O difícil parto do diálogo

– Vamos falar sobre feminismo, você é feminista?

– Não, da maneira como é atualmente definido certamente não.

– Bem, de acordo com alguma outra definição?

– Eu acho que qualquer pessoa que não considere que o ambiente de concorrência deva ser aberto para a igualdade de oportunidades não pensa. Os melhores interesses de todos são mais bem servidos caso as pessoas tenham acesso tão igual às oportunidades de mostrar e manifestar seu talento quanto possível. Mas o feminismo atualmente, e é por isso que ele é tão impopular (uma pequena minoria de mulheres no Reino Unido identificam-se como feministas). E a principal razão disso é que ele se tornou basicamente uma ferramenta ideológica.

Trecho de entrevista dada por Jordan Peterson, professor de Psicologia na Universidade de Toronto no programa Daily Politics da BBC em 22 de maio de 2018

Os diálogos de Platão são claro, uma montagem, mas com um objetivo: mostrar quão problemáticas são as grandes questões, e ao mesmo tempo como, sob a orientação de Sócrates, mesmo que nenhuma conclusão seja obtida, todo mundo acaba entendendo mais claramente a verdadeira natureza das questões. Mas a abordagem abrupta e com base na confrontação adotada por Nick Robinson, em que pese  soar resoluta, nunca levará o entrevistado a respostas produtivas ou esclarecedoras, e muito menos ao diálogo.

Trecho retirado do artigo “Plato derrota o sábio” escrito pelo classicista Peter Jones para sua coluna semanal “Antigo e Moderno” na revista Spectator em 12 de dezembro de 2020

No diálogo socrático,  […] não há ensino que venha se interpor, como um objeto, entre aquele que fala e aquele que escuta, há somente um diálogo interrogativo, sendo o aluno que acha nele mesmo um saber que não sabia possuir. É por isso que não somente aprender é lembrar-se, mas a arte de Sócrates é comparável àquela da parteira: a maiêutica é a arte do questionamento pela qual o mestre faz nascer no discípulo a verdade de que ele era portador, mas havia esquecido.

Trecho retirado do livro “Sócrates” de Jean Brun

    Prezados leitores, conforme já expliquei neste meu humilde espaço em tempos passados, Peter Jones utiliza seu conhecimento sobre a Antiguidade clássica (ele escreveu uma tese de doutorado sobre Homero, defendida na Universidade de Cambridge) para lançar luz sobre o presente, estabelecendo semelhanças e diferenças entre um e outro. No caso da coluna citada acima, Jones critica a técnica de entrevista de Nick Robinson, apresentador do programa Today na BBC, que reclama que não consegue obter nada dos políticos, ao contrário dos cientistas que ele entrevista sobre a COVID. O que ele quer dizer é que os políticos fogem das questões e não respondem diretamente, em que pese ele insistir e tentar o mais possível encurralá-los e tirar-lhes uma resposta clara.

    Para Peter Jones, o erro é de Robinson, não dos políticos que ele entrevista. Seguindo a lição dos diálogos platônicos tais como conduzidos por Sócrates, para discutir um assunto é preciso fazer perguntas ao interlocutor de maneira que ele elabore seus próprios argumentos respondendo às questões e assim entenda o que ele mesmo pensa e as premissas que sustentam seus argumentos, reveladas pelo esforço ao longo do diálogo de obtenção de uma definição dos conceitos. Sem que esse percurso seja feito, um tentará adivinhar aquilo que o outro pensa, as palavras, mal definidas, serão usadas com os mais diferentes significados. No verdadeiro diálogo, os interlocutores contribuem mutuamente para o aumento do conhecimento um do outro, sem que tenham necessariamente que concordar sobre tudo e chegar a uma conclusão infalível sobre o tema da discussão.

    O canadense Jordan Peterson mostra uma formação acadêmica sólida quando tenta seguir esse roteiro sempre que é convidado a dar entrevistas em algum programa de TV. Ele começou a tornar-se conhecido em 2016 quando foi aprovada a BILL C-16, uma lei surgida no Canadá para proteger os indivíduos de discriminação ou para não serem alvo de propaganda de ódio por sua identidade de gênero ou por sua expressão de gênero. Peterson criticou o modo como a lei foi redigida, alegando que um indivíduo poderia ser enquadrado nesta lei, e, portanto, ser acusado de praticar um crime, caso não utilizasse o pronome preferido por uma pessoa transgênera para fazer referência a ela. O uso do pronome errado poderia ser categorizado como discurso de ódio e isso para Peterson era uma limitação à liberdade de expressão.

    O trecho citado acima, ilustra bem que Peterson absorveu a lição socrática ao entabular um diálogo. A entrevistadora lhe pergunta se ele é feminista e quer uma resposta clara para poder categorizá-lo e colocá-lo num campo ou noutro. No entanto, antes de respondê-la, Peterson toma o cuidado de definir o que ele entende por feminismo de acordo com as premissas que ele já estabeleceu anteriormente, quando falou à entrevistadora sobre sua oposição à lei canadense elaborada para o combate à discriminação de gênero. Considerando que há diferenças biológicas e de personalidade entre homens e mulheres, o professor da Universidade de Toronto não considera que seja possível garantir igualdade prática, pois as pessoas têm diferentes inclinações, o que determina em considerável medida sua escolha de profissão e de carreira.

