. Minha querida amiga não é médica, ela não tem experiência com o tratamento de sintomas clínicos, e  principalmente com a prática da medicina, que não é ciência, mas arte, como ouvi um dia de um perito durante uma aula em que ele pediu ao público para dizer o que é a medicina.

    Com relação a encher a boca para falar que a hidroxicloroquina não tem eficácia comprovada, só quem pode fazer tais afirmações com alguma autoridade é quem leu os estudos publicados nas revistas científicas, entendeu as conclusões e mais, tem conhecimento suficiente de metodologia científica para saber se a pesquisa foi bem elaborada ou não de forma que seus resultados se sustentem e não tenham falhas intrínsecas.

    Em suma, aqueles que listam fatos para dar credibilidade às suas afirmações, mas não tem formação acadêmica suficiente para sopesar os diferentes fatos, perceber inconsistências e ao final ordenar as peças do quebra-cabeças, não podem considerar-se intelectualmente superiores aos que não concordam com eles. Sua única habilidade consiste em se apoiar na opinião das autoridades que estão em voga na mídia. Nesse sentido, são palpiteiros porque o que fazem é escolher um lado com o qual tem mais afinidade por razões ideológicas e procuram uma justificativa extraindo daqui e dali alguma bugiganga para apresentar como algo balizado na ciência.

    Nesse sentido recuso-me a desempenhar esse papel de palpiteira. Não tenho conhecimento especializado suficiente para pronunciar um veredito sobre o tratamento precoce da COVID. Pode ser que para algumas pessoas ele seja eficaz ou pode ser que ele seja um placebo, ou pode ser que ele seja prejudicial a outras pessoas. Assim, prefiro usar o bom senso do presidente do Conselho Federal de Medicina: em um momento em que estamos lidando com uma nova doença e em que ainda não há um protocolo de tratamento estabelecido, o melhor é deixar que o médico tome a decisão de usar ou não, considerando as características do seu paciente, o estágio da doença e tudo aquilo que o médico leva em conta para praticar a arte da anamnese.

    Prezados leitores, a lição de Gógol sobre os palpiteiros bem-nascidos permanece válida nos dias de hoje: entre os colhedores de informações aqui e acolá que consideram ser isso suficiente para emitir opiniões e aqueles que formam seu julgamento a partir de sua experiência prática aliada à leitura de livros que possam iluminar e expandir tal experiência, fiquemos com estes.

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Batidas na porta: é o tempo

Um jovem radiante de hoje em dia recuaria com horror se lhe mostrassem seu próprio retrato na velhice. Recolha no caminho, ao sair dos anos da juventude gentil e entrar na áspera e empedernida idade madura, recolha e guarde consigo todos os movimentos humanos, não os deixe caídos pela estrada: depois não poderá mais pegá-los! É terrível e assustadora a velhice que está por vir e nada ela dá em troca, muito ao contrário! A sepultura é mais misericordiosa do que a velhice; na sepultura está escrito: aqui jaz um homem! Mas nada se lê nas feições frias e insensíveis da velhice desumana.

Trecho retirado do livro “Almas Mortas” de Nikolai Gógol (1809-1852)

Antes, a vida era uma corrida de 100 metros, hoje é uma maratona. Para chegar lá na frente com qualidade de vida, é preciso se preparar, e não só economicamente.

Trecho retirado da entrevista dada ao jornal O Estado de São Paulo por Alexandre Kalache, que dirigiu por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), na Suíça

 

Aos 88 anos, é inevitável não me revoltar com o fato de o tempo que me resta estar sendo sugado por uma pandemia.

Trecho retirado de depoimento dado à revista VEJA pelo autor de novelas Manoel Carlos, que está há um ano sem sair de casa por causa da pandemia de COVID

    Prezados leitores, no plériplo de Tchítchikov, o herói do livro “Almas Mortas” que sai em busca de mujiques mortos para comprar dos proprietários de terras do interior da Rússia, história já comentada neste meu humilde espaço, ele encontra um homem de 70 anos chamado de Pliúchkin. Pliúchkin é um viúvo que vive sozinho em sua propriedade, apesar de ter dois filhos, e que se transformou em um ser tão patologicamente ganancioso e avarento que passa os dias recolhendo quinquilharias, como pregos, botões, botas surradas, papéis, e tornando a vida dos seus empregados a mais miserável possível, acusando-os de serem ladrões e preguiçosos. É um personagem caricato, sem dúvida, mas conforme o trecho que abre este artigo, descreve o lado negro da velhice, que no século XIX era muito mais proeminente do que qualquer aspecto positivo que se possa atribuir à senescência.

