1% x 99%: onde fica a democracia?

O verdadeiro patriota em uma democracia deve tomar cuidado para que a maioria não fique muito pobre… ele deve envidar esforços para que eles possam usufruir prosperidade eterna; e pelo fato de isso ser vantajoso para os ricos, o que pode ser salvo do dinheiro público deve ser dividido entre os pobres em tal quantidade que possa permitir-lhes comprar um pequeno lote de terra. […]Sempre que o número daqueles no estrato médio da sociedade tornou-se pequeno demais, aqueles que eram mais numerosos, sejam os ricos ou os pobres, sempre os subjugaram e assumiram eles mesmos a administração dos negócios públicos … Sempre que ou os ricos dominam os pobres ou os pobres dominam os ricos, nenhum deles estabelecerá um estado livre.

Trechos retirados do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, citando o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

Basicamente a filosofia americana é que a maneira de impedir o desenvolvimento de uma classe média independente é mantê-la tão endividada que ela tem que trabalhar e fazer dívidas ou então abandonar uma educação cara, não ser contratado e passar fome.

Trecho da fala sobre os empréstimos estudantis nos Estados Unidos de autoria de Michael Hudson (1939-), economista americano e professor da Universidade de Missouri, em sua conversa com Thomas Piketty (1971-), economista francês autor do livro “O Capitalismo no Século XXI”

    Prezados leitores, para uma pessoa que como eu foi criança na década de 1980, passou por n planos econômicos e lembra da pasta que Ernane Galvêas (1922-), Ministro da Fazenda do Brasil de 1980 a 1985, carregava nas suas idas a Washington para negociar novos empréstimos com o FMI, é difícil acreditar em economistas. Nós seguimos muitas receitas de economistas ao longo das última quatro décadas: planos ortodoxos, planos heterodoxos, desindexações, paridade cambial, arrochos salariais, aumento de impostos, alta das taxas de juros, limitações à aposentadoria, teto fiscal.

    Os magos da economia e seus defensores na imprensa nunca deixaram de prometer o caminho da prosperidade e do desenvolvimento se nós fizéssemos os sacrifícios que eles nos propunham e agíssemos com o bom senso que eles nos mostravam com condescendência. No mais das vezes, o que nos foi entregue foram períodos de prosperidade seguidos de grandes ressacas. Assim ocorreu com o milagre econômico de 1969-1973, que foi seguido por dois choques do petróleo, em 1973 e 1979; e mais recentemente, no boom das commodities de 2000 a 2014, que foi seguido por um período de recessão econômica entre 2014 e 2016 e agora pela crise da pandemia de COVID-19.

    No entanto, há um economista que não deixo de ler e de ouvir justamente porque o que ele propõe nunca será executado, a não ser que a situação chegue ao extremo que descreveu Aristóteles há mais de 2.000 anos, conforme o trecho que abre este artigo: quando a classe média se tornar tão inexpressiva que só restará o radicalismo, seja dos ricos concentrando toda a riqueza, seja dos pobres, tomando dos outros por meio da revolução. Refiro-me a Michael Hudson, que no dia 26 de setembro trocou ideias com Thomas Piketty sobre a desigualdade e os impactos dela no mundo. O foco de Hudson são os Estados Unidos, mas as lições que ele dá podem ser muito bem aproveitadas por nós brasileiros, como tentarei mostrar aqui explicando as ideias dele.

    Foi-se o tempo do capitalismo industrial, que gerava empregos, consumo e renda, num círculo virtuoso de aumento do bolo para todos, conforme ocorreu nos Estados Unidos desde o século XIX até a década de 60 do século XX. Agora o que predomina, mais acentuadamente desde as duas últimas décadas do século XX,  é o capitalismo financeiro, isto é, o cerne da atividade econômica sai da produção para a intermediação financeira, que como antípoda do primeiro tem seu próprio círculo vicioso: desemprego, perda do poder de compra e dívida, para compensar a perda do poder de compra. A intermediação financeira está em toda parte: quem quer comprar uma casa ou carro pega um empréstimo no banco e dá como garantia a casa ou carro financiado; quem quer comprar bens de consumo não duráveis usa o cartão de crédito e vai pagando as prestações a perder de vista, com os juros embutidos; quem quer frequentar o ensino superior contrata um empréstimo e ao terminar a faculdade já sai endividado e a única maneira de honrar a dívida é conseguir um emprego, sendo obrigado a comprometer uma parte da renda do salário com o pagamento do principal e dos juros por anos a fio.

