Sobre cruzes e passarolas portuguesas

Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o retângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício para o prenderem, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, […] e já saem a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não advinham que o protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos, excessivos, mas não familiares do Santo Ofício.

Trecho retirado do livro “Memorial do Convento”, do escritor português José Saramago (1922-2010), que descreve a demonstração do aeróstato, ou passarola, um invento voador do frade nascido em Santos Bartolomeu de Gusmão (1685-1724), perseguido pela Inquisição

Nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos vindouros, menos ainda um daqueles certeiros remates em que a exemplaridade da lição se percebe logo à transparência das palavras, tão luminosa que no futuro rejeitará qualquer intrometida glosa, ou, pelo contrário, suficientemente obscura, ou ambígua, para tornar-se nos dias de amanhã em prato favorito de eruditos e outros especialistas.

Trecho retirado do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do mesmo José Saramago, em que o autor apresenta José, pai de Jesus, fazendo uma irônica comparação com o destino de seu filho

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei humildemente mostrar-lhes por meio de dois pequenos exemplos como Dostoiévski dá voz ao mesmo tempo a um velhaco cínico que defende o poder institucionalizado da Igreja Católica e a Jesus Cristo, que não era inocente, pois sabia da maldade do mundo, mas tinha fé e esperança de que um outro mundo era possível. Apesar de o escritor russo mostrar os diferentes pontos de vista, fica claro ao longo de sua obra que ele acreditava no cristianismo, que poderia ser resgatado das mãos dos burocratas da Igreja e dos hipócritas e servir de bússola moral e espiritual do homem.

    Diferente é a perspectiva de José Saramago, que sempre foi um ateu empedernido e assim morreu. O trecho que abre este artigo mostra o frei Bartolomeu de Gusmão fazendo sua passarola voar nos céus de Lisboa enquanto o Santo Ofício vai à sua busca para prendê-lo. Tanto no autor russo quanto no autor português a Inquisição é vista com maus olhos, no primeiro caso porque o que para ela era herético na verdade era a verdadeira prática cristã, no segundo caso a Inquisição inibe o livre pensamento e a inovação científica. Mas Dostoiévski e Saramago diferem pelo fato de que este não consegue ver nenhum aspecto redentor da religião, porque o que lhe importa são as condições materiais das pessoas e a Igreja nunca atuou para melhorá-las de maneira substancial, pelo contrário foi sempre fator de manutenção do status quo.

    No Memorial do Convento há de um lado o rei Dom João V, a rainha Dona Maria Ana, os outros nobres e cortesãos que são todos excelentíssimos católicos, seguem todos os ritos, nos mínimos detalhes, mas tudo é uma fachada hipócrita que serve para explorar o povo e prometer-lhe um paraíso futuro para negar-lhe condições dignas no presente terreno. Do outro lado, há o povo, as Blimundas e os Baltasares, que têm vidas precárias, feitas de muito trabalho e pouca recompensa. Quando eles ousam ter suas próprias crenças, diferentes dos dogmas impostos pela ortodoxia, são punidos com a fogueira.

    No Evangelho Segundo Jesus Cristo, essa crítica à religião dominante aprofunda-se porque José Saramago propõe-se a ir atrás da origem do mito de Jesus Cristo, contando a história do filho de um carpinteiro que morava em Nazaré de uma maneira materialmente plausível, que possa sustentar-se na realidade fática, sem a necessidade de recorrer a ideias como a virgindade de Maria ou a descida do céu de um anjo que anuncia à simples mulher de 16 anos que teria um filho. Tentando colocar Jesus Cristo, seu pai José, sua mãe Maria e seus irmãos e irmãs no contexto histórico e social da época, em que os judeus viviam sob o jugo dos romanos, Saramago desconstrói o mito, mas tal desconstrução, ao tornar o personagem mais importante da civilização ocidental mais humano, não o torna mesmo digno de respeito.

    O trecho citado na abertura deste artigo demonstra esse jogo duplo do autor português. José é mostrado como um trabalhador manual que não tinha nenhuma qualidade especial, não era um carpinteiro particularmente habilidoso e também não tinha o dom de encantar multidões com parábolas, ou ditos como seu filho o faria na sua vida adulta. De um lado a ironia fina de Saramago mostra que o fato de as palavras que Jesus Cristo teoricamente proferiu ao longo de seu curto período de pregação terem se eternizado na história, alçando o autor delas a uma glória inimaginável para um ser medíocre como seu pai, deve-se mais ao fato de elas terem sido manipuladas para atender determinados interesses, interpretadas a torto e a direito de acordo com as circunstâncias do momento, consideradas como tendo uma qualidade intrínseca que elas estavam longe de ter, pois muitas vezes eram obscuras o suficiente para que qualquer sentido pudesse ser-lhes atribuído.

