Levantados do chão ou presos a ele?

Ao apuramento do saldo importa pouco que tenham morrido aos milhões por inundação natural, revolvimento de enxada ou desafio de micções: quem viveu, comeu, quem morreu deixou aos outros. A natureza não conta mortos, conta vivos, e, quando estes lhe sobejam, arranja uma nova mortandade.

Trecho retirado do livro Levantando do Chão, do escritor português José Saramago (1922-2010)

Para o homem aqueu, a vida humana vale pouco; tirá-la não é grave; um momento de prazer pode substituí-la. Quando uma cidade é capturada os homens são mortos ou vendidos como escravos; as mulheres tornam-se concubinas se são atraentes, ou escravas se não são. […] Ele mora em um mundo em desordem, assediado, faminto, onde cada homem tem que ser seu próprio policial, de prontidão com uma flecha e uma lança e com a capacidade de olhar de maneira calma para o sangue que escorre. “Uma barriga vazia,” como explica Ulisses, “nenhum homem pode esconder… Por causa dela os navios são feitos que levam o mal aos inimigos no mar revolto.”

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

    Prezados leitores, a vida da Grécia Antiga, tal como contada por Will Durant, passa por várias etapas em que a história se mistura aos mitos. Na semana passada, mencionei a figura mítica do Minotauro, ligada à civilização minoica que se desenvolveu em Creta. Nesta semana, cabe menção aos aqueus, que Durant define como os gregos da Idade Heroica, isto é, os gregos que lutaram contra os troianos e cuja epopeia foi narrada na Ilíada de Homero. Graças às escavações de Heinrich Schliemann (1822-1890) no que hoje é a região da Anatolia, na Turquia, sabe-se que Troia realmente existiu. Nesse sentido, considera-se que os acontecimentos e os personagens da Ilíada – Aquiles, Menelau, Príamo, Helena, Agamenon dentre outros – têm um fundo de verdade histórica recontada ao longo dos séculos pelos gregos para criarem sua própria narrativa e assim consolidar seus próprios valores.

    A Guerra de Troia, para além da versão homérica de que foi desencadeada pelo rapto de Helena, é a disputa pelo Helesponto, que atualmente tem o nome de estreito de Dardanelos e cuja localização era estratégica, pois dava acesso às terras do Mar Negro.  E eram de terras que os gregos precisavam, premidos pelo excesso populacional, pela fome, pela inconstância da produção agrícola. Pobres homens que ainda não viviam sob o signo da tecnologia como nós, que dela podemos depender para que a Natureza não nos pegue de surpresa com secas, inundações, terremotos, epidemias.

    E o que fazer nessas terras? No longo prazo colonizá-las, no curto prazo certamente saqueá-las, aproveitar a riqueza já produzida por aqueles que estavam lá antes e que foram subjugados na conquista. Aos perdedores, cabe a morte, a escravidão, e na melhor das sortes para as mulheres bonitas, tornar-se parte de um harém.

    Nessa luta pelo pão de cada dia, vale tudo. Ao comentar em linhas gerais os episódios narrados nos 24 capítulos da Ilíada, Durant realça o que era considerado pecado e virtude neste mundo hostil: ser gentil, perdoar ofensas, ser fiel, trabalhador e honesto é contraproducente, pois a possibilidade constante de guerras pela disputa de territórios faz com que aquilo que ajuda o homem a prosperar em tempos de paz certamente lhe será fatal no momento de uma invasão por um povo inimigo. Por isso é preciso saber lutar, mentir, matar, trair, tudo para garantir sua sobrevivência e da sua família. A Ilíada tem versos cuja beleza foi uma das matrizes da literatura ocidental (aliás, a título de curiosidade, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, recita-os em grego no original, confiram no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=VzJQ0TcBmqU), mas ela não deixa de ser uma obra que faz do terror algo bonito: o terror da opressão pela força, do destino infeliz, da humilhação infligida pelos vencedores, dos caprichos insondáveis da Natureza.

    E assim, os gregos, ouvindo a bela poesia da Ilíada, forjaram seus mitos e seu modo de ser, levando-os a lançarem-se na exploração do Mediterrâneo e a fundarem cidades ao longo da costa que se transformaram na Magna Grécia. Quando estive no Museu do Parthenon, em Antenas, o que saltou aos meus olhos foi a estética da guerra: como aqueles homens e seus  cavalos, no calor da refrega, são belos porque são fortes, porque lutam e porque o fazem com orgulho e com dignidade, altaneiros. A narrativa da vida como luta incessante em um mundo hostil impulsionou o povo grego em seu brilhante percurso histórico, em que a necessidade de conquista misturou-se à curiosidade pelo novo e lhes permitiu lançar as bases da civilização ocidental. Afinal, como aponta Durant, em nossa época “grandes nações conquistam e subjugam povos indefesos sem perder a dignidade ou a retidão moral”. Em suma, o Império Romano, o Império Napoleônico, o Império Britânico, o Império Americano, têm todos como origem espiritual a narrativa homérica da Guerra de Troia.

