Entre a WIC e Nassau

“Nassau podia transplantar florestas e árvores frutíferas, mas não as benéficas instituições da sua própria pátria, que são coisas que têm suas raízes na história e nos hábitos e sentimentos daqueles a par de quem foram crescendo e a cujo crescimento se acomodaram.” Sua política não poderia triunfar nem sobre a cultura local, pois a “língua, a religião, os costumes, o caráter e o orgulho nacional dos portugueses eram outros tantos obstáculos, fortes em si mesmos e, na sua união, insuperáveis; nem sobre o caráter mercantil de uma conquista, em que o lucro da Companhia [era] o único fito, a estrela polar de toda a política”. Ao cabo dos seus anos de governo, Nassau já chegara a idêntica conclusão.

Trecho retirado do livro Nassau, escrito pelo historiador Evaldo Cabral de Mello

O endividamento luso-brasileiro avolumava-se desde 1640, pois, confiada na armada do conde da Torre, a gente da terra endividara-se pesadamente, comprando partidas de escravos e mercadorias a preço extorsivos, na expectativa de não ter de pagar. Houve, ademais, a frustração pela safra de 1641-2, além de que o suprimento das expedições contra Angola e o Maranhão havia esgotado os armazéns da Companhia.

Trecho retirado do livro Nassau, escrito pelo historiador Evaldo Cabral de Mello

    Prezados leitores, já tratei anteriormente neste meu humilde espaço das realizações de João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679) à frente do governo do Brasil holandês de 1637 a 1644 no que concerne à urbanização da Ilha de Antônio Vaz, com  a construção da Cidade Maurícia, a Mauritsdat, do Palácio de Vrijburg, a sede do seu governo que incluía parque, jardim botânico e zoológico e da Boa Vista, a casa de recreio; e à exploração científica e artística da flora e fauna brasileiras por aqueles que vieram na comitiva de Nassau, como Willem Piso, Frans Post e Albert Eckhout. Nesta semana, o foco será nas razões que levaram Nassau a ser convidado a se retirar do governo e o que isso revela sobre a colonização holandesa no Brasil, à luz do livro de Evaldo Cabral de Mello.

    Para entender tais razões, é preciso ter em mente que a conquista do Brasil foi um empreendimento da Companhia das Índias Ocidentais, conhecida pelo seu acrônimo na língua batava, WIC, que contrata Nassau para ser o governador, considerando sua experiência militar nos Países Baixos. No aspecto bélico Nassau não os decepcionou, pois o capitão e almirante-general do Brasil holandês expulsa os portugueses de Alagoas, conquista o forte português de São Jorge da Mina, ocupa o Ceará, repele o ataque da armada luso-espanhola, liderada pelo conde da Torre e enviada ao Brasil para restaurar o domínio lusitano no Nordeste, e rechaça o ataque terrestre desencadeado a partir da Bahia contra a colônia da WIC.

    Por outro lado, Nassau tinha uma visão administrativa de longo prazo que levou a desentendimentos com a WIC, cuja ótica era a de uma companhia que queria dar lucros aos seus acionistas. Considerando suas despesas com os funcionários atuando no Brasil, com as guarnições que mantinham o domínio da WIC e com as expedições militares, a WIC insistia em obter receitas de qualquer jeito, o que incluía cobrar dívidas de senhores de engenho os quais, conforme descreve o trecho acima, haviam tomado empréstimos para investir na produção e não tinham a mínima condição de pagamento, tendo em vista os baixos preços do açúcar no mercado internacional e as safras ruins.

    Se para a WIC o empreendimento colonial era uma operação contábil, para Nassau era preciso conquistar o coração e a mente dos luso-brasileiros para que eles não se revoltassem contra o domínio holandês. Isso requeria uma moratória das dívidas, sobre as quais incidiam juros de 3 a 4% ao mês, e o não confisco da propriedade, isto é, das instalações fabris e da escravaria, daqueles que estavam totalmente desprovidos de caixa para amortização dos juros e do principal. Além disso, Nassau considerava que a WIC deveria fazer mais investimentos em termos de suprimento de tropas que pudessem ser usadas para consolidar a conquista e rechaçar as ameaças dos luso-brasileiros contrários à presença batava que se concentravam na Bahia.

