Liberdade x igualdade: ontem e hoje

A “tirania” de Pisístrato foi parte de um movimento geral nas cidades comercialmente ativas do século VI a.C. na Grécia de substituir o regime feudal da aristocracia proprietária das terras por uma dominação política pela classe média em uma aliança temporária com os pobres. Tais ditaduras tiveram sua origem na concentração patológica da riqueza e na incapacidade dos ricos de chegar a fazer um compromisso. Obrigados a escolher, os pobres, como os ricos amam mais o dinheiro do que a liberdade política; e a única liberdade política capaz de perdurar é aquela tão podada que impede os ricos de arrancar o couro dos pobres pela capacidade ou sutileza e os pobres de roubar os ricos pela violência ou pelos votos. […] Chegando ao poder, o ditador aboliu as dívidas ou confiscou grandes propriedades, taxou os ricos para financiar obras públicas ou redistribuiu a riqueza superconcentrada; e ao mesmo tempo que ganhava o apoio das massas por meio de tais medidas, assegurava o apoio da classe empresarial promovendo o comércio com a fabricação estatal de moedas e os tratados comerciais, e aumentando o prestígio social da burguesia.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

Temos dificuldades graves no uso do dinheiro público. Não é apenas uma questão fiscal, mas de natureza política, ligada à incapacidade de arbitrar prioridades. Nossos representantes precisam dar mais ênfase aos grandes objetivos sociais, que representem avanços para a maioria das pessoas.

Trecho de entrevista de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, à revista VEJA de 26 de maio de 2021

 

    Prezados leitores, na semana passada eu mencionei a cidade de Esparta na Grécia antiga e seu sistema peculiar em que uma casta dominava a maioria trabalhadora pela sua total dedicação às artes militares. Continuando sua descrição da história das várias cidades gregas para contextualizar sua produção cultural e artística, Will Durant, no livro mencionado acima, explica-nos os problemas enfrentados ao final do século VII a.C. pela Ática, a região da Grécia onde fica Atenas. Abordar tais problemas de mais de dois mil anos permite-nos ver como os desafios dos vários sistemas econômicos e políticos surgidos ao longo da história apresentam certas características comuns.

    A situação dos camponeses da Ática tornou-se particularmente dramática em um determinado momento. Eles foram passando mais e mais para uma situação de destituição completa por dois fatores: a divisão das suas terras entre os descendentes tornava as propriedades cada vez menores e menos produtivas e o incremento do comércio pela fundação de colônias em todo o Mediterrâneo estimulou a importação de alimentos a preços com os quais os camponeses não conseguiam competir.

    O resultado era que os camponeses se tornavam endividados pela necessidade de hipotecar as terras e não conseguindo pagar as dívidas eram obrigados a trabalhar para os credores como servos. Nas cidades, os intercâmbios internacionais tornavam os escravos muito mais facilmente disponíveis e a classe média dispensava o uso dos trabalhadores livres que antes lhes prestavam serviços, levando tais trabalhadores a não ter emprego e a passar fome.

     Durant resume bem a situação descrevendo a dialética que está presente em toda a sociedade, aquela entre a liberdade e a igualdade. Com a liberdade pôde haver o aumento do comércio com as colônias gregas do Mediterrâneo, a troca de produtos, a produção de riquezas pela ampliação dos mercados. Por outro lado, isso causou devastação em certos grupos sociais, que perderam com esse dinamismo porque eram incapazes de fazer frente à nova situação e adaptarem-se.

    E assim acontece sempre: a ênfase na liberdade para que o talento e o mérito floresçam cria a oportunidade de inovação e de eficiência; ao mesmo tempo, cria-se um grupo de vencedores que transmitem sua riqueza aos descendentes e que com seu dinheiro passam a ter influência sobre como as leis são elaboradas e interpretadas. Na Ática do final do século VII a.C.  o camponês, incapaz de competir com os produtos importados, acabava eternamente preso às obrigações com os credores pela execução estrita das leis sobre execução de dívidas.  Dessa forma, a igualdade sai prejudicada, e a casta dos que prosperam pela habilidade de enfrentar o desafio das novas situações usa seu poder para aumentá-lo ainda mais moldando as leis aos seus próprios interesses.

    Cria-se assim um círculo virtuoso para os que estão em cima e um círculo vicioso para os que estão em baixo. O poder econômico cria poder político que reforça o poder econômico e a falta de poder econômico leva à perda de poder político que reforça a destituição material. Em última análise, chega-se ao estágio que Durant descreve como concentração patológica da riqueza, conforme o trecho que abre este artigo. Patológica porque o foco absoluto na liberdade em detrimento da igualdade torna os pobres tão destituídos e desesperados que eles não têm mais nada a perder e portanto, não tem mais nenhum interesse na lei e na ordem vigentes. Em suma, estão prontos para a revolução.