    Assim, para Peterson o movimento de emancipação feminina deve ter como objetivo garantir que qualquer mulher possa ter acesso às oportunidades que lhe permitam desenvolver seus talentos, o que é bom para a sociedade como um todo, pois quanto mais as pessoas puderem concretizar suas capacidades, mais produtivas serão elas e mais benefícios gerarão aos outros. Sob essa ótica, querer garantir que homens e mulheres obtenham os mesmos resultados em quaisquer circunstâncias, que é o que a vertente mais radical do movimento preconiza, exige uma intervenção em termos de cotas de emprego e de equalização salarial muito grande, dadas as diferenças entre os sexos, e é por isso que ele define o feminismo atual como ferramenta ideológica, pois há um projeto de poder, de transferência de renda e de organização da sociedade nele embutido.

    Enfocando primeiro a definição do conceito para desenvolver seus argumentos, Jordan Peterson procura evitar a armadilha de ser tachado como antifeminista pela entrevistadora, mesmo que a primeira pergunta dela deixe claro que a resposta sim ou não que ele der vai colocá-lo a favor ou contra o movimento. Independentemente se ele chegou ou não a um acordo sobre o que é feminismo com sua interlocutora, e se ele compartilha com ela a mesma posição no espectro ideológico, importante é que ele esclareceu onde ele se situa a respeito do assunto e pôde estabelecer algum tipo de senso comum, como o de que desperdiçar o talento de mulheres só pelo fato de elas serem mulheres é prejudicial à sociedade.

    Prezados leitores, seria bom que nas discussões travadas nas mídias sociais as pessoas tivessem a oportunidade e a capacidade de estabelecer os pressupostos básicos de sua linha de raciocínio e desenvolvê-la antes de usarem termos polêmicos, como fascismo, comunismo, racismo sistêmico, racismo estrutural, diversidade e tantos outros que, por falta de definição adequada, acabam sendo usados para estigmatizar os interlocutores, colocando-os em categorias estanques nas batalhas ideológicas que vemos todos os dias.

    De fato, um pouco da maiêutica socrática permitiria que pudéssemos ter verdadeiras trocas, em que reconhecêssemos e respeitássemos as diferenças de pensamento entre nós, e ao mesmo tempo que esclarecêssemos para nós mesmos o que de fato pensamos e em que termos o que pensamos é diferente daquilo que pensam nossos interlocutores. Os desentendimentos, os mal-entendidos diminuiriam porque a transparência sobre a origem e o desenvolvimento das respectivas ideias aumentaria.

    Para os que se interessarem pelo diálogo de Jordan Peterson com a jornalista da BBC, ele está aqui.

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Correntes imprevisíveis?

Para ele, os conceitos de Idade Média e Renascimento são formas vazias. Ele sabe muito bem que o problema não reside nessa divisão abstrata do tempo. Quando atingimos as camadas profundas da história, o que vemos são continuidades. Algumas correntes prosseguem se exacerbando, enquanto outras se tornam debilitadas. Outras nascem lentamente, e mal se veem suas fontes. Nesse nível de profundidade, a periodização é impossível.

Trecho da entrevista dada pelo historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014) a Claude Mettera sobre o livro de Johan Huizinga (1872-1945), “O Outono da Idade Média”

[…] o termo “renascimento” é apropriado para o campo artístico e literário, o que chamamos de Renascimento com um “R” maiúsculo, só se aplica a esse campo das artes, renovando ainda mais grandiosamente aquilo que no coração da Idade Média havia sido o renascimento carolíngio e o renascimento do século XII. […] A revolução inglesa do século XVII é só uma última peripécia medieval, e será preciso esperar pelo século XVIII, com a Enciclopédia, o desenvolvimento a partir da Inglaterra das ciências e da indústria, o nascimento do capitalismo sublinhado por Adam Smith, e finalmente a convulsão política fundamental da Revolução Francesa, para que finde a longa Idade Média, que restringi aqui, para não chocar os hábitos sobreviventes que limitam essa denominação ao período inconteste dos séculos IV-XV.

Trecho do livro “Homens e mulheres da Idade Média” organizado pelo historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014)

  Prezados leitores, os trechos de livros que abrem este humilde artigo ilustram uma determinada concepção de História tanto de Huizinga quando de Le Goff, os quais enfatizam os padrões de cultura vigentes, as condições espirituais de uma época. Adotando essa premissa, para eles o Renascimento foi a adoção de uma nova forma, a forma redescoberta da Antiguidade clássica, mas tal forma foi adaptada a um conteúdo cristão que estava consolidado há séculos ao longo de toda a Idade Média, a qual estava longe de terminar no século XV, quando surge aquele movimento artístico. Le Goff vai mais além em sua caracterização daquele período, afirmando que a representação que o homem fazia de si e do mundo só deixou de ser substancialmente medieval quando surgiu o movimento Iluminista, o capitalismo desenvolveu-se na vertente industrial e os direitos humanos foram declarados e divulgados no bojo da Revolução Francesa.

    É uma visão que o próprio historiador francês admite ser minoritária, mas será que é possível refutá-la e desacreditá-la com base nos fatos? Se pudéssemos entrevistar nomes como Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rafael, Boticelli para sabermos de suas reais convicções, talvez alguns deles diriam que não acreditavam em Deus ou que ao menos tinham sérias dúvidas sobre alguns dos dogmas do Cristianismo. No entanto, é provável também que todos eles não deixassem de se identificar como cristãos. Qual o fato relevante aqui? Aquilo que a pessoa diz que pensa ou aquilo que ela demonstra na sua obra artística, criada em um determinado meio social, econômico e cultural? Os que defendem que o Renascimento foi mais uma manifestação do espírito medieval renovado enfatizarão o conteúdo religioso que pode ser vislumbrado nas criações daquele movimento. Os que defendem que o Renascimento foi uma ruptura com os cânones medievais enfatizarão a nova linguagem utilizada na pintura, na escultura e na arquitetura, a busca incessante e deliberada das fontes clássicas como inspiração para a criação. E no final das contas, tanto uma abordagem quanto a outra podem ser sustentadas simultaneamente, porque o ser humano é intrinsecamente ambíguo e assim será tudo aquilo que ele realiza no domínio da arte, em um esforço de produção de significado. Em suma o homem renascentista que pintou as Madonnas, esculpiu as Pietàs e ergueu os duomos era um homem cristão, embora não necessariamente devoto.

