As legítimas expectativas de cavalos e batatas

A guerra que estou travando com a comunidade dos homens só é um delito se, conforme me assegurastes, eu não tiver sido expulso dela! […] Expulso é como eu chamo aquele a quem se priva a proteção das leis! […]pois é dessa proteção, para a prosperidade de meu comércio pacífico, que necessito; sim, é por causa dela que eu, com tudo o que adquiri, me refugiei nesta comunidade; e quem me priva de tal proteção está me enxotando para a barbárie do deserto […]

Trecho retirado do livro Michael Kohlhaas, do escritor alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), do diálogo do personagem com o fundador do Protestantismo, Martinho Lutero (1483-1546)

O sentido mais específico que Aristóteles dá à justiça, e do qual as formulações mais conhecidas derivam, é o de deixar de cometer a pleonexia, isto é, deixar de obter vantagem para si mesmo tomando aquilo que pertence a outro, seus bens, sua recompensa, seu cargo e coisas similares […]

Trecho retirado do livro “A Theory of Justice” do filósofo americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, talvez vocês já tenham ouvido falar do ator dinamarquês Mads Dittmann Mikkelsen (1965-). Em 2006, ele desempenhou o papel do vilão Le Chiffre em Casino Royale, um dos filmes do 007 em que James Bond é interpretado por Daniel Craig, e de 2013 a 2015 fez o famoso doutor Hannibal Lecter para a televisão, o psiquiatra que é um assassino em série. Paralelamente a essa carreira digamos, hollywoodiana, Mikkelsen atuou em alguns filmes históricos, em que ele desempenha personagens reais ou fictícios que têm algo em comum: a busca por justiça. Esses homens foram Michael Kohlhaas, um comerciante de cavalos do século XVI; Johann Friedrich Struensee (1737-1772), médico que se tornou amante da rainha Carolina Matilda da Dinamarca e tentou governar o país sob os princípios do Iluminismo, e Ludvig von Kahlen (1700-1774), que explorou a Jutlândia. Meu objetivo nesta semana é analisar que justiça é esta que buscavam, à luz dos ensinamentos de John Rawls.

     Para tanto, será preciso primeiramente relembrar os fatos históricos a respeito dos respectivos personagens. Incluo Michael Kohlhaas nesse rol porque ele é baseado em um homem que existiu, Hans Kohlhase. Em viagem de negócios, um nobre exige-lhe um tributo arbitrário para que atravesse suas terras e também que deixe em garantia dois cavalos negros. Kohlhaas concorda a contragosto e encarrega um empregado seu para tomar conta dos cavalos até sua volta. Quando regressa, após descobrir que a cobrança era ilegal, o empregado havia sido quase morto e seus cavalos estavam irreconhecíveis de tão mal tratados. O comerciante então começa sua luta pela reparação do dano que o fidalgo lhe impõe.

    Quanto a Struensee, aproveitando-se da influência que ele exerce sobre a rainha e do fato de que o rei da Dinamarca de então, Cristiano VII (1749-1808), era meio louco, o médico toma as rédeas do poder e começa a executar um projeto iluminista: abole a servidão, acaba com os abusos dos privilégios da nobreza, acaba com a censura à imprensa, proíbe a tortura judicial, cria escolas, cancela pensões e usa o dinheiro para criar fundações. Finalmente, Ludvig von Kahlen é um capitão reformado do Exército que quer utilizar sua pensão para praticar a agricultura na Jutlândia, área de terras devolutas, que pertenciam ao rei da Dinamarca. De posse da autorização régia para tentar fundar uma colônia agrícola na região, Ludvig crê que não terá problemas, pois ele está seguindo a lei. No entanto, ele se vê confrontado por um grande proprietário de terras local, Frederik De Schinkel, que faz tudo ao seu alcance para fazê-lo sair de lá, por bem ou por mal.

    Essa breve descrição do que ocorreu na vida dos três personagens permite-nos perceber os contornos da luta pela justiça de cada um deles. Os três estão seguindo a lei, conforme a concebem: Kohlhaas presta queixa contra o fidalgo que maltratou seus cavalos porque se considera no direito de fazê-lo. Conforme o trecho que abre este artigo, seu ofício era o de comprar e vender cavalos e quem quer que provocasse dano em seus animais estava prejudicando sua capacidade de exercer sua atividade normalmente. Negar-lhe reparação do dano é impedi-lo de exercer seu papel profissional, é colocá-lo fora da comunidade dos homens que têm direitos e obrigações mútuas, pois sem sua identidade de comerciante de cavalos Kohlhaas se torna um pária na sociedade. Daí a necessidade que ele vê de buscar justiça: se as cortes, se o soberano não reconhecerem que o direito de Kohlhaas foi violado, o indivíduo é colocado fora da lei, pois não foi contemplado por ela.