    A predominância desse tipo de capitalismo é possível porque o governo, dominado pela agenda do 1% da população mais rica, viabiliza essa ciranda financeira. Os bens públicos, como serviços de água, eletricidade, esgoto, transporte, são vendidos a bem do enxugamento da máquina estatal e viram monopólios privados, que cobram as tarifas altas o suficiente para cobrir o custo dos empréstimos que as empresas tomam para adquirir tais monopólios. Quando o Banco Central americano atua para estimular a economia com juros baixos, esse excesso de liquidez é capturado pelas instituições financeiras, que reciclam esse dinheiro para empresas comprarem outras empresas ou para fecharem o seu próprio capital, comprando suas próprias ações na bolsa para aumentar o lucro dos executivos que são remunerados em parte com bônus de ações. Quando tais instituições emprestam para indivíduos, elas o fazem sempre mediante garantia de algum ativo, o que leva ao aumento do preço dos imóveis, criando uma falsa sensação de riqueza, pois que o valor do imóvel será sempre proporcional à hipoteca que recai sobre ele.

    Não havendo investimentos na produção de bens reais, não há geração de empregos que agregam valor ao longo da cadeia industrial. A classe média consegue manter-se à tona unicamente na base dos empréstimos que são eternamente rolados. Assim, tem-se uma divisão clara entre o 1% credor que concentra o capital e ganha dinheiro pela multiplicação do capital emprestado devido aos juros compostos que incidem sobre os empréstimos, e os 99% que concentram as dívidas e têm pouca ou nenhuma renda disponível quando descontadas as despesas obrigatórias com amortização de dívidas e pagamentos por serviços não fornecidos pelo Estado, como saúde e educação.

    Tanto Hudson quanto Piketty concordam que há uma desigualdade cada vez maior devido a esse círculo vicioso financeiro. Eles divergem, no entanto, sobre o que fazer. Para Piketty, é preciso taxar a riqueza e distribui-la, tal como preconizou Aristóteles em sua receita para um regime estável de governo. Hudson considera ser isso inviável, pois os ricos sabem esconder seus proventos: eles criam empresas em paraísos fiscais e recebem dividendos como acionistas e conseguem camuflar o lucro por meio de esquemas de preços de transferência pelos quais a receita da pessoa jurídica é gerada para fins contábeis em jurisdições em que a renda é pouco taxada. Para ele, a única maneira de fazer com que a classe média dos Estados Unidos possa ser colocada de novo de pé, livrando-a dos grilhões que a encerram, é um cancelamento unilateral das dívidas, sejam hipotecas, empréstimos estudantis, financiamento de veículo. É claro que no atual sistema político americano, em que os interesses da maioria da população não são levados em conta, não há chances de isso ocorrer: o resultado será mais desigualdade, mais concentração de poder nas mãos dos ricos e, como ensinou Aristóteles, mais tirania e menos liberdade.

    Nesse sentido, o filósofo grego considerava que o sistema ideal era aquele em que os membros da classe média fossem em um número tal que fizesse com que a maioria da população tivesse interesse em manter a paz e a prosperidade pelo fato de que cada um dos cidadãos tinha algo a perder se houvesse violência e revolução. Numa situação em que uns têm tudo a perder e outros têm tudo a ganhar se as coisas forem mantidas exatamente como estão ou se forem modificadas totalmente, a instabilidade torna-se uma constante e com ela a tendência ao radicalismo dos poucos privilegiados ou dos muitos oprimidos.

    Prezados leitores, considerando que por aqui no Brasil estamos aparentemente voltando à época da estagflação dos anos 80, com alto desemprego, corrosão do valor da moeda e do poder de compra, a descrição dos problemas econômicos dos Estados Unidos por Michael Hudson e as lições de Aristóteles sobre os desafios de qualquer regime político levam-nos a perguntar: o que será da nossa democracia nos próximos anos? Será que ela sobreviverá incólume a uma ou talvez mais de uma década perdida?