    Nenhum dos pedidos de Nassau foi atendido, pois a WIC pretendia realizar seus ativos brasileiros da melhor maneira possível para fazer caixa e dar uma satisfação àqueles que haviam investido na Companhia. O resultado foi que em 1643 Nassau é dispensado do governo do Brasil holandês. Em 1654, depois das duas batalhas de Guararapes em 1648 e 1649, nas quais os holandeses tentaram romper o sítio do Recife realizado pelas tropas de Fernandes Vieira, o que restava do Brasil Holandês capitulou. A perda da sua colônia nos trópicos foi um golpe mortal na WIC, que foi à falência em 1671.

    De certa maneira, a derrocada da WIC provou que Nassau estava certo. A visão mercantilista da empresa não era suficiente para manter a colônia e fazê-la prosperar, era preciso algo a mais que a direção da WIC não estava disposta a oferecer porque seu intuito não era  construir um Brasil holandês, mas basicamente vender escravos a preços altos aos colonos para compensar os investimentos na conquista pela Companhia dos entrepostos africanos e comprar açúcar a preços baixos para revendê-lo nos mercados europeus.

    E nesse sentido, Evaldo Cabral de Mello desmistifica a tese segundo a qual um Brasil holandês teria sido melhor do que um Brasil português, como acabamos sendo, depois dos 24 anos de presença batava no Nordeste do Brasil, desde a foz do Rio São Francisco até o Maranhão. Conforme o primeiro trecho que abre este artigo, as instituições que faziam a pujança dos Países Baixos no século XVII jamais foram transplantadas para o Brasil, a saber: seus órgãos republicanos de governo, como os Estados Gerais; sua monarquia não absolutista, em que a dinastia dos Orange, família da qual os stadtholder, que eram os chefes de Estado, originavam-se, e da qual Nassau fazia parte, não podia fazer o que bem entendesse, pois estava submetida ao controle dos Estados Gerais.

    E sabedor dessa discrepância entre o que era possível na Europa e o que era factível ao sul do Equador, Nassau, ao ser convidado a voltar ao Brasil como governador em 1647, faz exigências inaceitáveis para que fossem recusadas e ele não tivesse que simplesmente dizer a verdade aos dirigentes da WIC. De volta aos trópicos, Nassau encontraria os mesmos problemas que encontrou no seu primeiro período – as diferenças religiosas entre os luso-brasileiros católicos e os batavos calvinistas, a penúria econômica dos fazendeiros descapitalizados e acachapados por dívidas impagáveis – e estaria de mãos atadas da mesma maneira que em grande medida esteve de 1637 a 1644 pois teria que se submeter aos interesses da WIC de tratar o Brasil como uma vaca a ser ordenhada, não um país a ser organizado de acordo com a cultura, os hábitos e a moral do povo que o constituía.

    Prezados leitores, a sorte do Brasil Holandês, de efêmera duração, nos faz refletir sobre se de fato aprendemos, nesses trezentos e sessenta e sete anos que se passaram, a ter uma visão de longo prazo sobre o melhor caminho a trilhar para viabilizar um país e não simplesmente servir interesses contingentes de determinados grupos. O que tem predominado em nossa história? A opção pelo lucro rápido da WIC ou a estratégia nassoviana pela organização gradual de modo a obter a adesão do povo e assim consolidar o que foi construído? Pensem em todos os planos e projetos que já foram idealizados, executados em maior ou menor grau (planos econômicos de combate à inflação, políticas econômicas nacionalistas, programas habitacionais, obras faraônicas, CIEPS, CÉUS) e ao final acabaram sendo destruídos e vocês terão a resposta.