    Se a concepção da natureza hostil foi fonte de inspiração para os gregos lutarem e vencerem, ela adquire uma conotação totalmente diferente na obra de José Saramago, escritor já citado neste meu humilde espaço inúmeras vezes. Em Levantado do Chão, obra em que ele conta a saga de uma família de lavradores portugueses, os Mau-Tempo, no início do século XX, tal concepção não é fonte de transcendência, de sublimação: a natureza indiferente ao destino dos indivíduos, tal como retratada no trecho citado acima, serve para que Saramago narre a antiepopeia. Os desafios do mundo não fazem o homem superar-se, heroificar-se, ao contrário: torna-o preso às condições materiais adversas, preso num círculo vicioso de exploração pelos poderosos em que não se pode contar com proteção nenhuma: Deus não ajuda os pobres porque a religião acoberta a vileza dos ricos permitindo que eles permaneçam impunes, e a Natureza, quando resolve manifestar-se, trucida os pobres como moscas, vulneráveis que estão pela fome e pela ignorância. Uma visão pessimista, certamente, mas que não deixa de ser bela, pois revela uma verdade fundamental da vida a respeito de como o sistema econômico transforma o homem em besta de carga dócil e dispensável, pois que pode ser substituída facilmente. Independentemente das convicções marxistas ou comunistas de Saramago, não há como negar-lhe a capacidade que ele tem de nos mostrar como os pobres se encaixam no esquema geral das coisas, tornando-se invisíveis aos olhos dos privilegiados: sem alma, sem sentimentos, reduzidos a sua utilidade ou não para o trabalho.

    Prezados leitores, a perspectiva histórica sempre nos permite lançar luz sobre nossos próprios problemas contemporâneos. As guerras contínuas nos primórdios da civilização grega e a exploração agrícola baseada no latifúndio que ainda vigorava no Portugal do começo do século XX mostram que a luta do homem, gloriosa ou inglória, continua mais viva do que nunca. Nós, que há dois anos achávamos que o mundo era cheio de oportunidades de consumo, de viagens, de trabalho, vimo-nos sermos vítimas de uma peça pregada pela Natureza, que fez surgir de repente uma peste até agora incurável, uma legião de miseráveis que perambulam pelas ruas procurando no lixo restos de comida e uma grande insegurança em relação ao futuro. O que faremos? Consideraremos tudo isso um desafio que nos levará a olhar para o céu ou um fado que nos levará a olhar para o chão?

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Destruição

Nosso cérebro consegue formar uma ideia somente a partir dos dados que circulam em um determinado momento; e os dados disponíveis são criados pelos poderosos atuais, pelas modas em voga e pela opinião aceita. Se continuamos a negligenciar outras áreas do passado, os espaços em branco em nossa mente são reforçados e amontoamos cada vez mais conhecimento naqueles compartimentos dos quais já sabemos. O conhecimento parcial torna-se cada vez mais parcial e a ignorância perpetua-se a si mesma.

Trecho retirado do livro “Vanished Kingdoms – The History of Half-Forgotten Europe”, do historiador inglês Norman Davies

Talvez lá também, como em todas as culturas em decadência, o controle populacional tenha ido muito longe e a reprodução foi deixada a cargo dos fracassados. Talvez, à medida que a riqueza e o luxo aumentavam, a busca do prazer físico minou a vitalidade da raça e diminuiu sua vontade de viver ou de defender-se; uma nação nasce estoica e morre epicurista. Possivelmente o colapso do Egito, depois da queda de Akhenaton, afetou o comércio entre Creta e o Egito, diminuindo a riqueza dos reis minoicos. Creta não tinha grandes recursos internos; sua prosperidade exigia o comércio e mercados para suas indústrias; como a Inglaterra moderna, ela tinha se tornado perigosamente dependente do controle dos mares. Talvez guerras internas dizimaram a população masculina da ilha, deixando-a desunida frente a um ataque estrangeiro. Talvez um terremoto fez o palácio tremer até virar uma ruína ou uma revolução raivosa vingou-se em um ano de terror as opressões acumuladas ao longo de séculos.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre um fictício proprietário de terras na Rússia do século XIX, Kostanjoglo, para quem a pessoa que não trabalha, que não consegue realizar nada porque não segue sua vocação natural, presta um desserviço à humanidade e a Deus, principalmente, que criou tudo e deve ser imitado. Nesta semana, meu enfoque será no polo oposto, o da destruição e para tanto citarei dois historiadores.

