O pequeno jardim de Epicuro

A glória do estado ateniense tinha acabado, e a filosofia teve que enfrentar o que para os gregos era um divórcio sem precedentes entre a política e a ética. Ela tinha que encontrar um modo de vida que fosse ao mesmo tempo aceitável para a filosofia e compatível com a impotência política. Assim, ela concebeu seu problema não mais como o de construir um Estado justo, mas o de formar um indivíduo satisfeito e auto-suficiente.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Não é possível viver de maneira prazerosa sem viver de maneira prudente, honrada e justa; nem viver de maneira prudente, honrada e justa sem viver de maneira prazerosa

Máxima atribuída a Epicuro (341-270 a.C.), filósofo nascido em Samos

Que o epicurismo tenha se tornado sinônimo de uma vida luxuosa deve-se ao fato de que Epicuro foi bastante vilificado pelos seus contemporâneos estoicos e por seus sucessores, que desprezavam o que lhes parecia uma visão grosseiramente materialista da doutrina epicurista. Isso é ainda mais enganador considerando a circunstância de que o círculo de Epicuro realmente levava uma vida frugal.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, “The Life of Greece” descreve as transformações por que passam as cidades gregas devido ao domínio por elas exercido pelo reino da Macedônia, primeiramente por Felipe II (359 a.C.-336 a.C.) e depois por seu filho, Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.). Sem entrar nos detalhes dos motivos, o fato é que Atenas, a pioneira da democracia e da filosofia, deixa de ser o império marítimo que era, que ditava regras às outras cidades-Estado que tinham feito parte da Confederação de Delos, formada em 476 a.C. para enfrentar o império persa. No final das contas, a democracia ateniense havia falhado em garantir a prosperidade, a paz e a estabilidade e não restavam opções em termos de regimes políticos para serem testados: a grande ideia do governo pelos cidadãos reunidos na Ágora e escolhidos por sorteio para exercer cargo público tinha se exaurido. Tal desilusão teve reflexos na mentalidade dos intelectuais da época, como mostra Durant em seu livro. Um dos reflexos deste cair das nuvens é a corrente filosófica do epicurismo.

    Se Sócrates e Platão haviam se preocupado com a questão de como criar um Estado bom e justo, isso não é mais um problema para os filósofos da época helenista, inaugurada pelo breve reinado de Alexandre. As disputas políticas entre democratas e aristocratas, entre populistas e tiranos eram coisa do passado e não tinham levado a nada. Se o indivíduo não podia realizar-se como animal político, o que restava a ele? E com o questionamento da religião e das histórias sobre os Deuses por Sócrates, passando pelos sofistas e cínicos nos séculos V e IV a.C., como era possível estabelecer regras morais que não tivessem respaldo em um legislador sobrenatural que estabelecesse o que era virtude e o que era vício ou em um regime político que definisse o que era justo e o que era injusto?

    A saída para alguns filósofos foi adotar como foco não a busca pela verdade nem pela justiça, mas a busca da felicidade individual. Se não havia como fundar a moral em fontes externas, porque a religião tradicional e o regime político haviam sido desacreditados, então que ela fosse fundada no próprio homem enquanto indivíduo, enquanto ser que experimenta sensações a partir das emanações dos objetos do mundo material e que raciocina com base naquilo que os seus sentidos lhe apresentam do mundo exterior. Uma moral não transcendental, mas natural, sem grandes aspirações metafísicas sobre chegar ao Bem supremo, inatingível pelo homem, que nunca conseguirá sair do seu quadrado de experiências sensoriais.

    Essa moral natural conjuga o corpo e a alma do homem para estabelecer as regras do bem viver. A chave reside em tornar a virtude não um fim em si mesmo, algo a ser perseguido com paixão dogmática, mas um instrumento para a vida feliz. A vida feliz é aquela em que a moderação e a prudência dão o tom, de modo a evitar os extremos que causam o sofrimento e a dor. Conforme a máxima de Epicuro, o fundador dessa corrente filosófica, a razão e a emoção devem temperar-se mutuamente.

    Entregar-se à paixão e ao desejo é prejudicial porque uma vez satisfeitos eles levam ao entorpecimento da saciedade. Considerando que a saciedade tem curta duração, o indivíduo passa a sentir-se insatisfeito de novo e vai atrás de outros desejos, numa perseguição febril de um horizonte que foge sempre e que só causa perturbação na alma.