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Mnemosine e as Musas

Despertando nossos sentimentos mais profundos e depois acalmando-os por meio de um desenlace apaziguador, o drama trágico nos oferece uma expressão, inofensiva e ao mesmo tempo capaz de atingir as profundezas da nossa alma, de emoções que de outra forma se acumulariam como neurose ou violência; ele mostra dores e tristezas maiores que as nossas e nos manda para casa de alma limpa e purificada.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano, explicando o pensamento estético de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

Um mundo inteiramente sem arte seria pior do que invisível, inaudível, inefável e intangível. Seria um mundo sem a dimensão temporal, seria um mundo do qual a mente humana não conseguiria lembrar. A memória do homem é única na sua capacidade não somente de recordar, mas também de utilizar o passado e aplicá-lo; e melhor ainda, recriá-lo, de forma a tornar-se parte do momento presente, o que é o mais perto da eternidade a que podemos chegar. A memória humana é nada menos do que a origem da arte.

Trecho retirado do artigo “The World of Art”, escrito por Mark Van Doren (1894-1972), poeta e crítico literário americano, para a edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei a personagem Lukéria de Turguêniev, uma camponesa de destino trágico que enfrenta o sofrimento e a solidão criando para si um ambiente de paz e de beleza em que a fruição dos sons e das cores ao seu redor lhe permitia não cair no desespero. A sabedoria e resignação da moça eram instintivas, fruto da fé cristã e da vivência cotidiana de opressão e injustiça dos servos na Rússia do século XIX. Devo neste momento acrescentar uma informação que será pertinente para meu tema de hoje, qual seja, a função da arte na vida do homem enquanto indivíduo. Quando li o conto “Relíquia Viva” chorei copiosamente, passando pelo rito de catarse detalhado há mais de dois mil anos por Aristóteles na sua obra “Poética”.

    Conforme o trecho que abre este humilde artigo, explicando o modo de funcionamento da tragédia, a dor e a injustiça do amor e da vida perdidos por Lukéria devido ao seu acidente reavivaram em mim experiências passadas. Não que eu tenha sido algum dia uma camponesa trabalhando de sol a sol e sem acesso a nenhuma assistência médica como era o caso da heroína de Turguêniev. Longe disso. Tive o privilégio de nascer no século XX e ter tido anos de estudo que me permitiram ter um emprego que não me leva à exaustão física. Por outro lado, a descrição do autor é tal que, apesar dos quase duzentos anos que me separam de Lukéria, eu consigo me identificar com ela porque como ser humano que sou, guardadas as devidas proporções, já sofri e me senti injustiçada.

    Daí que quando a descrição que Lukéria faz da sua humilde vida ao seu patrão, fechada em um galpão sem poder movimentar-se e definhando aos poucos, foi despertando em mim uma emoção profunda, que culminou no choro. Eu qualifico essa experiência como catártica porque, como explica Aristóteles, o receptor da arte, seja o leitor, o ouvinte, o espectador, sai dela melhor do que entrou: ele aprende algo novo sobre si mesmo que o tranquiliza, pois o conecta à experiência de outros indivíduos que partilham a mesma natureza. A moral da história é que meus dissabores são colocados no seu devido lugar: não são nem maiores nem piores do que aqueles vividos por outros homens e mulheres antes de mim.

    Sob essa perspectiva, não é de estranhar que os gregos fizeram a Memória, a deusa Mnemosine, por meio de sua conjunção com Zeus, a mãe das Musas, as nove deusas que presidiam as artes liberais na mitologia, conforme explica Mark Van Doren em seu artigo. Criar e experimentar a arte são ambos atos de rememoração de um momento, de uma situação, de um sentimento que já foram vividos, e que recebendo uma expressão artística renascem a cada vez que tal expressão é capaz de despertá-los no receptor. Portanto, sem memória para inspirar a produção da arte pelo autor e sua fruição pelo receptor não há obra artística e sem obras artísticas o mundo não se tornaria presente para o homem. Nossa experiência da realidade seria uma impressão fugaz que jamais se consolidaria na nossa mente, pois seria desprovida do sentido dado por sua expressão formal e do valor dado pelas emoções que atribuímos a ela e que a expressão formal permite sejam gravadas para sempre em nossa memória.

    A função da arte, independentemente do seu papel na conscientização sobre o cenário político, econômico e social, foi lembrada em um artigo publicado na revista The Economist, edição de 21-27 de agosto, que menciona o livro escrito por Joseph Luzzi “In a Dark Wood”, publicado em 2015, que conta como a Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) ajudou o autor a lidar com a morte da esposa, Katherine Mester, grávida de oito meses e atropelada por uma van quando saía de um posto de gasolina.