    Assim é que a História nunca poderá ser ciência como a física o é, porque o indivíduo que dedicar-se ao ofício de historiador nunca lidará com fatos que possam ser enquadrados em linguagem formal e objetiva (isto é, em fórmulas matemáticas) e por isso nunca poderão ser definidos unicamente em dimensões quantitativas. Daí que fica difícil aos historiadores, ao contrário dos físicos, fazer previsões que tenham razoáveis chances de se tornarem realidade e emprestarem credibilidade à ciência histórica, que na verdade é arte histórica. Se os fatos históricos são fruto da ação de indivíduos que têm uma intenção, e que pretendem saber a razão pela qual estão fazendo algo, mas que ao mesmo tempo são determinados por condições econômicas, sociais e culturais, essa interação entre as duas dimensões torna o produto do espirito humano imprevisível, porque nunca poderemos saber de antemão a maneira com os diferentes fatores irão interrelacionar-se.

    E no entanto, nunca deixamos de tentar prever o futuro dos acontecimentos. O momento em que estamos ilustra essa tendência à perfeição. Quem já não leu algum artigo sobre o mundo pós-crise do COVID? Quem já não leu ou ouviu a expressão em inglês “The Great Reset,  empregada para designar o estado de coisas que advirá depois que tivermos atingido a imunidade de rebanho que impedirá que o vírus se propague, seja porque grande parte da população mundial terá sido contaminada ou terá sido vacinada? Quem já não terá ouvido algum especialista falar que o home office veio para ficar, que os prédios de escritórios serão coisa do passado porque as empresas, pelo menos as que atuam como prestadoras de serviços, precisarão apenas de espaço para encontrar com clientes e nada mais? Quem já não ouviu dizer que as lojas físicas, os restaurantes de rua tornar-se-ão obsoletos pela onipresença do comércio on-line e da entrega de produtos em domicílio, como faz a superpoderosa Amazon? Quem já não ouviu dizer que o mundo do trabalho jamais será o mesmo, pois todos descobriram que a tecnologia resolve muitos problemas sem a necessidade do trabalho humano para mostrar produtos ao cliente, para marcar reuniões com várias pessoas, para aprontar o espaço físico de tais reuniões? Adeus, vendedores, secretárias, auxiliares de limpeza, garçons.

    Em suma, quem não terá se deparado com a opinião de algum partidário das rupturas, que considera que há fatos na história que são pontos de inflexão que mudam tudo de uma hora para outra? Assim como houve o mundo pré-Renascentista e o mundo pós-Renascentista, os defensores dessa visão dirão que haverá o mundo pós-Covid e o mundo pré-Covid. E assim como a visão do Renascimento como um fenômeno único era compartilhada por aqueles cuja visão ideológica os levava a considerar a Idade Média como época de atraso e obscurantismo determinados pela religião, os que consideram que o mundo pós-COVID será outro também têm um viés que respalda seu retrato do mundo.

    Esse viés diz respeito à concepção do progresso como inevitável e desejável: o novo sempre vem e o novo traz oportunidades. A digitalização da economia, o desaparecimento de determinados tipos de trabalho por causa da automatização de processos são justificados em nome da eficiência que criará riquezas porque permitirá a alocação de recursos em novas áreas, criando novos tipos de trabalho. É a tal da Destruição Criativa do economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950). Os destruídos pelo mundo novo, ou seja, aqueles destituídos de trabalho terão que se reciclar ou pelo menos receberão uma renda mínima básica garantida com os excedentes produzidos pela nova economia.

    E se adotássemos a abordagem continuísta de Huizinga e de Le Goff explicada acima, e considerássemos que a crise da COVID-19 não é o arauto de um tempo novo, mas uma manifestação de correntes profundas que vêm se desenvolvendo há décadas? A precarização dos empregos, a autonomia cada vez maior dos trabalhadores em um mundo em que eles devem assumir cada vez mais os riscos da atividade e dos rumos da sua carreira e não podem mais contar com a proteção da empresa como provedora de rumos e de recursos. Será que o home office não é apenas uma escala a mais nesse percurso em que o patrão se desvencilha de mais uma responsabilidade, qual seja providenciar a infraestrutura física para a realização do trabalho em prol da diminuição dos custos? Se virmos o mundo pós-COVID inserido numa sucessão de eventos e não como uma ruptura causada por um acontecimento meteórico por acaso não colocaremos tais desdobramentos em uma perspectiva mais comparativa e, portanto, mais crítica do estado de coisas atual, sem deslumbramentos com um futuro brilhante? Talvez percebamos que os grupos privilegiados de sempre aproveitarão a oportunidade da crise sanitária para aumentar ainda mais seu domínio sobre a economia, diminuir suas obrigações e aumentar seus lucros.