    O ideal assim é um prazer passivo, que não seja fruto do desejo, mas da contemplação sóbria por parte do indivíduo dotado de razão que decide o que evitar e o que escolher em prol da felicidade, isto é, da ausência de dor e de sofrimento, em prol da tranquilidade do corpo e do espírito. Nada de lascívia, de cupidez, de gulodice: como descreve Bertrand Russell em sua história da filosofia ocidental, a transformação do epicurismo em sinônimo de vida luxuosa é uma conspurcação do ideário de Epicuro, cuja moral, focada no indivíduo e não na comunidade, faz do homem em si e por si mesmo sua própria bússola, valendo-se de sua capacidade de raciocinar com base em suas experiências e de decidir que rumo tomar para evitar os perigos.

    Daí a imagem de jardineiro de Epicuro. Ele cuida do seu pequeno jardim individual, evita entrar em disputas políticas que dão em nada, evita engajar-se na vida de maneira muito ativa, para proteger-se contra as incertezas de um mundo exterior cujos fundamentos religiosos e políticos viraram pó. É uma boa receita a ser seguida por alguém que está protegido pela cerca do jardim e que consegue manter as condições objetivas da sua vida controladas, mas para quem é atingido pela pobreza, pelo infortúnio, pelo luto de maneira inapelável, ela não vale de nada pois não dá esperança, nem consolo quando as cercas do jardim são destruídas e as plantas pisoteadas. Não admira que o epicurismo, conforme informa Russell, tenha sido adotado pelas classes altas de Roma no início do Império. No entanto, conforme denunciou Herégias de Cirene, considerando que para a maior parte dos pobres mortais a vida tem mais dor que prazer, mais sofrimento do que alegria, levada às últimas consequência uma filosofia moral naturalista como o epicurismo tinha como consequência lógica o suicídio.

    Prezados leitores, nesses tempos turbulentos de nossa democracia tropical, em que as disputas se tornam cada vez mais acirradas, rasteiras e destituídas de qualquer senso do bem comum, feitas de intrigas, fofocas e disputas pelo poder pelos membros da mesma patota de donos das prebendas e sinecuras, não é tentador refugiar-se no jardim de Epicuro? Ou será que de nada adianta cultivar o jardim se ele está rodeado pelos hipopótamos?

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Boas e más vontades

Não penses que o castelo do governo consiste de fortalezas, muralhas e trincheiras: ele se encontra no interior das consciências. […] A grandeza dos Estados não pode ser medida pelas extensões territoriais e latifúndios, mas pela lealdade, benevolência e respeito dos habitantes.

Trecho do discurso de despedida do Brasil pronunciado em 1644 por João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), capitão e almirante-geral do Brasil Holandês e citado no livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva

Decadentes com a guerra, endividados pelas altas taxas de juros que lhes eram cobradas, mas com o controle da produção do açúcar, esses senhores vieram a ser os responsáveis pelo declínio e perda do Brasil Holandês.

Trecho retirado do livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva

[…] na esteira de regimes escancaradamente brutais, como o nazismo, ou dissimulados mas também cruelmente eficazes, como os autoritarismos do Terceiro Mundo, requer-se certo esforço de reflexão para conceber a simbiose entre a carreira militar e o humanismo que caracterizava a antiga cultura aristocrática.

Trecho retirado do livro Nassau de Evaldo Cabral de Melo, escrito para a série Perfis Brasileiros

    Prezados leitores, na semana passada eu expus a ideia do que seria um regime político estável para Aristóteles, citando uma passagem do filósofo grego em que ele defende que a dominação da administração dos negócios públicos seja pelos mais ricos seja pelos mais pobres leva à tirania: no primeiro caso haverá concentração de riqueza e poder nas mãos de uma minoria, que se utilizará do seu poder de fogo para organizar a sociedade de acordo com seus próprios interesses, e no segundo caso a maioria de pobres fará valer sua voz por meio das instituições democráticas para vingar-se dos ricos e distribuir o dinheiro destes à força, levando à destruição da estrutura econômica. Assim, a estabilidade de qualquer regime político exige que haja uma classe média suficientemente robusta para servir de contrapeso às tendências de radicalização nos polos extremos da sociedade.

    Nesta semana meu objetivo é abordar um outro aspecto da estabilidade, qual seja, a adesão dos habitantes ao regime político, manifestada na boa vontade que mostram em fazer com que o sistema funcione. Para tanto, chamo a atenção para certos aspectos da breve passagem de João Maurício de Nassau pelo Brasil (1637-1644), como governador do Brasil Holandês, que compreendia desde o rio São Francisco na Bahia, até o Maranhão.