    Assim como o poeta italiano teve a vida despedaçada quando foi exilado de Florença em 1301, devido a disputas políticas, Joseph se viu de repente um viúvo e pai de uma bebê que nasceu de uma cesariana de emergência realizada em Katherine. A dor de Dante em perder tudo que lhe era caro, expressa nos versos da Divina Comédia, é a dor do professor do Bard College ao perder sua mulher. Desse modo, o luto vivido por Dante e recriado por meio de usa obra-prima é relembrado e presentificado por Joseph ao lê-la quase 700 anos depois. E nesse rito a experiência humana ao longo dos séculos e das diferentes civilizações que foram criadas e destruídas no curso da História se torna sempre única a cada nova presentificação e ao mesmo tempo universal pela sua eterna rememoração. Mnemosine e as Musas, mãe e filhas, inseparáveis.

    Prezados leitores, para Aristóteles “a natureza exige que devamos ser adequadamente empregados, mas que sejamos capazes de aproveitar o lazer de maneira honrosa”. Se Lukéria o fazia contemplando a Natureza até onde lhe era possível, dadas suas limitações físicas, hoje na nossa realidade urbana reencenar o mito de Mnemosine engendrando as Musas, a Memória originando a Arte, e assim nos conectar à humanidade como um todo por meio da beleza é o meio mais factível de viver uma vida feliz, como pregava o filósofo grego. Que esses tempos de ansiedade e angústia causadas pela pandemia da covid-19 sirvam para que possamos perceber a função da arte na nossa vida.

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De Diógenes a Lukéria

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem de ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

 

A metafísica parecia também aos Cínicos um jogo vão; deveríamos estudar a natureza não para explicar o mundo, o que é impossível, mas de forma que possamos aprender a sabedoria da natureza como um guia para a vida. A única filosofia verdadeira é a ética. O objetivo da vida é a felicidade, mas será encontrada não na busca pelo prazer, mas em uma vida simples e natural, independente tanto quanto possível de todas as ajudas externas.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Era uma espécie de atitude oportunista em relação à vida, pegando com ambas as mãos as coisas quando estavam disponíveis, e ao mesmo tempo não reclamando quando os tempos eram de vacas magras, aproveitando a vida quando ela podia ser aproveitada, mas aceitando os caprichos da fortuna com um dar de ombros. É a partir dessa elaboração da doutrina que a palavra “cínico” adquiriu seu sentido pejorativo.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, há duas semanas eu abordei a escola de pensamento dos sofistas da Antiga Grécia e tentei mostrar como eles plantaram a semente da dúvida sobre a possibilidade de explicações cosmológicas sobre a origem do mundo e sobre a existência dos deuses, considerando-as abstrações vagas, e propondo a retórica como um exercício de argumentação válido porque útil para agir na sociedade. Na semana passada, meu foco foi o escritor russo Ivan Turguêniev, mostrando exemplos do retrato que ele nos dá sobre a vida de servos e senhores na Rússia do século XIX. Nesta semana meu objetivo será valer-me dos ensinamentos de Will Durant sobre a escola de pensamento dos cínicos para mostrar o poder de Memórias de um Caçador no despertar da consciência dos russos sobre o que era a vida dos mujiques.

    Segundo Durant, depois que os sofistas abriram a porteira das especulações sobre se era válido falar sobre aquilo que estava além dos sentidos do homem (a metafísica), surge para a filosofia grega do século IV antes de Cristo um leque de possibilidades, dentre elas a visão dos cínicos, cujo grande expoente foi Diógenes (404 ou 412 a.C. – 323 a.C.). Conforme o autor de “The Life of Greece” explica no trecho que abre este artigo, para os cínicos a única investigação filosófica válida era sobre a ética. A metafísica não levava a nada, pois o homem jamais conseguiria explicar o mundo. A razão humana seria mais bem empregada se ela estabelecesse as regras do bem viver, e viver bem nada mais era do que aproveitar aquilo que a vida nos dá, o que não é muito, pois estamos sujeitos a forças que não podemos controlar nem entender, mas pode ser o suficiente se agirmos de forma a diminuir o sofrimento renunciando à busca desenfreada pelo prazer e contentando-nos com prazeres simples que para se concretizarem só dependem da ação individual, e não de o homem contar com uma confluência favorável de fatores externos a ele. Não admira que os herdeiros dos cínicos tenham sido os estoicos, que floresceram no período helenístico (323 a.C.-146 a.C.) e pregavam a coragem ante a adversidade e o perigo, e o desapego aos bens materiais, para não falar dos monges do Egito no início do cristianismo.