    Para o médico tornado ministro plenipotenciário, Struensee, seguir a lei é seguir seu ideário iluminista de emancipação do povo por meio da educação e da instituição de um regime em que os direitos e deveres são estabelecidos em bases racionais e não na base de privilégios de classe ancestrais. Da mesma forma, Ludvig von Kahlen, confia na igualdade perante a lei preconizada pelos filósofos da Era das Luzes, não podendo haver pessoas com menos ou mais direitos em virtude de sua posição social. Diante das investidas do rico proprietário de terras para expulsar alguém de uma terra que pertence ao rei e não ao latifundiário, Ludvig se sente injustiçado, pois não estava infringindo o direito de ninguém, apenas estava exercendo o seu próprio direito de criar uma colônia em um local em que muitos haviam tentado trabalhar e tinham fracassado. De Schinkel não tem o direito de se opor à pretensão de Ludvig, pois embora ele esteja na região há muito mais tempo, foi a Ludvig que foi concedido o direito de exploração da terra devoluta, não a ele.

    Nesse sentido, tanto Frederik De Schinkel, que quer expulsar Ludvig von Kahlen da Jutlândia quanto o fidalgo que machuca os cavalos de Michael Kohlhaas a tal ponto que os torna imprestáveis, praticam a pleonexia, conforme o conceito aristotélico de justiça explicado por John Rawls na abertura deste artigo.  De Schinkel pretende tirar de Kahlen algo que pertence a este, o direito de exploração de terras devolutas, o fidalgo tira de Kohlhaas o instrumento do seu ofício legitimamente exercido, os cavalos. Rawls explica em seu livro “A Theory of Justice” que a concepção de Aristóteles do “a cada um o que é seu” implica estabelecer quais as legítimas expectativas dos indivíduos dentro da sociedade, de acordo com as instituições que a suportam e que estabelecem os direitos e deveres de cada um. Se Michael Kohlhaas como comerciante de cavalos tinha direito a ter seus animais incólumes e se Ludvig von Kahlen, como empreendedor agrícola, tinha direito de plantar batatas na Jutlândia, isso significa que as ações do fidalgo e de Frederik De Schinkel contra eles eram injustas e mereciam ser combatidas, pois tiravam do indivíduo aquilo que era dele e de mais ninguém.

    E à luta pela justiça se entregam os personagens interpretados por Mikkelsen, com consequências funestas. Kohlhaas, frustrado nas suas tentativas de obter reparação pelos meios legais e depois da morte da esposa, torna-se o chefe de um grupo e começa a fazer justiça com as próprias mãos, acabando por ser executado. Ludvig von Kahlen acaba abandonando sua colônia agrícola e torna-se um fora da lei ao libertar Ann Barbara, sua governanta e amante que havia assassinado Frederik De Schinkel, que a estuprara quando ela era sua serva. Struensee, que havia tentado executar seu projeto iluminista para tornar as leis do país menos arbitrárias, é derrubado pelos reacionários dinamarqueses, preso, torturado e acaba morto em condições de sofrimento intenso, por esquartejamento.

    Prezados leitores, a lição da trajetória desses três personagens históricos, que lutaram por justiça e que pagaram um alto preço por isso, é que não basta ter legítimas expectativas, é preciso que os outros membros da sociedade as reconheçam e eles só o farão se tal reconhecimento for do interesse deles mesmos, como um quid pro quo, em que um reconhece o direito do outro para o outro fazer o mesmo por ele. Do contrário, os plutocratas em geral, sejam eles nobres ou simples latifundiários, farão de tudo para colocar seus oponentes no deserto daqueles sem direitos. Esperemos que Mads Dittmann Mikkelsen interprete ainda outro personagem histórico do norte da Europa que foi à luta para defender o que ele tinha o direito de considerar como seu, fossem cavalos ou brotos de batatas no solo.

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Burke, Marçal e o caminho da prosperidade

Segundo as pesquisas, Marçal rouba público de todos os seus adversários, mas o mais penalizado, sem dúvida, é o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que divide com o coach o eleitorado mais à direita, indeciso sobre quem é o efetivo escolhido de Bolsonaro. Ocorre que Marçal também tira votos de Boulos, sobretudo os dos jovens (16-24 anos), público mais afeito às redes sociais. Com a disputa cada vez mais embolada, o psolista passou a correr riscos diante da possibilidade de o coach ultrapassá-lo e ele simplesmente não chegar ao segundo turno.

Trecho retirado do artigo “O perigo da antipolítica” sobre o candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal

[…] não há direitos absolutos; estes são abstrações metafísicas desconhecidas da natureza; há somente desejos, poderes e circunstâncias; […] “A Política deve ajustar-se não a raciocínios humanos [abstratos], mas à natureza humana, da qual a razão é apenas uma parte, e de maneira nenhuma a maior parte.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Edmund Burke (1729-1797), político e escritor britânico

Jesus não dividiu o pão. Ele multiplicou. E o comunismo é dividir aquilo que a gente tem para idiotizar as pessoas. Eu peço socorro de todos os cristãos dessa cidade, do Estado de São Paulo e do Brasil. Nós precisamos combater essa praga de comunismo.

Trecho da entrevista dada por Pablo Marçal ao programa Roda Viva em 2 de setembro

    Prezados leitores, eu devo admitir que sou de um tempo antigo. Já confessei aqui antes que tenho medo de não conseguir me aposentar, agora faço uma nova confissão: tenho medo de que todos os meus paradigmas sejam desafiados pelo admirável mundo novo em que vivemos, de forma que eu me sinta alijada das tendências predominantes. Este medo assaltou-me ao assistir ao programa Roda Viva com o candidato a prefeito de Sâo Paulo, Pablo Marçal. Explico-me.