    De outro lado, se Jesus Cristo teve a sorte de ter virado um mito, algo que José só adquiriu de maneira reflexa por ser seu pai, ambos tiveram uma breve vida e criando um meio de abreviar a vida de José na mesma idade em que foi abreviada a de seu filho, aos 33 anos, Saramago resgata José da sua insignificância comparativa e o coloca como um homem das classes baixas que sofrem as injustiças cotidianas perpetradas pelos donos do poder. Quando Jesus tem 12 anos estouram revoltas lideradas por Judas da Galileia contra o domínio romano na forma de guerrilhas em vários locais de Israel. José não participa de combates, mas comete a imprudência de ir atrás de um vizinho, Ananias, que combateu, mas que está mortalmente ferido em Séforis, para trazê-lo de volta a Nazaré. José acha Ananias, mas este morre e José acaba sendo preso pelos romanos e crucificado como rebelde, mesmo não tendo participado de nenhum combate. Mas os romanos precisavam dar exemplo para demover os judeus de se rebelarem de novo, então José preenche a cota necessária.

    E assim José termina sua vida aos 33 anos crucificado não para ressuscitar e juntar-se à direita de Deus pai como ocorrerá anos depois com seu filho, mas servir de bode expiatório e atender os interesses de dominação dos romanos, que usavam a crueldade da morte por crucificação como arma psicológica para manipular os sobreviventes. Sob essa perspectiva, a cruz é destituída do seu aspecto teológico e inserida na materialidade das vidas desgraçadas dos que nascem pobres em uma sociedade dominada por uma potência estrangeira. Mesmo sendo uma cruz desmistificada pelo materialismo e ateísmo de Saramago, ela não deixa de tocar os leitores da mesma maneira que o beijo de Jesus Cristo nos lábios do Inquisidor: José quis ajudar um vizinho e quando percebe que está perdido resigna-se com seu azar, assim como tantos homens do povo, desprotegidos e desamparados antes e depois dele, aceitaram seu destino infeliz nessa terra.

    Prezados leitores, é uma pena que José Saramago tenha escrito em português em uma época em que não havia grandes escritores de língua portuguesa para que ele pudesse ter sido reconhecido como Dostoiévski foi escrevendo em russo, mas acompanhado de Gogol, de Tolstói, de Turguêniev, de Tchekhov e de outros escritores que consolidaram o impacto universal da literatura russa. Partindo das suas origens campesinas e da sua formação marxista, o autor português, ao desconstruir a Sagrada Família no Evangelho de Jesus Cristo e a ideologia da Igreja no Memorial do Convento, consegue transcender suas próprias ideias, certas ou não, morais ou imorais, e nos mostrar o cerne da condição humana. Nesse sentido, ele chega ao mesmo lugar que Dostoiévski, o qual parte de suas convicções cristãs profundas, o que mostra a grandeza dos dois. Para quem nunca leu José Saramago, para ateus, católicos, protestantes, recomendo que o faça, pois todo grande artista é muito maior do que as próprias ideias que ele tenta expressar.

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Polifonias e Cacofonias

Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada ao que já tinhas dito. Por que vieste nos atrapalhar? Pois vieste nos atrapalhar e tu mesmo o sabes. Mas sabes o que vai acontecer amanhã? Não sei quem és e nem quero saber: és Ele ou apenas a semelhança d’Ele, mas amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijou os pés, amanhã, ao meu primeiro sinal, se precipitará a trazer carvão para tua fogueira, sabias? É, é possível que o saibas.

Trecho retirado do Grande Inquisidor, capítulo do romance Os Irmãos Karamazov, publicado em 1880, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

 

As ideias elevadas definham em tempos de paz prolongada; no lugar delas aparecem o cinismo, a indiferença, o tédio e muito, muito escárnio maldoso, e isso como forma de entretenimento, não por algum motivo útil. É possível dizer com certeza que a paz prolongada torna as pessoas mais cruéis. Em tempos de paz prolongada a balança sempre pende para o que há de mais estúpido e grosseiro na humanidade, em especial para a riqueza e o capital.