    Paciência para saber que não há mal que sempre dure e bem que nunca termine, força moral para seguir seus princípios sabendo que a virtude é sua própria recompensa, independentemente da existência de uma justiça divina. Diógenes estabeleceu as linhas mestras de uma ética que surgida na Grécia impregnará a religião cristã. É neste ponto que entra a personagem Lukéria, cujas palavras ao narrador-caçador, já descrito na semana passada neste meu humilde espaço, abrem este artigo.

    O narrador-caçador encontra Lukéria por acaso. Pernoitando em um sítio de sua mãe, ele passeia pelo jardim de manhã e acaba chegando a um galpão de vime, onde fica uma camponesa que tem ao redor de 28 anos. Devido à cor lívida da sua pele, ao pouco cabelo e à magreza o narrador não reconhece Lukéria que outrora fez parte da juventude do patrão, pois ela era então bonita, roliça, dançava bem e tinha uma grande alegria de viver. Depois de reconhecê-la por ela ter falado quem era, o filho e herdeiro da patroa, mostrando sempre a empatia pelo sofrimento alheio, ouve pacientemente a história da mujique.

    Sua saúde deteriorara-se depois que ela, estando prestes a casar-se, caiu de uma ribanceira e algo partiu dentro dela, levando-a a definhar a tal ponto que não consegue mais se movimentar. Lukéria passa 24 horas por dia dentro do galpão, dependendo de pessoas caridosas que lhe levem alguma comida. O patrão, bondoso, pergunta o que ele pode fazer por ela e se não seria o caso de chamar um médico para minorar-lhe o sofrimento. Lukéria responde – cinicamente, estoicamente ou de maneira cristã que só Deus sabe do que ela precisa, e por isso não vale a pena pedir. Na verdade, ela tem tudo de que precisa: paralisada e solitária, a camponesa outrora bela, jovem e ativa, com a vida pela frente, preenche o tempo ouvindo os barulhos da natureza e dos animais, deleitando-se com a mudança das estações e observando o comportamento dos seres vivos ao seu redor.

    Sem desejar nada que esteja fora do seu alcance e sem revoltar-se com o destino cruel que lhe foi reservado, de morrer sozinha, sem marido e sem filhos, Lukéria só pede uma coisa ao narrador-caçador: que ele convença a mãe dele que diminua os impostos que os mujiques pagam. O patrão promete que vai falar com a mãe, mas ao final do conto ele só nos informa que Lukéria morre algum tempo depois, mas não nos diz se de fato ele falou e se de fato a mãe diminuiu a carga de tributos sobre os pobres camponeses. Aí está a habilidade de Turguêniev: ao criar um patrão que mostra empatia, mas que jamais passou pelas tribulações por que passam os camponeses, contrapondo-o a uma mujique cuja enorme força espiritual é proporcional ao seu martírio em vida, o autor de Memórias de um Caçador não doura a pílula. Os patrões gozam da posição privilegiada de poderem ser bondosos e simpáticos, justamente porque jamais terão que trocar de papeis com seus mujiques, que carregam o fardo das injustiças e dos sofrimentos com a resignação que lhes é esperada, mas que no final das contas é a única alternativa possível em não havendo mudança nas condições sociais e econômicas.

    Prezados leitores, de Diógenes, um banqueiro falido de Sinope, na atual Turquia, a Lukéria, a camponesa russa criada por Turguêniev para mostrar o flagelo da servidão e a dignidade de pessoas que apesar de tudo aproveitam ao máximo as migalhas que a vida lhes dá, há um hiato de mais de 2.000 anos que não faz perecer os ensinamentos éticos dos cínicos. Ao contrário, livres das reviravoltas que a metafísica deu ao longo da História Ocidental, passando pela filosofia grega, pelo cristianismo, pela Revolução Científica, pelo Iluminismo e por nosso mundo pós-moderno e pós cristão, tais ensinamentos servem de guia para a vida e de chave para entender as nuances da descrição que o autor de Memórias de um Caçador nos legou sobre o que era ser na prática ser oprimido sob a servidão.