    O desafio em qualquer sociedade que chega a este estado radical de coisas é encontrar politicamente um meio de quebrar essa cadeia de eventos que torna os ricos capazes de esmagar os pobres e levar os pobres à violência, e tornar a dinâmica entre liberdade e igualdade pender um pouco menos para o lado da liberdade e um pouco mais para a igualdade, e assim preservar a paz social. Durant explica-nos que isso foi feito pelos tiranos, particularmente Sólon (630 a.C. – 560 a.C.) e Psístrato (início do século VI a.C. – 527 a.C.).

    Pertencentes à fina flor da aristocracia ateniense, eles foram capazes de estabelecer um novo pacto social aliviando o ônus financeiro dos pobres pelo perdão das dívidas e no caso de Psístrato pela taxação da renda dos abonados para financiar bens públicos e gerar empregos para os menos abonados. Durant conclui que esta nova lei e ordem, que impediu a explosão social, pela diminuição da concentração de renda, forneceu as bases do conforto e prosperidade que permitiram o florescimento da democracia em Atenas posteriormente.

    A lição deste panorama da vida de Atenas e das outras cidades da Ática na Grécia Antiga é que a desigualdade em demasia corre o risco de autodestruir-se. Ela é inevitável caso haja liberdade, pois as pessoas apresentam diferentes capacidades, mas ela pode chegar a um ponto tal que torna a vida na sociedade inviável pela criação de um grupo de pessoas que fica destituído, sem direito a nada pois tanto a realidade material como a realidade jurídica estão contra elas, e sem compromisso nenhum em manter o sistema. A saída é aquela encontrada pelos tiranos: deixar os ricos enriquecerem, mas sem lhes permitir arrancar o couro dos pobres e dar a estes certas benesses que os tornem interessados na manutenção do sistema, e não na sua destruição.

    Psístrato em sua época mandou construir templos, instituiu os Jogos Panatenaicos, em homenagem à deusa Atena, e assim deu um sentido de pertencimento a todos. Mais de 2000 anos depois, Arminio Fraga ao falar dos problemas do Brasil, toca num ponto importante que é na essência o mesmo desafio enfrentado pelos governantes atenienses: nosso sistema político é incapaz de enfrentar essa dialética liberdade x igualdade de modo que cada indivíduo se sinta parte do todo. Especificamente no caso do Brasil do século XXI, o desafio é fazer com que o dinheiro público seja investido para diminuir a desigualdade e oferecer bens sociais que beneficiem a grande maioria dos brasileiros, especialmente saúde e educação.

    De fato, estamos em um ponto de nossa história em que as desigualdades são reforçadas por um regime político e jurídico que cria privilegiados, os quais usam seu poder para barrar qualquer tipo de reforma que afete seus interesses. Em sua entrevista, Fraga explica que sem que esses bens sejam oferecidos, não teremos viabilidade econômica, pois não conseguiremos aumentar a produtividade e inovar e sem tais requisitos nenhuma economia consegue hoje crescer e gerar empregos. Qual será a saída para nosso impasse político, em pleno século XXI? Será que teremos déspotas esclarecidos à nossa disposição que estabeleçam um novo pacto social, doa a quem doer? Ou nosso sistema implodirá por sua extrema desigualdade e inviabilidade no momento da história em que o capital humano é que faz a diferença? Veremos.

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Pátria

Autocontrole, moderação, equanimidade na fortuna e na adversidade […]. Se é uma virtude obedecer às leis, os espartanos eram muito mais virtuosos do que maioria dos homens. Aqui foi, claro, onde Platão encontrou os esboços da sua utopia, um pouco obscurecida por uma estranha indiferença às Ideias. Cansados e amedrontados com a vulgaridade e o caos da democracia, muitos pensadores gregos refugiaram-se na idolatria da lei e da ordem de Esparta.

[…] os atenienses estavam construindo, a partir de mil injustiças e erros, uma civilização de amplo alcance e de atividade intensa, aberta a toda nova ideia e ávida por estabelecer interações com o mundo, tolerante variada, complexa, luxuosa, inovadora, cética, criativa, poética, turbulenta, livre.

Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Euskadi Ta Askatasua (em basco: Pátria Basca e Liberdade), mais conhecido pela sigla ETA, foi uma organização nacionalista basca armada. […] Foi fundado em 1959 como um grupo de promoção da cultura basca. No final da década de 1960 evoluiu para uma organização militar separatista, lutando pela independência da região histórica do País Basco, cujo antigo território atualmente se distribui entre a Espanha e França. Ao mesmo tempo, o ETA assumiu uma ideologia marxista-leninista revolucionária […] Desde 1968, o ETA foi responsabilizado pelas mortes de 829 pessoas e por ferimentos causados a milhares de outras, além de dezenas de sequestros. Estima-se que mais de 400 membros do ETA estejam em prisões da Espanha, França e outros países.

Trecho do verbete da Wikipedia sobre a organização terrorista que foi declarada oficialmente extinta em 2 de maio de 2018

    Prezados leitores, os dois primeiros trechos que abrem este artigo farão todos que o lerem lembrar-se das suas aulas de História Antiga em que se tratava da civilização grega. Invariavelmente havia a comparação dos dois modelos políticos e sociais, o ateniense e o espartano. A descrição detalhada de Will Durant sobre as duas cidades permite tirar lições sobre acontecimentos históricos muito posteriores ao tempo em que Esparta e Atenas eram vivas e faziam parte da Hélade, isto é, dos valores e ideais da civilização grega. Nesta semana, meu foco será na primeira, por razões que ficarão claras ao final.

   Esparta era uma sociedade em que todo cidadão do sexo masculino era retirado da sua família aos sete anos para ser educado com outros homens até a idade dos 30 anos, quando então era-lhe permitido constituir família. A educação constituía-se basicamente de treinamento militar, uma necessidade considerando que a elite dominante, dona das terras adquiridas pela conquista realizada pelos invasores dóricos da Lacedônia e da Messênia, era em número sete vezes menor do que a classe dos hilotas, os escravos encarregados do trabalho pesado. Durant  define de maneira sucinta que tipo de formação dava-se aos espartanos: não se tratava de colocá-los em contato com teorias abstratas sobre o que é a virtude ou o bem, mas de inculcar hábitos virtuosos pela repetição contínua de comportamentos que seguissem o padrão: comer de maneira frugal, vestir-se simplesmente, aprender a lutar, privar-se de confortos materiais, em suma violentar a carne de todas as maneiras para fazer dos homens a personificação de um ideal e prepará-los para a guerra seja para esmagar revoltas dos escravos ou para destruir os inimigos externos. E morrer lutando por Esparta era a honra suprema, cujo contraponto era a ignomínia de voltar vivo de uma guerra perdida.

    De acordo com Durant, essa ênfase no sacrifício do indivíduo em prol da Pátria foi facilitada e consolidada pela introdução do Código de Licurgo, lendário ou real rei de Esparta que foi responsável pela sistematização e harmonização de várias leis consuetudinárias que se tornaram sagradas ao serem codificadas. Os cidadãos obedeciam à lei estritamente, desempenhando seu papel na engrenagem que mantinha o controle de poucos sobre muitos. Daí a caracterização de Esparta como o império da lei, executada ao custo do corpo e do espírito do homem, já que as manifestações artísticas em sua maior parte, à exceção da música, eram consideradas nocivas aos objetivos militaristas, pois faziam o indivíduo desviar-se da norma.

    O balanço final do historiador e filósofo americano é claramente desfavorável a Esparta. Violentando a natureza humana, inclusive aquilo que ela tem de vicioso, o sistema do primado absoluto da lei e da ordem acabou sendo um fim em si mesmo que cegou a sociedade espartana, fazendo-a concentrar-se em sua própria sobrevivência como ente coletivo, à custa de tudo e de todos, o que levou à sua destruição pelos que ressentiam sua arrogância. Nesse sentido, em que pese Esparta ter sido alvo de admiração por parte de pensadores gregos, seu legado foi nulo, porque como afirma Durant no segundo trecho deste artigo, o espírito humano alimenta-se dos erros, dos vícios, da liberdade, do caos: perfeição corporificada só leva à estagnação.

    É impossível não ler sobre Esparta e a ideologia de Estado que ela colocava em prática, sem traçar paralelos, aliás essas comparações são uma das utilidades do estudo da História. Humildemente ofereço-lhes uma referência à trajetória do grupo separatista ETA que atuou entre 1959 e 2018 em prol da independência do País Basco, tal como retratada em uma minissérie da HBO chamada Pátria.