    Prezados leitores, conforme tentei explicar acima, nenhuma abordagem histórica pode pretender-se ser correta, porque no final das contas ela é sempre subjetiva e vai enfatizar alguns fatos e desprezar outros e vai interpretar os fatos de acordo com os valores que a respaldam. Caso eu tenha sido clara, percebe-se que tendo a preferir a abordagem da história como o movimento lento das placas tectônicas que impulsionam as camadas  profundas da história, para usar a expressão de Jacques Le Goff. Uma coisa é certa: as previsões fundam-se sempre em bases infirmes na exata medida em que refletem muito mais a concepção do mundo de quem as faz do que uma constatação de fatos objetivos. Por isso, tenham cuidado tanto com os profetas de um admirável mundo novo quanto com os pessimistas inveterados para quem nada muda e tudo é ruim. Em todo caso, lembrem-se sempre de que a história não é feita pela tecnologia ou pelas máquinas, mas pelos homens que têm boas ou más intenções.

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Ande eu quente e ria-se a gente

Qualquer manejo ou maquinação oculta do devedor, para fugir ao cumprimento de suas obrigações, seja desfalcando seu patrimônio, por meio de alienações ou de quaisquer outros atos de disposição, que se mostrem injustos e prejudiciais aos interesses de seus credores, indica-se fraude contra os credores.

Definição do conceito, presente no Código Civil, de Fraude contra Credores, no Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva

Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.

Carlota alegou triunfantemente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.

Trecho retirado do conto “Ayres e Vergueiro”, parte do livro Contos Fluminenses de Machado de Assis (1839-1908)

 

    Prezados leitores, de acordo com os resultados do PISA (sigla em inglês para o Programa de Avaliação internacional de Estudantes) de 2018, os últimos disponíveis para consulta no site da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o Brasil encontra-se no grupo dos países em que tanto o desempenho médio dos alunos quanto o desempenho dos melhores alunos fica abaixo da média da OCDE, ao mesmo tempo em que a porcentagem de estudantes brasileiros com desempenho ruim fica acima da média dos países pertencentes àquela organização. Em suma, nem nossos melhores alunos estão no nível do estudante médio dos países desenvolvidos.

    Com base na minha própria experiência em escolas particulares, considero que a grande falha do nosso sistema educacional é colocar o conhecimento como algo formal, algo a ser adquirido mediante o cumprimento de etapas estafantes e burocráticas. O conteúdo de cada área é dado de maneira compartimentada, sem conexão com outras disciplinas e por isso ele normalmente fica desvinculado da realidade concreta e difícil de ser assimilado de maneira perene e que faça sentido para o aluno. Ouço dizer que isto está mudando nas melhores escolas. Esperemos que a mudança seja consistente ao longo dos anos, para que nosso desempenho em testes internacionais melhore e os brasileiros saem da escola sabendo ler um texto, interpretá-lo e aplicar conceitos matemáticos a problemas práticos.

    Imbuída do espírito natalino, proponho nesta semana um modesto exercício de multidisciplinariedade em torno de um conto do bruxo do Cosme Velho, cuja história é banal, mas que lança luz sobre várias áreas do conhecimento, pois apresenta vários sentidos que podem ser explorados, a saber, no Direito, na Economia, na Sociologia e na Psicologia.

    O enredo desenrola-se ao longo de um período aproximado de três anos: Luiz Vergueiro, dono de um pequeno negócio de venda de tecidos, casa-se com Carlota. Depois de um tempo, tendo já conseguido comprar a casa onde mora e trabalha, Vergueiro recebe a irmã do interior, Luiza, que acabara de ficar viúva e ela e Carlota dão-se muito bem. Luiza começa a trocar olhares lânguidos com um vizinho, Pedro Ayres, rapaz de trinta anos. Vergueiro comenta com sua esposa se sabe algo a respeito e ela o informa que o moleque da casa, Tobias, entregava cartas de amor de Pedro a Luiza e afiançou a sua patroa que Ayres “era moço sério e tem alguma coisa de seu”. Vergueiro decide checar as informações, pois reflete sobre a “inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante”. Ele pretende ir ver Pedro pessoalmente, mas este se adianta, visitando a família. Vergueiro fica com boa impressão do moço, que embora escorregasse no português, vestia-se bem e tinha “gestos desembaraçados”. O pretendente começa a frequentar a casa, esperando até que o período de luto expirasse e ele pudesse casar-se com Luiza. A amizade entre Vergueiro e o futuro cunhado consolida-se com a entrada de Ayres como sócio do negócio de tecidos, mesmo antes do casamento.

    O enlace matrimonial entre Pedro e Luiza ocorre, mas logo depois a moça fica doente e morre. Ayres é consolado por Carlota e muda-se para a casa do casal, ajudando Vergueiro na escrituração das operações da loja. Os três são unha e carne e em dois anos a prosperidade dos negócios os fazem pensar na ideia de liquidá-lo e ir viver das rendas obtidas em algum lugar aprazível. No entanto, de uma hora para outra, os negócios desandam e começam a perder dinheiro. Fazendo um inventário dos bens que tinham, Luiz e Pedro percebem que se pagassem todas as dívidas que tinham lhes sobraria muito pouco para viverem no ócio como tinham sonhado. A saída era continuar trabalhando até que auferissem novamente lucro suficiente para pagar os credores e encerrar o negócio definitivamente.