    Não há dúvida de que Nassau, depois de consolidar o controle militar holandês após a guerra de conquista das áreas produtoras de açúcar, procurou fazer com que a economia da colônia voltasse a funcionar. Para tanto, conforme explica Leonardo Silva em seu livro que reconta a história da presença holandesa no Brasil, João Maurício de Nassau colocou à venda engenhos pertencentes a luso-brasileiros que haviam sido abandonados e estavam em ruínas. Concedeu empréstimos aos produtores de açúcar para a recuperação das fábricas e dos campos e para a compra de escravos que repusessem a mão de obra perdida com fugas e mortes. Para garantir o suprimento de escravos aos engenhos, empreendeu expedições militares em possessões portuguesas na África (São Jorge da Mina, Golfo da Guiné, São Paulo de Luanda), levando a um aumento na importação de negros pela Companhia das Índias Ocidentais, que monopolizava tal comércio e que havia nomeado Nassau para o cargo de governador, capitão e almirante-geral das terras conquistadas no Brasil.

    Como mostra Evaldo Cabral de Melo em sua biografia deste conde nascido em Dillenburg que nos governou por sete anos, Nassau tinha uma formação humanista e cultivou ao longo da vida uma paixão pela jardinagem e pela paisagem, de acordo com o ideal de subordinação das armas à contemplação da natureza. Em 1642, Nassau fez plantar um jardim no Recife com pomar, açudes para a criação de peixes em cativeiro e animais. Tal jardim serviu de laboratório para membros da comitiva que o acompanhou ao Brasil, como o médico Willem Piso (1611-1678), o botânico, cartógrafo e astrônomo George Marcgrave (1610-1644) e o artista Albert Eckhout (1610-1664). Como resultado surgiram o Historia naturalis Brasiliae, o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, os Manuais e o Miscellanea Cleyeri com desenhos de animais, plantas, flores, frutos e figuras humanas. O Theatrum encontra-se atualmente na Biblioteca Jagelônica de Cracóvia, na Polônia.

     Esses valores humanistas também transparecem em muitas das obras que Nassau legou ao Brasil, a começar pela Cidade Maurícia ou Mauritstaad, na ilha de Antônio Vaz, projetada por Pier Post e que abrigava várias construções: o palácio de Friburgo ou palácio das Torres (construído em 1643 demolido no final do século XVIII em 1787, do qual hoje resta uma placa em uma praça em frente ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo do Estado de Pernambuco); o Palácio da Boa Vista (construído em 1643 e do qual hoje há restos) e o primeiro observatório das Américas. Para a população de baixa renda o governador fez construir a Nova Maurícia ou Nieuw Mauritsstad, entre a atual Igreja do Divino Espírito Santo, no Recife, e o forte das Cinco Pontas.

    Tantas realizações, típicas de um homem com sólida formação intelectual que colocou em prática aquilo para o qual havia sido educado, realizando assim suas aspirações humanistas. E no entanto, como ele mesmo reconheceu em sua despedida do Brasil, a estabilidade e a prosperidade de um Estado requer que os governantes conquistem o coração dos habitantes e isso os holandeses não souberam fazer. Os senhores de engenho nunca aceitaram a presença estrangeira no país, seja porque deviam muito dinheiro à Companhia das Índias Ocidentais, seja porque os luso-brasileiros e neerlandeses nutriam aversão mútua. Se a princípio os luso-brasileiros recuaram e fugiram para outras regiões onde não havia a presença holandesa, o fato é que eles continuaram a controlar a principal atividade econômica, a produção de açúcar, o que na prática colocou os conquistadores em uma posição isolada econômica e geograficamente: os neerlandeses concentravam-se no Recife, a cidade reurbanizada e embelezada por João Maurício, e dedicavam-se ao comércio. Com o tempo, o ressentimento criado pela exigência da Companhia das Índias Ocidentais de receber cada tostão emprestado aos senhores de engenho e o fato de os habitantes da terra terem uma presença em todo o interior do território deu aos luso-brasileiros o ímpeto para iniciar uma guerrilha nativista e aos poucos desafiar a supremacia militar holandesa, o que culminou com a expulsão definitiva dos holandeses em 1654, dez anos depois da saída de Nassau, descontente que estava com os rumos puramente mercantilistas que a WIC dava ao empreendimento colonial no Brasil, que para João Maurício, inviabilizava qualquer possibilidade de ganhar a adesão dos habitantes e portanto uma presença de longo prazo.

