Rupturas

[…] e a Igreja Cristã considerou prudente, no quinto século de nossa era, associar os resquícios desse culto a Maria, e transformar o festival da colheita que celebrava a deusa Ártemis e era realizado em meados de agosto na festa da Assunção. Dessa maneira, o velho é preservado no novo, e tudo muda, exceto a essência. A história, como a vida, deve ser contínua, sob pena de morrer; o caráter e as instituições podem ser alterados, mas de maneira lenta; uma grave interrupção do seu desenvolvimento joga-as na amnésia e na insanidade nacionais.  

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Em 18 de setembro, d. Pedro e José Bonifácio assinaram e rubricaram diversos decretos instituindo a nova bandeira e o novo brasão de armas, que levava as cores verde, da casa de Bragança, e amarela, da casa dos Habsburgo. O desmonte histórico praticado pelos republicanos recodificaria essas cores e as transformaria no verde de nossas matas e no amarelo de nosso ouro, nossa riqueza.

Trecho retirado do livro “D. Pedro – A História não Contada” de Paulo Rezzutti

 

“Se fôssemos um país institucionalmente maduro, aprimoraríamos o modelo,” afirma Lazzarini. “Ao invés disso nós o jogamos fora.”

Trecho retirado do artigo sobre corrupção e crime no Brasil intitulado “Voltando Atrás”, publicado na revista The Economist de 5 de junho de 2021

    Prezados leitores, uma característica marcante da história da civilização escrita por Will Durant da qual “The Life of Greece” é o segundo volume, é que na parte final de um capítulo sobre alguma corrente política ou religiosa, sobre algum artista, filósofo ou estadista, sobre um tema qualquer Durant sempre faz uma avaliação do legado deixado na história de tal corrente, pessoa ou tema, fazendo uso do conhecimento que ele tem do que aconteceu depois, especialmente na parte Ocidental do mundo, seu foco pelo fato de a ela pertencer não só ele mesmo como a maior parte de seus leitores. O seu capítulo sobre a religião na Grécia concretiza tal método, pois nele o historiador e filósofo americano dá inúmeros exemplos de como as práticas religiosas gregas foram sub-repticiamente incorporadas ao Cristianismo, que acabou se tornando a religião dominante no Ocidente.

    Conforme explicado no trecho que abre este artigo, o culto da fertilidade e do poder da fêmea reprodutora estava presente na Grécia em festivais que celebravam Ártemis ou Diana, a Deusa da caça. De maneira muito hábil, a igreja incorporou esses rituais que se repetiam desde tempos imemoriais dando-lhes uma nova roupagem na figura da mãe de Cristo, tornando assim a nova religião mais aceitável a pessoas que pertenciam a sociedades não judaicas.

    A própria história de Jesus Cristo, do filho de Deus que é ele mesmo divino e que é sacrificado e renasce, deve muito às concepções da seita filosófico-religiosa do Orfismo. Na descrição de Durant, Cristo é o herdeiro místico do Deus Dionísio, pois este também morreu e ressuscitou: filho de Zeus e de sua filha Perséfone, Dionísio, que em sua primeira vida era chamado de Zagreus, foi esquartejado e fervido pelos Titãs. Atenas salvou o coração de Dionísio e o entregou a Zeus que o deu a Semele, a qual o gestou e deu-lhe uma segunda vida, na qual ele passou a ter o nome pelo qual nós o conhecemos em contraposição a Apolo, o Deus da luz e da razão.

    A lição que fica é que o Cristianismo foi tão bem-sucedido porque os Pais da Igreja souberam amalgamar as várias concepções filosóficas então correntes no mundo do Mediterrâneo dando-lhes nova roupagem para adaptá-las às condições do momento, em que a civilização grega tinha se tornado coisa do passado, mas ao mesmo tempo preservando a continuidade cultural de modo que a nova religião não fosse uma violência contra práticas arraigadas. Em suma, construir o novo sobre as bases do passado de modo que a história adquira um sentido para as pessoas que a estão fazendo no calor do momento.

    Sob essa perspectiva, longe de desmerecer o Cristianismo por tirar-lhe o ineditismo e relativizá-lo, a contextualização feita por Durant serve para realçar o fio condutor da história da civilização, qual seja, a necessidade do homem de lidar com os mistérios do mundo por meio de mitos, rituais e sacrifícios e em fazendo-o achar um senso de direção para seu próprio percurso individual. Ao vislumbrar um fim para a jornada, com base na experiência dos que viveram antes dele, o homem, enquanto ser social, consegue criar a cultura e a civilização, conectando o passado, o presente e o futuro num todo consistente. Na visão de Durant, conforme explicada no trecho reproduzido acima, o perigo do esquecimento e da ruptura total é a insanidade e a destruição das instituições: a vida experimentada pelo homem perde o significado e as instituições que expressam esse significado tornam-se vazias de conteúdo.

