Relatos Selvagens

“A História”, ele dizia a eles, “nos ensina que aqueles que, sem dúvida imbuídos de motivos honestos, livraram-se dos gananciosos usando a força bruta contra eles, tornaram-se eles mesmos vítimas da doença dos conquistados … Meu interesse na liberdade da Índia cessará se ela adotar meios violentos. Porque o seu fruto não será a liberdade, mas a escravidão.”

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) sobre Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), advogado e nacionalista indiano

Os métodos lentos da variação e da hereditariedade são suplantados pelos processos mais rápidos da aquisição e transmissão da experiência. E na medida que o mecanismo da evolução deixa de ser cego e automático e se torna consciente, a ética pode ser inserida no processo evolucionário. Antes do homem aquele processo era simplesmente amoral. Depois de sua emergência na vida, tornou-se possível introduzir a fé, a coragem, o amor pela verdade, o bem – em resumo, um propósito moral – na evolução. Tornou-se possível, mas a possibilidade tem sido e frequentemente negligenciada.

Trecho retirado das “Romane Lectures” publicadas em 1943 pelo biólogo, filósofo e educador britânico Julian Huxley (1887-1975)

    Prezados leitores, Relatos Selvagens é um filme de 2014 que reúne histórias de pessoas que, confrontadas com situações em que se sentem injustiçadas, magoadas, ou violentadas, perdem o controle e deixam aflorar seus instintos mais primários. Num caso, dois motoristas trocam insultos na estrada e acabam matando-se mutuamente; noutro caso um engenheiro que tem seu carro guinchado quatro vezes se depara com o sadismo de pequenos burocratas que exercem poder dizendo não às pessoas,  e para se vingar explode um carro de guincho e vai parar na prisão; na última história do filme, na festa do seu casamento a noiva descobre que seu esposo a trai com uma colega de trabalho que também é convidada da cerimônia e para se vingar joga a moça contra um espelho, deixando-a toda ensanguentada.

    Em todos os casos, as reações viscerais acabam prejudicando o indivíduo, mas ele não deixa de tomar a atitude de dar vazão à sua raiva porque não consegue controlar-se ou porque se não o fizer explode. Nesse sentido, o filme, retratando situações do cotidiano vividas por cidadãos do século XXI, mostra que ainda estamos longe do ideal preconizado por Julian Huxley no trecho que abre este artigo. Em 1943 Huxley aventava a possibilidade que a evolução física do homem tinha chegado ao fim, ou procederia de forma muito lenta como resultado das pressões da seleção natural. Por outro lado, o homem poderia evoluir do ponto de vista moral, aprendendo com a experiência, incorporando esses ensinamentos ao seu comportamento e construindo assim uma prática que o levasse a refletir sobre os erros e a permeá-la de valores éticos que norteassem tanto as correções de rota quanto os fins a serem alcançados.

    Huxley sabia que tal potencial moral do homem estava longe de se tornar uma realidade mas, como bom humanista, ele nunca deixou de propor esse novo método de evolução como um meio de tornar o homem o senhor do seu destino na Terra.  Se nem todos nós somos capazes de agirmos sempre com um senso de propósito, com autocrítica e com consistência, é inegável que um homem como Mahatma Gandhi chegou perto disso. Em sua luta para garantir o direito aos indianos de autogovernarem-se sem ser tutelados pelos ingleses, o advogado de Gujarat sempre propôs e foi fiel ao princípio da não-violência, pelas razões expostas no trecho que abre este artigo.

    Ao ser preso inúmeras vezes pelos ingleses por sua atuação política anticolonialista, ele nunca se rebelou contra as autoridades e sempre se submeteu às leis então vigentes, pois considerava que se os indianos conseguissem tomar o poder pela força, no longo prazo a violência voltar-se-ia contra eles e eles tornar-se-iam tão tirânicos quanto os ingleses eram em relação aos seus colonizados Gandhi manteve-se fiel a seus princípios até o fim de sua vida: ao ser alvejado por tiros disparados por Nathuram Godse em 30 de janeiro de 1948, logo depois da promulgação da Lei de Independência da Índia em 1947, pediu que seu assassino não fosse punido, para que não houvesse estímulo ainda maior às violências mútuas cometidas por hindus e muçulmanos.