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Transações tropicais

Os problemas e as soluções do Brasil não estão nessas pautas puramente identitárias ou ideológicas. O que a gente precisa é tirar o debate desse campo. Quando Bolsonaro quiser levar para esse lado, não temos que gastar energia. Deixa ele falar. Bolsonaro é bom de polêmica e confusão, mas não de política pública.

Trecho da entrevista dada pelo prefeito de Recife, João Campos, ao jornal O Globo em 19 de dezembro

 

Muito estranha a conduta desta empresa. Ela está em recuperação judicial. Como é que a ANAC autoriza o funcionamento de uma empresa sem saúde financeira para fazer frente a seus compromissos? Isso tem que ser explicado […]. Estamos vendo aqui má-fé e irresponsabilidade.

Trecho da entrevista à rede Globo de Fernando Capez, diretor-executivo do Procon-SP, a respeito da Itapemirim Transportes Aéreos, que no dia 17 de dezembro cancelou todos os voos programados para este ano de 2021, num total de 480

Segundo Bolsonaro, o setor produtivo tem reclamado que as atuais leis tornam o Brasil “um país de direitos, mas que não tem emprego”. “Eles (empregadores) têm dito, não sou eu, ‘um pouquinho menos de direito e emprego’ ou ‘todos os direitos e menos emprego’

Trecho do artigo “Bolsonaro: Trabalhador terá de escolher entre mais direitos ou emprego”, publicado pelo jornal Valor Econômico em 4 de dezembro de 2018

    Prezados leitores, na semana passada introduzi-lhes o conceito de porta giratória para referir-me às relações nem sempre transparentes entre os órgãos reguladores e os setores econômicos regulados que fazem com que as normas que disciplinam as atividades econômicas naquele segmento e a própria aplicação delas acabam sendo fortemente influenciadas pelos agentes que atuam nas empresas, com consequências ruins para o consumidor, como exemplifiquei por meio da minha saga nas transações para resgate de um seguro. Nesta semana, tratarei do conceito de custos de transação.

    À luz da teoria econômica, os custos de transação são custos que não agregam valor para nenhuma das partes envolvidas e que não podem ser recuperados. Dividem-se em três: o custo da obtenção de informações relevantes e do contato com as partes com a qual a transação será celebrada; o custo da negociação das condições da transação que a tornem interessante para ambas as partes; e o custo incorrido para assegurar que a parte cumprirá as obrigações do contrato e que não se tornará inadimplente. Quanto maiores forem esses custos menor será a eficiência e menos valor é gerado. Dar-lhes-ei um exemplo concreto mencionando o caso da empresa Itapemirim que vendeu passagens aéreas para milhares de clientes e às vésperas dos feriados de fim de ano suspendeu as operações por absoluta falta de condições financeiras.

    Os pobres clientes da Itapemirim, ao longo dos próximos dias, terão várias tarefas a cumprir, cujo resultado será de qualquer forma frustrante. Mandar e-mail para a empresa, registrando uma reclamação formal e fazer a queixa no site gov.br de modo a poder comprovar que deram à empresa a oportunidade de resolver o problema e assim, para usarmos o termo técnico jurídico, construírem sua causa de pedir, de modo que o juiz convença-se de que não havia outro remédio ao demandante senão reivindicar seus direitos no Judiciário, pois nem a instância administrativa governamental, representada pela ANAC ou pelo PROCON, nem a corporativa representada pela própria companhia aérea, foram capazes de tornar seus direitos realidade. Terão ainda que procurar hospedagem de urgência, no caso de estarem fora de sua cidade de residência. Terão que negociar com as agências de viagem que lhes venderam a passagem uma reacomodação em outros voos ou reembolso das despesas. Terão que obter informações sobre como proceder para encaminhar todas essas providências. E o mais importante, arranjar dinheiro para fazer frente a despesas inesperadas.