    Prezados leitores, esse introito explicando o paralelismo traçado pelo filósofo americano entre a religião na Grécia e o Cristianismo serve para inspirar-me a tirar uma lição dessa ênfase na continuidade como pré-condição para a criação. Dois exemplos tirados da história do Brasil mostram nossa falha nesse quesito.

    O primeiro é o da ruptura que a República deliberadamente realizou em relação ao Período Monárquico do Brasil. O desmonte histórico a que Rezzutti refere-se não é simplesmente uma nova roupagem que se deu a uma instituição antiga, como Maria foi a nova versão de Ártemis, símbolo da feminilidade, e Jesus Cristo foi a nova versão do Deus imolado e ressuscitado Dionísio. A história que passou a ser contada após 1889 sobre a origem das cores da bandeira brasileira é simplesmente mentirosa e teve por objetivo fazer os brasileiros esquecerem que tiveram dois imperadores e que bem ou mal o Estado brasileiro havia sido fundado e tivera seu imenso território consolidado por um regime monárquico.

    O segundo exemplo é mais recente e diz respeito à Operação Lava-Jato de luta contra a corrupção engendrada pelas relações promíscuas entre os políticos e o empresariado. Conforme explicou Sérgio Lazzarini à revista The Economist, os excessos persecutórios dos procuradores e juízes da Lava-Jato levaram a muitas decisões injustas e ilegais. No entanto, ao invés de preservarmos o legado do esforço em punir as práticas de pagamento e recebimento de propina e fazermos correções de rumo, simplesmente optamos em jogar a Lava-Jato pela janela, como se tudo que ela tivesse feito tenha sido execrável.

    Num e noutro caso, nossa opção pela ruptura nos fez perder o senso de direção. Não reconhecendo os méritos da Monarquia, a República brasileira incorreu em erros, tais como o excesso de intervencionismo militar na vida política, que teriam sido evitados se os Republicanos tivessem tirado lições do exercício do Poder Moderador por D. Pedro II. Quanto ao desmonte da Lava-Jato, ainda é muito cedo para julgarmos os efeitos que isso trará para a vida pública brasileira, mas certamente a perda do efeito dissuasório que ela trouxe fará com que os políticos e empresários amigos do poder continuem realizando as práticas que tornam a democracia sinônimo de conchavos e de esquemas para a grande maioria da população brasileira.

    Prezados leitores, o resumo da ópera é este: preservar as instituições e atualizá-las para mais bem fazê-lo é garantir as bases para a construção da ordem social. Insistir sempre na ruptura sob o pressuposto de que o novo é sempre melhor só nos leva a dar passos em falso e ficar sem rumo. Oxalá um dia consigamos aprender a lição.

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Vanity Fair

Eu acredito que o remorso é o menos ativo de todos os sentidos morais do homem – o que mais facilmente pode ser morto quando despertado; e em algumas pessoas nunca é despertado. Nós lamentamos sermos descobertos e a ideia da vergonha ou da punição, mas o mero senso de transgressão faz muito poucas pessoas infelizes na Feira das Vaidades.

Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra

 

Se ele não fosse um grande príncipe, possivelmente muito poucos o teriam visitado, mas na Fogueira das Vaidades os pecados de grandes personagens são vistos com um olhar indulgente.

Trecho retirado do livro “Fogueira das Vaidades” de William Tackeray (1811-1863), jornalista e escritor nascido em Calcutá, Índia e radicado na Inglaterra

Vocês gostam é do bem duro, né? Ninguém é de ferro

Trecho de vídeo em que o médico e influenciador digital brasileiro Victor Sorrentino faz brincadeira com uma vendedora em Luxor, no Egito, comparando o papiro duro e comprido vendido na loja ao órgão sexual masculino

 

Eu estou gravando este vídeo para pedir desculpas […] Para deixar claro que tenho o maior respeito pelo povo egípcio em geral, especialmente as mulheres egípcias

Trecho de vídeo gravado pelo médico ao lado da vendedora que foi objeto da sua brincadeira depois de passar alguns dias na prisão no Egito, acusado de assédio sexual

 

   Prezados leitores, na semana passada eu usei um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, para exemplificar o comportamento dos membros das nossas elites em relação aos negros. O objetivo era mostrar como os grandes escritores em seus exercícios de imaginação revelam a essência da realidade. Inspirada pela leitura do bruxo do Cosme Velho, eu fiz uma previsão errada: acreditei que Eduardo Pazuello, aquele que fez um soldado negro puxar uma carroça em 2005 e em 2021 participou de um ato político ao lado de Jair Bolsonaro em sendo general da ativa, seria de alguma forma punido, mesmo que fosse punição de fachada.