    O primeiro já é conhecido daqueles que me acompanham regularmente, Will Durant, pois em vários artigos eu comentei trechos de seu livro sobre o Renascimento. Will Durant é autor de uma História da Civilização juntamente com sua esposa, Ariel Durant. No volume aqui citado, seus olhos se voltam para a civilização grega, e para começar seu percurso ele descreve Creta, que foi a primeira civilização europeia, a qual deixou muitas contribuições no reino da pintura, da escultura, da produção de cerâmicas, da arquitetura e da criação do sistema de coleta e descarte de efluentes mais sofisticado da Antiguidade, que depois de 4.000 anos ainda funciona. Para situar o cidadão do século XXI, basta dizer que a ilha de Creta é a terra do Minotauro, um ser mítico, filho de Parsífae, esposa do rei Minos, e de um touro por quem a rainha se apaixonou. O rei manda prender este bastardo, metade homem, metade touro, no labirinto, que nada mais é do que o Palácio do rei Minos em Knossos, cujas ruínas, reveladas pelas escavações comandadas pelo arqueólogo britânico Arthur Evans (1851-1941), ainda podem ser vistas naquela ilha que hoje em dia faz parte da Grécia. Eu mesma estive lá e pude ver um afresco representando o Minotauro. Aliás, não faltam exuberantes representações artísticas do touro no Museu Arqueológico de Heraklion, a capital, já que o animal era cultuado como símbolo de fertilidade. As mulheres de Creta eram famosas por usarem jaquetas curtas, deixando os seios à mostra. Usando colares e pulseiras eram o cúmulo da elegância, podem crer!

    Infelizmente a escrita minoica ainda não foi decifrada, então não se sabe ao certo da história de Creta e o que causou o incêndio e a destruição do palácio em Knossos. Durant tece hipóteses, conforme o trecho citado na abertura deste artigo, tecendo paralelos com outras épocas e outros povos, que ele apenas sugere ao leitor informado, o que faz com que a descrição das vicissitudes da civilização minoica adquiram um sentido para nós em pleno século XXI da Grande Transformação que está sendo causada pela epidemia de COVID.

    Terá Creta vivido um colapso populacional, em que as pessoas produtivas deixaram de se reproduzir porque não consideravam valer mais a pena? Será que o exaurimento dos recursos naturais da ilha pela superexploração – Durant menciona que à época do auge de Creta a ilha era repleta de bosques de cedros e ciprestes e hoje só sobraram as pedras – tornou a sociedade vulnerável? Será que Creta, que construíra um império no Mar Egeu, sofreu a sina de todos os impérios e acabou vítima do seu próprio sucesso devido à dependência exagerada de uma única fonte de riquezas, no caso o comércio marítimo? Será que as pessoas perderam fé nos valores que antes as uniam e deixaram de ver-se como um só povo e foram facilmente conquistadas? Será que houve uma revolução das classes baixas contra a elite como houve na França no século XVIII, que levou a um regime de terror? Ou simplesmente a destruição deveu-se a uma calamidade natural?

    Nunca saberemos, claro, pois os minoicos deixaram rastros materiais da sua capacidade criativa, mas não suficientes para que pudéssemos ter acesso a sua versão dos fatos, que acaba assim caindo para sempre em um buraco negro de esquecimento e não existência. Para Norman Davies, o outro historiador citado na abertura deste artigo, esta é a grande lição da História: a história que conhecemos é aquele mísero pedaço que sobrou da destruição da existência e portanto da narrativa da vida de tantos outros povos, reinos, países, impérios que tiveram sua própria língua e cultura, seus próprios sucessos e fracassos. Contudo, por terem sido derrotados, tiveram sua sobrevivência na memória coletiva da humanidade inviabilizada.

    Nesse sentido, o destino de Creta, não foi de todo cruel, ao menos por enquanto. A Grécia, como herdeira material e intelectual da civilização minoica, ao menos preservou a lenda do Minotauro vagando pelo palácio de Knossos até ser morto por Teseu com a ajuda de Ariadne. E sendo a Grécia uma das fontes da civilização ocidental, enquanto esta perdurar, ao menos haverá museus e sítios arqueológicos que preservarão o que resta do legado minoico. Mas quando a civilização ocidental for destruída, o patrimônio material e espiritual tanto de uma quanto de outra cairão inevitavelmente no buraco negro que engole tudo aquilo que um dia teve um significado para um determinado povo, em uma determinada localização geográfica num certo momento da história do homo sapiens na Terra.