    Prezados leitores, se a reação instintiva dos homens é vingar-se pelas injúrias sofridas e o comportamento do Mahatma é exceção, o que fazermos nesses tempos em que uma guerra se desenrola na Europa e nenhuma das partes em conflito parece disposta a ceder de verdade para chegarem a um compromisso? O que fazer se russos e ucranianos e seus respectivos aliados exigem a submissão total do outro? Será que entramos em um círculo vicioso de violência e retaliações em que o único desfecho é a selvageria autodestrutiva? Ou será que aparecerá um outro espírito desinteressado, gentil, simples e compreensivo com seus inimigos como o de Gandhi que conseguiu atingir fins políticos sem jamais ter manchado suas mãos de sangue? Aguardemos e quem sabe a evolução moral preconizada por Huxley e praticada por Mohandas se desenrole ante nossos olhos.

Categories: Politica | Tags: , , , , , , , | Leave a comment

O Rufar dos Tambores

A moralidade é estritamente tribal. […] Talvez, no entanto, os gregos sejam diferentes de nós não com relação à conduta, mas à transparência; nossa maior delicadeza faz com que consideremos ofensivo pregar aquilo que praticamos. O costume e a religião entre os gregos coíbem muito pouco o vitorioso na guerra. É prática comum, mesmo em guerras civis, o saque da cidade conquistada, a matança dos feridos, o assassinato ou a escravização de todos os prisioneiros pelos quais não foi pago resgate e de todos os não combatentes capturados, a queima das casas, das árvores frutíferas, das plantações, o extermínio dos rebanhos e a destruição das sementes para inviabilizar futuras plantações.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) que explica a concepção de moralidade e de lei dos gregos exemplificando pelo modo como atuavam nas guerras

[…] a propaganda de guerra estimula os aspectos mais poderosos da nossa psiquê, nosso subconsciente, nossos impulsos instintivos. Nos faz propositalmente abandonar a razão, provoca um aumento do tribalismo, do chauvinismo, do sentimento de superioridade moral e da emotividade: todos constituindo motivações poderosas embutidas em nós ao longo de milênios de evolução.

Trecho retirado do artigo “A propaganda de guerra relativa à Ucrânia está se tornando mais militarista, autoritária e irresponsável” escrito pelo jornalista Glenn Greenwald em 27 de fevereiro

O heróico comediante contra o covarde ex-agente da KGB

Título de um artigo publicado em O Globo em 27 de fevereiro em que o jornalista Guga Chacra compara a atuação de Vladimir Putin, o presidente da Rússia, com a de Volodymyr Zelensky, o presidente da Ucrânia

    Prezados leitores, o rufar dos tambores de guerra está no ar. A Rússia comandada por Vladimir Putin invadiu o país que lhe faz fronteira, a Ucrânia. Como retaliação por parte dos países do bloco ocidental, a Rússia foi banida do sistema SWIFT de pagamentos internacionais e da Copa do Mundo de futebol a ser realizada no Qatar em dezembro deste ano. Suas reservas internacionais em euros e dólares foram confiscadas. Não é meu objetivo aqui tecer uma argumentação defendendo um ou outro lado, mesmo porque não tenho a ilusão de convencer ninguém de nada. Apenas quero apontar certas semelhanças e diferenças entre aquilo que fazemos em pleno século XXI e o que faziam os gregos cinco séculos antes da era cristã.

    Em primeiro lugar, somos mais hipócritas em relação à nossa atuação do que eram os gregos, talvez porque tenhamos chegado a uma sofisticação inigualável em termos de racionalizações. Como mostra Will Durant em seu capítulo sobre o modo franco como os atenienses concebiam a guerra, os gregos tinham consciência de que a lei e a justiça se aplicavam somente ao seu grupo. Contra os inimigos valia a força bruta, a imposição da sua vontade por todos os meios necessários de modo a obter a subjugação do outro e obter os espólios de guerra. Nesse sentido, a violência, tal como a descrita por Will Durant – a política de terra arrasada que era prática comum – era o meio para a conquista material. O poder fazia a lei e a lei deveria ser solenemente ignorada quando era um obstáculo à conquista: as tréguas eram frequentemente desrespeitadas, as promessas que uma cidade fazia à outra quebradas, os enviados diplomáticos assassinados. Em suma, a noção de Direito Internacional, de Direito da Guerra, de direitos dos prisioneiros de guerra eram totalmente estranhas aos gregos.