    Nem isso ocorreu: ao contrário de Brás Cubas que era repreendido pelo pai na frente de todos quando era cruel, sádico ou traquinas, e às escondidas recebia a admiração do pai por sua demonstração de energia, Pazuello foi oficial e escancaradamente perdoado em 2021 como havia sido perdoado em 2005, porque suas explicações foram aceitas de maneira benevolente pelo Exército tanto no passado como agora. Daí que nesta semana, procuro um outro escritor que explique para mim esses desdobramentos, porque talvez Machado de Assis não dê conta de todas as nuances da realidade brasileira do século XXI. E o escritor por mim escolhido é William Thackeray, que chegou a ser considerado pelos críticos melhor que Charles Dickens. Eu o escolho por causa de sua obra Vanity Fair, que ele publicou em capítulos entre 1847 e 1848 e o alçou à fama. Como mostram os trechos citados na abertura deste artigo, Tackeray usa Vanity Fair como uma expressão para referir-se à sociedade do seu tempo, seus usos e costumes, de maneira irônica e reveladora. À época em que se passa a história, no chamado período da Regência no Reino Unido, de 1795 a 1837, as relações sociais eram estabelecidas fisicamente em jantares, festas, passeios de carruagem no parque.

   Atualmente a Vanity Fair desenrola-se virtualmente nas mídias sociais: é lá que as pessoas se encontram, conversam, trocam elogios e insultos. Por isso, para adaptar as observações de Tackeray à nossa realidade do século XXI, é preciso voltar os olhos para o que se passa lá. Nesta semana que passou o incidente envolvendo o médico Victor Sorrentino, brasileiro que estava em férias no Egito e que tem mais de um milhão de seguidores, pode ser entendido aplicando o conceito de que somos seres sociais, participantes desta Feira das Vaidades e que estamos sempre desempenhando um papel.

    Para um médico as mídias sociais são um bom canal de divulgação: eles podem postar conteúdos sobre saúde e caso sejam seguidos recebem um dinheiro de acordo com o número de curtidas que recebem. E para manter a atenção dos seguidores é preciso postar novidades o tempo todo. Nada mais natural que estando num país exótico como o Egito das pirâmides, Victor Sorrentino procurasse explorar a oportunidade. Afinal, exagerar no conteúdo técnico sobre medicina pode cansar a mente dos internautas cuja capacidade de atenção é cada vez menor. É preciso variar. Por que não um vídeo em que o médico grava uma pegadinha com uma incauta vendedora que não fala nada de português – e portanto não entenderia as piadas – e deixaria que a historinha se desenrolasse de maneira autêntica?

   Assim o Sr. Sorrentino fez, com a ajuda de um amigo. Enquanto a vendedora, de lenço nos cabelos como boa muçulmana, fazia a demonstração do produto vendido, o papiro, Victor e seu colega de gravação comparavam o comprimento e a dureza do dito cujo com a preferência das mulheres por determinado tipo de órgão sexual masculino. Tudo muito engraçado, especialmente porque a vendedora desempenhava o seu papel de fazer a demonstração das qualidades do papiro sem saber que também demonstrava as qualidades que toda mulher, de acordo com os ensinamentos do médico brasileiro, procuram no homem.

    O que o doutor não podia prever é que haveria brasileiros que moram no Egito e que traduziram a pegadinha do papiro-pênis ou do pênis-papiro para o árabe, o que permitiu que as autoridades egípcias ficassem sabendo e enquadrassem a conduta de Victor como assédio sexual, o que o levou à prisão, já que ele mesmo fez prova contra si. Depois de alguns dias, o médico gaúcho foi solto, provavelmente depois de pagar uma bela propina, considerando que o Egito está na posição 117 de 180 países relacionados no Índice de Corrupção da Transparency International, com 33 pontos, ao passo que o Brasil está na posição 94, com 38 pontos. E mais, ele seguiu o ritual da Vanity Fair do século e pediu desculpas às mulheres egípcias, a quem ele respeita muito.

    Aqui a sabedoria de Tackeray vem a calhar, conforme mostrada na abertura deste artigo. Será que a retratação e a gravação do vídeo fazem parte do acordo com as autoridades egípcias para ele ser solto ou ele realmente arrepende-se do que fez? E se ele se arrepende, será que é porque foi pego em flagrante delito e passou um medo danado em uma prisão egípcia? Ou será que esse respeito que ele afirma ter pelas mulheres faz apenas parte do ritual a ser cumprido para ele não ser defenestrado das redes sociais e perder sua fonte de receitas? O mínimo que se pode dizer sobre seu comportamento é que ele não tem sensibilidade nenhuma em relação às diferenças culturais e de costumes de países muçulmanos, ou talvez seja totalmente ignorante sobre o que significa ser uma mulher em um país muçulmano e sobre o que uma mulher muçulmana almeja na vida, o que é muito diferente do que uma mulher sexualmente liberada e empoderada do Ocidente almeja.