Trecho retirado do conto “O Paradoxalista”, publicado em 1876, de Fiódor Dostoiévski

    Prezados leitores, já assisti a uma encenação de O Grande Inquisidor realizada pelo ator paulistano Celso Frateschi em uma sala de teatro minúscula. Mesmo que a Secretária de Cultura desse largos subsídios a produtores teatrais e permitisse que os ingressos fossem baratíssimos e que a peça tivesse à disposição cenários e figurinos para reproduzir uma prisão na Sevilha do século XVI, durante o auge do poder da Santa Inquisição, encarregada de eliminar o pensamento herético do seio das sociedades cristãs, seria difícil atrair muitas pessoas, dado o forte conteúdo filosófico desta parte dos Irmãos Karamazov. Trata-se de um diálogo entre o Grande Inquisidor e um Prisioneiro que é nada mais nada menos do que Jesus Cristo em carne e osso, como o autor do diálogo, Ivan, esclarece a seu irmão Aliocha.

    O trecho que abre este artigo é uma amostra do cerne da mensagem do Grande Inquisidor: Jesus em um hipotético retorno à Terra para salvar a humanidade atrapalha a bem montada estrutura da Igreja Católica que submete os homens pelo poder, pura e simplesmente. Como toda pessoa que exerce liderança política e sente-se à vontade em fazê-lo, o Grande Inquisidor é cínico em relação à natureza humana: os homens são débeis física e mentalmente, preferem o pão à liberdade, preferem renunciar a pensar por si próprios e seguir as ordens de um líder desde que suas necessidades materiais estejam satisfeitas, ao menos minimamente. É por isso que se Jesus voltar e começar a pregar ele será perseguido e trucidado como o foi em sua primeira vinda: os donos do poder, entre os quais àquela época a Igreja Católica Apostólica Romana, tratarão de manipular o povo para fazê-los crer que aquele sujeito esfarrapado que desafia os poderes constituídos com base na opressão e na violência, só trará miséria e ostracismo a quem aderir a ele.

    O Grande Inquisidor, que zela pela pureza ideológica da Igreja Católica,  dá uma lição de moral ao Prisioneiro, ele mesmo a fonte de toda ética cristã, ao menos oficialmente. Por que voltar? Cristo já cumpriu seu papel, permitindo que o mito criado em torno da sua pessoa levasse à criação e à consolidação da Igreja. Seu retorno, pregando e pior, exemplificando uma certa conduta de vida de quem não vive só de pão, só fará atrapalhar a ordem e a paz que reinam graças à atuação eficaz dos príncipes da Igreja. Ao mesmo tempo que desfia sua arenga sobre os males que este Prisioneiro que está disposto a sacrificar sua vida pelo bem de todos poderá causar, o Grande Inquisidor se irrita e se perturba com o olhar fixo e penetrante que o objeto de seu desprezo e da sua crítica mantém sobre ele.

    O final desse confronto entre dois personagens com visões de mundo tão diferentes deixa o leitor maravilhado. O Grande Inquisidor espera que Jesus reaja às suas injúrias e responda à altura, pregando ele mesmo as ideias do autêntico cristianismo deturpado pela Igreja representada pelo Grande Inquisidor. O Prisioneiro, submetido ao arbítrio da autoridade eclesiástica, que poderia tê-lo mandado à fogueira se assim o quisesse para se livrar do incômodo, simplesmente dá-lhe um beijo na boca. O velho cínico estremece pois não esperava aquele gesto. Ele abre a porta da cadeia e diz a Jesus “Vai e não voltes mais… Não voltes em hipótese nenhuma… nunca, nunca!”

    Quem venceu? Jesus Cristo ou O Grande Inquisidor? O prisioneiro que responde à violência com um beijo de amor ou o carcereiro que tem o poder de vida e morte, de prender e soltar? Quem Dostoiévski defende? O autêntico Salvador do Mundo contra a manipulação perpetrada pela Igreja de Roma? Ou Dostoiévski considera que a visão maquiavélica do Grande Inquisidor é mais realista e portanto, a que no final das contas deve triunfar? O autor russo dá voz a diferentes personalidades, mostrando diferentes pontos de vista cuja radicalidade nos faz refletir. O pragmatismo desabrido do príncipe da Igreja, que sabe como poucos conquistar e consolidar o poder, usufruir dos privilégios que ele lhes dá, sem ilusões sobre a pureza da natureza humana. A mensagem de amor, fé e esperança de um Cristo ressuscitado que não desiste jamais, apesar de todas as dificuldades, que persiste tentando angariar as almas, por mais perdidas que elas possam estar.

