[…] e a Igreja Cristã considerou prudente, no quinto século de nossa era, associar os resquícios desse culto a Maria, e transformar o festival da colheita que celebrava a deusa Ártemis e era realizado em meados de agosto na festa da Assunção. Dessa maneira, o velho é preservado no novo, e tudo muda, exceto a essência. A história, como a vida, deve ser contínua, sob pena de morrer; o caráter e as instituições podem ser alterados, mas de maneira lenta; uma grave interrupção do seu desenvolvimento joga-as na amnésia e na insanidade nacionais.
Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano
Em 18 de setembro, d. Pedro e José Bonifácio assinaram e rubricaram diversos decretos instituindo a nova bandeira e o novo brasão de armas, que levava as cores verde, da casa de Bragança, e amarela, da casa dos Habsburgo. O desmonte histórico praticado pelos republicanos recodificaria essas cores e as transformaria no verde de nossas matas e no amarelo de nosso ouro, nossa riqueza.
Trecho retirado do livro “D. Pedro – A História não Contada” de Paulo Rezzutti
“Se fôssemos um país institucionalmente maduro, aprimoraríamos o modelo,” afirma Lazzarini. “Ao invés disso nós o jogamos fora.”
Trecho retirado do artigo sobre corrupção e crime no Brasil intitulado “Voltando Atrás”, publicado na revista The Economist de 5 de junho de 2021
Prezados leitores, uma característica marcante da história da civilização escrita por Will Durant da qual “The Life of Greece” é o segundo volume, é que na parte final de um capítulo sobre alguma corrente política ou religiosa, sobre algum artista, filósofo ou estadista, sobre um tema qualquer Durant sempre faz uma avaliação do legado deixado na história de tal corrente, pessoa ou tema, fazendo uso do conhecimento que ele tem do que aconteceu depois, especialmente na parte Ocidental do mundo, seu foco pelo fato de a ela pertencer não só ele mesmo como a maior parte de seus leitores. O seu capítulo sobre a religião na Grécia concretiza tal método, pois nele o historiador e filósofo americano dá inúmeros exemplos de como as práticas religiosas gregas foram sub-repticiamente incorporadas ao Cristianismo, que acabou se tornando a religião dominante no Ocidente.
Conforme explicado no trecho que abre este artigo, o culto da fertilidade e do poder da fêmea reprodutora estava presente na Grécia em festivais que celebravam Ártemis ou Diana, a Deusa da caça. De maneira muito hábil, a igreja incorporou esses rituais que se repetiam desde tempos imemoriais dando-lhes uma nova roupagem na figura da mãe de Cristo, tornando assim a nova religião mais aceitável a pessoas que pertenciam a sociedades não judaicas.
A própria história de Jesus Cristo, do filho de Deus que é ele mesmo divino e que é sacrificado e renasce, deve muito às concepções da seita filosófico-religiosa do Orfismo. Na descrição de Durant, Cristo é o herdeiro místico do Deus Dionísio, pois este também morreu e ressuscitou: filho de Zeus e de sua filha Perséfone, Dionísio, que em sua primeira vida era chamado de Zagreus, foi esquartejado e fervido pelos Titãs. Atenas salvou o coração de Dionísio e o entregou a Zeus que o deu a Semele, a qual o gestou e deu-lhe uma segunda vida, na qual ele passou a ter o nome pelo qual nós o conhecemos em contraposição a Apolo, o Deus da luz e da razão.
A lição que fica é que o Cristianismo foi tão bem-sucedido porque os Pais da Igreja souberam amalgamar as várias concepções filosóficas então correntes no mundo do Mediterrâneo dando-lhes nova roupagem para adaptá-las às condições do momento, em que a civilização grega tinha se tornado coisa do passado, mas ao mesmo tempo preservando a continuidade cultural de modo que a nova religião não fosse uma violência contra práticas arraigadas. Em suma, construir o novo sobre as bases do passado de modo que a história adquira um sentido para as pessoas que a estão fazendo no calor do momento.
Sob essa perspectiva, longe de desmerecer o Cristianismo por tirar-lhe o ineditismo e relativizá-lo, a contextualização feita por Durant serve para realçar o fio condutor da história da civilização, qual seja, a necessidade do homem de lidar com os mistérios do mundo por meio de mitos, rituais e sacrifícios e em fazendo-o achar um senso de direção para seu próprio percurso individual. Ao vislumbrar um fim para a jornada, com base na experiência dos que viveram antes dele, o homem, enquanto ser social, consegue criar a cultura e a civilização, conectando o passado, o presente e o futuro num todo consistente. Na visão de Durant, conforme explicada no trecho reproduzido acima, o perigo do esquecimento e da ruptura total é a insanidade e a destruição das instituições: a vida experimentada pelo homem perde o significado e as instituições que expressam esse significado tornam-se vazias de conteúdo.
Prezados leitores, esse introito explicando o paralelismo traçado pelo filósofo americano entre a religião na Grécia e o Cristianismo serve para inspirar-me a tirar uma lição dessa ênfase na continuidade como pré-condição para a criação. Dois exemplos tirados da história do Brasil mostram nossa falha nesse quesito.
O primeiro é o da ruptura que a República deliberadamente realizou em relação ao Período Monárquico do Brasil. O desmonte histórico a que Rezzutti refere-se não é simplesmente uma nova roupagem que se deu a uma instituição antiga, como Maria foi a nova versão de Ártemis, símbolo da feminilidade, e Jesus Cristo foi a nova versão do Deus imolado e ressuscitado Dionísio. A história que passou a ser contada após 1889 sobre a origem das cores da bandeira brasileira é simplesmente mentirosa e teve por objetivo fazer os brasileiros esquecerem que tiveram dois imperadores e que bem ou mal o Estado brasileiro havia sido fundado e tivera seu imenso território consolidado por um regime monárquico.
O segundo exemplo é mais recente e diz respeito à Operação Lava-Jato de luta contra a corrupção engendrada pelas relações promíscuas entre os políticos e o empresariado. Conforme explicou Sérgio Lazzarini à revista The Economist, os excessos persecutórios dos procuradores e juízes da Lava-Jato levaram a muitas decisões injustas e ilegais. No entanto, ao invés de preservarmos o legado do esforço em punir as práticas de pagamento e recebimento de propina e fazermos correções de rumo, simplesmente optamos em jogar a Lava-Jato pela janela, como se tudo que ela tivesse feito tenha sido execrável.
Num e noutro caso, nossa opção pela ruptura nos fez perder o senso de direção. Não reconhecendo os méritos da Monarquia, a República brasileira incorreu em erros, tais como o excesso de intervencionismo militar na vida política, que teriam sido evitados se os Republicanos tivessem tirado lições do exercício do Poder Moderador por D. Pedro II. Quanto ao desmonte da Lava-Jato, ainda é muito cedo para julgarmos os efeitos que isso trará para a vida pública brasileira, mas certamente a perda do efeito dissuasório que ela trouxe fará com que os políticos e empresários amigos do poder continuem realizando as práticas que tornam a democracia sinônimo de conchavos e de esquemas para a grande maioria da população brasileira.
Prezados leitores, o resumo da ópera é este: preservar as instituições e atualizá-las para mais bem fazê-lo é garantir as bases para a construção da ordem social. Insistir sempre na ruptura sob o pressuposto de que o novo é sempre melhor só nos leva a dar passos em falso e ficar sem rumo. Oxalá um dia consigamos aprender a lição.