    No entanto, os dois sócios têm ao mesmo tempo uma ideia brilhante: por que não ir vendendo os tecidos aos poucos e quando tivessem vendido tudo desaparecer sem cumprir suas obrigações com credores? Comunicam a ideia a Carlota, que protesta sobre a imoralidade de tal ato. Vergueiro alega que era imoral, mas o “benefício compensava a imoralidade” e solta o provérbio português “Ande eu quente e ria-se a gente” que parece querer dizer, contanto que eu esteja bem, não me importo com o que dizem os outros”. Já Ayres é mais sofisticado no seu sofisma, conforme mostrado na abertura deste artigo, pois encher os bolsos dessa maneira não era algo com que Deus se preocupasse.

    Vencida a tíbia resistência de Carlota, o trio começa a colocar o plano em prática: pedem prazo maior aos credores, vendem os tecidos a preço de liquidação. Vergueiro recomenda a Ayres casar-se de novo depois que começassem a gozar do dinheiro, mas Ayres replica ao amigo que se considerava casado com Luiza para sempre. A última parte do plano é proposta por Vergueiro: ele comunica a sua esposa que vai para Buenos Aires a negócios e sugere ao cunhado e a ela que fiquem no Rio de Janeiro uns dois meses ainda, vendam tudo o que resta e depois partam para lá. Ayres adiciona um desenlace: propõe dizer a todos que Vergueiro está doente e que ele pede que Ayres lhe mande a esposa para Buenos Aires para fazer companhia. Ayres vai de acompanhante de Carlota prometendo voltar em um mês, assim os três sumirão no mundo, deixando a ver navios seus credores. Vergueiro acha a ideai sublime e parte para o rio da Prata. Ayres fica no Rio de Janeiro e em seis semanas arrecada um bom dinheiro com a venda das fazendas. Recebe uma carta de Vergueiro em que este diz que está de cama e quem escreve é o criado da hospedaria. Enquanto Vergueiro espera ansiosamente a chegada de sua esposa e de seu cunhado, estes decidem, sem comunicar a ninguém, partir para a Europa com o dinheiro e deixando Vergueiro em Buenos Aires. Fim da história.

    Para começar meu exercício de exploração das possibilidades didáticas deste conto publicado em janeiro de 1871 no Jornal da Família, um culto professor de Direito Civil poderia exemplificar o que é fraude contra credores com essa pequena história, ao invés de simplesmente repetir definições de livros e dicionários, como eles sempre fazem com os alunos. Vergueiro, Carlota e Ayres deliberadamente fazem o que podem para inviabilizar o cumprimento das obrigações com seus credores, vendendo as mercadorias da loja gradualmente para que ninguém percebesse o que estavam fazendo. Quem não há de concordar que a fraude contra credores é um problema ainda premente no Brasil? Por acaso essas transferências de propriedades para laranjas, noticiadas frequentemente na imprensa, não são uma maneira de ocultar patrimônio? Um professor meu de Processo Civil afirmava que o grande desafio no Brasil não era obter uma sentença favorável de mérito, mas achar bens a executar que satisfizessem os credores. O candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos tinha como plano de arrecadação de receitas cobrar dívidas da prefeitura. Qualquer conhecedor dos meandros da execução em nosso país sabe que muitos créditos tributários dos governos estadual, municipal e federal são incobráveis, seja porque a empresa faliu, seja porque ela não existe há muito tempo. A pequena trambicagem perpetrada pelos personagens machadianos ilustra nossa tradição empresarial de violar a confiança depositada por empregados, fornecedores e governo.

    Sob a perspectiva dos usos comerciais na Terra Brasil, este conto pode ser explorado sob o ponto de vista sociológico e econômico. O sonho de Vergueiro e Ayres não era tornarem-se grandes comerciantes do setor de tecidos, expandindo os negócios ad infinitum, e com isso gerar empregos e renda para centenas de famílias. Ao contrário, almejavam simplesmente ajuntar dinheiro suficiente para tornarem-se “rentiers”, tal como os latifundiários desde a época colonial viviam à tripa forra vivendo do lucro de suas terras e do trabalho dos escravos, sem que se preocupassem em aprimorar o modo de fazer negócios. Essa mentalidade de culto ao ócio, como diferenciador em uma sociedade escravista, se choca com a mentalidade capitalista de um país como os Estados Unidos, em que o empreendedor sempre foi cultuado como o personagem que assumia riscos e proporcionava benefícios à sociedade como um todo, pela geração de riqueza, que bem ou mal fluía para as classes mais pobres.

    Por fim, há o aspecto da psicologia dos personagens. Vergueiro acha-se superior ao seu moleque escravo Tobias, mas na prática chega à mesma conclusão sobre o caráter de Ayres com base em sua aparência. Luiz é ganancioso e quer levar vantagem, sem se importar com a consequência dos seus atos, mas revela-se ingênuo em relação a Pedro, que este sim é o perfeito manipulador: sabe mostrar-se amigo, zeloso do amor da finada Luiza e sabe fazer malabarismos mentais (algo muto característico da nossa mentalidade, como tentei exemplificar com o Padre Antônio Vieira e com Gilmar Mendes) para alegar que aos olhos de Deus a ganância e a fraude não têm importância. No final, ele é o vencedor levando a mulher e o dinheiro do outro. Num mundo de esperteza infinita, ganha quem usa melhor a linguagem, os gestos e a figura necessários para fazer com que as pessoas ao seu redor ajam em seu benefício. Um perfeito psicopata narcisista.