    Às vésperas das eleições eu sempre assisto a pelo menos algumas das entrevistas realizadas pelo Roda Viva com candidatos a cargos executivos. Considero ser útil ouvir o que eles têm a dizer sobre as questões básicas da economia política, entre as quais posso citar as seguintes: qual será o nível de tributação imposto à sociedade? Quais bens públicos serão ofertados à população e em que quantidade? Até que ponto o direito de propriedade será salvaguardado? Em última análise, ao responderem sobre o que farão em termos de política ambiental, cultural, de transportes, de habitação, etc os candidatos propõem uma resposta aos dilemas da economia política, de acordo com sua visão de sociedade. À luz dessa premissa sobre a função das trocas entre o candidato e os jornalistas presentes na bancada do programa, qual seja, que versão de economia política será adotada, eu assisto ao Roda Viva e tiro minhas conclusões sobre em quem votar.

    Seguindo minha tradição de tantas eleições nas quais votei, eu decidi escutar o que o Sr. Marçal tinha a dizer aos jornalistas que o inquiriram durante uma hora e meia. O resultado para mim foi um choque e uma constatação. Um choque porque pela primeira vez o programa deixou de servir de parâmetro para eu tomar minha decisão como eleitora. A constatação foi a de que os paradigmas mudaram porque os meios pelos quais os candidatos se comunicam com seu eleitorado mudaram, o que acabou refletindo-se na mensagem veiculada. 

    Ao longo de todas as interações entre Pablo Marçal e os jornalistas, o fato é que o candidato não respondeu a nenhuma pergunta. Pode-se argumentar que todos os políticos fazem isso para evitar responder a perguntas diretas, cuja resposta os levaria a ter que admitir uma falha de caráter, seja uma mentira, uma inconsistência, uma hipocrisia. O coach nascido em Goiás, que tem 12,8 milhões de seguidores no Instagram e tem um patrimônio declarado de 169 milhões de reais, vai além disso. As perguntas dos jornalistas não são apenas evadidas, elas são reprocessadas e utilizadas para que o candidato cumpra seu objetivo principal, que é o de transmitir suas mensagens, simples e claras, que serão colocadas em vídeos curtos, de alguns segundos, que possam despertar a atenção tão fugidia dos jovens. Jovens estes que, segundo o artigo de VEJA citado na abertura deste artigo, constituem o público que, afeito às redes sociais, é o principal alvo das investidas do goiano contra o eleitorado do atual prefeito, Ricardo Nunes.

    Sob a ótica dessa necessidade de criar conteúdo para os tais dos “cortes” marçalinos, não faz sentido perder tempo discorrendo sobre os detalhes de que políticas o candidato executará se for eleito. Isso tomaria mais do que um minuto e a geração de 16-24 anos não tem a atenção suficiente para acompanhar um discurso tradicional sobre as questões de economia política que tradicionalmente fazem parte do rol de assuntos a serem objeto de reflexão e de ação por um político. Daí que Marçal passou o tempo todo cavando oportunidades para inserir as mensagens que formam o cerne da sua filosofia da prosperidade.

    A última dessas mensagens, citada na abertura deste artigo, sobre Jesus Cristo não ser comunista porque criava riquezas e não distribuía, é um primor porque ela apela à emoção do ouvinte, aos seus instintos naturais e à índole básica do brasileiro, que é conservadora, no sentido dado ao conservadorismo por Edmund Burke. Para o filósofo político britânico, um elemento básico do conservadorismo era a reverência a uma instituição que não deveria ser mudada se já está embutida na ordem social. Um exemplo de tal instituição era a propriedade, que deveria ser intocada: o proprietário deve poder transmitir aquilo que acumulou, porque assim ele ficará mais estimulado a fazer os esforços para conquistar a riqueza e para Burke a existência da propriedade é o maior estímulo para que as leis não sejam radicais e para que o Estado seja preservado. Quanto mais proprietários houver, mais eles terão interesse em preservar o status quo, pois se beneficiam dele.

    Essa função da propriedade no grande esquema das coisas ilustra o modo como a política deve operar sob o ideário conservador: conforme o trecho que abre este artigo, ela não deve se basear em direitos abstratos, mas na natureza humana. O homem quer ter, acumular, satisfazer seus desejos, suas paixões: a manutenção da propriedade serve esses propósitos e assim a principal tarefa política é a de preservá-la. Ou como diz Marçal: Jesus não distribuiu, porque ele não tirou de ninguém, afinal a propriedade é inviolável, e quem vem falar de direitos é comunista. A mensagem é simples: eu, prefeito, vou fazer todos prosperarem porque não vou fazer como os comunistas, que tiram de uns para dar para os outros: o que é de cada um ninguém toca. Ponto final.