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O círculo

O círculo é o convívio preguiçoso e indolente ao qual se dá significado e aspecto de algo racional; o círculo substitui a conversa pelo debate, acostuma à tagarelice infrutífera, distrai do trabalho solitário e benéfico, inculca a sarna da literatura; e é claro que priva do frescor e da força virgem da alma. O círculo é torpeza e tédio sob o nome de fraternidade e amizade, a união do equívoco e da pretensão sob pretexto de franqueza e colaboração; no círculo, graças ao direito dado a todo participante de enfiar os dedos sujos no interior de seu camarada em qualquer hora ou ocasião, não sobra lugar limpo ou intacto na alma de ninguém; no círculo são reverenciados os de lábia vazia, os sabichões cheios de si, os velhos antes do tempo, elevam os versejadores sem talento, mas com ideais “ocultas”; no círculo, jovenzinhos de dezessete anos falam de mulheres e de amor com astúcia e sofisticação, mas quando estão diante delas, ficam calados, ou se expressam como nos livros – e do que falam! No círculo floresce a eloquência artificial; no círculo um vigia o outro como policial…

Trecho retirado do conto “Hamlet do distrito de Schigrí” incluído no livro de contos Memórias de um caçador, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

Em 1879, Turgueniêv foi chamado de “paladino da liberdade” ao receber o título de doutor honoris causa, em Oxford. Em ensaio do mesmo ano, Henry James saúda-o como ”the novelist’s novelist” e, para compreensão do leitor norte-americano, equipara-o a um senhor de escravos da Virgínia ou da Carolina que tivesse adotado pontos de vista “nortistas”. James compara a relevância das Memórias para o fim da servidão na Rússia cm o papel de A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1852), na abolição da escravidão no EUA, “com a diferença, contudo, de não ter produzido agitação na época – de ter, em vez disso, apresentado o caso como uma arte insidiosa demais para reconhecimento imediato, uma arte que mexia mais com as profundezas que com a superfície”.

Trecho retirado do posfácio da edição brasileira de Memórias de um caçador, escrito pelo tradutor, Irineu Franco Perpétuo

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre os sofistas gregos e seu papel fundamental no desenvolvimento da democracia grega, para o bem e para o mal, isto é, tanto contribuindo para dar uma voz articulada e convincente aos que defendiam os interesses do povo na Assembleia, quanto para dar a oportunidade a políticos ambiciosos e imorais de apresentar seus interesses particulares com um verniz de racionalidade que acabava levando os cidadãos a fazer escolhas que em última análise contrariavam seus interesses. Para o filósofo Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), o problema da democracia é que ela acaba sendo dominada pelos políticos, e não pelo povo.

    Nesta semana, meu foco não será na influência da filosofia, mas da literatura, sobre a vida política. O livro do qual foi retirado o trecho acima foi considerado tão subversivo que o autor ficou um mês preso em São Petersburgo e depois foi mandado para Spasskoye, em uma espécie de exílio interno como punição por ter criticado a servidão. Meu objetivo aqui será humildemente mostrar porque Memórias de um Caçador tem esse poder.

    Turguêniev não expõe em nenhum dos 25 contos do livro uma filosofia política ou econômica, quer seja a defesa de uma maior participação do povo nas decisões sobre o destino da nação, ou a defesa de uma redistribuição da riqueza. Longe disso, como bem define Henry James no trecho que abre este artigo, o caçador, que narra suas experiências de vida e seus encontros com mujiques e com outros proprietários de terras e donos de mujiques como ele, é um nobre que vive a vida de um membro da sua classe: diverte-se caçando no verão, compra cavalos, frequenta a casa de outros nobres, participa de festas e banquetes.

    Por outro lado, embora legítimo representante do círculo de bem nascidos, o caçador-narrador é um observador que sai da sua redoma, vê o que acontece com as pessoas, as ouve e tem uma profunda simpatia por elas como seres humanos, simpatia esta que ele demonstra rememorando seu encontro com elas, os desejos, frustrações e sentimentos que elas expressaram ou que elas mostraram em determinado momento.