    O resultado será frustrante porque mesmo que a pessoa consiga viajar para o destino que havia escolhido ou voltar para sua casa, nada terá sido conforme planejado, e ela terá sofrido angústia, ansiedade e medo. Terá gasto horas do seu dia e reais da sua conta de uma maneira ineficiente, pois não lhe agregou nada em termos de prazer ou qualidade de vida, ao contrário, prejudicou-lhe a saúde e as finanças. Em termos práticos, os custos da transação de viagem de fim de ano dos clientes da Itapemirim compreenderam as três vertentes explicadas pela teoria econômica, mas exponencialmente aumentados pela incapacidade da companhia aérea de continuar suas operações e honrar seus compromissos.

    Se normalmente tais custos são irrecuperáveis, o ideal é que eles sejam limitados ao mínimo necessário. Ter que lidar com uma empresa que, conforme explicou Fernando Capez em sua entrevista, foi claramente mal fiscalizada pelos órgãos reguladores que deveriam tê-la monitorado de maneira mais estrita, aumenta desnecessariamente esses custos irrecuperáveis, a serem incorridos pelos consumidores e em última análise pela sociedade como um todo, devido à necessidade de acionar o judiciário para pleitear indenização. Em suma, as atividades da Itapemirim só geraram ineficiências e prejuízo para a economia como um todo, pois o tempo e dinheiro empregados nas transações com ela acarretaram um grande custo para as partes – passageiros, agências de viagem, hotéis, outras companhias aéreas – sem benefícios concretos em termos de objetivos alcançados pelos participantes da transação.

    E, no entanto, sob a ótica maniqueísta do nosso Presidente, as empresas são as heroínas e os trabalhadores são os perdulários que insistem em reivindicar direitos, causando prejuízos ao país em termos de perda de competitividade. As agruras dos consumidores brasileiros em face de empresas mal fiscalizadas que muitas vezes agem de má fé, como a Itapemirim que, segundo Capez disse à rádio Jovem Pan no sábado à tarde, continuou vendendo passagens mesmo depois de ter suspendido as operações, mostram que muitas vezes a fonte da ineficiência e do custo Brasil são as empresas com suas práticas nebulosas, sobre as quais as agências reguladoras fazem vista grossa.

    O que fazer? Talvez a solução seja seguir o conselho de João Campos e deixar Bolsonaro falar sozinho a respeito de suas obsessões ideológicas sobre os comunistas, os sindicalistas e os trabalhadores. Enquanto ele luta contra seus inimigos, devemos nós procurarmos um candidato que em 2022 formule políticas públicas que enfoquem o problema da competitividade da economia sob a ótica do custo de transacionar em um país em que o consumidor pode ser surpreendido dentro do avião pronto para decolar depois de uma espera de mais de três horas e o comandante avisa a todos que o voo foi cancelado por determinação da ANAC (Isso aconteceu com o jornalista Fábio Murakawa no dia 17 de dezembro). Oxalá as lutas entre o bem e o mal sejam substituídas por discussões sobre o que fazer para melhorar a forma como as empresas brasileiras tratam seus clientes.

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A democracia e a porta giratória

É importante então entender que a democracia não é um pacto de silêncio, a democracia é um processo de efervescência da sociedade na busca da construção de um mundo justo, mais solidário, mais fraterno e mais humanista.

Trecho de fala de uma videoaula sobre a democracia lançada em 12 de dezembro pelo ex-presidente Lula juntamente com o presidente da Argentina, Alberto Fernandez e o ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica.

Porta giratória é o movimento de pessoas de uma função de legislador e regulador de um lado para a de membros do segmento econômico afetado pela legislação e pela regulamentação de outro.

Trecho do verbete “Porta giratória” retirado da enciclopédia eletrônica Wikipedia

    Prezados leitores, já ouviram falar da expressão “porta giratória” utilizada para fazer referência às relações próximas entre os órgãos reguladores e as indústrias objeto da regulação? De acordo com essa concepção, há um troca-troca sem fim entre as pessoas que trabalham nas agências governamentais encarregadas de elaborar normas reguladoras de certas atividades econômicas e as empresas cujas operações submetem-se a tais normas.