Prezados leitores, esqueçam as políticas públicas, esqueçam o que fazer, como fazer e para quem fazer. Há um novo paradigma no século XXI, fruto das redes sociais, que sob certos aspectos, retoma o realismo de filósofos como Edmund Burke, os quais não tinham ilusões sobre a inclinação humana para o bem. Marçal pode não ser um intelectual capaz de debater ideias, mas ele toca na alma de milhões de brasileiros para quem Cristo é rei, mas ao mesmo tempo adorariam ser ricos e ter casa em Orlando, na terra da prosperidade, os Estados Unidos. Tanto um quanto o outro sabiam que a parte racional do homem que pensa e expõe suas ideias pelo discurso é uma ínfima parte em comparação àquela que deseja e que sonha ver seus desejos concretizados.

    Adaptando-me aos novos tempos, eu não mais assistirei a entrevistas longas e detalhadas, mas a vídeos no Tik Tok ou no Instagram. Assim, não me sentirei tão antiquada. Em suma, estou seguindo a lição do mestre Marçal: mudando meu mindset. Sugiro que façam o mesmo!  Caminhemos juntos, na honrosa companhia de Burke e Marçal, rumo à prosperidade!

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Estado para quê?

De acordo com este sistema de liberdades naturais, o soberano [ou o Estado] tem somente três obrigações a cumprir: … primeira, a obrigação de proteger a sociedade da violência e de invasão por outras sociedades independentes; segunda, a obrigação de proteger, tanto quanto possível, cada membro da sociedade da injustiça e da opressão de qualquer outro membro, ou a obrigação de estabelecer uma administração precisa da justiça; e terceira, a obrigação de manter determinadas obras públicas e instituições públicas, as quais nunca podem ser do interesse de nenhum indivíduo, ou de um pequeno número de indivíduos, erigir ou manter.

Trecho retirado do livro “A Riqueza das Nações”, do economista escocês Adam Smith (1723-1790)

No restaurante dele, são 22 funcionários, mas deveriam ser 25. Ele não consegue preencher três vagas. Na pandemia, diz, muitos migraram para pequenos negócios, montaram delivery, foram trabalhar como motorista de aplicativo ou nem voltaram para o mercado de trabalho. Para Vitali, programas do governo como o Bolsa Família, que teve reajuste significativo nos últimos anos, fazem muitos preferirem trabalhar como autônomos, sem carteira assinada, para não perder o benefício. Empresários têm de pagar mais.

Trecho retirado do artigo “Pleno Emprego – Qualificada ou não, mão de obra começa a ficar escassa nas empresas”, publicado no jornal O Globo de 18 de agosto sobre o apagão de mão de obra vivido no Brasil

 

A desigualdade não desaparecerá enquanto o acesso a escolas de base com qualidade continuar restrito. Universidade para todos é uma ilusão demagógica se o sistema educacional não superar a divisão entre “escolas senzala”, para a maioria pobre, e “escolas casa-grande”, para a minoria rica. O entorno do presidente precisa perceber que os produtos da mesa são comprados, mas a educação universitária é conquista de cada indivíduo, desde que tenha acesso à escola pública de qualidade. A mudança necessária não está em políticas que aumentem as vagas para ingresso no ensino superior. Está em garantir a universalização do egresso oriundo de escolas com a máxima qualidade para todos.

Trecho do artigo “Mesa, Escola e Bola” publicado por Cristovam Buarque na edição de Veja de 9 de agosto

    Prezados leitores, há duas semanas, no artigo “Útil para quê?”, ao falar sobre o utilitarismo e a eutanásia, fiz menção à crítica feita pelo filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970) ao laissez faire proposto por Adam Smith em sua obra-prima, “A Riqueza das Nações”. Para Adam Smith, o melhor sistema econômico possível, isto é, aquele que gerará a maior quantidade de riqueza possível e portanto o melhor do ponto de vista utilitarista, é aquele em que cada indivíduo tem a liberdade de perseguir seus objetivos na vida, pois num ambiente de liberdade econômica haverá um maior incentivo à criação e à inovação que geram investimentos e empregos. O lado negro do laisser faire, para Russell, é que na prática a liberdade, apesar de ser útil sob o ponto de vista econômico, causa uma imensa desigualdade e permite uma grande exploração das pessoas, como ocorreu na Revolução Industrial, que teve início no século XVIII na Inglaterra. Meu objetivo nesta semana é mostrar uma faceta menos conhecida do pai do liberalismo econômico, que via o Estado desempenhando um papel fundamental na economia. Esse lado obscurecido do livro “A Riqueza das Nações” servirá para lançar luz sobre alguns dos problemas enfrentados hoje no Brasil.

    De acordo com o trecho que abre este artigo, para Adam Smith o Estado deveria prestar três serviços à sociedade para que cada membro pudesse ter condições de colocar em prática seu projeto de vida particular: garantir a segurança do cidadão contra a violência interna ou externa, aplicar a justiça às disputas entre os cidadãos de forma que nenhum levasse vantagem exagerada em relação ao outro e por último realizar os tais trabalhos públicos. E o que são tais trabalhos públicos? Hoje em dia diríamos que são bens públicos que criam externalidades positivas, isto é, bens que devem ser proporcionados pelo Estado porque eles geram benefícios que se espalham pela sociedade e não podem ser capturados por agentes privados através da precificação, pois o preço não refletiria o valor que tal bem agrega à sociedade.