    Prezados leitores, a lição que fica para nós que estamos em pleno século XXI tentando manter nosso regime político em meio à inflação, ao desemprego e ao aumento da pobreza é que há uma dimensão da estabilidade que vai além das condições materiais da vida: sem a boa vontade dos governados para acatar as decisões dos governantes, para colaborar em prol daquilo que foi decidido como o rumo a ser seguido, resta aos que estão no poder lidar com o comportamento de guerrilha daqueles que não têm compromisso nenhum com o que está sendo proposto e que com sua má vontade sistemática acabam minando as bases do regime vigente. Será que nós brasileiros conseguiremos ser benevolentes, leais e respeitosos com quem quer que seja eleito no ano que vem ou continuaremos com má vontade e empregando nossas táticas de guerrilha, entre elas o uso do Judiciário para tentar ganhar disputas políticas por outros meios? Aguardemos.

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1% x 99%: onde fica a democracia?

O verdadeiro patriota em uma democracia deve tomar cuidado para que a maioria não fique muito pobre… ele deve envidar esforços para que eles possam usufruir prosperidade eterna; e pelo fato de isso ser vantajoso para os ricos, o que pode ser salvo do dinheiro público deve ser dividido entre os pobres em tal quantidade que possa permitir-lhes comprar um pequeno lote de terra. […]Sempre que o número daqueles no estrato médio da sociedade tornou-se pequeno demais, aqueles que eram mais numerosos, sejam os ricos ou os pobres, sempre os subjugaram e assumiram eles mesmos a administração dos negócios públicos … Sempre que ou os ricos dominam os pobres ou os pobres dominam os ricos, nenhum deles estabelecerá um estado livre.

Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, citando o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

Basicamente a filosofia americana é que a maneira de impedir o desenvolvimento de uma classe média independente é mantê-la tão endividada que ela tem que trabalhar e fazer dívidas ou então abandonar uma educação cara, não ser contratado e passar fome.

Trecho da fala sobre os empréstimos estudantis nos Estados Unidos de autoria de Michael Hudson (1939-), economista americano e professor da Universidade de Missouri, em sua conversa com Thomas Piketty (1971-), economista francês autor do livro “O Capitalismo no Século XXI”

    Prezados leitores, para uma pessoa que como eu foi criança na década de 1980, passou por n planos econômicos e lembra da pasta que Ernane Galvêas (1922-), Ministro da Fazenda do Brasil de 1980 a 1985, carregava nas suas idas a Washington para negociar novos empréstimos com o FMI, é difícil acreditar em economistas. Nós seguimos muitas receitas de economistas ao longo das última quatro décadas: planos ortodoxos, planos heterodoxos, desindexações, paridade cambial, arrochos salariais, aumento de impostos, alta das taxas de juros, limitações à aposentadoria, teto fiscal.

    Os magos da economia e seus defensores na imprensa nunca deixaram de prometer o caminho da prosperidade e do desenvolvimento se nós fizéssemos os sacrifícios que eles nos propunham e agíssemos com o bom senso que eles nos mostravam com condescendência. No mais das vezes, o que nos foi entregue foram períodos de prosperidade seguidos de grandes ressacas. Assim ocorreu com o milagre econômico de 1969-1973, que foi seguido por dois choques do petróleo, em 1973 e 1979; e mais recentemente, no boom das commodities de 2000 a 2014, que foi seguido por um período de recessão econômica entre 2014 e 2016 e agora pela crise da pandemia de COVID-19.

    No entanto, há um economista que não deixo de ler e de ouvir justamente porque o que ele propõe nunca será executado, a não ser que a situação chegue ao extremo que descreveu Aristóteles há mais de 2.000 anos, conforme o trecho que abre este artigo: quando a classe média se tornar tão inexpressiva que só restará o radicalismo, seja dos ricos concentrando toda a riqueza, seja dos pobres, tomando dos outros por meio da revolução. Refiro-me a Michael Hudson, que no dia 26 de setembro trocou ideias com Thomas Piketty sobre a desigualdade e os impactos dela no mundo. O foco de Hudson são os Estados Unidos, mas as lições que ele dá podem ser muito bem aproveitadas por nós brasileiros, como tentarei mostrar aqui explicando as ideias dele.