    Essa polifonia que desconcerta e ilumina é presente nas grandes e nas pequenas obras de Dostoiévski. O segundo trecho que abre este artigo faz parte da argumentação de um paradoxalista, como é definido o autor de uma defesa racional da guerra pelo narrador da história. A guerra não é uma calamidade, na verdade é uma benção porque ela foca a mente em prol de feitos grandiosos para a solução dos problemas de sobrevivência que surgem, molda o caráter pois define as prioridades do ser humano, permitindo que as pessoas se unam para garantir o bem comum, elevando o espírito pelo sacrifício da própria vida em prol do amor fraterno. A paz ao contrário, gera a indolência, a submissão aos prazeres, às veleidades, ao luxo, ao glamour, às ideais vãs e espetaculares que nada mais fazem do que preencher o vácuo imposto pela falta de propósito autêntico.

   Novamente cabe a série de perguntas colocada em relação ao Grande Inquisidor. Com quem Dostoiévski concorda? Com os pacifistas ou com os militaristas? Para o autor do conto a guerra pode ser justa? Qual o campo por ele escolhido? Ou ele não escolhe nenhum? Ter resposta a todas essas perguntas não é relevante, para o leitor importa que confrontado com visões antagônicas, ele aprenda com umas e outras e possa obter a sua própria, quer identificando-se com alguma dessas vozes, quer negando-as completamente, quer amalgamando-as em uma síntese criadora. Desse face-a-face com os múltiplos ângulos de uma questão, o leitor de Dostoiévski sai consciente da complexidade de fazer escolhas.

    Prezados leitores, ler o Grande Inquisidor era obrigatório em universidades americanas de elite, ao menos até a década de 90 do século XX, como me garante quem por lá passou então. Não é de se admirar, considerando que o ensino universitário tinha como objetivo dar aos alunos ferramentas para aprender a pensar por si próprios e formar suas próprias opiniões, pela exposição aos mais diversos pontos de vista. A polifonia universitária levaria à harmonia da consolidação das ideias. Talvez a falta de contato com autores complexos como Dostoiévski, cuja apreensão exige um esforço contínuo de lapidação da mente, seja responsável por tantas pessoas com grau universitário se perderem na cacofonia das redes sociais, palco de troca de insultos pessoais, de estigmatizações, de argumentação rasa.

    O Prisioneiro, o Paradoxalista, o Grande Inquisidor são personagens fictícios, mas que nos preparam para enfrentar mentalmente a ambiguidade da vida e suas difíceis escolhas, apresentando-nos as nuances, as zonas cinzentas, as luzes e as sombras. Enquanto houver seres humanos que estejam dispostos a olhar-se no espelho com franqueza e não necessariamente com admiração inocente e narcisista, haverá sempre quem cultue essas grandes figuras da literatura.

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Arquétipos, lá e aqui

Em todas as coisas procurava-se pela “moralidade” como dizia o homem medieval, ou seja, a lição que dali se extraía, o significado moral mais essencial. Cada caso histórico ou literário tende a se cristalizar numa parábola, num exemplo moral, numa evidência; cada declaração, numa sentença, num texto, num dito. Assim como nas conexões simbólicas sagradas entre o Novo e o Velho Testamento, as conexões morais fazem com que cada incidente da vida possa imediatamente ser refletido num modelo, num arquétipo das Escrituras, da história ou da literatura. […] Num lugar em que para cada caso se encontra tão facilmente uma explicação, e, uma vez que esta foi aceita, se acredita nela com tanto fervor, reina uma extraordinária comodidade do falso juízo.

Trecho extraído do livro “O Outono da Idade Média” do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1942)

   Prezados leitores, o trecho que abre este humilde artigo foi retirado do 17º capítulo do livro, intitulado “As formas do pensamento na vida prática”, em que Johan Huizinga explica como o homem medieval pensava centrando sua argumentação em torno de dois conceitos fundamentais, a casuística e o formalismo. Cada caso isolado da vida real, que suscitava uma pergunta a ser respondida com uma solução, era relacionado com as verdades eternas obtidas a partir da Bíblia ou de textos literários ou da narrativa histórica tal como se encontrava cristalizada.