    A educação básica para todos é um exemplo disso, mostrado no artigo de Cristovam Buarque. A educação básica de qualidade permite que as pessoas tenham acesso às melhores universidades e consigam se qualificar para buscar empregos de boa remuneração. Para quem não tem acesso à educação básica de qualidade, que infelizmente é a maioria dos brasileiros, o acesso ao ensino superior, quando se dá, é por meio de vagas subsidiadas em faculdades particulares, que oferecem um diploma que pouco contribui para que as pessoas consigam empregos que satisfaçam suas expectativas, pois não as provê das habilidades exigidas pelo mercado de trabalho no século XXI. O resultado na economia brasileira é catastrófico, como mostra o artigo do O Globo.

    De acordo com o IBGE, no acumulado de 12 meses o Brasil teve um crescimento de 2,5%, o que é insuficiente para gerar as riquezas necessárias para aumentarmos nosso nível de desenvolvimento. Por outro lado, a taxa de desemprego está em 6,9%, a menor em uma década, de acordo com o artigo. E por quê? Ora, há um apagão de mão de obra nas duas pontas. Na ponta de cima, aqueles que têm diploma de curso superior não tem a formação solicitada pelo mercado. Faltam engenheiros civis, faltam gestores de projetos. Na ponta de baixo, aqueles que não têm diploma universitário não se sentem atraídos pelos baixos salários pagos à mão de obra pouco qualificada. O artigo informa que um indivíduo que faz bicos e recebe benefício social ganha em média R$1.399,00, que é menos do que o salário mínimo de R$1.412,00, mas que não é muito menor. Daí o comportamento constatado pelo empresário Leonardo Vitali, dono de um restaurante em Goiânia, cuja fala é citada na abertura deste artigo. É difícil recrutar gente para trabalhar em restaurantes porque o salário não é lá grande coisa e para o candidato a garçom ou a auxiliar de cozinha ou de limpeza é muito melhor manter-se no rol de beneficiários da assistência governamental e fazer alguns bicos do que prender-se a um emprego formal que requer jornadas fixas de trabalho e dias de descanso estabelecidos pelo patrão.

    É clara a catástrofe para o Brasil gerada pela falta de educação básica, que cria um círculo vicioso nas duas pontas: na ponta de baixo, sem qualificação, a pessoa só tem acesso a empregos de baixa remuneração, fazendo com que seja preferível não ter carteira assinada, o que por si só aumenta a desqualificação pela própria falta de formalização; na ponta de cima, devido à falta de pessoas com os diplomas úteis à economia, o empresário enfrenta restrições ao investimento produtivo, pois as atividades que não podem ser automatizadas carecem de mão de obra para serem exercidas.

    Prezados leitores, quando forem votar em outubro, lembrem-se das lições de Adam Smith sobre a necessidade de o Estado proporcionar aqueles bens que só ele tem a capacidade para prover: um dos mais importantes é a educação básica de qualidade para todos, que ao qualificar as pessoas viabiliza a criação de riqueza. À pergunta de “Governo para quê?” podemos responder: proporcionar os serviços que permitam a cada um, nos dizeres de Cristovam Buarque, “ter o mapa que lhe permita buscar sua felicidade”.

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Liberdade de expressão para quê?

Não posso enaltecer uma virtude fugidia e enclausurada, não exercida e sem fôlego, que nunca se aventura e encara seus adversários, mas move-se sorrateiramente para fora da corrida… Dê-me a liberdade de saber, de falar e de argumentar livremente de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades… Mesmo que todo os ventos da doutrina fossem soltos para soprarem na Terra, de modo que a Verdade esteja em campo, nós praticamos um mal, concedendo licenças e proibindo, ao duvidar da sua força. Deixe que a Verdade e a Mentira lutem corpo a corpo; quem alguma vez viu a Verdade ser prejudicada em um encontro aberto e livre?

Trecho retirado do livro “The Age of Louis XIV” escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando a fala do poeta inglês John Milton (1608-1674) defendendo a liberdade de expressão

Podemos partir do pressuposto de que um regime democrático requer liberdade de expressão e de associação, liberdade de pensamento e de consciência. […] Em que pese tal arranjo não garantir que haverá racionalidade, na sua ausência parece certo que o rumo mais razoável será rejeitado em favor de políticas perseguidas por interesses especiais. […] Todos os cidadãos devem ter os meios de ser informados sobre as questões políticas. Eles devem estar em uma posição tal que lhes permita avaliar como as propostas afetam seu bem-estar e quais políticas promovem sua concepção de bem público. […] As liberdades protegidas pelo princípio da participação perdem muito do seu valor sempre que se permite àqueles que têm mais meios particulares utilizar suas vantagens para controlar o rumo do debate público. […]

Trecho retirado do livro “A Theory of Justice”, do filósofo americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, aula de dança para crianças em uma escola primária ao som de Taylor Swift, na cidade de Southport, 27 quilômetros ao norte de Liverpool, na Inglaterra, em 29 de julho. Um homem entra no recinto e esfaqueia várias das pessoas presentes, matando três crianças, Bebe King de seis anos, Elsie Dot Stancombe de sete anos e Alice da Silva Aguiar, de nove anos. Oito outras crianças e mais dois adultos são feridos. Rumores começam imediatamente a se espalhar nas mídias sociais de que o assassino era um imigrante recém-chegado em um barco inflável, desses que são usados para atravessar ilegalmente o Canal da Mancha. A polícia demora vários dias para divulgar o nome do culpado, o que faz as pessoas presumirem que não se tratava de um inglês branco.