    No final das contas, o episódio pode ter sido vantajoso para Sorrentino para aumentar seu público de seguidores. Teve sorte de ter feito uma pegadinha no Egito, um país em que o turismo reponde por 11% do PIB e que emprega 12% da força de trabalho do país. Talvez se ele tivesse gravado esse vídeo em países do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita ou Emirados Árabes que nadam de braçada em petrodólares, a pena teria sido mais severa. Para voltar a ser membro atuante na Vanity Fair do século XXI bastou ao médico desempenhar em frente às câmeras o papel de homem contrito respeitador do povo egípcio e de suas mulheres. E como ensinou Tackeray há mais de 170 anos, perdoa-se mais facilmente a um indivíduo poderoso como ele, com um milhão de seguidores, assim como perdoou-se ao grande Pazuello os pecadilhos de humilhar um soldado negro e de servir de cabo eleitoral de Bolsonaro na qualidade de membro da ativa do Exército.

    Prezados leitores, tanto o general quanto o doutor continuarão a desfilar pela Feira das Vaidades, cada qual ao seu modo: Pazuello mostrando sua reconhecida competência em gestão e logística que demonstrou quando esteve à frente do Ministério da Saúde, Sorrentino sua reconhecida competência nos meandros da sexualidade feminina. Sejamos indulgentes com a fina flor das nossas elites porque elas têm muitos produtos a mostrar na Vanity Fair.

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O menino é pai do homem

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. […] Prudencio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia; algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” ao que, eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; esse às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.

Trecho retirado do capítulo “O menino é pai do homem” do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis (1839-1908)

Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vitor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.

Trecho retirado do artigo “O labirinto do general: da humilhação a um soldado a ’réu’ na CPI publicado no jornal o Estado de São Paulo em 30 de maio de 2021

    Prezados leitores, nunca esqueço das palavras de Gore Vidal em um dos ensaios publicados no Brasil sob o título “De fato e de ficção”, já citado aqui neste meu humilde espaço, de que a literatura, quando bem feita, é um exercício de imaginação dos mais verdadeiros.  Nada como uma história bem contada para iluminar a realidade e revelá-la em toda sua beleza ou torpeza, dando-lhe um sentido que, se ficássemos muito colados aos detalhes do cotidiano, não perceberíamos. Daí por que a literatura que se pretende ser algo além do entretenimento é uma poderosa arma de reflexão. O trecho que abre este artigo ilustra esse poder da literatura de recriar a realidade e torná-la inteligível para nós.

    No caso do livro de Machado de Assis as travessuras fictícias de Brás Cubas, um menino bem nascido no Rio de Janeiro do século XIX, mostram a insensibilidade de quem cresceu em um meio no qual os escravos negros eram tratados como objetos com os quais podia-se fazer o que quiser. Pior, tudo o que ele fazia de cruel, de desumano, de irresponsável era aplaudido pelo pai como manifestação de energia e de robustez, em suma de um espírito que nascera para mandar, para dar ordens do alto do cavalo real ou fictício aos negros que deveriam obedecer sempre, por mais que as ordens fossem absurdas. Prudencio comportava-se como um cavalo apesar de ser um ser humano porque assim queria Brás Cubas, que exercia assim sua autoridade e reforçava seu papel de senhor, com o beneplácito do pai, que via neste mandonismo, neste capricho de um menino mimado e mal acostumado, sinal de liderança.

    Este famoso trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas ilustra o comportamento dos nossos nhonhôs de duzentos anos atrás e infelizmente continua a revelar traços que persistem, como mostra este episódio da carreira militar do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde de Jair Bolsonaro. Na época em que ele mandou o soldado negro puxar a carroça, em 2005, Pazuello era tenente-coronel e sua conduta foi submetida a um Inquérito Policial Militar que não levou a nenhuma punição porque a defesa conseguiu fazer valer sua versão de que o objetivo do comandante do quartel não era impor maus-tratos ao recruta, e sua atitude derivou do seu amor especial pelos cavalos. Um cavalo de tração como aquele deveria gozar sempre de boa saúde, e para isso deveria ser bem tratado e não ordenado a puxar mais peso do que poderia aguentar (no caso havia uma banheira na carroça).