    Uma vez estabelecida a conexão entre o caso e a verdade, estabelecia-se a solução ideal e o que era isolado passava a ser considerado como uma entidade delimitada por limites fixos que se encaixava na organização hierárquica das coisas. Essa solução transmuta-se então em regras formais rígidas, criadoras de formas dominantes, que servirão por sua vez para encaixar outros atos, os quais serão considerados com tendo características imutáveis independentemente das circunstâncias e da intenção dos agentes. Cria-se dessa forma a casuística, um rol de casos-modelo, que servirão de antecedentes para a abordagem de caso novos, pela aplicação automática das regras obtidas.

    As parábolas, os exemplos morais, os sermões, os juramentos são manifestações da aplicação simultânea desses dois conceitos, pois todos implicam a redução dos incidentes da vida a formas pré-definidas. As nuances, as peculiaridades da realidade concreta são deixadas de lado para enfatizar a reprodução eterna dos esquemas imutáveis. Esse formalismo tem consequências interessantes. Um indivíduo que cometesse um lapso ao prestar um juramento era punido pela falha em pronunciar as palavras sagrada, ao passo que um ato tentado, mas não consumado, mesmo no caso de um delito grave, não era punido. A forma era mais importante que o conteúdo, a repetição eterna das verdades consolidadas mais importante do que a investigação da realidade em si mesma, com toda sua complexidade, suas zonas obscuras, suas ambiguidades morais.

    Para Huizinga, esse formalismo geral do pensamento do homem medieval era responsável pelo caráter oco e superficial da mentalidade da época.

 

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Sacrifícios rumo ao progresso

A morte moderna não tem nenhum significado que a transcenda ou remeta a outros valores. Em quase todos os casos é, simplesmente, o fim inevitável de um processo natural. Num mundo de fatos, a morte é mais um fato. Mas como é um fato desagradável, um fato que questiona todas as nossas concepções e o próprio sentido da nossa vida, a filosofia do progresso (progresso para onde e de onde?, pergunta Scheler) pretende escamotear sua presença. No mundo moderno, tudo funciona como se a morte não existisse. Ninguém conta com ela. Tudo a suprime: os discursos dos políticos, os anúncios dos comerciantes, a moral pública, os costumes, a alegria a preço baixo e a saúde ao alcance de todos oferecida por hospitais, farmácias e campos de esporte.

Trecho retirado do ensaio “Todos os Santos, Finados” escrito pelo crítico, poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz 1914-1998

Tomei por conta que quero viajar, e não para me sentir mais segura. Uma vacina que dá 50% de segurança para mim não é uma vacina. Tomei foi água.

Palavras de Nathanna Faria Ceschin, enfermeira na Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Espírito Santo, em vídeo gravado por ela e veiculado nas redes sociais

    Prezados leitores, “Todos os Santos, Finados” faz parte de uma série de ensaios reunidos em um livro intitulado “O labirinto da solidão”, em que Otávio Paz reflete sobre o caráter do mexicano, enfocando o substrato da sua psiquê: a tensão constante entre a herança dos povos que habitavam a Mesoamérica, entre os quais os olmecas, os toltecas, os mixtecas, os tlaxcaltecas, os zapotecas, e os astecas (para mencionar apenas aqueles que deixaram vestígios arqueológicos de sua presença nas terras do que no futuro seria o México fruto da Conquista), e a herança espanhola, trazida por Hernán Cortés.

    Dotado de um grande conhecimento da história do seu país, Paz tenta entender certas características do povo de uma maneira equilibrada, pois ele não cai na armadilha de adotar nenhum tipo de visão supremacista, quer indígena, quer europeia. Os indígenas não eram vítimas inocentes dos conquistadores, afinal eles lutaram e perderam entre outros motivos porque tinham uma visão ambígua dos espanhóis, quase como deuses salvadores e por isso muitas tribos aliaram-se a eles contra os então dominantes astecas. Por outro lado, os espanhóis trouxeram consigo, além dos germes e balas, uma religião católica que se pretendia universal e inclusiva, abarcando ricos e pobres, todos passíveis de serem tocados pela graça de Deus, o que era uma novidade e terras de sociedades teocráticas e altamente hierarquizadas, como eram as dos povos indígenas de então.