    Finalmente a polícia divulga que o assassino é um adolescente de 17 anos nascido no País de Gales, portanto um cidadão britânico, filho de imigrantes de Ruanda. Trocas de informações não verificadas pelas mídias sociais, que incluíram afirmar que o assassino era muçulmano, têm seu efeito sobre o ânimo das pessoas: em 30 de outubro um grupo de homens brancos reúne-se em torno de uma mesquita em Southport, atacando-a e na sexta-feira dia 2 ocorrem tumultos em várias cidades da Inglaterra, como Leeds, Newcastle e Birmingham, incluindo incêndios, saques, ataques a pessoas. Os tumultos duram até dia 5 de agosto e o saldo final é de 130 policiais lesionados e 1024 pessoas presas (575 delas já denunciadas).

    O governo do primeiro-ministro Keir Starmer acusa grupos de ultradireita de espalhar informações erradas online para atiçar os tumultos e promete um combate duro contra quem encaminhar mensagens que veiculem informações erradas ou desinformação (isto é, informações falsas criadas deliberadamente para prejudicar alguém) por qualquer plataforma social. Mais um típico exemplo do efeito nefasto da troca desenfreada de informações nas mídias sociais, as quais precisam ser reguladas urgentemente, dirão muitos. No entanto, um outro ponto de vista é possível sobre a questão, que me proponho a expor neste meu humilde espaço, com base nas lições de John Rawls no século XX e de John Milton, no século XVII.

    Para John Rawls, teórico do liberalismo moderno, o regime democrático pressupõe a liberdade de expressão e de pensamento. De acordo com o trecho que abre este artigo, tais liberdades são condições necessárias, embora não suficientes, para que as decisões políticas sejam tomadas de maneira racional, isto é, de maneira que não haja a predominância dos interesses específicos de um grupo, mas se construa um consenso sobre o rumo a tomar após o confronto das diferentes ideias na arena pública. Para que haja um debate franco e de boa-fé, visando a formulação de políticas em prol do bem comum, é preciso que o cidadão possa ter acesso às informações sobre o que está acontecendo em sua cidade, Estado e país e com base nelas avaliar as propostas colocadas publicamente para tratar dos desafios que a sociedade enfrenta.

    Se, ao contrário, o cidadão é mal-informado ou se informações são dele omitidas por grupos de interesse para que ele opte por propostas que favorecem determinados grupos, acaba ocorrendo uma deturpação do debate público, que deixa de servir como instrumento de busca de consenso em torno da ideia do bem comum de todos e se torna instrumento de manipulação para que os interesses privados de uns prevaleçam sobre os interesses dos demais. Livre circulação de informações, liberdade para os cidadãos colocarem seus pontos de vista. Dessa maneira, todos juntos, imbuídos de um objetivo comum, que é o de lidar com problemas que afetam todos os membros da sociedade, ficam propensos à busca de consensos ao trocarem ideias e informações e acabam chegando à melhor solução possível, levando as necessidades de todos em consideração.

    Essa ideia do fluxo livre de ideias também está por trás da crítica que o poeta inglês, John Milton, autor de Paraíso Perdido, faz da censura governamental a livros e da necessidade de obtenção de licença de publicação. De acordo com o trecho que abre este artigo, Milton prefere que a Verdade vá a campo de peito aberto, apresente-se em face dos seus contendores. Sendo Verdade, ELA será robusta e prevalecerá contra a Mentira. Tratar a Verdade como uma criatura delicada, que precisa da proteção da limitação à liberdade de expressão para ser mantida, é o pior caminho a tomar, pois Ela só pode prevalecer de maneira duradoura se for testada nos embates com a Mentira, do contrário, enclausurada na bolha proporcionada pela censura, definhará pela falta de energia proporcionada pelo desafio colocado por seu contrário.

     Em suma, tanto para Milton, poeta que faz uso de alegoria, quanto para Rawls, quanto maior a circulação de ideias e informações, por mais que isso seja um processo de tentativa e erro, mais bem servido estará o bem comum, porque todos juntos discutindo franca e abertamente, cometendo erros, trilhando os inúmeros caminhos possíveis poderão ao final chegar ao consenso imaginado por Rawls, isto é, à melhor política pública para todos, ou à Verdade de Milton, a vencedora do duelo a céu aberto com a Mentira.

    À luz da importância enfatizada por John Rawls e por John Milton da liberdade de expressão e de pensamento, considero que apesar de todos os percalços desse turbilhão de informações geradas e consumidas a cada momento nas redes sociais, considero que a censura de conteúdo e a perseguição a usuários de redes sociais por suas publicações virtuais é contraproducente. Se aos cidadãos for negada a chance de participar do debate público, inclusive para dizer besteiras, ele acabará fazendo uso de outros meios mais físicos para fazer com que seja notado.