    E assim, nosso querido general sempre estabeleceu suas prioridades valendo-se dos seus privilégios, tal como nosso querido Brás Cubas, que dedicava-se a exercícios equestres para treinar suas qualidades morais: humilhar um recruta para mostrar-lhe a necessidade de cuidar bem dos animais foi possível a Eduardo Pazuello porque ele tinha posição de mando àquela época e ficou impune porque aqueles que o julgaram comportaram-se como o pai do herói machadiano: assim como enforcar, chicotear Prudêncio era uma mera traquinagem,  que preparava o futuro líder político Brás Cubas para seu grande destino de mandar nas classes subalternas, fazer Carlos Vítor de Souza Chagas puxar uma carroça reforçou a autoridade de Pazuello, tanto que todos no quartel riram às custas do soldado de 19 anos e depois de sua experiência de comandante daquele quartel o futuro Ministro da Saúde comandou o 20º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista.

    A última façanha de Pazuello foi ter participado de uma carreata de motociclistas ou “motociata”, ao lado de Bolsonaro no Aterro do Flamengo no dia 23 de maio. Como ele ainda é general da ativa, pode ser submetido a punição por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe militares da ativa de comparecerem a atos políticos. O que fará o Comando do Exército? Bolsonaro, que chamou Pazuello carinhosamente de “gordinho” durante a manifestação no Rio de Janeiro, já pediu publicamente que ele não seja punido. Será que o Comando do Exército fará como o pai de Brás Cubas? Aplicará uma punição proforma para seguir as formalidades da lei, mas nos bastidores irá passar-lhe a mão na cabeça com condescendência e admiração? Será que a direção das nossas Forças Armadas quer os militares participando da política como uma forma de evitar os “excessos” da democracia? Será que na realidade consideram o ativismo político de certos militares como algo bom para manter a lei e a ordem? O mais provável é que cheguem a uma solução de consenso e obriguem Pazuello a ir para a reserva e pronto, sem grandes punições. Um tapinha nas mãos do voluntarioso general de divisão da ativa, talvez: afinal muitos dirão que o evento era dos motociclistas que convidaram Jair Bolsonaro e seus amigos a participarem e não um evento da campanha de reeleição de Bolsonaro. Há sempre uma explicação desde que haja boa vontade com pessoas que devem ser dignas de admiração pelo “espírito robusto”.

    Prezados leitores, convenceram-se de que a ficção da literatura às vezes é tão criativa e verdadeira que ela se faz presente na realidade? Entre Brás Cubas e Eduardo Pazuello, entre Prudencio e Carlos Vitor de Souza Chagas passaram-se dezenas e dezenas de anos, mudou-se o regime político de monarquia para república e no entanto, continuamos a tratar seres humanos como bestas de carga. O bruxo do Cosme Velho continua, como sempre foi, desde que escreveu suas principais obras, presciente das torpezas deste Brasil cuja herança escravista continua ainda presente nos pequenos detalhes do cotidiano.

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Liberdade x igualdade: ontem e hoje

A “tirania” de Pisístrato foi parte de um movimento geral nas cidades comercialmente ativas do século VI a.C. na Grécia de substituir o regime feudal da aristocracia proprietária das terras por uma dominação política pela classe média em uma aliança temporária com os pobres. Tais ditaduras tiveram sua origem na concentração patológica da riqueza e na incapacidade dos ricos de chegar a fazer um compromisso. Obrigados a escolher, os pobres, como os ricos amam mais o dinheiro do que a liberdade política; e a única liberdade política capaz de perdurar é aquela tão podada que impede os ricos de arrancar o couro dos pobres pela capacidade ou sutileza e os pobres de roubar os ricos pela violência ou pelos votos. […] Chegando ao poder, o ditador aboliu as dívidas ou confiscou grandes propriedades, taxou os ricos para financiar obras públicas ou redistribuiu a riqueza superconcentrada; e ao mesmo tempo que ganhava o apoio das massas por meio de tais medidas, assegurava o apoio da classe empresarial promovendo o comércio com a fabricação estatal de moedas e os tratados comerciais, e aumentando o prestígio social da burguesia.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

Temos dificuldades graves no uso do dinheiro público. Não é apenas uma questão fiscal, mas de natureza política, ligada à incapacidade de arbitrar prioridades. Nossos representantes precisam dar mais ênfase aos grandes objetivos sociais, que representem avanços para a maioria das pessoas.