    Gógol contrapõe o período da juventude em que o indivíduo sonha, tem sentimentos e esperanças, é sensível à beleza da vida e das pessoas, realiza coisas, com o período final de um homem como Pliúchkin, que é completamente indiferente a qualquer ser humano que não seja ele e sua obsessão em tirar vantagem das pessoas para acumular riquezas que se transformam em pó por não serem usadas por ninguém.  A moral da história fica sendo esta: a morte é mais digna do que a decrepitude da velhice, pois a morte recupera o indivíduo que existiu nos seus áureos tempos, pela memória daquilo que ele foi, ao passo que a velhice é um período que se arrasta e faz aflorar o pior em indivíduos que não têm presente nem futuro e por isso perdem a capacidade de qualquer sentimento mais elevado como compaixão, amor, amizade, abnegação.

    Passaram-se dois séculos desde a época em que um homem de 70 anos como Pliúchkin só tinha pela frente a decadência. Será que evoluímos nesse aspecto? O doutor Alexandre Kalache, de 71 anos, estudioso do envelhecimento, garante que sim. Sua metáfora da corrida de 100 metros contra a maratona de 5000 metros revela sua visão, antenada com as possibilidades colocadas ao ser humano no século XXI. Na época em que nós éramos meros velocistas, o trajeto era curto e chegávamos na reta final sem fôlego, alquebrados devido ao esforço, ou seja, morríamos depois de algumas poucas décadas de vida, no máximo quatro, e o final era o limbo descrito por Gógol entre os anos da juventude e a morte, em que se estava tecnicamente vivo, mas biológica e espiritualmente morto.

    Atualmente, o avanço da ciência, a drástica diminuição das doenças infecciosas pela melhoria da qualidade da água bebida pela população e da higiene em geral, transformou-nos em corredores de longa distância: passamos por várias etapas e o segredo para chegar à reta de chegada é ir dosando o esforço e acumular ao longo da vida recursos suficientes para manter o fôlego do começo ao fim. Na entrevista de Kalache ao jornal O Estado de São Paulo, ele descreve o que é necessário aos maratonistas do século XXI: saúde que dê energia ao indivíduo para percorrer os 5.000 metros, educação para ter empregabilidade e conseguir ter uma vida produtiva e obter renda ao longo das mais de 80 décadas de vida que se espera ter, e uma economia que possa gerar empregos que façam uso das capacidades dos idosos.

    Sem esses elementos, a transformação do sprinter em maratonista por força do aumento geral da expectativa de vida ameaça fazer da velhice protelada um pesadelo que nem a imaginação criativa de um escritor como Gógol poderia ter vislumbrado. De fato, um idoso sem renda, sem aposentadoria e que permaneça assim sem perspectivas por décadas, certamente terá uma vida muito pior que a dos Pliúchkin, cuja decrepitude embora intensa, durava pouco. Por outro lado, aqueles que conseguem ter as características necessárias para envelhecer com qualidade de vida são certamente o orgulho da nossa civilização do século XXI. Manuel Carlos é um exemplo desse grupo de iluminados.

    Aos 88 anos, ele ainda trabalha para a Rede Globo, que faz uso dos 70 anos de experiência de Manuel na TV: está escrevendo a continuação de uma minissérie, a Presença de Anita, e um projeto de teleteatro. Ele ainda têm muitos sonhos e desejos: quer voltar a andar pelo Leblon, o bairro do Rio de Janeiro onde mora, caminhar pelas calçadas pra tomar café em uma livraria. Manuel Carlos é portanto um homem que está a anos-luz do personagem de Gógol, um usurário improdutivo que só causava mal àqueles que o rodeavam, isto é, os mujiques explorados. E no entanto, o futuro do nosso herói do século XXI foi solapado, como ele próprio admite, pelo meteorito que caiu sobre todos nós, a COVID-19. Há um ano trancado em casa, o novelista não sabe se dará tempo para ele voltar a ter uma vida normal quando a pandemia passar.