    Prezados leitores, nós brasileiros somos produto desses trágicos esquecimentos que a História reserva aos perdedores. As civilizações que surgiram em solo brasileiro foram tragadas pelo clima tropical e pela morte dos habitantes causada pelo contato com os brancos. Temos todos que aqui nascemos um patrimônio genético que é em grande parte indígena, mas o que nos sobrou em termos de memória coletiva incorporada à ideia de que temos de nós mesmos?  Em momentos de crise como este, em que a comunhão de esforços é de suma importância, o sentimento de termos todos uma identidade comum faz falta. Quem sabe, surja por aí um Arthur Evans que se embrenhará nos rincões da Amazônia e trará à luz os vestígios materiais de povos que aqui habitaram? Talvez então tenhamos uma noção mais bem definida do que significa ter nascido e habitado em um local chamado Brasil.

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A Criação

[…] a questão é que nossa terra já está sucumbindo não pela invasão de dezenas de nações estrangeiras, mas por causa de nós mesmos; ao lado do governo legítimo, já se formou outro governo, imensamente mais forte do que qualquer lei. Estabeleceram suas condições, tudo tem um preço e os preços até foram levados ao conhecimento geral. E nenhum governante, mesmo o mais sábio de todos os legisladores e governantes, tem forças para corrigir o mal, por mais que limite as ações dos maus funcionários, designando outros funcionários como fiscais. Nada dará certo enquanto cada um de nós não sentir que, assim como na época da revolta o povo se armou contra o inimigo, também é preciso se revoltar contra a mentira.

Trecho retirado de uma continuação do livro “Almas Mortas”, deixada inacabada por Nikolai Gógol (1809-1852)

Deus concedeu a si mesmo a criação como o mais elevado de todos os prazeres e exige do homem que seja ele também, de modo semelhante, o criador do bem-estar em torno de si.

Trecho retirado de uma continuação do livro “Almas Mortas”, deixada inacabada por Nikolai Gógol (1809-1852)

    Prezados leitores, Pável Ivánovitch Tchítchikov, o herói mutreteiro de Almas Mortas, em sua busca por mujiques mortos que pudessem ser comprados, encontra vários tipos de proprietários de terras, cuja descrição permite ao autor mostrar um panorama da Rússia de então. Há os senhores sovinas, que arrancam tudo o que podem dos seus servos; há os preguiçosos, que se dedicam a beber e a jogar cartas e deixam suas terras ao Deus-dará e os mujiques entregues aos mesmos vícios dos patrões, com a diferença de que enquanto estes podem hipotecar suas terras e viver de empréstimos, a indolência e o alcoolismo afundam aqueles na miséria; há também os burocratas, que acham que a solução dos problemas é preencher papeis e seguir protocolos mesmo em uma zona rural a centenas de quilômetros de distância de São Petersburgo.

    Como contraponto a esses tipos pouco edificantes, Tchítchikov depara-se com um proprietário de terras excepcional, Kostanjolo, o homem que no livro fala o segundo trecho que abre este artigo. Dotado de uma profunda espiritualidade, ele considera seu dever trabalhar sem parar e fazer os mujiques trabalharem para não caírem na armadilha da vodca. O trabalho de Kostanjolo é eficiente: ele aplica sua inteligência para resolver problemas práticos, como por exemplo achar meios de aproveitar materiais descartados, maneiras de fazer rotação de culturas de modo a usar o solo da melhor maneira possível. Quando vê terras incultas, abandonadas, ele se indigna com aqueles que deixam as coisas perderem-se no caos. O alvo principal de sua ira são os letrados que frequentam a universidade em São Petersburgo, falam mais francês do que russo e adquirem um conhecimento que só os fará adquirir gosto por coisas inúteis e gastarem dinheiro que não têm capacidade de ganhar de maneira honesta porque não sabem colocar a mão na massa produzindo coisas. Kostanjolo, ao contrário, é o homem da ação focada em resultados, que no frigir dos ovos significa organizar o trabalho na fazenda de forma que os mujiques consigam obter o sustento de sua família.

    É verdade que Tchítchikov, ao ver esse homem cheio de energia e convicção, começa a acalentar a ideia de imitá-lo, aprender com ele como praticar a agricultura eficiente e como gerir o trabalho dos camponeses, e tornar-se um próspero proprietário de terras, casar-se, ter filhos e deixar um legado. Mas sua natureza é outra: o caminho tortuoso da burla e da fraude é o mais direto para conseguir dinheiro e Tchítchikov é antes de tudo um ganancioso. Por isso, ele continua a comprar almas mortas e vai além, falsificando o testamento de uma velha rica para tornar-se seu beneficiário.