    Os personagens são todos bascos, mas dividem-se em turmas distintas: há aqueles que valorizam suas especificidades culturais e linguísticas, diferentes do resto da Espanha, mas que querem viver sua vida normal como cidadãos do país e trabalhar casar e ter filhos; há outros para os quais isso não basta e é preciso lutar pela independência do pequeno enclave, custe o que custar. Quem defende a entente com o Estado espanhol é considerado pelos membros do segundo grupo traidores, covardes, dignos de pena e até de morte, por serem obstáculos à causa. Assim é que na minissérie, Jesús Maria “Txato” Lertxundi Altuna, dono de uma transportadora no vilarejo onde se desenrola a ação, depois de passar semanas vendo seu nome sendo pichado nas ruas com insultos, e ser ostracizado por seus amigos por ser considerado inimigo da causa independentista, é assassinado por Joxe Mari Garmendia Uzkudun, que abandona sua família para tornar-se membro do ETA, e a quem Txato conhecia desde a infância do seu algoz. Para Joxe Mari tais relações pessoais não importam, e o principal critério de avaliação de uma pessoa não são suas qualidades morais, mas sua utilidade ou não para a criação do País Basco como entidade política autônoma.

    Esse assassinato de um basco por outro acaba servindo como emblema do dilema enfrentado pelo ETA e que talvez explique em parte sua derrocada. A morte ou a mutilação de pessoas inocentes acabaram alijando uma parte da população do País Basco, que embora se identificasse com a língua e a cultura, não considerava a independência política um ideal absoluto que devesse ser colocado em prática de qualquer maneira. No final das contas, hoje em dia o ETA é conhecido como sendo uma organização terrorista, com todas as conotações negativas que essa palavra tem. Será que o sacrifício de milhares de vítimas ao longo de quase 60 anos valeu a pena em termos daquilo que foi conquistado? Afinal a autonomia concedida pelo governo espanhol a três províncias da região basca – Álava, Biscaia e Guipúscoa – também foi concedida à Catalunha, que embora tenha desejos de separar-se nunca teve uma organização que tenha trilhado a rota radical do ETA.

    Prezados leitores, recomendo-lhes nestes tempos de falta de convívio pessoal assistir a Pátria.  Sob a luz da história de Esparta, que se consumiu no fogo da sua própria obtusidade ideológica, o destino infeliz do ETA e de seus membros torna-se mais inteligível.

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Levantados do chão ou presos a ele?

Ao apuramento do saldo importa pouco que tenham morrido aos milhões por inundação natural, revolvimento de enxada ou desafio de micções: quem viveu, comeu, quem morreu deixou aos outros. A natureza não conta mortos, conta vivos, e, quando estes lhe sobejam, arranja uma nova mortandade.

Trecho retirado do livro Levantando do Chão, do escritor português José Saramago (1922-2010)

Para o homem aqueu, a vida humana vale pouco; tirá-la não é grave; um momento de prazer pode substituí-la. Quando uma cidade é capturada os homens são mortos ou vendidos como escravos; as mulheres tornam-se concubinas se são atraentes, ou escravas se não são. […] Ele mora em um mundo em desordem, assediado, faminto, onde cada homem tem que ser seu próprio policial, de prontidão com uma flecha e uma lança e com a capacidade de olhar de maneira calma para o sangue que escorre. “Uma barriga vazia,” como explica Ulisses, “nenhum homem pode esconder… Por causa dela os navios são feitos que levam o mal aos inimigos no mar revolto.”

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

    Prezados leitores, a vida da Grécia Antiga, tal como contada por Will Durant, passa por várias etapas em que a história se mistura aos mitos. Na semana passada, mencionei a figura mítica do Minotauro, ligada à civilização minoica que se desenvolveu em Creta. Nesta semana, cabe menção aos aqueus, que Durant define como os gregos da Idade Heroica, isto é, os gregos que lutaram contra os troianos e cuja epopeia foi narrada na Ilíada de Homero. Graças às escavações de Heinrich Schliemann (1822-1890) no que hoje é a região da Anatolia, na Turquia, sabe-se que Troia realmente existiu. Nesse sentido, considera-se que os acontecimentos e os personagens da Ilíada – Aquiles, Menelau, Príamo, Helena, Agamenon dentre outros – têm um fundo de verdade histórica recontada ao longo dos séculos pelos gregos para criarem sua própria narrativa e assim consolidar seus próprios valores.

    A Guerra de Troia, para além da versão homérica de que foi desencadeada pelo rapto de Helena, é a disputa pelo Helesponto, que atualmente tem o nome de estreito de Dardanelos e cuja localização era estratégica, pois dava acesso às terras do Mar Negro.  E eram de terras que os gregos precisavam, premidos pelo excesso populacional, pela fome, pela inconstância da produção agrícola. Pobres homens que ainda não viviam sob o signo da tecnologia como nós, que dela podemos depender para que a Natureza não nos pegue de surpresa com secas, inundações, terremotos, epidemias.