    De um lado, as pessoas que trabalham para o governo conseguem emprego na iniciativa privada porque muitas vezes elas têm informações privilegiadas sobre o que ocorre dentro do governo em termos do conteúdo das regulamentações que estão sendo elaboradas e podem acionar seus amigos que continuam sendo funcionários públicos para influenciá-los a elaborar normas que sirvam aos interesses da empresa onde elas vão trabalhar.

    De outro lado, as pessoas que trabalham em empresas reguladas muitas vezes são contratadas pelo governo porque têm experiência de como funciona aquele segmento econômico e podem funcionar como elo de ligação entre o governante de plantão, que precisa de doações para a próxima campanha eleitoral, e a iniciativa privada, que precisa que a mão da autoridade política de plantão não seja muito pesada de modo a não tornar a atividade econômica onerosa demais pela imposição de múltiplas obrigações.

    No final das contas, tem-se o que em inglês se chama “regulatory capture”, isto é, as agências que supostamente deveriam criar um ambiente de negócios em que o consumidor fosse protegido dos excessos das empresas na busca pelo lucro transformam-se em meras chanceladoras daquilo que a indústria quer ou tolera em termos de regulamentação. E tal fenômeno traz em seu bojo uma desigualdade brutal entre aquilo que o consumidor é levado a esperar quando adquire um produto e o que de fato ele obtém. Vou dar-lhes um exemplo concreto falando de uma experiência recente por mim vivida. Meu objetivo é que ela sirva de alerta aos que me leem.

    Precisando muito de dinheiro para cobrir certas despesas inadiáveis e não tendo de outro lugar para tirar, decidi valer-me de um seguro de vida cuja apólice adquiri há mais de dez anos. De acordo com as informações que os corretores me deram à época, 20% do valor pago seria resgatável como capital de sobrevivência. Pois bem, fui atrás dos termos e condições da apólice para saber como eu conseguiria exercer o direito a tal capital. E onde estão os Termos e Condições? Não encontrei no site da seguradora, não encontrei no site da SUSEP, no qual teoricamente o cidadão-consumidor pode obter informações sobre todos os produtos de seguro aprovados pela agência reguladora para comercialização, mediante a inserção do número do produto. Falando com a corretora que atua na agência bancária em que tenho conta, ela me disse que era só solicitar pelo telefone os Termos e Condições. Ligando na seguradora protocolei um pedido, mas nunca obtive resposta nenhuma.

    Mesmo não sabendo dos detalhes das condições de exercício do direito ao capital de sobrevivência, resolvi tentar abrir uma solicitação de sinistro, usando o telefone que me foi dado pela corretora. Era preciso acessar um site, abrir o chamado, preencher a documentação, digitalizá-la, carregá-la no site. Preparei meu dossiê e quando tentei inseri-los no chamado, o site não os carregava. Tentei isso por dois dias, sem sucesso. Por que será que um site de regulação de sinistros funciona tão mal? Não desisti, porque precisava do dinheiro. Obtive um e-mail de um funcionário e para ele mandei a documentação. Para minha felicidade, ele acusou recebimento. Então imaginei que era deitar em berço esplêndido e aguardar os trinta dias necessários para o processamento. Assim o fiz, sonhando com meu dindin na conta, para saldar minhas dívidas. De vez em quando eu acessava o site, mas lá eu só via quatro bolinhas, três ticadas de verde, sinalizando que estava tudo OK e a quarta em vermelho. Achei que eu estava na boca do gol, só faltando dar a cabeçada…

    Hoje pela manhã resolvi ligar para a seguradora para saber porque decorridos já 30 dias meu capital de sobrevivência ainda era uma nuvem virtual. Qual foi minha surpresa e meu choque quando o operador de telemarketing disse que meu chamado havia sido fechado porque não era a maneira correta de proceder, apesar de eu ter pedido orientações à corretora que atua na agência bancária para fazê-lo. Foi então que começou minha saga da busca da verdade, durante a qual eu me transformei em uma bola que cada atendente do SAC passava displicente para outro atendente, em outro telefone e outra opção. Meu desespero foi tanto que liguei na minha agência e pedi ajuda ao gerente e à corretora. Eles só acharam outros telefones e opções diferentes daquelas que eu havia tentado e me ofereceram: eu que me virasse, porque resolver meu problema não era prioridade. Estava tentando usufruir de um direito, não estava tentando comprar nada, então eu me transformei aos olhos deles em um ser descartável.