Trecho de entrevista de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, à revista VEJA de 26 de maio de 2021

 

    Prezados leitores, na semana passada eu mencionei a cidade de Esparta na Grécia antiga e seu sistema peculiar em que uma casta dominava a maioria trabalhadora pela sua total dedicação às artes militares. Continuando sua descrição da história das várias cidades gregas para contextualizar sua produção cultural e artística, Will Durant, no livro mencionado acima, explica-nos os problemas enfrentados ao final do século VII a.C. pela Ática, a região da Grécia onde fica Atenas. Abordar tais problemas de mais de dois mil anos permite-nos ver como os desafios dos vários sistemas econômicos e políticos surgidos ao longo da história apresentam certas características comuns.

    A situação dos camponeses da Ática tornou-se particularmente dramática em um determinado momento. Eles foram passando mais e mais para uma situação de destituição completa por dois fatores: a divisão das suas terras entre os descendentes tornava as propriedades cada vez menores e menos produtivas e o incremento do comércio pela fundação de colônias em todo o Mediterrâneo estimulou a importação de alimentos a preços com os quais os camponeses não conseguiam competir.

    O resultado era que os camponeses se tornavam endividados pela necessidade de hipotecar as terras e não conseguindo pagar as dívidas eram obrigados a trabalhar para os credores como servos. Nas cidades, os intercâmbios internacionais tornavam os escravos muito mais facilmente disponíveis e a classe média dispensava o uso dos trabalhadores livres que antes lhes prestavam serviços, levando tais trabalhadores a não ter emprego e a passar fome.

     Durant resume bem a situação descrevendo a dialética que está presente em toda a sociedade, aquela entre a liberdade e a igualdade. Com a liberdade pôde haver o aumento do comércio com as colônias gregas do Mediterrâneo, a troca de produtos, a produção de riquezas pela ampliação dos mercados. Por outro lado, isso causou devastação em certos grupos sociais, que perderam com esse dinamismo porque eram incapazes de fazer frente à nova situação e adaptarem-se.

    E assim acontece sempre: a ênfase na liberdade para que o talento e o mérito floresçam cria a oportunidade de inovação e de eficiência; ao mesmo tempo, cria-se um grupo de vencedores que transmitem sua riqueza aos descendentes e que com seu dinheiro passam a ter influência sobre como as leis são elaboradas e interpretadas. Na Ática do final do século VII a.C.  o camponês, incapaz de competir com os produtos importados, acabava eternamente preso às obrigações com os credores pela execução estrita das leis sobre execução de dívidas.  Dessa forma, a igualdade sai prejudicada, e a casta dos que prosperam pela habilidade de enfrentar o desafio das novas situações usa seu poder para aumentá-lo ainda mais moldando as leis aos seus próprios interesses.

    Cria-se assim um círculo virtuoso para os que estão em cima e um círculo vicioso para os que estão em baixo. O poder econômico cria poder político que reforça o poder econômico e a falta de poder econômico leva à perda de poder político que reforça a destituição material. Em última análise, chega-se ao estágio que Durant descreve como concentração patológica da riqueza, conforme o trecho que abre este artigo. Patológica porque o foco absoluto na liberdade em detrimento da igualdade torna os pobres tão destituídos e desesperados que eles não têm mais nada a perder e portanto, não tem mais nenhum interesse na lei e na ordem vigentes. Em suma, estão prontos para a revolução.

    O desafio em qualquer sociedade que chega a este estado radical de coisas é encontrar politicamente um meio de quebrar essa cadeia de eventos que torna os ricos capazes de esmagar os pobres e levar os pobres à violência, e tornar a dinâmica entre liberdade e igualdade pender um pouco menos para o lado da liberdade e um pouco mais para a igualdade, e assim preservar a paz social. Durant explica-nos que isso foi feito pelos tiranos, particularmente Sólon (630 a.C. – 560 a.C.) e Psístrato (início do século VI a.C. – 527 a.C.).

    Pertencentes à fina flor da aristocracia ateniense, eles foram capazes de estabelecer um novo pacto social aliviando o ônus financeiro dos pobres pelo perdão das dívidas e no caso de Psístrato pela taxação da renda dos abonados para financiar bens públicos e gerar empregos para os menos abonados. Durant conclui que esta nova lei e ordem, que impediu a explosão social, pela diminuição da concentração de renda, forneceu as bases do conforto e prosperidade que permitiram o florescimento da democracia em Atenas posteriormente.

    A lição deste panorama da vida de Atenas e das outras cidades da Ática na Grécia Antiga é que a desigualdade em demasia corre o risco de autodestruir-se. Ela é inevitável caso haja liberdade, pois as pessoas apresentam diferentes capacidades, mas ela pode chegar a um ponto tal que torna a vida na sociedade inviável pela criação de um grupo de pessoas que fica destituído, sem direito a nada pois tanto a realidade material como a realidade jurídica estão contra elas, e sem compromisso nenhum em manter o sistema. A saída é aquela encontrada pelos tiranos: deixar os ricos enriquecerem, mas sem lhes permitir arrancar o couro dos pobres e dar a estes certas benesses que os tornem interessados na manutenção do sistema, e não na sua destruição.