    Quem há de negar que neste sentido evoluímos? Afinal, temos a Organização das Nações Unidas. É verdade que o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU muitas vezes permite que as potências exerçam esse direito para impedir alguma sanção ou colocar algum obstáculo jurídico contra o seu comportamento bélico. Assim ocorreu com os Estados Unidos quando invadiu o Iraque em 2003 e assim está ocorrendo em relação à invasão da Rússia pela Ucrânia: não houve consenso no Conselho de Segurança tanto no passado como no presente devido ao equilíbrio de forças entre os membros. Sob essa perspectiva, o poder está paralisando o Direito, tal como ocorria na Grécia. Por outro lado, é sempre possível convocar uma Assembleia Geral da ONU, em que todos os países possam ser escutados a respeito da solidez da justificativa que está sendo proposta para a guerra. Desse modo, alguma condenação o país invasor sofrerá, o que no mínimo tira a credibilidade da ação militar.

    No entanto, conforme explica Glenn Greenwald em seu artigo, disponível em greenwald.substack.com, há atualmente um consenso que se estabeleceu rapidamente e que pode ser perigoso, por impedir uma reflexão desassombrada sobre o que fazer ante o fato consumado da invasão não provocada pela Rússia da Ucrânia. O consenso, estabelecido na mídia e no establishment político dos Estados Unidos, gira em torno de uma visão maniqueísta dos acontecimentos que estão se desenrolando no Leste Europeu. Vladimir Putin é o homem mal, irracional, louco, o novo Hitler, que atacou gratuitamente um país indefeso. Quem quer que discorde dessa visão é um traidor da pátria, dos valores da liberdade representados pelos Estados Unidos e por isso o país tem a obrigação moral de defender a Ucrânia democrática contra o tirano Putin.

    Greenwald considera isso perigoso porque independentemente da escolha moral que cada indivíduo fizer, seja pelos valores propostos pela Rússia de Putin, seja pelos valores propostos pelo bloco ocidental capitaneado pelos Estados Unidos, essa certeza sobre quem está certo no embate entre o Bem e o Mal obscurece nossa capacidade de pensar. Unidos em um bloco homogêneo em torno do inimigo comum, teremos motivação para enfrentá-lo, mas não teremos lucidez para escolher o melhor caminho a tomar. É producente tornar a Rússia um pária internacional? Resolveremos a situação impondo sanções econômicas que prejudicarão a população de todos os países em termos de alta de preços de alimentos e energia (afinal a Rússia e Ucrânia juntas respondem por 25% das exportações mundiais de trigo e a Rússia é grande fornecedora de gás à Europa)? É justo impor os maiores sacrifícios aos cidadãos comuns que não participam das disputas de poder entre as grandes potências geopolíticas do século XXI? Não é melhor que a negociação diplomática entre em cena e que os dois lados de fato façam concessões recíprocas e cumpram o que prometerem?

    Nesse ambiente de rufar dos tambores, a onipresença das mídias sociais atiça o fogo das paixões. A inteligência artificial embutida em plataformas sediadas nos Estados Unidos, como o Facebook e o Twitter, tem uma capacidade de processamento de informações que lhe permite determinar nossas predileções políticas e assim oferecer a nós, pela aplicação de algoritmos, aquilo que queremos ouvir e ler, i.e. aquilo que reforça nossas convicções, o chamado viés da confirmação. O discurso único em torno da demonização do líder russo e da idealização do líder ucraniano fica assim ainda mais consolidado, em todos os países influenciados pela mídia americana, vide a manchete que abre este primeiro artigo escrita por um jornalista brasileiro em um de nossos principais veículos de informação.