    Depois de uma breve pausa para o almoço, em que engoli a comida de preocupação, tentei novamente caminhar no Labirinto do Minotauro, digo, da Seguradora e seu serviço de telemarketing passivo. Finalmente consegui falar com uma senhorita que tinha um pouco mais de conhecimento do que a média dos funcionários e me explicou o que ocorrera: o chamado foi encerrado porque minha apólice havia sido renovada em outubro e eu não tenho mais direito ao capital de sobrevivência, só à reserva matemática, que obviamente é menor. Premida pela necessidade do dinheiro, optei em aceitar receber a reserva, porque não posso esperar mais um ano.

    Assim é na prática a relação do humilde consumidor com as empresas supostamente reguladas pelos órgãos governamentais. Caímos no buraco negro do telemarketing, no qual todos dão respostas prontas, ninguém se responsabiliza por erros de informação, ninguém tem autonomia ou conhecimento para lidar com situações que fogem do Manual de Procedimentos Operacionais Padrão. Recorrer a quem? Ao PROCON, que já recebeu n reclamações do mesmo tipo? À SUSEP, em cujo site não consegui nem achar detalhes sobre a apólice que eu havia adquirido? À Justiça, que demora em média dois anos para processar uma demanda em cada uma de suas instâncias? Como dizia um professor meu na faculdade de Direito, as grandes empresas – operadoras de telefonia, seguradoras, bancos – são clientes contumazes do Judiciário. Um processo a mais ou a menos não faz diferença para elas, mas para aquele que busca seus direitos é uma aporrinhação em perda de tempo e de dinheiro e em termos de quantos sapos são engolidos.

    Prezados leitores, para que a democracia não seja um pacto de silêncio, mas uma efervescência, conforme preconiza Lula com seus coleguinhas latino-americanos, seria preciso que em nossa vida cotidiana tivéssemos a oportunidade de exercer pequenos direitos sem delongas ou tergiversações, sem que tenhamos que pagar pela ignorância e incompetência de empresas que agem muitas vezes de má-fé para vencer pelo cansaço o cliente que exige seus direitos pelos quais ele pagou. Seria preciso que em nossa vida cotidiana nossas queixas e preocupações pudessem ser ouvidas e não simplesmente que fôssemos submetidos a gravações automáticas, a opções infinitas no telefone que não levam a lugar nenhum.

    Garantir na prática os direitos do consumidor frente às empresas que agem com desfaçatez porque sabem que quem as regulam trabalharam ou trabalharão para elas faria muito para que nós brasileiros acreditássemos em nossas instituições, porque nossas relações de consumo afetam nossa vida todos os dias, de manhã à noite. Oxalá que nas próximas eleições, para além das belas e abstratas palavras sobre democracia, justiça e humanidade, os candidatos apresentem planos concretos para resolver o problema das portas giratórias.

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Nem só de pão vive o homem

Não é só a pessoa de Emmanuel Macron que derrotaremos em 2022, melhor, sua ideologia, da qual ele é o estandarte, o porta-voz e o executor. A pessoa de Macron não nos interessa, porque ela é fundamentalmente desinteressante. Ache para mim um único francês no país que possa explicar o que pensa Emmanuel Macron, um único! Não há nenhuma pessoa. Nem mesmo ele. Ninguém sabe quem ele é, porque ele não é ninguém. Atrás da máscara da inteligência perfeitamente tecnocrática, atrás da montanha de ideias superficiais, atrás dos slogans contraditórios, atrás do “ao mesmo tempo”, sinônimo de desordem, e “qualquer que seja o custo”, sinônimo de ruína, não há ninguém, não há nada. Macron esvaziou nossa economia, nossa identidade, nossa cultura, nossa liberdade, nossa energia, nossas esperanças, nossa existência, ele esvaziou tudo, porque ele em si mesmo é o grande vazio, o abismo. Em 2017, a França elegeu o nada, e ela caiu lá dentro. Meus amigos, é hora de tirar nosso país e nosso povo desse poço sem fundo. Deixaremos na vitrine, esse manequim de plástico, esse autômato […] essa máscara sem face que desfigura a nossa face. Nós deixaremos esse adolescente buscar-se eternamente.