    Os tumultos podem ter acabado por ora na Inglaterra, mas se o governo impedir que as pessoas manifestem sua opinião sobre questões que as preocupam, como a imigração, elas mais cedo ou mais tarde voltarão às ruas para protestar contra decisões tomadas sem que tenham sido ouvidas. No frigir dos ovos, o melhor fact-checker disponível é aquele proporcionado pela maior circulação possível de informações pelo maior número de possível de pessoas e não por nenhuma agência governamental ou não governamental, que pode ter um interesse particular em realçar certas informações e omitir outras porque quer impor uma determinada política à sociedade sem consultar todos os seus membros.

    Prezados leitores, liberdade de expressão para quê? Para que algumas pessoas falem bobagens e mintam, isso é inevitável, mas principalmente para que a maioria das pessoas, expostas a toda sorte de ideias e informações, possam depois de muitas cabeçadas, aprender a separar o joio do trigo e chegar às conclusões necessárias para que o regime democrático possa continuar entregando resultados à população pela execução de políticas públicas. Apesar de todos os perigos, é só quando a Verdade se aventura e coloca sua cara para bater que ela amadurece e frutifica, permitindo que as decisões mais racionais possíveis a nós, pobres seres humanos, sejam tomadas.

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Útil para quê?

[…] Bentham expôs aquele “princípio da maior quantidade de felicidade” ao qual John Stuart Mill em 1863 deu o nome de “utilitarismo”. É a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas que é a medida do certo e do errado.” De acordo com esse “princípio de utilidade” todas as propostas morais e políticas e as práticas devem ser julgadas, porque “a tarefa do governo é a de promover a felicidade da sociedade”. No longo prazo, ele pensava, o indivíduo obtém a maior quantidade de prazer ou a menor quantidade de dor sendo justo com os outros membros da sociedade.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Aqui a felicidade é considerada como significando o mesmo que o prazer. A função da lei é garantir que, ao perseguir seu próprio prazer ao máximo, ninguém deveria prejudicar essa mesma busca nos outros. Dessa maneira é atingida a maior quantidade de felicidade do maior número de pessoas. Esse era, em que pese todas as suas diferenças, o objetivo comum dos utilitaristas.

Trecho retirado de “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832)

Jan e Els ficaram casados durante quase cinco décadas. No início de junho, eles morreram juntos depois de dois médicos lhes terem ministrado uma medicação letal. Na Holanda, isso é conhecido como eutanásia dupla. É legal e é raro – mas a cada ano, mais casais holandeses escolhem terminar a vida dessa maneira.

Trecho de um artigo publicado no site da BBC em 28 de junho de 2024 intitulado “Morte juntos: por que um casal que tinha um casamento feliz decidiu parar de viver

    Prezados leitores, há duas semanas revelei a vocês a inevitabilidade de eu perder meu emprego em virtude do progresso tecnológico que faz com que as máquinas trabalhem de maneira melhor e mais barata do que os seres humanos. A perda do emprego traz outras repercussões, entre elas a impossibilidade de se aposentar se o desempregado não consegue continuar pagando as contribuições previdenciárias até que cumpra os requisitos impostos pelo INSS. E tais requisitos são cada vez mais estritos. Para mulheres, 30 anos de contribuição e idade mínima de 62 anos são necessários para se conseguir o valor máximo de aposentadoria, que hoje está, em R$7.507,49, o que talvez permita cobrir as despesas com plano de saúde e as necessidades materiais básicas. E se o desempregado não conseguir fazer os pagamentos previdenciários? O que lhe restará?

    Esta é uma pergunta para a qual nossas autoridades não nos oferecem resposta satisfatória. Em 2019, os eminentes deputados e senadores aprovaram uma reforma para tentar viabilizar financeiramente a previdência, mas não houve nenhuma atenção à elaboração e à execução de políticas que estimulem o emprego daquela parcela da população que já passou dos 50 anos e que precisa ter condições de chegar à linha de chegada para conseguir ter uma vida mais ou menos digna na terceira idade. Isso não é novidade no Brasil. Os escravos foram libertados pela monarquia em 1888 e a república nunca se preocupou em oferecer meios para que os ex-escravos tivessem acesso a serviços de saúde e educação que lhes permitissem viver uma nova vida longe do trabalho braçal nas lavouras.  Qual será o expediente menos complexo de que nossas autoridades irão se valer para dar conta desses velhinhos desempregados e “desprevidenciados”? Velhinhos que não são pobres o suficiente para terem direito a benefícios assistenciais como o BCP-LOAS e nem ricos o suficiente para ao final da vida produtiva terem acumulado uma gorda poupança que lhes permita viver mais 30 anos viajando, dedicando-se a hobbies e a trabalhos voluntários?