    Psístrato em sua época mandou construir templos, instituiu os Jogos Panatenaicos, em homenagem à deusa Atena, e assim deu um sentido de pertencimento a todos. Mais de 2000 anos depois, Arminio Fraga ao falar dos problemas do Brasil, toca num ponto importante que é na essência o mesmo desafio enfrentado pelos governantes atenienses: nosso sistema político é incapaz de enfrentar essa dialética liberdade x igualdade de modo que cada indivíduo se sinta parte do todo. Especificamente no caso do Brasil do século XXI, o desafio é fazer com que o dinheiro público seja investido para diminuir a desigualdade e oferecer bens sociais que beneficiem a grande maioria dos brasileiros, especialmente saúde e educação.

    De fato, estamos em um ponto de nossa história em que as desigualdades são reforçadas por um regime político e jurídico que cria privilegiados, os quais usam seu poder para barrar qualquer tipo de reforma que afete seus interesses. Em sua entrevista, Fraga explica que sem que esses bens sejam oferecidos, não teremos viabilidade econômica, pois não conseguiremos aumentar a produtividade e inovar e sem tais requisitos nenhuma economia consegue hoje crescer e gerar empregos. Qual será a saída para nosso impasse político, em pleno século XXI? Será que teremos déspotas esclarecidos à nossa disposição que estabeleçam um novo pacto social, doa a quem doer? Ou nosso sistema implodirá por sua extrema desigualdade e inviabilidade no momento da história em que o capital humano é que faz a diferença? Veremos.

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Pátria

Autocontrole, moderação, equanimidade na fortuna e na adversidade […]. Se é uma virtude obedecer às leis, os espartanos eram muito mais virtuosos do que maioria dos homens. Aqui foi, claro, onde Platão encontrou os esboços da sua utopia, um pouco obscurecida por uma estranha indiferença às Ideias. Cansados e amedrontados com a vulgaridade e o caos da democracia, muitos pensadores gregos refugiaram-se na idolatria da lei e da ordem de Esparta.

[…] os atenienses estavam construindo, a partir de mil injustiças e erros, uma civilização de amplo alcance e de atividade intensa, aberta a toda nova ideia e ávida por estabelecer interações com o mundo, tolerante variada, complexa, luxuosa, inovadora, cética, criativa, poética, turbulenta, livre.

Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Euskadi Ta Askatasua (em basco: Pátria Basca e Liberdade), mais conhecido pela sigla ETA, foi uma organização nacionalista basca armada. […] Foi fundado em 1959 como um grupo de promoção da cultura basca. No final da década de 1960 evoluiu para uma organização militar separatista, lutando pela independência da região histórica do País Basco, cujo antigo território atualmente se distribui entre a Espanha e França. Ao mesmo tempo, o ETA assumiu uma ideologia marxista-leninista revolucionária […] Desde 1968, o ETA foi responsabilizado pelas mortes de 829 pessoas e por ferimentos causados a milhares de outras, além de dezenas de sequestros. Estima-se que mais de 400 membros do ETA estejam em prisões da Espanha, França e outros países.

Trecho do verbete da Wikipedia sobre a organização terrorista que foi declarada oficialmente extinta em 2 de maio de 2018

    Prezados leitores, os dois primeiros trechos que abrem este artigo farão todos que o lerem lembrar-se das suas aulas de História Antiga em que se tratava da civilização grega. Invariavelmente havia a comparação dos dois modelos políticos e sociais, o ateniense e o espartano. A descrição detalhada de Will Durant sobre as duas cidades permite tirar lições sobre acontecimentos históricos muito posteriores ao tempo em que Esparta e Atenas eram vivas e faziam parte da Hélade, isto é, dos valores e ideais da civilização grega. Nesta semana, meu foco será na primeira, por razões que ficarão claras ao final.

   Esparta era uma sociedade em que todo cidadão do sexo masculino era retirado da sua família aos sete anos para ser educado com outros homens até a idade dos 30 anos, quando então era-lhe permitido constituir família. A educação constituía-se basicamente de treinamento militar, uma necessidade considerando que a elite dominante, dona das terras adquiridas pela conquista realizada pelos invasores dóricos da Lacedônia e da Messênia, era em número sete vezes menor do que a classe dos hilotas, os escravos encarregados do trabalho pesado. Durant  define de maneira sucinta que tipo de formação dava-se aos espartanos: não se tratava de colocá-los em contato com teorias abstratas sobre o que é a virtude ou o bem, mas de inculcar hábitos virtuosos pela repetição contínua de comportamentos que seguissem o padrão: comer de maneira frugal, vestir-se simplesmente, aprender a lutar, privar-se de confortos materiais, em suma violentar a carne de todas as maneiras para fazer dos homens a personificação de um ideal e prepará-los para a guerra seja para esmagar revoltas dos escravos ou para destruir os inimigos externos. E morrer lutando por Esparta era a honra suprema, cujo contraponto era a ignomínia de voltar vivo de uma guerra perdida.