    Prezados leitores, 2022 abre-se como um ano turbulento, em que comparativamente aos gregos de 2500 anos atrás temos uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que temos um Direito Internacional codificado, entre outros documentos, na Carta das Nações Unidas de 1945. Por outro lado, temos veículos como as mídias sociais que permitem o estabelecimento rápido de consensos eficientes que bloqueiam qualquer opinião contrária. Resta esperarmos que nossos pontos fortes sobressaiam e que não acabemos como os gregos destruindo-nos mutuamente em uma versão global da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

Categories: Politica | Tags: , , , , , , , , , , , , | Leave a comment

Abstencionistas-militantes: o mal do século?

O principal problema em 50 anos é que não haverá pessoas suficientes. […] Provavelmente não atingiremos a marca de 9 bilhões de habitantes. O colapso populacional nos países desenvolvidos é algo alarmante.

Trecho de uma entrevista com Jordan Peterson, psicólogo clínico canadense, (1962- ) realizada por Chris Williamson no programa Modern Wisdom

Sua doutrina de Maya [i.e. o mundo como um fenômeno, uma aparência, em parte criado pelo pensamento], fornece pouco incentivo à moralidade ou à virtude ativa; seu pessimismo é uma confissão de que, a despeito da teoria do karma [i.e. todo ato bom ou ruim será recompensado ou punido nesta vida ou em alguma encarnação posterior da alma], ela [i.e. a filosofia hindu] não explica o mal; e parte do efeito desse sistema foi o de exaltar uma quietude estagnante em face dos males que poderiam razoavelmente ter sido corrigidos, ou em face de um trabalho que clamava por ser feito. […] Daí que a influência do pensamento hindu em outras culturas foi a maior nos momentos de enfraquecimento ou decadência delas.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) ao fazer uma avaliação crítica da filosofia hindu e de sua influência sobre outras culturas.

Eleições presidenciais de 2022: uma pesquisa revela o desinteresse dos jovens franceses pela política – Um Estudo do Instituto Montaigne indica que 55% daqueles entre 18-24 anos não conseguem nomear um partido de sua preferência

Manchete de um artigo do jornal francês Le Figaro publicado em seu sítio eletrônico em 3 de fevereiro de 2022

    Prezados leitores, entre as várias menções que já fiz às ideias filosóficas desenvolvidas na Índia falei a respeito do budismo, fruto do pensamento de Sidarta Gautama, e de como ele tornou-se cada vez mais popular no Ocidente à medida que o Cristianismo foi sendo abandonado como referência moral e religiosa. De acordo com Will Durant, conforme explica o trecho que abre este humilde artigo, as características principais da filosofia hindu fazem com que ela exerça influência em sociedades que estão passando por um processo de desintegração. Entre as razões disso estão duas: o fato de propor que o nosso conhecimento do mundo é necessariamente limitado pelos nossos sentidos e nosso conteúdo mental (conclusão a que a filosofia ocidental só chegou depois de quase 2.000 anos de atividade intelectual); e o fato de propor que as escolhas morais do indivíduo não têm importância em face da imensidão da realidade subjacente à qual o homem, preso à sua individualidade, aos seus pensamentos e aos seus sentidos, não tem acesso, mas que encerra em si tudo, diluindo as distinções entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre a verdade e a mentira, entre o prazer e a dor em um todo homogêneo.

    Sob esse ponto de vista, o mundo como fenômeno ilusório e a vida como encenação eterna do Karma para a expiação de culpas passadas dão expressão a uma desesperança e a um fatalismo que não levam à ação para melhorar a sociedade, mas apenas a uma aceitação resignada das vicissitudes e dos desafios da vida. Esse tipo de pensamento parece em pleno século XXI exercer uma influência nos países desenvolvidos do Ocidente, particularmente na geração jovem que é filha ou neta dos que, na década de 60, estiveram expostos aos ventos da contracultura e das filosofias orientais. Para ilustrar esse ponto, tomo como base uma entrevista a que assisti no jornal de notícias da TV francesa.