    E o que fazer nessas terras? No longo prazo colonizá-las, no curto prazo certamente saqueá-las, aproveitar a riqueza já produzida por aqueles que estavam lá antes e que foram subjugados na conquista. Aos perdedores, cabe a morte, a escravidão, e na melhor das sortes para as mulheres bonitas, tornar-se parte de um harém.

    Nessa luta pelo pão de cada dia, vale tudo. Ao comentar em linhas gerais os episódios narrados nos 24 capítulos da Ilíada, Durant realça o que era considerado pecado e virtude neste mundo hostil: ser gentil, perdoar ofensas, ser fiel, trabalhador e honesto é contraproducente, pois a possibilidade constante de guerras pela disputa de territórios faz com que aquilo que ajuda o homem a prosperar em tempos de paz certamente lhe será fatal no momento de uma invasão por um povo inimigo. Por isso é preciso saber lutar, mentir, matar, trair, tudo para garantir sua sobrevivência e da sua família. A Ilíada tem versos cuja beleza foi uma das matrizes da literatura ocidental (aliás, a título de curiosidade, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recita-os em grego no original, confiram no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=VzJQ0TcBmqU), mas ela não deixa de ser uma obra que faz do terror algo bonito: o terror da opressão pela força, do destino infeliz, da humilhação infligida pelos vencedores, dos caprichos insondáveis da Natureza.

    E assim, os gregos, ouvindo a bela poesia da Ilíada, forjaram seus mitos e seu modo de ser, levando-os a lançarem-se na exploração do Mediterrâneo e a fundarem cidades ao longo da costa que se transformaram na Magna Grécia. Quando estive no Museu do Parthenon, em Antenas, o que saltou aos meus olhos foi a estética da guerra: como aqueles homens e seus  cavalos, no calor da refrega, são belos porque são fortes, porque lutam e porque o fazem com orgulho e com dignidade, altaneiros. A narrativa da vida como luta incessante em um mundo hostil impulsionou o povo grego em seu brilhante percurso histórico, em que a necessidade de conquista misturou-se à curiosidade pelo novo e lhes permitiu lançar as bases da civilização ocidental. Afinal, como aponta Durant, em nossa época “grandes nações conquistam e subjugam povos indefesos sem perder a dignidade ou a retidão moral”. Em suma, o Império Romano, o Império Napoleônico, o Império Britânico, o Império Americano, têm todos como origem espiritual a narrativa homérica da Guerra de Troia.

    Se a concepção da natureza hostil foi fonte de inspiração para os gregos lutarem e vencerem, ela adquire uma conotação totalmente diferente na obra de José Saramago, escritor já citado neste meu humilde espaço inúmeras vezes. Em Levantado do Chão, obra em que ele conta a saga de uma família de lavradores portugueses, os Mau-Tempo, no início do século XX, tal concepção não é fonte de transcendência, de sublimação: a natureza indiferente ao destino dos indivíduos, tal como retratada no trecho citado acima, serve para que Saramago narre a antiepopeia. Os desafios do mundo não fazem o homem superar-se, heroificar-se, ao contrário: torna-o preso às condições materiais adversas, preso num círculo vicioso de exploração pelos poderosos em que não se pode contar com proteção nenhuma: Deus não ajuda os pobres porque a religião acoberta a vileza dos ricos permitindo que eles permaneçam impunes, e a Natureza, quando resolve manifestar-se, trucida os pobres como moscas, vulneráveis que estão pela fome e pela ignorância. Uma visão pessimista, certamente, mas que não deixa de ser bela, pois revela uma verdade fundamental da vida a respeito de como o sistema econômico transforma o homem em besta de carga dócil e dispensável, pois que pode ser substituída facilmente. Independentemente das convicções marxistas ou comunistas de Saramago, não há como negar-lhe a capacidade que ele tem de nos mostrar como os pobres se encaixam no esquema geral das coisas, tornando-se invisíveis aos olhos dos privilegiados: sem alma, sem sentimentos, reduzidos a sua utilidade ou não para o trabalho.

    Prezados leitores, a perspectiva histórica sempre nos permite lançar luz sobre nossos próprios problemas contemporâneos. As guerras contínuas nos primórdios da civilização grega e a exploração agrícola baseada no latifúndio que ainda vigorava no Portugal do começo do século XX mostram que a luta do homem, gloriosa ou inglória, continua mais viva do que nunca. Nós, que há dois anos achávamos que o mundo era cheio de oportunidades de consumo, de viagens, de trabalho, vimo-nos sermos vítimas de uma peça pregada pela Natureza, que fez surgir de repente uma peste até agora incurável, uma legião de miseráveis que perambulam pelas ruas procurando no lixo restos de comida e uma grande insegurança em relação ao futuro. O que faremos? Consideraremos tudo isso um desafio que nos levará a olhar para o céu ou um fado que nos levará a olhar para o chão?