    Prezados leitores, James Joyce, o autor irlandês, pela boca do seu personagem Stephen em “Ulysses”, dizia que a “História é um pesadelo do qual estou tentando acordar”. O momento em que vivemos parece tornar essas palavras pertinentes: será que quando acordarmos designaremos os períodos antes e depois com um a.C. (antes da COVID) e um d.C. (depois da COVID)?   Será que o impacto da COVID no Brasil será tão grande que os maratonistas lépidos como Manoel Carlos passarão a arrastar-se pela pista em virtude da perda do emprego, das sequelas na saúde naqueles que sobreviveram à infecção pelo vírus da COVID, da incapacidade de fazer contribuições previdenciárias para garantir a aposentadoria, da falta de oportunidades de reciclagem profissional causada pela extinção definitiva de milhares de postos de trabalho? Qualquer que seja o desenlace, o tempo está batendo à nossa porta: se ele será um novo tempo, de desafios estimulantes, ou um tempo rançoso, de decrepitude e decadência, ainda é cedo para saber.

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Direito: fato ou instituição?

A opinião mais popular, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, insiste que os juízes deveriam sempre, em cada decisão, seguir a lei ao invés de tentar melhorá-la. Eles podem não gostar da lei com que se deparam – ela pode exigir deles que despeje uma viúva às vésperas do Natal em meio a uma tempestade de neve – mas eles devem aplicá-la mesmo assim. Infelizmente, de acordo com a opinião popular, alguns juízes não aceitam aquela sábia restrição; dissimulada ou abertamente, eles distorcem a lei para satisfazer seus próprios objetivos ou inclinações políticas. Estes são os maus juízes, os usurpadores, os destruidores da democracia.

Trecho retirado do livro “O Império do Direito”, do filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013)

 

[…]não há na verdade lei sobre nenhum assunto, mas somente retórica que os juízes utilizam para dar um verniz a decisões ditadas por preferências de classe ou ideológicas.

Trecho retirado do livro “O Império do Direito”, do filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013)

 

    Prezados leitores, uma experiência que eu sempre considero proveitosa é conversar com motoristas de táxi e agora mais recentemente de Uber. Nesses tempos de radicalização, insuflada pelas mídias sociais, o segredo para conseguir obter a verdadeira opinião deles, que eles têm medo de revelar, é soltar uma frase neutra como, por exemplo, “estamos vivendo o inferno com esta pandemia” para começarmos a conversar. Uma vez eles concordando que os tempos de COVID são uma loucura, o passo seguinte é concordar com o que eles falam, concordar de maneira enfática, até chegar o momento crucial em que eles dirão “olha senhora, cada um tem sua opinião, eu respeito, mas …”. É então que a verdade vem à tona e eles revelam suas reais preferências políticas. Com base em meu humilde histórico de utilização de aplicativos e táxis de rua, posso dizer que os motoristas são em sua maioria bolsonaristas e anti-Dória. Querem e precisam trabalhar e acham absurdas as medidas de lockdown, porque não adiantam nada e vão levar todos à miséria. Os motoristas de Uber são ainda mais radicais, pois geralmente são pessoas que perderem o emprego recentemente e viram nessa ocupação uma tábua de salvação para pagarem suas contas. Como a remuneração é pouca, eles precisam trabalhar longas horas por dia para atingir metas diárias e as restrições de circulação só os atrapalham.

    Há uma outra unanimidade entre os membros dessa categoria profissional, que, com o desemprego recorde que o Brasil está vivendo, está cada vez maior. Todos consideram que os membros do Supremo Tribunal Federal são corruptos e levam dinheiro para tomar decisões. Com certeza eles concordariam com o trecho que abre este humilde artigo, trecho este que faz parte da explicação de Ronald Dworkin sobre a visão do que é o direito que ele denomina de fato óbvio. O direito é um fato óbvio porque ele se encontra materializado naquilo que as diversas instituições estabeleceram como tal, compreendendo as decisões dos tribunais e as leis aprovadas na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais. Se há um direito corporificado dessa maneira então coloca-se a questão de ser ou não fiel a estes fatos óbvios. Para o público leigo, ater-se ao que está posto, sem invencionices, é uma virtude, pois significa que a letra da lei, aprovada no legislativo, eleito pelo povo, foi colocada em prática, de maneira previsível.  Daí que os juízes que não aplicam a lei tal como ela é minam a democracia, ou como costumamos aqui dizer, praticam o famigerado ativismo judiciário. Os partidários do ativismo judiciário, claro, dirão o contrário: o bom juiz não aplica a lei de maneira mecânica, mas leva em conta a justiça ou a injustiça da sua decisão, o efeito que ela irá causar na prática para ignorá-la quando for preciso.