    A jornalista entrevistava um jovem de 24 anos, que era descrito ao mesmo tempo como abstencionista e militante. O abstencionismo dos jovens franceses, como mostra o artigo do Le Figaro citado acima, é um grande problema para os candidatos que pretendem tirar Emmanuel Macron, o atual presidente da França, do poder. Se não houver um aumento no número de pessoas que vão às urnas para manifestarem sua opinião fica difícil derrotá-lo, porque em que pese Macron não ter um apoio maciço, ele o terá de maneira suficiente a manter-se no Palácio Eliseu, dada a indiferença dos que não votam e não se dão ao trabalho de tentar influenciar o resultado da eleição.

    O jovem explica à jornalista sua recusa em votar dizendo que o presidente da França pouco pode fazer a respeito das coisas que realmente importam, acima de tudo a mudança climática. E nesse sentido Camille (este é seu nome) descreve-se como um militante da causa ecológica. Quando a jornalista pergunta a ele se não seria importante votar para escolher representantes que elaborem políticas públicas que melhorem o meio ambiente, o jovem retruca que é preciso mudar o sistema capitalista, mas não explica exatamente como.

    Aí está a dimensão fatalista e resignada de muitos dos ecologistas que denunciam a mudança climática. Eles atribuem ao capitalismo a origem da super exploração dos recursos naturais, mas em termos de propostas exequíveis tudo fica muito vago, sem detalhes e muito menos prioridades. Afinal, o que fazer? Acabar com o capitalismo? Mas como? Estatizando os meios de produção? Isso já não foi tentado antes e fracassou? A experiência histórica não mostrou que, em que pese o capitalismo criar grandes desigualdades, ele é eficaz em criar riquezas? Será que tornando as pessoas mais pobres por meio de um sistema econômico não tão eficiente na alocação de recursos como o capitalismo o meio ambiente será mais bem preservado? Ou será o contrário? Será que quanto mais pobres as pessoas, mais elas se comportam de maneira predatória porque não têm alternativa de subsistência?

    Além de criticar genericamente o capitalismo, os defensores do Planeta Terra apontam a super população como um grande mal. Se houver menos gente no mundo, haverá menos uso dos recursos naturais. Com certeza. Por outro lado, isso levará ao colapso da civilização. Conforme Jordan Peterson explica na entrevista citada na abertura deste artigo, estamos no momento da história da humanidade no planeta em que haverá o maior número de homo sapiens. Ao saírmos do pico de população desceremos aos fundos do colapso populacional pela seguinte razão: quanto menos pessoas decidirem não ter filhos, menos haverá no futuro pessoas com capacidade de gerar descendência e a queda no número de pessoas será exponencial.

    Neste ponto cabem os seguintes questionamentos: qual será o futuro da nossa espécie se só restarem velhos que não podem se reproduzir e por sua própria senescência não geram inovação? Quem carregará a tocha da civilização pelos próximos séculos se não houver quem responda aos desafios com ideias que abalam os paradigmas? Será que a mentalidade que predomina principalmente nos países desenvolvidos, a indiferença à política, a ideia niilista de que o ser humano é o problema e não a solução, levará o homo sapiens ao suicídio coletivo pela recusa em fazer o trabalho que deve ser feito, parafraseando Will Durant, i.e. pela recusa em engajar-se na sociedade, em propor soluções factíveis e atacar os problemas da melhor forma possível, considerando que o ser humano é falível? Eu provavelmente não viverei para saber a resposta a essa pergunta, mas talvez o abstencionista-militante Camille viva e descubra se a opção que ele faz em seus tenros anos terá sido realmente a correta.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , , | Leave a comment

All the world is a stage

Assim, por meio dos sentidos, nunca conseguimos realmente conhecer o “real”; podemos conhecê-lo somente sob a roupagem do espaço, do tempo e da causa que podem ser uma rede criada pelos nosso órgãos do sentido e do entendimento, desenhada ou aperfeiçoada para pegar e manter aquela realidade fluente e esquiva cuja existência podemos supor, mas cujo caráter jamais podemos descrever; nossa maneira de perceber estará sempre inextricavelmente mesclada à coisa percebida.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) explicando as ideias de Shankara filósofo indiano (788-820)

O mundo é um palco; os homens e as mulheres, meros artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo: Sete atos, sete idades.