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Destruição

Nosso cérebro consegue formar uma ideia somente a partir dos dados que circulam em um determinado momento; e os dados disponíveis são criados pelos poderosos atuais, pelas modas em voga e pela opinião aceita. Se continuamos a negligenciar outras áreas do passado, os espaços em branco em nossa mente são reforçados e amontoamos cada vez mais conhecimento naqueles compartimentos dos quais já sabemos. O conhecimento parcial torna-se cada vez mais parcial e a ignorância perpetua-se a si mesma.

Trecho retirado do livro “Vanished Kingdoms – The History of Half-Forgotten Europe”, do historiador inglês Norman Davies

Talvez lá também, como em todas as culturas em decadência, o controle populacional tenha ido muito longe e a reprodução foi deixada a cargo dos fracassados. Talvez, à medida que a riqueza e o luxo aumentavam, a busca do prazer físico minou a vitalidade da raça e diminuiu sua vontade de viver ou de defender-se; uma nação nasce estoica e morre epicurista. Possivelmente o colapso do Egito, depois da queda de Akhenaton, afetou o comércio entre Creta e o Egito, diminuindo a riqueza dos reis minoicos. Creta não tinha grandes recursos internos; sua prosperidade exigia o comércio e mercados para suas indústrias; como a Inglaterra moderna, ela tinha se tornado perigosamente dependente do controle dos mares. Talvez guerras internas dizimaram a população masculina da ilha, deixando-a desunida frente a um ataque estrangeiro. Talvez um terremoto fez o palácio tremer até virar uma ruína ou uma revolução raivosa vingou-se em um ano de terror as opressões acumuladas ao longo de séculos.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre um fictício proprietário de terras na Rússia do século XIX, Kostanjoglo, para quem a pessoa que não trabalha, que não consegue realizar nada porque não segue sua vocação natural, presta um desserviço à humanidade e a Deus, principalmente, que criou tudo e deve ser imitado. Nesta semana, meu enfoque será no polo oposto, o da destruição e para tanto citarei dois historiadores.

    O primeiro já é conhecido daqueles que me acompanham regularmente, Will Durant, pois em vários artigos eu comentei trechos de seu livro sobre o Renascimento. Will Durant é autor de uma História da Civilização juntamente com sua esposa, Ariel Durant. No volume aqui citado, seus olhos se voltam para a civilização grega, e para começar seu percurso ele descreve Creta, que foi a primeira civilização europeia, a qual deixou muitas contribuições no reino da pintura, da escultura, da produção de cerâmicas, da arquitetura e da criação do sistema de coleta e descarte de efluentes mais sofisticado da Antiguidade, que depois de 4.000 anos ainda funciona. Para situar o cidadão do século XXI, basta dizer que a ilha de Creta é a terra do Minotauro, um ser mítico, filho de Parsífae, esposa do rei Minos, e de um touro por quem a rainha se apaixonou. O rei manda prender este bastardo, metade homem, metade touro, no labirinto, que nada mais é do que o Palácio do rei Minos em Knossos, cujas ruínas, reveladas pelas escavações comandadas pelo arqueólogo britânico Arthur Evans (1851-1941), ainda podem ser vistas naquela ilha que hoje em dia faz parte da Grécia. Eu mesma estive lá e pude ver um afresco representando o Minotauro. Aliás, não faltam exuberantes representações artísticas do touro no Museu Arqueológico de Heraklion, a capital, já que o animal era cultuado como símbolo de fertilidade. As mulheres de Creta eram famosas por usarem jaquetas curtas, deixando os seios à mostra. Usando colares e pulseiras eram o cúmulo da elegância, podem crer!

    Infelizmente a escrita minoica ainda não foi decifrada, então não se sabe ao certo da história de Creta e o que causou o incêndio e a destruição do palácio em Knossos. Durant tece hipóteses, conforme o trecho citado na abertura deste artigo, tecendo paralelos com outras épocas e outros povos, que ele apenas sugere ao leitor informado, o que faz com que a descrição das vicissitudes da civilização minoica adquiram um sentido para nós em pleno século XXI da Grande Transformação que está sendo causada pela epidemia de COVID.