    Um exemplo desta abordagem em que ele analisa as diferentes verdades propostas pelas culturas que estiveram em choque no seu país é a reflexão que faz sobre o culto da morte no México, representado pelo Dia de Finados. Paz explica o que era a morte para os astecas e porque realizavam sacrifícios humanos: morrer era participar da regeneração das forças criadoras e o sacrifício trazia saúde cósmica, pois o sangue humano era o alimento da tal regeneração: o mundo vivia graças ao sangue e à morte dos homens. Para os cristãos que fundaram a Nova Espanha, ao contrário, a morte é uma redenção porque permite a salvação do indivíduo, só ele, por meio de Jesus Cristo. O mundo, a história, a sociedade, já estão condenados pelo pecado original, só resta a cada um de nós colocarmos nossas esperanças na vida transcendente. Por mais que a visão seja num caso a da morte como confirmação do mundo e no outro a da morte como negação do mundo, tanto os astecas como os cristãos tinham valores culturais que embasavam sua metafísica.

    Esse contraponto permite ao ensaísta mexicano lançar luz sobre nossa própria concepção moderna, pós-cristã da morte, conforme explicada no trecho que abre este artigo. Quem não há de concordar que em nosso mundo das mídias sociais a morte como um fato incômodo que deve ser negado e se possível varrido para debaixo do tapete não é ainda pertinente? O reconhecimento da morte resume-se a um post no Facebook ou uma mensagem pelo WhatsApp. A única obrigação da pessoa que recebe a notícia parece ser a de responder com um emoticom apropriado, ou alguns deles, para tornar a mensagem mais enfática, com algumas palavras de consolo e de solidariedade e voilà, a etiqueta dos tempos terá sido seguida à risca. Aquela obrigação social de acompanhar os familiares do defunto nos rituais fúnebres, o velório, o enterro, a missa de sétimo dia, é um incômodo totalmente desnecessário e a epidemia de Covid-19 forneceu a qualquer um a desculpa suficiente e epidemiologicamente correta para não comparecer a nenhuma das três cerimônias, para evitar aglomerações e a famigerada contaminação.

    Considerando a reação mundial e individual à pandemia iniciada em dezembro de 2019, as palavras de Octavio Paz são prescientes não só em descrever a morte pós-moderna como um incômodo, mas como algo a ser suprimido qual erva daninha por algum produto da nossa sociedade tecnológica. A comparação da enfermeira do Espírito Santo da vacina CoronaVac com água, devido a sua pouca eficácia, revela a mentalidade de todos nós, a despeito da enxurrada de críticas que ela levou e do julgamento sumário a que a pobre moça foi submetida, típicos das mídias sociais, que a levou a perder o emprego. A supressão do vírus que causa a síndrome respiratória aguda grave virá com um produto excepcional como a vacina produzida pela empresa Pfizer, cuja vacina tem eficácia ao redor de 91%, número este na ponta da língua de qualquer cidadão que checa ao menos uma vez por dia as notícias na internet. É um número bem maior do que o da CoronaVac, cuja eficácia é de pouco mais de 50%.

    Para Nathanna e para todos nós que queremos nos livrar da morte por meio do progresso representado por novos remédios e novas vacinas, é frustrante saber que devido à nossa condição de país pobre não teremos acesso à tecnologia “top” de combate ao corona vírus, qual seja, a do RNA mensageiro, disponível no Primeiro Mundo. Teremos que nos satisfazer com uma vacina com tecnologia ultrapassada que não serve para obtermos a saúde e a cura, apenas para passarmos na alfândega ou na imigração em algum aeroporto estrangeiro e não sermos vergonhosamente barrados.

    E assim caminhamos há exatos 12 meses, bombardeados com fatos desagradáveis: número de mortes por dia causadas pela Covid-19, número de mortes em todo o mundo, ranking dos países com mais mortes em números absolutos, ranking dos países com maior número de mortes per capita, número de mortes em cada Estado brasileiro. Será que os mais de 200.000 óbitos atribuídos ao vírus chinês que tem uma proteína em formato de coroa são sentidos por nós como uma tragédia, algo que nos faz repensar nossa vida, nossa relação com o mundo e com as pessoas, que nos fará elaborar uma nova visão cósmica como tinham os astecas e os cristãos conquistadores do México? Ou será que é um mero fato a ser superado com um produto eficaz que o destrua e o torne coisa do passado, para que sigamos adiante na nossa trilha rumo a novos fatos e novos produtos?