    Acredito que a solução que será encontrada será aquela proposta por países como a Holanda para lidar com a senescência, a eutanásia. Em, 2023, 9.068 pessoas morreram de eutanásia na terra das tulipas, dos moinhos e dos diques, o que corresponde a 5% do total de óbitos. A morte simultânea do casal Jan e Els, citado na abertura deste artigo, entra na estatística de 2024. Jan de 70 anos exerceu durante toda a vida ofícios que exigiam força física, como o descarregamento de mercadorias, e acabou adquirindo uma dor na coluna que uma cirurgia em 2003 não resolveu e que o obrigava a viver à base de analgésicos. Sua mulher Els, de 71 anos, havia sido professora e aposentou-se em 2018 quando começou a mostrar sinais de demência. A decisão de acabar com a vida foi tomada pelos dois de comum acordo e comunicada ao filho único. Ela resolvia vários problemas: acabava de vez com as dores insuportáveis de Jan, acabava com a angústia de Els de viver sabendo que sua demência só pioraria com os anos e a levaria a se tornar cada vez mais dependente, eximia o filho único de arcar com o fardo de cuidar de pais idosos e debilitados e economizava dinheiro para o Estado holandês, que não mais precisou pagar aposentadorias a duas pessoas que certamente precisariam ainda ser internadas em algum asilo financiado com dinheiro público.

    Diminuindo a dor e os ônus de um grande número de partes envolvidas, a eutanásia parece satisfazer aos critérios do princípio da maior quantidade possível de felicidade ou princípio utilitarista do filósofo e jurista londrino Jeremy Bentham, conforme exposto no trecho que abre este artigo. Afinal, o exemplo concreto da morte do casal Jan e Els mostra que de um lado foi evitada a dor física e o desconforto mental por que os dois passariam se tivessem ficado vivos e de outro lado foi proporcionado um benefício ao filho, que pode agora levar uma vida tranquila sem ter ninguém doente sob sua dependência e um benefício ao Estado, que economizou dinheiro. E mais, ninguém foi prejudicado pela morte dos dois velhinhos.  Sob essa perspectiva, a lei da eutanásia obedece ao princípio exposto por Bertrand Russell em sua exposição das ideias de Bentham de que a lei deve garantir que cada indivíduo possa seguir seu caminho rumo à felicidade e ao mesmo tempo permitir que todos os outros possam fazer a mesma coisa simultaneamente. Para Jan e Els, acabar com a vida era o caminho da felicidade pois evitava a dor inevitável à condição de decadência física em que se encontravam. O que pode haver de mal nisso se não o preconceito dos proponentes de uma moral de fundamento religioso que faz da vida um bem absoluto?

    E no entanto, Bertrand Russell expõe algumas falhas na visão utilitarista. Ela foi utilizada pelos economistas liberais para justificar o laisser faire e o livre comércio em voga no século XIX. A ideia era que se a cada indivíduo fosse dada a liberdade de perseguir sua própria felicidade, em termos de busca de bens materiais, a sociedade como um todo sairia ganhando, porque ao final haveria a maior quantidade de felicidade possível para o maior número de pessoas possível. Como vimos quando tratamos da Revolução Industrial, o laisser faire teve um lado negro, pois permitiu a superexploração dos trabalhadores nas fábricas, exaurindo-os física e mentalmente. Jeremy Bentham pensava que a justiça para todos seria obtida se cada indivíduo ao calcular sua felicidade pensasse nela no longo prazo e no longo prazo é melhor que não prejudiquemos os outros membros da sociedade, porque isso tem repercussões negativas para nós.

    No entanto, será que o ser humano consegue agir cotidianamente e tomar decisões sobre o que fazer pensando no longo prazo? Será que ele tem informações suficientes sobre o que pode ocorrer no futuro para fazê-lo? E será que na prática não somos levados pelas nossas paixões e desejos de forma que a busca da felicidade como ideal acaba sendo uma busca da satisfação dos nossos instintos? Afinal, Sócrates no século V a.C. já havia nos alertado que sem conhecimento não pode haver virtude. Como ser virtuoso ao praticar o culto da felicidade se não conhecemos a nós mesmos e se não entendemos a realidade presente para antecipar o futuro?

    Sob essa perspectiva, será que o filho de Jan e Els, ao se ver privado dos pais por longos anos pela frente, não se arrependerá de ter compactuado com a morte deles porque lhe era mais conveniente no momento? Será que o Estado holandês que economiza agora, cortando custos ao liberar a eutanásia, não estimulará no longo prazo um individualismo cada vez maior, o esgarçamento cada vez maior dos laços familiares e desincentivará a constituição de famílias e a consequente reprodução das pessoas? Afinal, para que ter filhos se quando eu ficar velho serei coagida a me deixar ser objeto de eutanásia para não ser estorvo para ninguém? Quem sustentará o Estado se não houver pessoas que possam trabalhar, gerar riqueza e pagar impostos?

    Prezados leitores, a eutanásia pode ser útil e resolver no momento os problemas de um grande número de pessoas de maneira simples. No longo prazo, ela pode contribuir para destruir a civilização, porque ao cultivar a morte, ela acabará com o vínculo do passado com o futuro estabelecido por aqueles que praticam os valores de uma sociedade que pretende permanecer viva, notadamente o de preservar o legado deixado pelas gerações passadas para as gerações futuras. Espero que nosso Brasil, que está envelhecendo rapidamente e não achou ainda meio de dar emprego e condições dignas aos velhinhos, não adote esse expediente utilitarista. No final das contas, a eutanásia é útil para quê? Para resolver um problema financeiro imediato ou para destruir aquilo que gerações e gerações de seres humanos construíram ao longo dos séculos?

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