    Terá Creta vivido um colapso populacional, em que as pessoas produtivas deixaram de se reproduzir porque não consideravam valer mais a pena? Será que o exaurimento dos recursos naturais da ilha pela superexploração – Durant menciona que à época do auge de Creta a ilha era repleta de bosques de cedros e ciprestes e hoje só sobraram as pedras – tornou a sociedade vulnerável? Será que Creta, que construíra um império no Mar Egeu, sofreu a sina de todos os impérios e acabou vítima do seu próprio sucesso devido à dependência exagerada de uma única fonte de riquezas, no caso o comércio marítimo? Será que as pessoas perderam fé nos valores que antes as uniam e deixaram de ver-se como um só povo e foram facilmente conquistadas? Será que houve uma revolução das classes baixas contra a elite como houve na França no século XVIII, que levou a um regime de terror? Ou simplesmente a destruição deveu-se a uma calamidade natural?

    Nunca saberemos, claro, pois os minoicos deixaram rastros materiais da sua capacidade criativa, mas não suficientes para que pudéssemos ter acesso a sua versão dos fatos, que acaba assim caindo para sempre em um buraco negro de esquecimento e não existência. Para Norman Davies, o outro historiador citado na abertura deste artigo, esta é a grande lição da História: a história que conhecemos é aquele mísero pedaço que sobrou da destruição da existência e portanto da narrativa da vida de tantos outros povos, reinos, países, impérios que tiveram sua própria língua e cultura, seus próprios sucessos e fracassos. Contudo, por terem sido derrotados, tiveram sua sobrevivência na memória coletiva da humanidade inviabilizada.

    Nesse sentido, o destino de Creta, não foi de todo cruel, ao menos por enquanto. A Grécia, como herdeira material e intelectual da civilização minoica, ao menos preservou a lenda do Minotauro vagando pelo palácio de Knossos até ser morto por Teseu com a ajuda de Ariadne. E sendo a Grécia uma das fontes da civilização ocidental, enquanto esta perdurar, ao menos haverá museus e sítios arqueológicos que preservarão o que resta do legado minoico. Mas quando a civilização ocidental for destruída, o patrimônio material e espiritual tanto de uma quanto de outra cairão inevitavelmente no buraco negro que engole tudo aquilo que um dia teve um significado para um determinado povo, em uma determinada localização geográfica num certo momento da história do homo sapiens na Terra.

    Prezados leitores, nós brasileiros somos produto desses trágicos esquecimentos que a História reserva aos perdedores. As civilizações que surgiram em solo brasileiro foram tragadas pelo clima tropical e pela morte dos habitantes causada pelo contato com os brancos. Temos todos que aqui nascemos um patrimônio genético que é em grande parte indígena, mas o que nos sobrou em termos de memória coletiva incorporada à ideia de que temos de nós mesmos?  Em momentos de crise como este, em que a comunhão de esforços é de suma importância, o sentimento de termos todos uma identidade comum faz falta. Quem sabe, surja por aí um Arthur Evans que se embrenhará nos rincões da Amazônia e trará à luz os vestígios materiais de povos que aqui habitaram? Talvez então tenhamos uma noção mais bem definida do que significa ter nascido e habitado em um local chamado Brasil.

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A Criação

[…] a questão é que nossa terra já está sucumbindo não pela invasão de dezenas de nações estrangeiras, mas por causa de nós mesmos; ao lado do governo legítimo, já se formou outro governo, imensamente mais forte do que qualquer lei. Estabeleceram suas condições, tudo tem um preço e os preços até foram levados ao conhecimento geral. E nenhum governante, mesmo o mais sábio de todos os legisladores e governantes, tem forças para corrigir o mal, por mais que limite as ações dos maus funcionários, designando outros funcionários como fiscais. Nada dará certo enquanto cada um de nós não sentir que, assim como na época da revolta o povo se armou contra o inimigo, também é preciso se revoltar contra a mentira.

Trecho retirado de uma continuação do livro “Almas Mortas”, deixada inacabada por Nikolai Gógol (1809-1852)

Deus concedeu a si mesmo a criação como o mais elevado de todos os prazeres e exige do homem que seja ele também, de modo semelhante, o criador do bem-estar em torno de si.

Trecho retirado de uma continuação do livro “Almas Mortas”, deixada inacabada por Nikolai Gógol (1809-1852)

    Prezados leitores, Pável Ivánovitch Tchítchikov, o herói mutreteiro de Almas Mortas, em sua busca por mujiques mortos que pudessem ser comprados, encontra vários tipos de proprietários de terras, cuja descrição permite ao autor mostrar um panorama da Rússia de então. Há os senhores sovinas, que arrancam tudo o que podem dos seus servos; há os preguiçosos, que se dedicam a beber e a jogar cartas e deixam suas terras ao Deus-dará e os mujiques entregues aos mesmos vícios dos patrões, com a diferença de que enquanto estes podem hipotecar suas terras e viver de empréstimos, a indolência e o alcoolismo afundam aqueles na miséria; há também os burocratas, que acham que a solução dos problemas é preencher papeis e seguir protocolos mesmo em uma zona rural a centenas de quilômetros de distância de São Petersburgo.