    Segundo a explicação de Dworkin, para além dessa visão popular de fidelidade ou não à lei, os defensores dessa teoria no meio acadêmico têm uma formulação mais sofisticada do direito como fato óbvio: muitas vezes obviamente não há lei nenhuma, ou seja o legislador não previu uma determinada situação ou nenhum juiz tomou uma decisão anterior sobre um caso análogo que fornecesse uma baliza para o juiz atual; pode ocorrer também de haver uma lei, mas ela ter conceitos vagos, como por exemplo, o de “tempo razoável”. Em última análise, o efeito é o mesmo: há uma falta de prescrição constatável na prática, seja pela leitura da lei obscura ou pela consulta infrutífera às leis publicadas sobre o assunto em pauta.

    Nesse ponto, o problema não é mais a respeito da fidelidade ou não à lei, mas o que fazer na ausência de lei. Como usar a discricionariedade necessária para decidir o caso? Preservando o espírito das leis relacionadas ao assunto? Ou tentando obter o resultado que o juiz acredita será aquele que o povo quer? Ou ainda tentando se o mais justo e sábio possível? A versão mais radical dessa teoria que vê o direito como um conjunto de fatos óbvios afirma que as decisões prévias das instituições, sejam os tribunais ou os órgãos legislativos, são em sua maioria vagas, ambíguas, incompletas ou inconsistentes.

    Chega-se então a uma segunda conclusão, que é o segundo trecho citado acima: na realidade não há direito posto sobre coisa nenhuma e o juiz recorre a fontes jurídicas como um artifício retórico para encobrir e dar uma justificativa a posteriori para suas preferências pessoais, pois não há nenhum parâmetro concreto.

    Fecha-se assim um ciclo: sai-se da confiança cega dos leigos de que há lei para tudo e basta aplicá-la de maneira honesta, para o cinismo da afirmação de que na verdade não há lei nenhuma em lugar nenhum e cada juiz decide como quer. Nesse sentido, qualquer discordância teórica sobre o que é o direito é apenas uma disputa política disfarçada: as leis promulgadas e decisões tomadas são fatos, sobre os quais não se pode discordar, a única discordância vislumbrada por essa teoria é sobre o que o direito deveria ser e nesse campo cada um tem sua opinião.

    Dworkin coloca-se frontalmente contra a visão do fato óbvio porque a negação da possibilidade de discordância sobre o que é o direito – afinal ele está posto na realidade fática, seja por sua presença ou por sua total ausência – impede que haja uma crítica inteligente e construtiva sobre o que os juízes fazem na prática. E isso é grave porque em sua visão o direito é a instituição social mais estruturada e reveladora, de modo que a reflexão sobre o que é o direito permite revelar os valores sociais subjacentes e aprimorá-lo enquanto instituição.

    Prezados leitores, meu objetivo ao abordar uma pequena parte da obra do filósofo americano foi chamar a atenção para a relevância das reflexões contidas em O Império do Direito para a visão negativa que nós, brasileiros, normalmente temos do Judiciário e o impacto disso sobre a legitimidade da nossa democracia. Será que nossos magistrados deixam de aplicar a lei mediante suborno? Será que eles simplesmente decidem como lhes dá na cabeça de acordo com seu projeto de poder? Serão estes os dois problemas centrais que explicam nossa insatisfação com as instituições? Ou será que, como propõe Dworkin, pensar em termos de ausência ou presença concreta das leis e das decisões é uma falsa questão? Será que a teoria do fato óbvio encobre o ponto principal de que o direito é uma instituição social e portanto, não pode ser reduzida à ação dos operadores do Direito individuais, mas deve ser entendida pela interação dos diferentes agentes, de acordo com as convenções em vigor na sociedade?

    Sob essa perspectiva, a oscilação entre a ingenuidade e o cinismo não nos mostra um caminho frutífero para entendermos o que é o direito e para propormos o que ele deve ser. É preciso investigar as estruturas e é isso que Dworkin tenta em sua obra.  Meus queridos motoristas de táxi e do Uber, meus queridos conterrâneos indignados com as idas e vindas do Judiciário desculpem-me, mas não se trata de apontar o dedo para um Ministro do STF como vendido ou incompetente, o buraco é mais embaixo. Se o Direito enquanto instituição social está fraturado, dividido, inconsistente é porque nossa sociedade também sofre dos mesmos males. Oxalá possamos coletivamente chegar a esse diagnóstico para o bem da nossa mais reveladora instituição e da nossa democracia.

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