    Foi-se o tempo do capitalismo industrial, que gerava empregos, consumo e renda, num círculo virtuoso de aumento do bolo para todos, conforme ocorreu nos Estados Unidos desde o século XIX até a década de 60 do século XX. Agora o que predomina, mais acentuadamente desde as duas últimas décadas do século XX,  é o capitalismo financeiro, isto é, o cerne da atividade econômica sai da produção para a intermediação financeira, que como antípoda do primeiro tem seu próprio círculo vicioso: desemprego, perda do poder de compra e dívida, para compensar a perda do poder de compra. A intermediação financeira está em toda parte: quem quer comprar uma casa ou carro pega um empréstimo no banco e dá como garantia a casa ou carro financiado; quem quer comprar bens de consumo não duráveis usa o cartão de crédito e vai pagando as prestações a perder de vista, com os juros embutidos; quem quer frequentar o ensino superior contrata um empréstimo e ao terminar a faculdade já sai endividado e a única maneira de honrar a dívida é conseguir um emprego, sendo obrigado a comprometer uma parte da renda do salário com o pagamento do principal e dos juros por anos a fio.

    A predominância desse tipo de capitalismo é possível porque o governo, dominado pela agenda do 1% da população mais rica, viabiliza essa ciranda financeira. Os bens públicos, como serviços de água, eletricidade, esgoto, transporte, são vendidos a bem do enxugamento da máquina estatal e viram monopólios privados, que cobram as tarifas altas o suficiente para cobrir o custo dos empréstimos que as empresas tomam para adquirir tais monopólios. Quando o Banco Central americano atua para estimular a economia com juros baixos, esse excesso de liquidez é capturado pelas instituições financeiras, que reciclam esse dinheiro para empresas comprarem outras empresas ou para fecharem o seu próprio capital, comprando suas próprias ações na bolsa para aumentar o lucro dos executivos que são remunerados em parte com bônus de ações. Quando tais instituições emprestam para indivíduos, elas o fazem sempre mediante garantia de algum ativo, o que leva ao aumento do preço dos imóveis, criando uma falsa sensação de riqueza, pois que o valor do imóvel será sempre proporcional à hipoteca que recai sobre ele.

    Não havendo investimentos na produção de bens reais, não há geração de empregos que agregam valor ao longo da cadeia industrial. A classe média consegue manter-se à tona unicamente na base dos empréstimos que são eternamente rolados. Assim, tem-se uma divisão clara entre o 1% credor que concentra o capital e ganha dinheiro pela multiplicação do capital emprestado devido aos juros compostos que incidem sobre os empréstimos, e os 99% que concentram as dívidas e têm pouca ou nenhuma renda disponível quando descontadas as despesas obrigatórias com amortização de dívidas e pagamentos por serviços não fornecidos pelo Estado, como saúde e educação.

    Tanto Hudson quanto Piketty concordam que há uma desigualdade cada vez maior devido a esse círculo vicioso financeiro. Eles divergem, no entanto, sobre o que fazer. Para Piketty, é preciso taxar a riqueza e distribui-la, tal como preconizou Aristóteles em sua receita para um regime estável de governo. Hudson considera ser isso inviável, pois os ricos sabem esconder seus proventos: eles criam empresas em paraísos fiscais e recebem dividendos como acionistas e conseguem camuflar o lucro por meio de esquemas de preços de transferência pelos quais a receita da pessoa jurídica é gerada para fins contábeis em jurisdições em que a renda é pouco taxada. Para ele, a única maneira de fazer com que a classe média dos Estados Unidos possa ser colocada de novo de pé, livrando-a dos grilhões que a encerram, é um cancelamento unilateral das dívidas, sejam hipotecas, empréstimos estudantis, financiamento de veículo. É claro que no atual sistema político americano, em que os interesses da maioria da população não são levados em conta, não há chances de isso ocorrer: o resultado será mais desigualdade, mais concentração de poder nas mãos dos ricos e, como ensinou Aristóteles, mais tirania e menos liberdade.

    Nesse sentido, o filósofo grego considerava que o sistema ideal era aquele em que os membros da classe média fossem em um número tal que fizesse com que a maioria da população tivesse interesse em manter a paz e a prosperidade pelo fato de que cada um dos cidadãos tinha algo a perder se houvesse violência e revolução. Numa situação em que uns têm tudo a perder e outros têm tudo a ganhar se as coisas forem mantidas exatamente como estão ou se forem modificadas totalmente, a instabilidade torna-se uma constante e com ela a tendência ao radicalismo dos poucos privilegiados ou dos muitos oprimidos.

    Prezados leitores, considerando que por aqui no Brasil estamos aparentemente voltando à época da estagflação dos anos 80, com alto desemprego, corrosão do valor da moeda e do poder de compra, a descrição dos problemas econômicos dos Estados Unidos por Michael Hudson e as lições de Aristóteles sobre os desafios de qualquer regime político levam-nos a perguntar: o que será da nossa democracia nos próximos anos? Será que ela sobreviverá incólume a uma ou talvez mais de uma década perdida?