Trecho do discurso de Éric Zemmour, ensaísta francês de origem judia e argelina, no primeiro evento realizado em 5 de dezembro em Villepinte, após lançar sua candidatura à presidência da França

A sociedade, afirma De Maistre, […] não é uma associação artificial construída de forma elaborada e baseada no cálculo do interesse e da felicidade individuais, mas algo que se baseia também no anseio humano incriado, original e irresistível de se sacrificar, no impulso de se imolar sobre um altar sagrado sem esperança de volta. Os exércitos obedecem ordens e caminham para a morte; seria grotesco supor que são animados por pensamentos de vantagem pessoal.

Trecho retirado do ensaio “Joseph de Maistre e as origens do fascismo”, incluído na coletânea “Limites da utopia” do ensaísta britânico Isaiah Berlin (1909-1997)

    Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da conversa entre três especialistas em psicologia, Steven Pinker, Jonathan Haidt e Jordan Peterson em que eles falavam sobre a influência deletéria do tipo de comunicação estimulado pelo Twitter sobre a possibilidade de argumentação, da busca de verdades comuns e do próprio exercício da democracia. Entre os muitos insights que os três acadêmicos compartilharam foi a respeito da natureza tribal do homem, fruto da nossa evolução nas savanas africanas. Precisávamos reunirmo-nos em grupos para juntos derrotar um inimigo, seja um predador ou outro grupo, em busca de recursos finitos, que se tornavam ainda mais raros considerando a pouca tecnologia disponível nos primórdios da humanidade que viabilizasse a exploração eficiente daquilo que tínhamos.

    Essa característica tribalista ficou introjetada no nosso cérebro e ela aflora seja na internet, por meio da troca de desaforos nas mídias sociais, seja na política. Meu objetivo nesta semana é explorar essa face politica do tribalismo por meio de um acontecimento político que não recebeu muita atenção no Brasil, o primeiro comício de Éric Zemmour como candidato à presidência da França. Nascido em 1958, ele é filho de judeus do norte da África que depois da Guerra da Argélia resolveram ir para a França para reconstruir a vida na metrópole, depois que a colônia havia sido perdida. Já escreveu vários livros de ensaios e seu grande tema em todos eles é o declínio da França.

    Para Zemmour a França está decadente porque, dentre outras razões, deixou-se invadir por imigrantes muçulmanos que não conseguem se adaptar à República laica criada pela Revolução Francesa de 1789, que separou a Igreja do Estado, e não fazem a mínima questão de assimilar-se, mesmo porque, sucessivos governos, de esquerda e direita, em nome da diversidade e da inclusão, permitiram que eles entrassem no país e que continuassem seguindo suas práticas sociais e religiosas sem nenhuma limitação. O resultado é que se a imigração continuar sem controle e considerando a baixa taxa de natalidade dos franceses tradicionais, o país, tal como ele é há mil anos, deixará de existir, por causa da substituição de uma população por outra e a cultura e a civilização francesas serão destruídas.

    No último dia 5 de dezembro, depois de pintar esse quadro negro das perspectivas da nação francesa, Zemmour propôs sua receita de salvação: acabar totalmente com a imigração, expulsar cidadãos com dupla nacionalidade que tenham cometido crimes, coibir ao máximo o direito de asilo e o direito de estrangeiros de gozarem do Estado do bem-estar social francês, reduzir drasticamente a concessão de cidadania a membros da família de cidadãos que conseguiram a cidadania francesa. No plano da educação, Zemmour quer acabar com a escrita inclusiva, pela qual pronomes que denotam gênero são eliminados para acabar com a escolha binária entre masculino e feminino, e no geral acabar com as políticas de inclusão e diversidade para focar no mérito, tal como segundo ele, fazem os asiáticos, que copiaram a educação tradicional que era dada aos franceses até 40 anos atrás.