    Ele acaba sendo preso, desespera-se, pede ajuda a um homem de bem prometendo regenerar-se, mas outro pilantra como ele mexe os pauzinhos e consegue tirá-lo do cárcere e devolver-lhe o dinheiro confiscado. Com isso suas boas intenções naufragam e Tchítchikov volta ao seu modus operandi habitual. O primeiro trecho que abre este artigo é a fala do príncipe que manda prender o herói sem nenhum caráter, e que ao descobrir que as investigações sobre os maus-feitos tinham sido propositalmente comprometidas, apela aos seus funcionários para que mudem o comportamento. O final desse apêndice inacabado de Almas Mortas não mostra o efeito positivo ou negativo que a retórica ética do príncipe possa ter tido sobre seus comandados.

    Esse embate entre os valores concretizados por Kostanjolo e por Tchítchikov é o embate entre a criação e o caos, entre assumir responsabilidades em relação a sua vida e à daqueles que dependem de você e entre evadir-se da responsabilidade pela mentira e pela dissimulação, entra a produção de frutos e de um legado e o escapismo por meio de quimeras e sonhos não realizados, entre a produção e a especulação, entre seguir uma vocação e ajudar as pessoas ao fazê-lo e perder-se na anomia e na indiferença à sorte boa ou ruim alheia, entre utilizar o conhecimento para transformar e melhorar a realidade ou usar o conhecimento para demonstrar autoridade e soberba.

    Prezados leitores, Gógol tentou em sua vida seguir a receita de Kostanjolo e fazer valer sua vocação de escritor. Seu projeto de continuar Almas Mortas de forma a revelar todas as facetas da Rússia através da viagem de um pilantra em busca de negociatas não se completou devido a sua morte. Mas certamente a criação de um personagem como Tchítchikov, que nos faz rir por ser tão patético na sua satisfação consigo próprio, na sua capacidade de desculpar-se sempre, mas ao mesmo tempo por mostrar muitas verdades sobre a ganância que existe em todos nós, faz de Gógol um autor cuja mensagem ressoa até hoje. Quem quer que ache alguma semelhança entre o estado de espírito dos russos na primeira metade do século XIX, tal como descrito pelo príncipe, e o estado de espírito de nós brasileiros, em pleno século XXI, desencantados com as instituições, com a democracia e com as autoridades, chegará a conclusões produtivas sobre a raiz dos nossos males.

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Da ficção dos fatos e dos fatos da ficção

Ninguém mais quer admitir que inventa. A única coisa que importa é o documento, que deve ser preciso, datado, provado e autêntico. Os frutos da imaginação estão banidos, porque são inventados… Para que o público possa acreditar no que lhe é dito, é preciso convencê-lo de que não está sendo “gozado”. A única coisa que conta hoje, é o “fato verdadeiro”. […] Faz parte do espírito desta era acreditar que qualquer acontecimento, não importa quão suspeito possa parecer, é superior a qualquer exercício de imaginação, não importa quão verdadeiro.

Trecho retirado da coleção de ensaios “De fato e de ficção”, de autoria do escritor americano Gore Vidal (1925-2012)

Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima de sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.

Trecho retirado do livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago (1922-2010)

 

Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo, na perspectiva da sua ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros. […] A apregoada beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor.

Comentário feito em 1992 pelo bispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueiras sobre a obra “O Evangelho segundo Jesus Cristo”

    Prezados leitores, há algumas semanas eu tratei do exercício de imaginação do escritor português José Saramago ao contar sob o seu ponto de vista de ateu a vida de Jesus Cristo, enfocando o pai de Jesus, José, que morre crucificado. Teci elogios ao autor pelo fato de a invencionice dele ter permitido mostrar as condições difíceis dos pobres, agora e sempre. Nesta semana, pretendo tratar do personagem principal, o Cordeiro de Deus, como o chama a Igreja Católica.

    O trecho que abre este humilde artigo faz referência a um encontro de Jesus Cristo com Deus em uma barca no meio do mar. Naquela ocasião, Deus revela a Jesus suas intenções em relação a ele, intenções estas que se revelam um puro e simples projeto de poder. O objetivo é conquistar novos crentes, aumentar a participação do Deus único no mercado de deuses e deusas, deixando assim o nicho do povo judeu para atingir outro público. A ideia de Deus é engenhosa para alargar sua base de devotos: fazer Jesus morrer de forma inocente e ignominiosa como mártir para causar comoção; contar parábolas e histórias e dar exemplos morais que não terão a taxatividade da lei mosaica e que servirão para obscurecer o entendimento dos possíveis fiéis, dando assim uma aura de mistério à religião e aumentando a admiração dos homens pela inescrutabilidade da divindade.