    Cabe a pergunta colocada por Scheler: para onde o progresso nos levará quando tivermos suprimido o evento incômodo que dominou as manchetes em 2020 e continua dominando em 2021? De qualquer forma, nossa sofreguidão em livrarmo-nos da erva daninha e nossa frustração com aqueles que atrapalharam nossa trajetória determinarão muitos desdobramentos políticos no Brasil e no mundo: quem será sacrificado para suprimirmos o vírus letal?

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Modelos na história

Nas grandes instituições de educação pública, na repartição de prêmios, sempre o maior é destinado ao caráter; aquele que em todo ano desenvolveu maiores virtudes e menos defeitos; provasse bem como todos os homens estão concordes em que as bases principais da educação são o que decide a felicidade da vida, são as virtudes sociais; esta educação os mestres não podem dá-la. Só se aprende com o exemplo e assiduidade de quem ensina e o convence com razão; isto não quer dizer que sejam sempre virtuosas as pessoas que ensinam a praticar a virtude, mas precisam ao menos fingi-lo, ao pé dos que se educam, pois que pregar aos seus que não tenham medo, e mostre tê-lo, nunca poderá fazer um homem valoroso, e assim com as mais virtudes.

Trecho de carta escrita por Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho (1779-1855), aia de D. Pedro II (1825-1891), ao pai deste, D. Pedro I (1798-1834)

 

Sim, meu amado filho, é muito necessário, para que possas fazer a felicidade do Brasil, tua pátria de nascimento e minha de adoção, que tu te faças digno da nação sobre que imperas pelos teus conhecimentos, maneiras etc. etc., pois, meu adorado filho, o tempo em que se respeitavam os príncipes por serem príncipes unicamente acabou-se. No século em que estamos, em que os povos se acham assaz instruídos de seus direitos, é mister que os príncipes igualmente o estejam e conheçam que são homens e não divindades, e que lhes é indispensável terem muitos conhecimentos e boa opinião para que possam ser mais depressa amados do que mesmo respeitados. O respeito de um povo livre para com o seu chefe deve nascer da convicção que aquele tem de que seu chefe é capaz de o fazer chegar àquele grau de felicidade a que ele aspira, em assim não sendo, desgraçado chefe, desgraçado povo.

Trecho de carta escrita por D. Pedro a seu filho, D. Pedro II, em 12 de março de 1832, quando estava na Ilha dos Açores, a caminho da Europa

    Prezados leitores, os trechos que abrem este artigo foram retirados da biografia de D. Pedro II escrita por Paulo Rezzutti, intitulada D. Pedro II, A história não contada: O último imperador do Novo Mundo revelado por cartas e documentos inéditos. Rezzutti já havia escrito biografias sobre a Marquesa de Santos, sobre D. Pedro I e Dona Leopoldina, o que o faz um profundo conhecedor do Brasil Império. Em um país como a França, que dá e sempre deu muita importância aos historiadores, ele seria convidado até em programas de variedades na televisão para falar sobre seus livros e suas ideias. Aqui não me consta que a Fátima Bernardes tenha feito isso ou mesmo algum obscuro programa na Globo News que passe às 11 e meia da noite.

    Por que será que os franceses cultuam seus historiadores? Como tentei humildemente explicar aqui há duas semanas, a história é uma arte e não uma ciência, e em sendo assim, o mais que ela pode pretender é estabelecer uma narrativa dos fatos com base em determinados valores básicos. Não se deve esperar que os fatos históricos sejam estabelecidos de maneira incontestável, formulados em linguagem formal, tal como a matemática. O que se pode esperar é que a narrativa criada permita aos receptores dela uma visão do passado que norteie suas ações no futuro, já que o homem é sempre um ser que age com um objetivo.

    Esse objetivo da história, tão prezado pelos franceses, de ajudar o povo a caminhar e construir sua realidade com base naquilo que foi aprendido das experiências passadas, fica claro na correspondência que Pedro II manteve com seu pai, desde o momento em que este abdicou, em 1831, até o momento em que D. Pedro I, que de volta a Portugal adotou o título de Duque de Bragança, morreu em Queluz, em 1834. Desde quando seu filho tinha pouco mais de cinco anos Pedro I buscou dar-lhe conselhos sobre ser um bom governante. No trecho acima fica subentendida a menção à Revolução Francesa de 1789, que definitivamente tinha destruído a noção de direito divino dos reis. Um monarca que não trabalhasse em prol do bem comum, que não mostrasse resultados promovendo a prosperidade geral, não conquistaria nem respeito e nem amor, o que levaria à infelicidade tanto dele quanto dos súditos.