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Mnemosine e as Musas

Despertando nossos sentimentos mais profundos e depois acalmando-os por meio de um desenlace apaziguador, o drama trágico nos oferece uma expressão, inofensiva e ao mesmo tempo capaz de atingir as profundezas da nossa alma, de emoções que de outra forma se acumulariam como neurose ou violência; ele mostra dores e tristezas maiores que as nossas e nos manda para casa de alma limpa e purificada.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, explicando o pensamento estético de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

Um mundo inteiramente sem arte seria pior do que invisível, inaudível, inefável e intangível. Seria um mundo sem a dimensão temporal, seria um mundo do qual a mente humana não conseguiria lembrar. A memória do homem é única na sua capacidade não somente de recordar, mas também de utilizar o passado e aplicá-lo; e melhor ainda, recriá-lo, de forma a tornar-se parte do momento presente, o que é o mais perto da eternidade a que podemos chegar. A memória humana é nada menos do que a origem da arte.

Trecho retirado do artigo “The World of Art”, escrito por Mark Van Doren (1894-1972), poeta e crítico literário americano, para a edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei a personagem Lukéria de Turguêniev, uma camponesa de destino trágico que enfrenta o sofrimento e a solidão criando para si um ambiente de paz e de beleza em que a fruição dos sons e das cores ao seu redor lhe permitia não cair no desespero. A sabedoria e resignação da moça eram instintivas, fruto da fé cristã e da vivência cotidiana de opressão e injustiça dos servos na Rússia do século XIX. Devo neste momento acrescentar uma informação que será pertinente para meu tema de hoje, qual seja, a função da arte na vida do homem enquanto indivíduo. Quando li o conto “Relíquia Viva” chorei copiosamente, passando pelo rito de catarse detalhado há mais de dois mil anos por Aristóteles na sua obra “Poética”.

    Conforme o trecho que abre este humilde artigo, explicando o modo de funcionamento da tragédia, a dor e a injustiça do amor e da vida perdidos por Lukéria devido ao seu acidente reavivaram em mim experiências passadas. Não que eu tenha sido algum dia uma camponesa trabalhando de sol a sol e sem acesso a nenhuma assistência médica como era o caso da heroína de Turguêniev. Longe disso. Tive o privilégio de nascer no século XX e ter tido anos de estudo que me permitiram ter um emprego que não me leva à exaustão física. Por outro lado, a descrição do autor é tal que, apesar dos quase duzentos anos que me separam de Lukéria, eu consigo me identificar com ela porque como ser humano que sou, guardadas as devidas proporções, já sofri e me senti injustiçada.

    Daí que quando a descrição que Lukéria faz da sua humilde vida ao seu patrão, fechada em um galpão sem poder movimentar-se e definhando aos poucos, foi despertando em mim uma emoção profunda, que culminou no choro. Eu qualifico essa experiência como catártica porque, como explica Aristóteles, o receptor da arte, seja o leitor, o ouvinte, o espectador, sai dela melhor do que entrou: ele aprende algo novo sobre si mesmo que o tranquiliza, pois o conecta à experiência de outros indivíduos que partilham a mesma natureza. A moral da história é que meus dissabores são colocados no seu devido lugar: não são nem maiores nem piores do que aqueles vividos por outros homens e mulheres antes de mim.

    Sob essa perspectiva, não é de estranhar que os gregos fizeram a Memória, a deusa Mnemosine, por meio de sua conjunção com Zeus, a mãe das Musas, as nove deusas que presidiam as artes liberais na mitologia, conforme explica Mark Van Doren em seu artigo. Criar e experimentar a arte são ambos atos de rememoração de um momento, de uma situação, de um sentimento que já foram vividos, e que recebendo uma expressão artística renascem a cada vez que tal expressão é capaz de despertá-los no receptor. Portanto, sem memória para inspirar a produção da arte pelo autor e sua fruição pelo receptor não há obra artística e sem obras artísticas o mundo não se tornaria presente para o homem. Nossa experiência da realidade seria uma impressão fugaz que jamais se consolidaria na nossa mente, pois seria desprovida do sentido dado por sua expressão formal e do valor dado pelas emoções que atribuímos a ela e que a expressão formal permite sejam gravadas para sempre em nossa memória.