    Jesus, inquieto ante a morte na cruz que o espera, pergunta a Deus que sofrimentos e mortes serão necessários para que Deus seja vitorioso. Deus reticente, começa a contar então a história da Igreja Católica,  enumerando os santos que serão torturados e sofrerão mortes atrozes em nome da fé. Jesus insiste em saber mais detalhes e Deus revela que haverá guerras em nome DELE, as Cruzadas e haverá a Inquisição, em que pessoas serão queimadas vivas na fogueira.  Tendo dado as instruções a seu Filho sobre como deverá ser seu ministério, Deus vai embora, deixando Jesus insatisfeito com o papel que irá desempenhar.

    O Cordeiro de Deus não quer ser responsável por causar tanto sofrimento aos homens e ao longo de sua pregação pela Palestina elabora um estratagema. Ao ser apresentado perante os príncipes dos sacerdotes e escribas e depois a Pôncio Pilatos, o governador romano, Jesus identifica-se como rei dos Judeus, mas ao ser questionado se é Filho de Deus, ele nega considerar-se como tal, alegando que jamais afirmou isso. A ideia de Jesus é que se for visto como o rei dos Judeus e não Filho de Deus, ele poderá frustrar o projeto divino. Pôncio Pilatos acaba condenando-o à morte na cruz por ser inimigo de César e atende ao seu pedido de que uma placa seja colocada em cima de sua cruz dizendo: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Como mostra a descrição de Saramago dos últimos instantes de vida do primeiro mártir da Igreja, a tentativa de burla de Jesus dá em nada, ao contrário só concretiza as intenções divinas, pois Deus mesmo sorri a ele mostrando sua satisfação que tudo tenha saído conforme ELE queria.

    Dessa forma, o fruto principal da imaginação do autor português é um Jesus Cristo que tem uma profunda compaixão pelo ser humano, e que se rebela contra o fato de ser um instrumento para a constituição de uma Igreja que será fonte de opressão e de sofrimento.  Sua rebeldia, no entanto, é inútil, em face da onipotência de Deus. Sob essa perspectiva, os destinos de José, o pai, crucificado por obra dos romanos, e de Jesus, o filho, crucificado por obra de Deus, se assemelham na narrativa materialista e antireligiosa de Saramago: ambos morrem nas mãos dos poderosos deste mundo, quer estes estejam no céu ou em algum palácio. Contra esses poderosos, os miseráveis nada podem porque os que estão em cima sempre vencem e trucidam os que estão embaixo.

    Prezados leitores, não é de estranhar que “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, lançado em 1991, tenha provocado reações virulentas como as do bispo de Braga citado acima, o que levou José Saramago a sair de Portugal e mudar-se para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde viveu até morrer. Gore Vidal, em suas reflexões sobre a arte da literatura nos ensaios que compõem “De fato e de ficção”, lamenta que ela não seja mais cultivada pelas pessoas mais talentosas porque atualmente as pessoas descartam a ficção por ser uma mentira e preferem meras descrições de fatos que comprovadamente aconteceram. Mas o ponto defendido pelo ensaísta americano é que a mentira ficcional é mais verdadeira do que todo o conteúdo das revistas, dos jornais e hoje em dia – algo que Gore Vidal não chegou a testemunhar – de toda a mídia social porque ao se propor como pura criação fruto de uma determinada técnica a literatura almeja a beleza, que para um cultor dos valores da antiguidade clássica como Vidal está associada à verdade.

    Sob essa perspectiva “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é um delírio que distorce a vida de Jesus Cristo, tal como narrada nos livros  canônicos da Igreja, mas em sendo delírio, ele lança luz sobre a condição humana dos impotentes que compõem a esmagadora maioria da humanidade desde que o mundo é mundo. José Saramago pode ter se deixado arrebatar pelo seu ateísmo inflexível no último trecho de sua obra, e simplificado em demasia uma criatura complexa como Jesus Cristo, a meio caminho entre o mundo do espírito e o mundo da matéria, mas seu exercício de imaginação permanece de pé por nos fazer olharmo-nos no espelho e vermos em nós o indivíduo que luta de maneira quase sempre inglória contra a autoridade.