    Prezados leitores, em um opúsculo de 18 páginas, Machado de Assis nos dá lições sobre narcisismo, psicopatia, fraude contra credores, relações entre senhores e escravos no Brasil, capitalismo subdesenvolvido e economia rentista. Ele pode ser usado tanto em uma aula de História no ensino médio quanto em uma aula de Economia ou de Direito Civil na Universidade. Oxalá que os ventos da multidisciplinariedade transformem a educação brasileira e a tornem menos um exercício de retórica desprovida de significado, valendo-se do patrimônio intelectual que nós brasileiros acumulamos por meio de escritores do nível do primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.

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Contorcionismos barroco-jurídicos

[…] uma interpretação adequada das normas regimentais ora impugnadas não se contenta com o simples cotejo da literalidade do texto do Regimento Interno com a literalidade do texto de dispositivo da Constituição de 1988; antes, exige reconstrução normativa sistemática, que promova e amplie […] as “potencialidades monogenéticas” de ambos os textos.

Trecho retirado do voto do Ministro Gilmar Mendes na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 6.524, julgada em 6 de dezembro deste ano

Art. 5º Na segunda sessão preparatória da primeira sessão legislativa de cada legislatura, no dia 1º de fevereiro, sempre que possível sob a direção da Mesa da sessão anterior, realizar-se-á a eleição do Presidente, dos demais membros da Mesa e dos Suplentes dos Secretários, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

  • 1º Não se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas.

Trecho do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, objeto da ADI nº 6.524 movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que alegou sua inconstitucionalidade

Art. 59. Os membros da Mesa serão eleitos para mandato de dois anos, vedada a reeleição para o período imediatamente subsequente (Const., art.57, § 4º)

Trecho do Regimento Interno do Senado Federal, objeto da ADI nº 6.524 movida pelo Partido Trabalhista Brasileiro, que alegou sua inconstitucionalidade

  • 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

Parágrafo quarto, artigo 57 da Constituição Federal

    Prezados leitores, na semana passada prometi neste meu humilde espaço que lhes daria mais um exemplo deste equilíbrio precário entre opostos característico do barroco, tal como mostrado nos argumentos rocambolescos do padre Vieira para justificar a escravidão de negros africanos. O exemplo que tentarei explicar será o do voto de Gilmar Mendes acerca da reeleição dos presidentes do Senado e da Câmara Federal.

    Depois de 75 páginas de reflexões sobre como outros países regulam a matéria, sobre a história do Brasil e sobre o modo como as normas jurídicas devem ser extraídas dos textos legislativos, Gilmar chega à conclusão de que a melhor interpretação do artigo 59 do Regimento Interno do Senado Federal e do artigo 5º, parágrafo primeiro do Regimento Interno da Câmara dos Deputados à luz da Constituição é a de que a reeleição deve ser permitida uma única vez em qualquer caso, ou seja, em se tratando de reeleição na mesma legislatura ou de uma legislatura para outra.

  Para entender melhor este ponto, basta explicar que Rodrigo Maia é presidente da Câmara dos Deputados desde 2016 porque naquele ano ele foi eleito presidente para o biênio de 2016 a 2018 e pelo fato de 2018 ter iniciado uma nova legislatura e ele ter sido reeleito deputado, à luz do parágrafo 1º do artigo 5º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados ele pôde ser eleito para um novo mandato porque sua primeira eleição ocorreu no último biênio da legislatura anterior de 2014 a 2018. O objetivo do Diretório Nacional do PTB, autor da ADI 6524, foi o de obter uma declaração do STF de que toda e qualquer reeleição para qualquer cargo na Mesa do Senado e da Câmara é inconstitucional, de modo a preservar o processo democrático e evitar que caciques políticos se perpetuem no poder.

    Gilmar Mendes, na qualidade de relator, foi voto vencido e a reeleição, tanto de Rodrigo Maia quanto de David Alcolumbre, acabou sendo proibida pelo STF. O que causou espanto a respeito da opinião proferida por Gilmar Mendes foi o modo como ele conseguiu contorcer o sentido de “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente” do parágrafo 4º do artigo 57 e acabou chegando à conclusão de que a Constituição Federal permite a reeleição. O eminente jurista, com phD pela Universidade de Münster, na Alemanha, obtém este resultado sob três abordagens.

    Em primeiro lugar, o relator da ADI 6524 tira exemplos de países de democracia consolidada, como Estados Unidos, Reino Unido e Espanha, para corroborar a tese de que a reeleição nas casas legislativas é praticada sem “qualquer limitação”. Arthur Onslow foi presidente da Câmara dos Comuns em Westminster (cargo a que se dá o nome de Speaker na língua inglesa) de 1728 a 1761. Tip O´Neill foi Speaker do Congresso dos Estados Unidos de 1977 a 1987 e John W. McCormack o foi entre 1962 e 1971. Félix Pons foi Presidente do Congresso dos Deputados na Espanha entre 1986 e 1996 e Pío Garcia-Escudero foi Presidente do Senado naquele país entre 2011 e 2019.

    Em segundo lugar, Mendes detém-se sobre a história das relações do governo militar com o Congresso Nacional, para mostrar a gênese do item h), parágrafo único do artigo 30 da Constituição de 1969 (“será de dois anos o mandato para membro da Mesa de qualquer das Câmaras, proibida a reeleição”). Este artigo 30 confere à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal a competência para elaborar seus respectivos regimentos internos, mas ao mesmo tempo no parágrafo único impõem certas normas que obrigatoriamente devem constar desses regimentos. Na leitura de Gilmar, em vista das críticas manifestadas em tribuna por vários membros do Congresso às arbitrariedades do regime, essa interferência na elaboração do regimento é uma forma de apequenar os parlamentares, tolhendo uma prerrogativa que lhes é precípua, qual seja estabelecerem como irão autogovernar-se. Nesse sentido vedar a reeleição dos congressistas a cargos nas respectivas Mesas é uma ofensa à democracia, e não como quer o PTB, que ajuizou a ADI, um reforço do princípio democrático.