Trecho retirado da peça “As you like it”, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), em que o mundo é comparado a um palco e a vida a uma peça

Em 4 de fevereiro, com o anúncio de um acordo de grande importância, o encontro entre Vladimir Putin e Xi Jinping marcou o início de uma nova ordem internacional. A divulgação da boa nova coube ao filósofo Alexander Dugin, que anunciou no dia seguinte: o colapso do “liberalismo global e da hegemonia ocidental”, derrotados pelo bloco emergente do “grande espaço chinês e do projeto euroasiático na atual “guerra das civilizações”

Trecho retirado do artigo “Dugin, o pensador que inspira Putin”, publicado no jornal O Globo em 13 de fevereiro

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei entender as diferentes e contraditórias visões sobre o líder russo Vladimir Putin, valendo-me das reflexões do filósofo Immanuel Kant sobre o arcabouço mental de que necessitamos para produzir conhecimento. O conhecimento não deriva naturalmente da experiência, mas requer que essa experiência seja vivenciada e interpretada pelo ser cognoscente. Daí que os fatos devem ser construídos em torno de um todo coerente a partir do nosso ponto de vista de seres racionais: essa interação entre a razão e a realidade por meio dos sentidos, que faz com que uma seja influenciada pela outra, é o único caminho para o conhecimento, embora ela implique uma limitação. Tal limitação foi explorada por um kantiano avant la lettre, Shankara, conforme explica Will Durant em sua descrição da filosofia hindu e que eu procurarei destrinchar nesta semana, a fim de lançar novas luzes sobre o personagem Putin.

    Assim como Kant, em pleno Iluminismo europeu, colocou-se a questão sobre em que medida o conhecimento é possível, Shankara também se debruçou sobre ela e elaborou uma resposta que é muito parecida com a que o filósofo de Konigsberg deu, conforme mostra o trecho citado na abertura deste artigo. Adquirimos conhecimento do mundo por meio da nossa mente e dos nossos sentidos. Nossa mente cria um arcabouço em que nossas experiências são situadas em um determinado lugar e tempo e são consideradas como sendo causadas por um evento anterior. De posse desse arcabouço, experimentamos a realidade por meio dos nossos cinco sentidos, catalogando, lembrando e interpretando a realidade usando essa rede epistemológica que tenta flagrar um instante de um fluxo constante e sempre em mutação, armazenando-o em nossa memória, rotulando-o por meio da linguagem e assim eternizando algo que é fugidio e contingente.

    Daí que Shankara vê um fosso entre a realidade subjacente e a nossa percepção dela: criamos um mundo mental formado de entes percebidos a que atribuímos certas propriedades e estabelecemos que tais entes mantém certas relações de contiguidade espacial e temporal e de causa e efeito. Mas para o filósofo indiano, a realidade subjacente não é aquela gravada e processada pelos nossos sentidos, aquela formada de indivíduos separados entre si, que têm crenças sobre o bem e o mal e acreditam em um Deus criador. Shankara considera que a realidade é indivisível, imutável, eterna. Os valores morais que embasam o comportamento social são categorias necessárias ao homem como as noções de tempo, espaço e causa são necessárias para sua vida intelectual. Nesse sentido, praticar o bem, seguir os rituais religiosos não é virtuoso, porque nos prende ao mundo ilusório das percepções mediadas pelo intelecto: a única virtude é simplesmente reconhecer que cada indivíduo é absolutamente idêntico a todos os outros indivíduos na onipotência e realidade universal do brâman, o Ser verdadeiro.

    Sob um certo aspecto, o precursor de Kant na delimitação da possibilidade do conhecimento ao espaço confinado pelas nossas categorias mentais e nossos sentidos, não estabeleceu as bases do método científico possível como fez o filósofo iluminista. Ao contrário, ele apenas estabeleceu as bases do fatalismo e da resignação que caracterizam a história da Índia, ao longo de séculos de invasões que culminaram com a colonização europeia, a partir do século XV, com a chegada dos portugueses. Se o sofrimento e os prazeres, se o certo e o errado, se o bem e o mal são ilusões do indivíduo preso à sua especificidade, a saída é desapegar-se do mundo sensorial e chegar ao nível de sabedoria em que o indivíduo reconhece estar mergulhado no todo indistinto.