    Prezados leitores, Gore Vidal tinha razão: jamais duvidem do poder revelador da ficção, por mais mentirosa que ela seja.

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Que conselhos dar?

Tome cuidado, Pávlucha, estude, não seja bobo e nada de travessuras, acima de tudo seja bom com os professores e com os superiores. Se agradar a um superior, ainda que você não tire boas notas nas matérias e que Deus não tenha lhe dado talento, tudo vai andar nos trilhos, e você vai passar na frente de todos. Não fique muito ligado a seus colegas, eles não vão lhe ensinar nada de bom; mas se isso tiver de acontecer, ande com os mais ricos, para o caso de poderem ser úteis a você. Não convide nem ofereça nada para ninguém comer ou beber, é melhor que os outros ofereçam a você, e, acima de tudo, guarde e acumule copeques: é a coisa mais confiável que existe no mundo. Um colega ou amigo vai enganar você, e quando você estiver em apuros ele será o primeiro a denunciá-lo, já que o copeque nunca vai denunciar você, por maior que seja seu apuro. Com o copeque, tudo no mundo se arranja e tudo se consegue.

Trecho retirado do livro “Almas Mortas”, de Nikolai Gógol (1809-1852)

A primeira coisa que eu sugeriria a você é que você deve ser grato a Deus, e lembrar sempre que não é por causa dos seus méritos, da sua prudência ou da sua solicitude que este acontecimento ocorreu, mas por meio do favor DELE, o qual você só pode retribuir levando uma vida piedosa, casta e exemplar. Em eventos públicos deixe que sua carruagem e suas vestimentas fiquem abaixo da mediocridade e não acima dela. […] Uma bela residência e uma família bem ordenada serão preferíveis a um grande séquito e a uma residência esplêndida. […] Seu gosto será mais bem mostrado na aquisição de algumas poucas antiguidades elegantes, ou na coleção de belos livros e pelo fato de seus serviçais serem instruídos e bem educados em vez de serem numerosos. Convide pessoas a sua casa de maneira mais frequente do que aceite convites e não exagere nem num nem noutro.

Trecho retirado da carta que Lourenço, o Magnífico (1449-1492) escreveu em 12 de março de 1492 para seu filho Giovanni de Medici (1475-1521), o futuro papa Leão X, quando o adolescente de 16 anos parte para Roma para juntar-se ao Colégio dos Cardeais

    Prezados leitores, em um momento em que recebemos cada vez mais conselhos das nossas autoridades e cada vez menos as obedecemos, nesta semana eu saí à procura de exemplos de conselhos dados por outras pessoas em outros tempos e o efeito que tiveram nos aconselhados.

    Para isso, valho-me uma vez mais de Tchítchikov, o herói criado por Nikolai Gógol, que em um certo momento do livro revela que o especulador de São Petersburgo que dá um golpe em vários nobres em uma província distante é um rematado canalha. E para provar seu ponto, o autor narra as origens de Tchítchikov, começando por sua infância. O trecho que abre este humilde artigo é o sermão que o pai do herói-canalha dá ao filho quando o manda a uma outra cidade estudar. É um roteiro perfeito para um moço pobre e medíocre intelectualmente navegar em um mundo hobbesiano, em que o homem é o lobo do próprio homem.

    O pai de Tchítchikov não recomenda esperar muito de Deus. Pode ser que ESTE não tenha lá muita simpatia pelo ainda menino e não o agracie com alguma qualidade que o faça sobressair pelos méritos. O mais prudente é preparar-se para o pior cenário, em que Tchítchikov não saia nem bonito, nem espirituoso, nem espiritual, nem perspicaz, nem sábio, nem criativo nem nada. Assim, a melhor qualidade é funcionar de maneira implacável no modo sobrevivência, cuidando sempre dos seus próprios interesses e protegendo-se. Para isso, dois elementos são fundamentais, o dinheiro e o poder. Um garoto pobre e que não herdará nada de relevante, como é o caso do Tchítchikov criança, só consegue um e outro engraçando-se com as pessoas que os têm de sobra, os ricos e as autoridades.

    Para conseguir o favor das autoridades é preciso sempre obedecê-las em tudo e por tudo, fazer-lhes homenagens e ser afável com elas. A primeira autoridade em relação à qual Tchítchikov aplica o sermão do pai é o professor do colégio, que o menino estuda atentamente para saber como agradá-lo. E Tchítchikov faz isso tão bem que é sempre o melhor aluno e forma-se com louvor, não porque soubesse escrever ou argumentar melhor, mas simplesmente porque sabe colocar-se à sombra do professor, reforçando sua autoridade sobre os alunos que por seus méritos intelectuais autênticos irritavam a mediocridade do instrutor. Quanto a conseguir o favor dos ricos, é preciso estar perto deles e fazer-lhes favores quando eles precisam de modo que paguem pela graça recebida de um garoto mais pobre do que eles, mas sempre solícito e camarada.