    A função da arte, independentemente do seu papel na conscientização sobre o cenário político, econômico e social, foi lembrada em um artigo publicado na revista The Economist, edição de 21-27 de agosto, que menciona o livro escrito por Joseph Luzzi “In a Dark Wood”, publicado em 2015, que conta como a Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) ajudou o autor a lidar com a morte da esposa, Katherine Mester, grávida de oito meses e atropelada por uma van quando saía de um posto de gasolina.

    Assim como o poeta italiano teve a vida despedaçada quando foi exilado de Florença em 1301, devido a disputas políticas, Joseph se viu de repente um viúvo e pai de uma bebê que nasceu de uma cesariana de emergência realizada em Katherine. A dor de Dante em perder tudo que lhe era caro, expressa nos versos da Divina Comédia, é a dor do professor do Bard College ao perder sua mulher. Desse modo, o luto vivido por Dante e recriado por meio de usa obra-prima é relembrado e presentificado por Joseph ao lê-la quase 700 anos depois. E nesse rito a experiência humana ao longo dos séculos e das diferentes civilizações que foram criadas e destruídas no curso da História se torna sempre única a cada nova presentificação e ao mesmo tempo universal pela sua eterna rememoração. Mnemosine e as Musas, mãe e filhas, inseparáveis.

    Prezados leitores, para Aristóteles “a natureza exige que devamos ser adequadamente empregados, mas que sejamos capazes de aproveitar o lazer de maneira honrosa”. Se Lukéria o fazia contemplando a Natureza até onde lhe era possível, dadas suas limitações físicas, hoje na nossa realidade urbana reencenar o mito de Mnemosine engendrando as Musas, a Memória originando a Arte, e assim nos conectar à humanidade como um todo por meio da beleza é o meio mais factível de viver uma vida feliz, como pregava o filósofo grego. Que esses tempos de ansiedade e angústia causadas pela pandemia da covid-19 sirvam para que possamos perceber a função da arte na nossa vida.

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De Diógenes a Lukéria

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem de ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

 

A metafísica parecia também aos Cínicos um jogo vão; deveríamos estudar a natureza não para explicar o mundo, o que é impossível, mas de forma que possamos aprender a sabedoria da natureza como um guia para a vida. A única filosofia verdadeira é a ética. O objetivo da vida é a felicidade, mas será encontrada não na busca pelo prazer, mas em uma vida simples e natural, independente tanto quanto possível de todas as ajudas externas.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Era uma espécie de atitude oportunista em relação à vida, pegando com ambas as mãos as coisas quando estavam disponíveis, e ao mesmo tempo não reclamando quando os tempos eram de vacas magras, aproveitando a vida quando ela podia ser aproveitada, mas aceitando os caprichos da fortuna com um dar de ombros. É a partir dessa elaboração da doutrina que a palavra “cínico” adquiriu seu sentido pejorativo.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, há duas semanas eu abordei a escola de pensamento dos sofistas da Antiga Grécia e tentei mostrar como eles plantaram a semente da dúvida sobre a possibilidade de explicações cosmológicas sobre a origem do mundo e sobre a existência dos deuses, considerando-as abstrações vagas, e propondo a retórica como um exercício de argumentação válido porque útil para agir na sociedade. Na semana passada, meu foco foi o escritor russo Ivan Turguêniev, mostrando exemplos do retrato que ele nos dá sobre a vida de servos e senhores na Rússia do século XIX. Nesta semana meu objetivo será valer-me dos ensinamentos de Will Durant sobre a escola de pensamento dos cínicos para mostrar o poder de Memórias de um Caçador no despertar da consciência dos russos sobre o que era a vida dos mujiques.

    Segundo Durant, depois que os sofistas abriram a porteira das especulações sobre se era válido falar sobre aquilo que estava além dos sentidos do homem (a metafísica), surge para a filosofia grega do século IV antes de Cristo um leque de possibilidades, dentre elas a visão dos cínicos, cujo grande expoente foi Diógenes (404 ou 412 a.C. – 323 a.C.). Conforme o autor de “The Life of Greece” explica no trecho que abre este artigo, para os cínicos a única investigação filosófica válida era sobre a ética. A metafísica não levava a nada, pois o homem jamais conseguiria explicar o mundo. A razão humana seria mais bem empregada se ela estabelecesse as regras do bem viver, e viver bem nada mais era do que aproveitar aquilo que a vida nos dá, o que não é muito, pois estamos sujeitos a forças que não podemos controlar nem entender, mas pode ser o suficiente se agirmos de forma a diminuir o sofrimento renunciando à busca desenfreada pelo prazer e contentando-nos com prazeres simples que para se concretizarem só dependem da ação individual, e não de o homem contar com uma confluência favorável de fatores externos a ele. Não admira que os herdeiros dos cínicos tenham sido os estoicos, que floresceram no período helenístico (323 a.C.-146 a.C.) e pregavam a coragem ante a adversidade e o perigo, e o desapego aos bens materiais, para não falar dos monges do Egito no início do cristianismo.