    De acordo com Durant, essa ênfase no sacrifício do indivíduo em prol da Pátria foi facilitada e consolidada pela introdução do Código de Licurgo, lendário ou real rei de Esparta que foi responsável pela sistematização e harmonização de várias leis consuetudinárias que se tornaram sagradas ao serem codificadas. Os cidadãos obedeciam à lei estritamente, desempenhando seu papel na engrenagem que mantinha o controle de poucos sobre muitos. Daí a caracterização de Esparta como o império da lei, executada ao custo do corpo e do espírito do homem, já que as manifestações artísticas em sua maior parte, à exceção da música, eram consideradas nocivas aos objetivos militaristas, pois faziam o indivíduo desviar-se da norma.

    O balanço final do historiador e filósofo americano é claramente desfavorável a Esparta. Violentando a natureza humana, inclusive aquilo que ela tem de vicioso, o sistema do primado absoluto da lei e da ordem acabou sendo um fim em si mesmo que cegou a sociedade espartana, fazendo-a concentrar-se em sua própria sobrevivência como ente coletivo, à custa de tudo e de todos, o que levou à sua destruição pelos que ressentiam sua arrogância. Nesse sentido, em que pese Esparta ter sido alvo de admiração por parte de pensadores gregos, seu legado foi nulo, porque como afirma Durant no segundo trecho deste artigo, o espírito humano alimenta-se dos erros, dos vícios, da liberdade, do caos: perfeição corporificada só leva à estagnação.

    É impossível não ler sobre Esparta e a ideologia de Estado que ela colocava em prática, sem traçar paralelos, aliás essas comparações são uma das utilidades do estudo da História. Humildemente ofereço-lhes uma referência à trajetória do grupo separatista ETA que atuou entre 1959 e 2018 em prol da independência do País Basco, tal como retratada em uma minissérie da HBO chamada Pátria.

    Os personagens são todos bascos, mas dividem-se em turmas distintas: há aqueles que valorizam suas especificidades culturais e linguísticas, diferentes do resto da Espanha, mas que querem viver sua vida normal como cidadãos do país e trabalhar casar e ter filhos; há outros para os quais isso não basta e é preciso lutar pela independência do pequeno enclave, custe o que custar. Quem defende a entente com o Estado espanhol é considerado pelos membros do segundo grupo traidores, covardes, dignos de pena e até de morte, por serem obstáculos à causa. Assim é que na minissérie, Jesús Maria “Txato” Lertxundi Altuna, dono de uma transportadora no vilarejo onde se desenrola a ação, depois de passar semanas vendo seu nome sendo pichado nas ruas com insultos, e ser ostracizado por seus amigos por ser considerado inimigo da causa independentista, é assassinado por Joxe Mari Garmendia Uzkudun, que abandona sua família para tornar-se membro do ETA, e a quem Txato conhecia desde a infância do seu algoz. Para Joxe Mari tais relações pessoais não importam, e o principal critério de avaliação de uma pessoa não são suas qualidades morais, mas sua utilidade ou não para a criação do País Basco como entidade política autônoma.

    Esse assassinato de um basco por outro acaba servindo como emblema do dilema enfrentado pelo ETA e que talvez explique em parte sua derrocada. A morte ou a mutilação de pessoas inocentes acabaram alijando uma parte da população do País Basco, que embora se identificasse com a língua e a cultura, não considerava a independência política um ideal absoluto que devesse ser colocado em prática de qualquer maneira. No final das contas, hoje em dia o ETA é conhecido como sendo uma organização terrorista, com todas as conotações negativas que essa palavra tem. Será que o sacrifício de milhares de vítimas ao longo de quase 60 anos valeu a pena em termos daquilo que foi conquistado? Afinal a autonomia concedida pelo governo espanhol a três províncias da região basca – Álava, Biscaia e Guipúscoa – também foi concedida à Catalunha, que embora tenha desejos de separar-se nunca teve uma organização que tenha trilhado a rota radical do ETA.

    Prezados leitores, recomendo-lhes nestes tempos de falta de convívio pessoal assistir a Pátria.  Sob a luz da história de Esparta, que se consumiu no fogo da sua própria obtusidade ideológica, o destino infeliz do ETA e de seus membros torna-se mais inteligível.

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