    Independentemente de adotarmos ou não uma atitude passiva em relação à vida a partir da filosofia de Shankara, há uma certa vantagem em olhar o mundo como um palco onde se desenrola uma peça encenada por homens que irão nascer, crescer e envelhecer, conforme Shakespeare define no monólogo da comédia “As you like it”, citado acima. As diferentes versões dos fatos, as polêmicas sobre as qualidades morais de personagens, os choques de valores entre diferentes civilizações, são colocados em sua devida perspectiva: por um lado são inevitáveis porque o homem é incapaz de conceber sistemas cuja validade seja absoluta ou de chegar à verdade objetiva, preso que está ao seu intelecto e aos seus sentidos subjetivos; por outro lado, dão-nos uma lição de humildade no sentido de que se o mundo é um palco, nele podem desfilar toda sorte de personagens, com seus próprios códigos morais, valores e ideias.

    Assim, para retomar o tema do artigo anterior: se de acordo com os valores prevalentes no Ocidente Vladimir Putin é um personagem detestável entre outras razões por seu viés autocrata e por não considerar o direito à opção sexual como um direito humano, de acordo com os valores prevalentes em uma determinada parte do Oriente Putin encarna o líder que enfrenta a hegemonia ocidental, conforme explica o artigo sobre Alexander Dugin citado na abertura deste artigo. Ele representa a nova ordem mundial formada pela parceria geopolítica da China com a Rússia, países em que não há eleições de representantes políticos e em que a concepção de direitos humanos é mais estreita que a Ocidental. Tal ordem contrapõe-se à ordem determinada pelos Estados Unidos ao longo do século XX. Diferentes personagens, diferentes histórias vividas por eles e diferentes narrativas delas: o mundo é o palco das ilusões para Shankara, o palco do choque de civilizações para Dugin e o palco dos atores de Shakespeare. Qual será o final: o final catártico das tragédias ou o final feliz das comédias? Ninguém sabe, nem Shankara, nem Dugin e nem Kant, nem Shakespeare.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , , , | Leave a comment

Fatos e narrativas putinescas

Fernández disse a Putin: “Estou empenhado em que a Argentina deixe de ter essa dependência tão grande que tem com o Fundo (Monetário Internacional) e com os Estados Unidos. Tem de se abrir caminho a outros lados e me parece que a Rússia tem um lugar muito importante.

Trecho retirado do artigo “Apoio da esquerda e da direita a Putin” do jornalista Lourival Sant’Anna publicado no jornal O Estado de São Paulo de 6 de fevereiro

Putin, um verdadeiro patriota? Presidente russo se acostumou a colocar o mundo de joelhos com suas ameaças

Título e subtítulo do artigo de Mario Vargas Llosa publicado no jornal O Estado de São Paulo de 6 de fevereiro

[…] uma organização racional pré-científica da experiência sensorial em um mundo coerente, inteligível de objetos substantivos vistos como interagindo por meio de processos causais

Trecho retirado do verbete “Filosofia da Ciência” na edição de 1974 da Enciclopédia Britânica sobre o filósofo Immanuel Kant (1724-1804)

    Prezados leitores, na semana passada fiz uso dos conceitos elaborados por Ludwig Wittgenstein a respeito da linguagem para elucidar o porquê de eu considerar Curitiba democrática e o porquê de uma amiga com quem troquei mensagens considerar a cidade fascista com base nas qualidades de limpeza, ordem e beleza que lá percebi. O caminho que encontrei foi esclarecer o uso diferente que estávamos cada uma de nós fazendo do adjetivo democrático. Não poderíamos chegar a um acordo sobre as qualidades ou defeitos da capital do Paraná antes de estabelecermos uma regra sobre como utilizar o termo “democrático” na prática. Nesta semana, irei humildemente valer-me de outro filósofo para abordar o assunto que está na pauta do dia da agenda internacional: Putin tem ou não razão em colocar tropas na fronteira da Rússia com a Ucrânia? Não pretendo apresentar uma resposta a tal pergunta, mas apenas tentar explorar a origem das diferentes respostas dadas.