    Paciência para saber que não há mal que sempre dure e bem que nunca termine, força moral para seguir seus princípios sabendo que a virtude é sua própria recompensa, independentemente da existência de uma justiça divina. Diógenes estabeleceu as linhas mestras de uma ética que surgida na Grécia impregnará a religião cristã. É neste ponto que entra a personagem Lukéria, cujas palavras ao narrador-caçador, já descrito na semana passada neste meu humilde espaço, abrem este artigo.

    O narrador-caçador encontra Lukéria por acaso. Pernoitando em um sítio de sua mãe, ele passeia pelo jardim de manhã e acaba chegando a um galpão de vime, onde fica uma camponesa que tem ao redor de 28 anos. Devido à cor lívida da sua pele, ao pouco cabelo e à magreza o narrador não reconhece Lukéria que outrora fez parte da juventude do patrão, pois ela era então bonita, roliça, dançava bem e tinha uma grande alegria de viver. Depois de reconhecê-la por ela ter falado quem era, o filho e herdeiro da patroa, mostrando sempre a empatia pelo sofrimento alheio, ouve pacientemente a história da mujique.

    Sua saúde deteriorara-se depois que ela, estando prestes a casar-se, caiu de uma ribanceira e algo partiu dentro dela, levando-a a definhar a tal ponto que não consegue mais se movimentar. Lukéria passa 24 horas por dia dentro do galpão, dependendo de pessoas caridosas que lhe levem alguma comida. O patrão, bondoso, pergunta o que ele pode fazer por ela e se não seria o caso de chamar um médico para minorar-lhe o sofrimento. Lukéria responde – cinicamente, estoicamente ou de maneira cristã que só Deus sabe do que ela precisa, e por isso não vale a pena pedir. Na verdade, ela tem tudo de que precisa: paralisada e solitária, a camponesa outrora bela, jovem e ativa, com a vida pela frente, preenche o tempo ouvindo os barulhos da natureza e dos animais, deleitando-se com a mudança das estações e observando o comportamento dos seres vivos ao seu redor.

    Sem desejar nada que esteja fora do seu alcance e sem revoltar-se com o destino cruel que lhe foi reservado, de morrer sozinha, sem marido e sem filhos, Lukéria só pede uma coisa ao narrador-caçador: que ele convença a mãe dele que diminua os impostos que os mujiques pagam. O patrão promete que vai falar com a mãe, mas ao final do conto ele só nos informa que Lukéria morre algum tempo depois, mas não nos diz se de fato ele falou e se de fato a mãe diminuiu a carga de tributos sobre os pobres camponeses. Aí está a habilidade de Turguêniev: ao criar um patrão que mostra empatia, mas que jamais passou pelas tribulações por que passam os camponeses, contrapondo-o a uma mujique cuja enorme força espiritual é proporcional ao seu martírio em vida, o autor de Memórias de um Caçador não doura a pílula. Os patrões gozam da posição privilegiada de poderem ser bondosos e simpáticos, justamente porque jamais terão que trocar de papeis com seus mujiques, que carregam o fardo das injustiças e dos sofrimentos com a resignação que lhes é esperada, mas que no final das contas é a única alternativa possível em não havendo mudança nas condições sociais e econômicas.

    Prezados leitores, de Diógenes, um banqueiro falido de Sinope, na atual Turquia, a Lukéria, a camponesa russa criada por Turguêniev para mostrar o flagelo da servidão e a dignidade de pessoas que apesar de tudo aproveitam ao máximo as migalhas que a vida lhes dá, há um hiato de mais de 2.000 anos que não faz perecer os ensinamentos éticos dos cínicos. Ao contrário, livres das reviravoltas que a metafísica deu ao longo da História Ocidental, passando pela filosofia grega, pelo cristianismo, pela Revolução Científica, pelo Iluminismo e por nosso mundo pós-moderno e pós cristão, tais ensinamentos servem de guia para a vida e de chave para entender as nuances da descrição que o autor de Memórias de um Caçador nos legou sobre o que era ser na prática ser oprimido sob a servidão.

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