    Ouvindo esse ensaísta tornado político falar ficamos com a impressão de que a França está num estado lamentável de podridão e decadência, só solucionável pela tomada de medidas enérgicas. Como ilustrado pelo trecho do seu discurso citado na abertura deste artigo, Zemmour utiliza palavras fortes como a França lançada no abismo pela eleição de um fantasma como Macron, a França desprovida dos seus elementos mais fundamentais, a França no caminho da autoimolação. No entanto, olhando os dados do CIA World Factbook, vemos que esse catastrofismo está longe dos fatos gerais: a França é um país em que 100% da população rural e urbana tem acesso à água potável e ao saneamento básico, em que não há crianças com menos de cinco anos desnutridas, em que a expectativa de vida das mulheres é de 85 anos e a de homens é de 82 anos, que tem a nona maior economia do mundo, cujo PIB per capita é de 42.000 dólares.

    Nesse sentido, ele não segue a receita iluminista de Steven Pinker, para quem devemos enfatizar mudanças graduais e seguras que levem a prosperidade, a felicidade e a liberdade para um número cada vez maior de pessoas por uma análise racional do custo-benefício das políticas públicas. Falar que a França está perdendo sua identidade e que o atual presidente da República Emmanuel Macron é desprovido de alma remete ao pensamento reacionário de Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), tal como descrito no ensaio de Isaiah Berlin, citado acima. De Maistre não acreditava que o Iluminismo enquanto sistema de ideias servisse para organizar a sociedade, porque para ele, a natureza humana não tinha como ponto forte esse componente racional tão enfatizado pelos filósofos das Luzes que lhes justificava o otimismo com relação ao futuro da humanidade, no qual os seres humanos resolveriam suas diferenças em bases contratuais, isto é, de mútuo consentimento, por meio da troca de concessões e vantagens. Para De Maistre, a natureza humana era tal que o indivíduo está disposto a se sacrificar por uma fé cega em algo que está além dele e que o motiva a lutar, seja a religião, o grupo, a nação, a ideologia. Esse é o fundamento do poder e quem quer que ache que há outro fundamento, mais racional e menos misterioso, só causa violência e caos quando quer criar a sociedade perfeita sem levar em conta o que o homem realmente é.

    Prezados leitores, Éric Zemmour reuniu quase 15.000 pessoas em Villepinte, entusiasmadas com seu discurso catastrofista e exclusivista, cheio de expressões poéticas, como vencer a desesperança com o destino do país mediante um esforço heróico de superação. Ao apelar à emoção dos franceses, receptivos à ideia de defesa da civilização, da cultura e da identidade do país, o ensaísta e jornalista aspirante a político não segue os ensinamentos de De Maistre a respeito da natureza profunda dos homens, tribalista e irracional? Será que eleger Macron como bode expiatório dos males da nação, personificando-os em um ser destituído de humanidade, como Zemmour descreve o atual presidente francês, permitirá tornar esse judeu de origem argelina popular o suficiente para fazê-lo derrotar o tecnocrata que não tem resposta definitiva para nenhum problema porque seu foco é buscar consensos e não incentivar o conflito? E se eleito, Zemmour realmente cumprirá suas promessas de campanha, ou vai contemporizar e trair seu eleitorado? Será ele um novo Trump, cheio de retórica bombástica na campanha, mas que em quatro anos de governo fez muito pouco para atender às reivindicações daqueles que o elegeram?

    Aguardemos os próximos capítulos. Uma coisa é certa: o sucesso da retórica inflamada de Zemmour num país de Primeiro Mundo mostra que nem só de pão vive o homem.

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