    Como contraponto a esses tipos pouco edificantes, Tchítchikov depara-se com um proprietário de terras excepcional, Kostanjolo, o homem que no livro fala o segundo trecho que abre este artigo. Dotado de uma profunda espiritualidade, ele considera seu dever trabalhar sem parar e fazer os mujiques trabalharem para não caírem na armadilha da vodca. O trabalho de Kostanjolo é eficiente: ele aplica sua inteligência para resolver problemas práticos, como por exemplo achar meios de aproveitar materiais descartados, maneiras de fazer rotação de culturas de modo a usar o solo da melhor maneira possível. Quando vê terras incultas, abandonadas, ele se indigna com aqueles que deixam as coisas perderem-se no caos. O alvo principal de sua ira são os letrados que frequentam a universidade em São Petersburgo, falam mais francês do que russo e adquirem um conhecimento que só os fará adquirir gosto por coisas inúteis e gastarem dinheiro que não têm capacidade de ganhar de maneira honesta porque não sabem colocar a mão na massa produzindo coisas. Kostanjolo, ao contrário, é o homem da ação focada em resultados, que no frigir dos ovos significa organizar o trabalho na fazenda de forma que os mujiques consigam obter o sustento de sua família.

    É verdade que Tchítchikov, ao ver esse homem cheio de energia e convicção, começa a acalentar a ideia de imitá-lo, aprender com ele como praticar a agricultura eficiente e como gerir o trabalho dos camponeses, e tornar-se um próspero proprietário de terras, casar-se, ter filhos e deixar um legado. Mas sua natureza é outra: o caminho tortuoso da burla e da fraude é o mais direto para conseguir dinheiro e Tchítchikov é antes de tudo um ganancioso. Por isso, ele continua a comprar almas mortas e vai além, falsificando o testamento de uma velha rica para tornar-se seu beneficiário.

    Ele acaba sendo preso, desespera-se, pede ajuda a um homem de bem prometendo regenerar-se, mas outro pilantra como ele mexe os pauzinhos e consegue tirá-lo do cárcere e devolver-lhe o dinheiro confiscado. Com isso suas boas intenções naufragam e Tchítchikov volta ao seu modus operandi habitual. O primeiro trecho que abre este artigo é a fala do príncipe que manda prender o herói sem nenhum caráter, e que ao descobrir que as investigações sobre os maus-feitos tinham sido propositalmente comprometidas, apela aos seus funcionários para que mudem o comportamento. O final desse apêndice inacabado de Almas Mortas não mostra o efeito positivo ou negativo que a retórica ética do príncipe possa ter tido sobre seus comandados.

    Esse embate entre os valores concretizados por Kostanjolo e por Tchítchikov é o embate entre a criação e o caos, entre assumir responsabilidades em relação a sua vida e à daqueles que dependem de você e entre evadir-se da responsabilidade pela mentira e pela dissimulação, entra a produção de frutos e de um legado e o escapismo por meio de quimeras e sonhos não realizados, entre a produção e a especulação, entre seguir uma vocação e ajudar as pessoas ao fazê-lo e perder-se na anomia e na indiferença à sorte boa ou ruim alheia, entre utilizar o conhecimento para transformar e melhorar a realidade ou usar o conhecimento para demonstrar autoridade e soberba.

    Prezados leitores, Gógol tentou em sua vida seguir a receita de Kostanjolo e fazer valer sua vocação de escritor. Seu projeto de continuar Almas Mortas de forma a revelar todas as facetas da Rússia através da viagem de um pilantra em busca de negociatas não se completou devido a sua morte. Mas certamente a criação de um personagem como Tchítchikov, que nos faz rir por ser tão patético na sua satisfação consigo próprio, na sua capacidade de desculpar-se sempre, mas ao mesmo tempo por mostrar muitas verdades sobre a ganância que existe em todos nós, faz de Gógol um autor cuja mensagem ressoa até hoje. Quem quer que ache alguma semelhança entre o estado de espírito dos russos na primeira metade do século XIX, tal como descrito pelo príncipe, e o estado de espírito de nós brasileiros, em pleno século XXI, desencantados com as instituições, com a democracia e com as autoridades, chegará a conclusões produtivas sobre a raiz dos nossos males.

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