    Assim é que em “O encontro”, o caçador flagra uma bonita camponesa colhendo flores para dar ao seu amado. Seu nome é Akulina e ela é apaixonada por um mordomo, Viktor Aleksándritch, que a trata com arrogância e desprezo. Viktor recebe o humilde presente de mal grado, e como as flores só têm valor estético e não monetário, ele as joga fora, pois não quer identificar-se com a pobreza de Akulina. O narrador, testemunha involuntária da interação do casal por estar no campo descansando, percebe o quanto a moça sofre com a indiferença do mordomo, que está prestes a seguir seu patrão para Moscou. Ele vê beleza e pureza de sentimentos na camponesa e quando Viktor vai embora, surdo às súplicas da amada, o caçador colhe flores e as oferece à moça, para consolá-la.

    Em outro conto, o narrador serve de confessor a um homem que se encontra em uma casa de posta, Piotr Petróvitch Karataíev, que vive durante um tempo em mancebia com Matriona Fiódorovna. Ele tenta comprá-la de sua patroa, Mária Ilínitchna mas esta, uma velha rabugenta, não admite vendê-la porque para ela alforriar servos é “indecoroso”, “é a desordem”. Depois de frustrada sua tentativa e incapaz de tomar a decisão de casar com a moça, Piotr vive com Matriona às escondidas até que a serva é descoberta e levada de volta à patroa. Cabe ao leitor do conto imaginar o que deve ter sido a vingança de Mária Ilínitchna contra a moça que tentou ser dona do seu humilde destino. Piotr conta sua história ao narrador porque a culpa lhe pesa, mas fica claro que se a história se repetisse ele seria o mesmo covarde e desastrado e causaria a ruína da mujique novamente, porque essa é a sua personalidade.

    O primeiro trecho que abre este artigo é de autoria de um nobre falido, cujo nome não é mencionado, mas que calha de estar hospedado na mesma casa que o narrador e de estar dormindo no mesmo quarto de hóspedes. Ele precisa desabafar com alguém e mais uma vez o narrador é escolhido para escutar um drama humano: herdeiro de uma propriedade, o Hamlet do conto frequenta a universidade em Moscou e lá entra no grupo de membros da elite que adquirem um verniz de educação que lhes serve para pertencer ao círculo, isto é, para distingui-los da massa de servos porque conseguem citar um ou outro autor importante e falam sobre literatura mostrando que são refinados. Ao mesmo tempo, pertencer ao círculo é pertencer a um grupo de pessoas que se perde em argumentos retóricos tirados de pensadores europeus que elas sabem – conforme o próprio nobre confessa ao caçador-narrador, jamais serão aplicados para analisar a realidade da Rússia e aplicar o conhecimento e a ciência à vida dos russos.

    Daí o caráter insidioso da arte de Turguêniev: ao mostrar um momento na vida de mujiques e senhores de terra, ele expõe as injustiças sociais de maneira flagrante, porque recorta da rotina de ambas as classes um instante em que a verdade sobre a natureza das relações sociais em uma sociedade de senhores e servos é revelada: aquele em que o servo é tratado como objeto do qual o patrão põe e dispõe, aprisionando-o e destruindo-lhe os sonhos, como no caso de Matriona, ou aquele em que o nobre se compraz em depreciar-se como o Hamlet de Schigrín, que sabe ter nascido em berço esplêndido, e que desperdiçou sua vida por preguiça e indolência não fazendo nada nem por si nem pelos outros, mas consegue ir vivendo porque suas faltas lhe são facilmente perdoadas.

    Não é de estranhar que aquele cotidiano retratado por Turguêniev, feito de pequenas crueldades, covardias, gestos prepotentes, condescendência e racionalizações sobre a ordem e o amor do pai aos filhos, tenha tido o efeito de chamar a atenção da sociedade russa sobre a servidão e suas mazelas. A descrição do autor de Memórias de um Caçador da vida como ela era prescindia de grandiosos discursos políticos ou econômicos sobre as virtudes da liberdade. Bastava que o gênio do autor fizesse o leitor sentir o que sentiu Akulina ao ser preterida pelo amor da sua vida por ser serva ou o que Matriona sentiu ao ser devolvida à patroa para que a literatura fosse mais do que sinal distintivo de pertencimento ao círculo dos privilegiados e se transformasse em instrumento de conscientização moral.

    Prezados leitores, nem só de ideias se fazem as transformações sociais e políticas. Como mostra a influência da obra de Turguêniev sobre o movimento de emancipação dos servos na Rússia do final do século XIX, basta romper a bolha do círculo e fazer cada indivíduo encontrar-se com a humanidade que há em todos nós.

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