    Ficando perto dos ricos e das autoridades, sem nunca confiar neles e sempre esperando conseguir algo em troca, Tchítchikov atinge o bem supremo estabelecido pelo credo de seu pai, isto é a autossuficiência, a capacidade de cuidar de si sozinho, de não depender de ninguém, mas apenas do dinheiro, que sempre protege e ampara. Nada de compartilhar, de trocar experiências, emoções, pensamentos: Tchítchikov estabelece relações sociais não para aprimorar-se espiritual ou intelectualmente, mas para objetificar as pessoas, tornando-as instrumento para ele acumular mais dinheiro e mais poder. Seguindo à risca os conselhos do pai, o herói-canalha sai da pobreza da província e transforma-se em um sofisticado especulador na reluzente capital da Rússia.

    Não é difícil perceber que o modo caricatural com que Gógol pinta Tchítchikov, a começar pelo sermão de uma crueza perturbadora dado pelo pai, é uma crítica à autocracia tzarista e dá um novo sentido ao título do livro, Almas Mortas. Em um regime em que são bem-sucedidos os sicofantas, os bajuladores, os estelionatários, os especuladores, não há espaço para o cultivo das qualidades da mente e do espirito, que acabam morrendo por falta de cultivo. O fundamental é não desagradar a autoridade, porque dela e somente dela emanam as coisas boas da vida: a proteção, a segurança, o conforto.

    Que diferença em relação aos conselhos dados por Lourenço, o Magnífico! Não estamos no mundo do arbítrio, dos caprichos dos poderosos, a começar por aquele que tem o poder supremo, Deus. O Deus a que Lourenço faz referência não é o Deus tirânico do pai de Tchítchikov que pode ou não agraciar o ser humano com algum talento, a depender da sua vontade. É um Deus que conferiu muitos favores a Giovanni, fazendo-o nascer em uma família podre de rica e tornando-o cardeal da Igreja Católica Apostólica Romana na tenra idade de 16 anos. Nessas circunstâncias, o sermão de Lourenço é exatamente o oposto da luta implacável pela sobrevivência: Giovanni não precisa ganhar o pão de cada dia, pois seu sustento material está garantido até o seu último suspiro. Cabe ao adolescente-cardeal ou cardeal-adolescente mostrar a Deus sua gratidão imensa por tais privilégios levando uma vida virtuosa e comedida. Giovanni de Medici não é um sanguessuga da elite como Tchítchikov, ele é a própria personificação da elite e a casta superior deve buscar sempre altos padrões de excelência, mostrando-se digna de permanecer no topo: não deve esfregar sua riqueza na cara dos menos privilegiados, deve cultivar o belo para ser imitado por todos, deve dar mais do que receber, pois a magnanimidade ofusca a mesquinhez e a cobiça dos arrivistas e dos pilantras que querem tomar o lugar dos melhores.

    Cabe a pergunta: será que os conselhos de Lourenço ao filho surtiram efeito como os do pai de Tchítchikov? Giovanni torna-se Leão X em 1513 e será um grande patrocinador das artes plásticas, da literatura, dos estudos acadêmicos. Em 1515 toma uma decisão importantíssima que talvez seja o seu maior legado: nomeia o grande pintor Rafael (1483-1520), que trabalhava para ele no Vaticano, como supervisor de antiguidades, com a missão de preservar o legado arquitetônico e artístico de Roma, que depois de séculos de dilapidações, tornara-se uma sombra daquilo que fora na época imperial. Em suma, Leão X, à sua maneira, retribuiu a graça do privilégio que Deus lhe havia concedido, contribuindo pelo seu patrocínio à cultura e à civilização ocidentais.

    Prezados leitores, que conselhos dar a um filho no século XXI? Ser interesseiro e egoísta como Tchítchikov porque este é o único modo para uma pessoa sobreviver se não tiver nenhuma qualidade especial, ou ser generoso e cultivar o belo e o melhor como Leão X, que nasceu e morreu em berço de ouro? Difícil resposta. Só uma coisa é certa: o caminho seguido por um e por outro depende do tipo de autoridade que lhes dá conselhos. Oxalá que ao longo deste nosso tempo de incertezas surjam conselheiros mais à moda italiana renascentista do século XV do que à moda russa autocrata do século XIX.

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