    O terceiro e último foco da abordagem do relator da ação é estritamente jurídico, baseando-se nos conceitos do Direito Constitucional, do qual Mendes é um dos maiores especialistas no Brasil. Conforme o trecho que abre este artigo, ao contrário do que um cidadão comum faria num esforço de interpretação da Constituição, não basta ler os respectivos artigos impugnados nos Regimes Internos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, depreender o significado gramatical das sentenças e fazer o mesmo com o artigo que trata do mesmo assunto na Constituição Federal.  É preciso ir mais além, porque à luz da hermenêutica jurídica, o texto legislativo não é o mesmo que a norma jurídica a ser depreendida.

    Neste presente caso, o artigo 57 da Carta Magna deve ser interpretado de maneira sistemática, isto é, cotejando-o com outros artigos da própria Constituição, especificamente aqueles que dão ao Congresso a prerrogativa de elaborar seu Regimento Interno e com os artigos dos dois Regimentos Internos. Só a partir desse cotejamento é possível construir uma norma jurídica compatível com todos os textos objeto de apreciação. A partir dessa combinação de textos e considerando, com base na observação do direito comparado, que o lugar adequado do “detalhamento de processos e da organização interna dos Parlamentos” é o regimento interno, Gilmar Mendes estabelece que o parágrafo 4º do artigo 57 da Constituição Federal deve ser interpretado como uma permissão à reeleição dos membros da Mesa do Senado e da Câmara dos Deputados.

    Neste ponto cabe a pergunta: como fica o humilde brasileiro que lê a nossa Carta Magna e se depara com os dizeres “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente” e os considera como uma proibição? A boa leitura do documento que dá as linhas gerais da organização econômica, política e social do nosso país só pode ser feita por especialistas em Direito Constitucional, munidos que estão dos conceitos hermenêuticos necessários? Ou seria mais sensato que os nossos doutos Ministros do STF procurassem ater-se o mais possível à literalidade do texto para que nossa Constituição pudesse de fato ser mais acessível ao comum dos mortais e de fato concretizada por cada um dos cidadãos do Brasil na sua prática diária?

    Prezados leitores, ao final de seu caudaloso voto, Gilmar Mendes, citando seu colega Luiz Fux, fustiga “alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e “que acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário”. Sábias palavras. Uns partidos indo ao STF para ganhar no tapetão (no frigir dos ovos é isso o que o linguajar sofisticado de Fux quer dizer), os Ministros mostrando sua erudição jurídica e tornando a Constituição- Cidadã um texto esotérico para iniciados. E no meio do fogo cruzado, os brasileiros que, se no século XVII ouviam o padre Vieira falar que a escravidão dos negros redimiria a sociedade, hoje, em pleno século XXI, ouvem Gilmar Mendes dizer que “vedada a reeleição” quer dizer que ela é permitida. A convivência entre o sim e o não, entre o ser e o não ser, característica do barroco está mais vivo do que nunca entre nós. E nosso regime político cada vez mais desnorteado com tantos contorcionismos.

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Contorcionismos barrocos

Ele fustiga a desumanidade dos senhores do açúcar que batem nos trabalhadores dando-lhes chicotadas, que os colocam no tronco ou no pelourinho. Mas ele jamais ataca a instituição da escravidão. Ele admite sua necessidade. Simplesmente ele gostaria que ela fosse doce. […] Estamos no século do pensamento barroco. Ele se dedica a acrobacias lógicas, metafísicas e teológicas vertiginosas. […] “As chicotadas e os castigos são a graça do escravo porque o resultado é a salvação eterna deles.” […] Vieira não tem medo de dizer que o Negro tem a missão, como Cristo antes, de salvar a humanidade por seu sacrifício.

Trecho retirado do verbete “Negros Escravos” sobre a escravidão no Brasil, retirado do livro “Dictionnaire amoureux du Brésil” do escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (1923-2020)

Nesta cidade [Roma] que oscila entre seus cem mil habitantes e os sete mil peregrinos do ano do jubileu, é evidente que toda intervenção artística, mais do que à urbs (a cidade), parece se destinar à orbis (o território). Não há outra maneira de explicar as construções gigantescas e as festas, que custavam muitas vezes tanto quanto um edifício, organizadas segundo o método da “propaganda fide”. A arte como artifício tem um lugar privilegiado, o espaço do espetáculo.

Trecho retirado do livro Bernini, sobre o escultor e arquiteto napolitano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), escrito por Maurizio Fagiolo em colaboração com Angela Cipriani

    Prezados leitores, no livro citado neste humilde espaço na semana passada, Viagem à Terra do Brasil, Jean de Léry (1534-1611) descreve a música, a comida, as características físicas e psicológicas, a religião, as instituições sociais (poligamia, antropofagia, funerais) e as leis dos índios tupinambás  com os quais conviveu depois de sua infeliz passagem pela colônia da França Antártica no Rio de Janeiro. Nesta primeira metade do século XVI, a colonização do Brasil ainda era incipiente e os nativos ainda eram donos do seu destino, apesar das trocas cada vez mais intensas com os europeus. Eles ainda não tinham começado a ser aprisionados em larga escala para trabalharem nas lavouras dos brancos.