    Pedro II deu mostras de que ao menos apreendeu parte dos conselhos do pai e aprendeu com a própria trajetória política do nosso primeiro imperador, quando foi deposto em 15 de novembro de 1889, com um golpe do Exército. Conforme nos conta Rezzutti, o genro do imperador, o conde D’Eu, assim como os barões de Muritiba e Loretto, pensaram em colocar a família real brasileira no encouraçado chileno Almirante Cochrane, enquanto organizariam a resistência ao golpe. D. Pedro II foi veementemente contra a ideia, porque não queria uma luta fraticida no país. Nisso seguiu o exemplo dado por seu pai em 1831, o qual rechaçou a sugestão do então major Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, de retirar-se para a Fazenda Santa Cruz com a família e deixar que o Batalhão do Imperador convocasse as milícias para debelar a revolta dos brasileiros, que exigiam de D. Pedro I que punisse os portugueses que haviam causado distúrbios no Rio de Janeiro na Noite das Garrafadas, em 11 de março de 1831. No entanto, o então imperador preferiu abdicar para acalmar os ânimos do que derramar o sangue dos brasileiros.

    Este pequeno ato de D. Pedro II em 1889, no apagar das luzes da sua atuação no Brasil, emulando o apagar das luzes do governo de seu pai em 1831, mostra que a educação dada por D. Mariana ao vivo ao príncipe assim como a troca de cartas com o ex-imperador ao menos deram-lhe um senso de história, tanto pessoal da família dele, quanto política do então Império Brasileiro. Imbuído desse valor de evitar uma guerra civil em um país tão vasto e com tantas desigualdades regionais como o Brasil era no século XIX e como continua sendo no século XXI, D. Pedro II saiu da cena política brasileira de maneira digna, mantendo a compostura, honrando a tradição do seu pai e de sua mãe, que haviam criado um Brasil independente, mais ou menos unido em torno de um governo central.

    Esse esforço consciente de dar um sentido à história, de seguir modelos passados, foi totalmente deixado de lado na sociedade brasileira. A última eleição presidencial mostra nossa obsessão com o novo como necessariamente melhor simplesmente porque ele é diferente de tudo o que está aí. No primeiro turno, tínhamos outros candidatos com experiência administrativa no Executivo, com um currículo mais cheio de realizações concretas. Preferimos apostar em um deputado federal que nunca fora sequer prefeito de uma cidade do interior, que passava o tempo todo no Congresso atacando seus bodes expiatórios, e que agora faz o mesmo, incapaz que é de governar, pois lhe falta formação e bons modelos. O atributo de Jair Bolsonaro para ser eleito é que ele não participava de esquemas de corrupção e isso bastou para que, contraposto ao que estava imediatamente visível, ele fosse considerado pela população brasileira como apto para o cargo.

    Do alto da sua inexperiência, de sua incapacidade de dialogar com as pessoas, Bolsonaro teria sido um presidente sofrível, mas num momento de crise sem precedentes causada por um vírus que aparentemente escapou de um laboratório em Wuhan na China, Bolsonaro é um desastre. Uma pena que o estudo da história nacional seja de tal modo negligenciado que não consigamos ter modelos de caráter e conduta, que não tenhamos valores coletivos que nos unam e que certamente permitiriam que fizéssemos comparações e que tirássemos lições do passado. Se conseguíssemos ter esse senso de história, teríamos visto que Jair Messias Bolsonaro é um aloprado como Jânio Quadros, que ao menos não castigava a língua portuguesa como nosso presidente, com uma pitada de Tiririca (”aquele do lema “pior que tá não fica”).

    Prezados leitores, D. Pedro I e D. Pedro II, como o próprio Paulo Rezzutti mostra, tinham muitos defeitos, e talvez o principal deles é que nunca conseguiram enfrentar de fato o poder dos latifundiários escravocratas, mas de qualquer forma eles tinham claramente o senso do dever, de perseguir certos ideais, mesmo que muitas vezes não conseguissem atingi-los. O risco que corremos nas próximas eleições é de cairmos de novo na armadilha do voto contra, do voto destrutivo do presente sem consciência de aonde queremos ir no futuro. Para que as eleições de 2022 não sejam uma nova aposta no escuro, nós brasileiros teremos que nos perguntar “O que queremos?” ao invés de “Somos contra o quê? A leitura das biografias escritas por Rezzutti pode ser um bom ponto de partida para respondê-la.

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