    A fim de fazer a diferenciação entre os índios escravizados e os africanos escravizados, no seu “Dictionnaire amoureux du Brésil” Gilles Lapouge intitula seu verbete sobre a escravidão no Brasil “Negros escravos” para referir-se àqueles que acabaram se tornando a mão de obra nos engenhos de açúcar em contraposição aos índios denominados negros da terra. Porque se é verdade que os índios foram caçados ao longo da penetração do europeu pelo interior das terras brasileiras, Lapouge explica que sua fragilidade, o fato de adoecerem muito facilmente, trabalharem mal e não quererem obedecer torna os índios imprestáveis para o serviço pesado da plantação, corte e moagem da cana.

    É certo que os índios tinham sua própria organização econômica e social, estavam naquele território há milhares de anos e como Jean de Léry nos mostra, consideravam estranha e indigna a ideia de acumulação de bens além do necessário para satisfazer suas necessidades, as de sua família e da comunidade. De forma que o colonizador europeu optou pelos africanos da Guiné e Angola, os quais, embora caros, eram robustos e mais dóceis.

    Até aqui todas essas informações que nos traz Lapouge sobre o motivo de os índios terem sido substituídos pelos negros africanos são familiares a qualquer brasileiro que tenha tido aulas decentes de história do Brasil. Ocorre que o antigo correspondente do jornal O Estado de São Paulo na França dá uma contribuição original sobre o assunto valendo-se do seu repertório cultural, mencionando o papel do padre Antônio Vieira (1608-1697) na elaboração de uma justificativa moral para a escravidão. Para explicar o raciocínio do jesuíta, Lapouge vale-se de dois conceitos familiares ao público europeu: o barroco e o cristianismo.

    O fato é que em 1537 o papa Paulo III havia decidido que os índios tinham alma e portanto, escravizá-los era contra os preceitos cristãos. Quanto aos africanos, a Igreja não disse nada a respeito, o que permitiu o contorcionismo mental de Vieira que Lapouge explica: o trabalho escravo era um mal necessário, sem o qual a exploração econômica do Brasil teria sido inviável, já que só os negros tinham a capacidade física de trabalhar da maneira contínua e intensa exigida pelas plantations em clima tropical. Para dar um verniz de respeitabilidade a tal fato da vida material da colônia e viabilizar sua organização sobre bases cristãs, reais ou fictícias, Vieira argumenta que a dura vida dos africanos no Brasil, o trabalho sob o sol inclemente, os castigos físicos eram análogos ao sofrimento suportado por Jesus Cristo em sua passagem pela Terra. Assim como o Filho de Deus se fez homem para purgar os pecados da humanidade e dar-lhe a chance da salvação eterna, os negros também se sacrificavam em prol dos outros homens.

    Assim é que o jesuíta lisboeta consegue uma façanha intelectual: tornar a crueldade, as injustiças cometidas contra os escravos atos perfeitamente cristãos, porque inseridos no grande projeto de redenção da humanidade pela fé no salvador do mundo. Um aparente paradoxo resolvido por meio de malabarismos retóricos, tal como um dos maiores expoentes da escultura e arquitetura barrocas, Bernini, fez repetidas vezes em suas obras “convidando, por meio da sedução da sua virtuosidade técnica, a uma experiência diferente da realidade”, conforme define o livro citado na abertura deste artigo. Cada um a seu modo, tanto o padre Vieira quanto o artista italiano são instrumentos da Igreja Católica utilizados para a propaganda da fé, a conquista de novos fiéis para compensar a perda provocada pelo cisma protestante.

  Trabalhando principalmente em Roma, Bernini organiza espetáculos para o Carnaval, a Quarantore (exercício de devoção ao Santíssimo Sacramento consistente na oração por 40 horas consecutivas) e outras festas canônicas para encantar os espectadores e atraí-los à beleza dos ritos católicos. Vieira, em seus sermões pregados no Brasil, ao mesmo tempo que oferece aos colonizadores uma justificativa moral para a escravidão dos negros, em troca consegue garantir para a Igreja de Roma as almas dos indígenas confinados em missões dirigidas por jesuítas. Dessa maneira, os latifundiários colonizadores podem explorar economicamente as terras do Brasil usando a imprescindível mão de obra africana; os indígenas são catequizados e todos compartilham com maior ou menor devoção, com maior ou menor autenticidade, a fé católica.

    Nesse sentido, o enredo barroco desenrola-se tanto em Roma quanto no Novo Mundo: à exuberância dos espetáculos organizados por Bernini corresponde um Estado Pontifical cada vez mais enfraquecido politicamente; à virtuose argumentativa de Vieira colocando a escravidão como algo cristão corresponde uma desigualdade estrutural na colônia que desafia todos os preceitos cristãos da dignidade inerente ao homem, feito à imagem de Deus.

    Segundo Gilles Lapouge, no verbete citado acima, talvez cinco milhões de escravos tenham sido trazidos para o Brasil durante quase quatro séculos, sob o beneplácito da Igreja. O Éden vislumbrado por Jean de Léry no século XVI, que chegou a ver nos tupinambás da Baía de Guanabara as virtudes éticas dos protestantes, logo se transformaria no calvário de africanos desenraizados, que muitas vezes tentavam o suicídio comendo terra.

    Prezados leitores, sob essa perspectiva, o Brasil adquiriu uma indelével alma barroca, feita de luzes e sombras, de equilíbrios precários entre opostos. Como tentarei mostrar aqui na semana que vem, essa característica, tão bem exemplificada por Vieira e explicada por Gilles Lapouge em seu Dictionnaire amoureux du Brésil, persiste até hoje, nos locais os mais inusitados.

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