    Minha exploração da polêmica toma como base os ensinamentos de Immanuel Kant, que em sua obra filosófica tentou uma terceira via que não era nem o racionalismo de René Descartes (1596-1650), para quem o conhecimento é obtido das ideias inatas, nem o empiricismo de David Hume (1711-1776), para quem o conhecimento é obtido exclusivamente dos sentidos e da experiência. O meio termo entre esses dois polos consistiu em postular que a experiência é necessária, mas não suficiente para o conhecimento. O que transforma a matéria bruta da experiência em conhecimento são os princípios de organização, entre os quais o da causalidade, que são categorias mentais com as quais o homem dá forma e interpreta a experiência: o homem, enquanto ser racional, impõe à Natureza uma estrutura cognitiva, a qual não é algo pronto para ser descoberto no mundo exterior e trazido à luz.

    Daí que conforme o trecho que abre este artigo, um mundo coerente e inteligível, regido por relações de causa e efeito, é produto de uma organização racional da experiência, que permite que a realidade perceptível nos dê respostas, que obriga a Natureza a responder às perguntas que do contrário permaneceriam não respondidas se o homem se valesse apenas do fluxo de impressões sensoriais. É neste ponto que insiro a questão sobre os motivos louváveis ou não de Putin mobilizar tropas na fronteira com o país vizinho. Como decidir se os motivos do líder russo são louváveis ou não? Basta nos inteirarmos dos fatos e conseguiremos chegar a uma conclusão unívoca? Os ensinamentos de Kant mostram que entre o que acontece no mundo visível e nossa mente há pontes que construímos de acordo com nossas categorias mentais: a depender do material e da técnica de construção utilizados teremos diferentes estruturas.

    Para Mario Vargas Llosa e Lourival Sant’Anna, cujos artigos são citados acima, Vladimir Putin é a antítese da liberdade. Encastelado há 22 anos no poder e sem a mínima vontade de aposentar-se e dar lugar a outros (tendo inclusive conseguido aprovar uma lei que lhe permite continuar na ativa atpe 2036), Putin representa o autocrata autoritário que quer impor sua vontade de qualquer jeito, ameaçando cortar o suprimento de gás aos países da Europa, como informa Mario Vargas Llosa e colocando tropas na fronteira com a Ucrânia para amedrontar o Ocidente democrático e fazê-lo aceitar a incorporação do país pelo gigante russo. Além disso, Putin é machista, homofóbico e racista, o que o coloca em posição diametralmente oposta àquela dos países avançados nos quais a tolerância à diversidade racial e sexual é um apanágio das liberdades proporcionadas pelo regime democrático.

    Há no entanto, uma outra visão centrada em torno de uma outra qualidade, diferente da liberdade, qual seja, a alternativa de poder, expressa pelo presidente da Argentina, Alberto Fernández, conforme mostrado na abertura deste artigo: nosso vizinho sul-americano é o maior devedor do FMI, com quem já celebrou mais de 20 acordos, (a dívida chegava a 44 bilhões de dólares em 2019) e naquele ano, de acordo com os dados do CIA Factbook, teve uma retração do PIB de 2,03%. Para um país como a Argentina, que está preso em um círculo vicioso de dívidas impagáveis e recessão econômica, uma alimentando a outra, o modelo ocidental não tem rendido frutos, a despeito das liberdades que Mario Vargas Llosa tanto preza. Buscar outros apoios na cena internacional que ofereçam ajuda financeira menos onerosa que aquela oferecida pelo FMI, cujo maior acionista são os Estados Unidos, talvez fosse um caminho para a Argentina, na visão de Fernández. Nesse sentido, Putin, ao desafiar os desejos dos Estados Unidos, representa uma alternativa ao liberalismo econômico proposto pelos americanos, que entre outras condições fundamentais para que ocorra a livre e proveitosa atividade econômica, estabelece que os contratos devem ser respeitados e que as dívidas devem ser pagas sempre. Para um grande devedor como a Argentina, livrar-se dessas constrições liberais pode ser um bom negócio.

    Assim, a utilização de diferentes categorias mentais para enquadrar os acontecimentos da geopolítica mundial nos leva a construir mundos completamente diferentes. A colocação pela Rússia de tropas na fronteira com a Ucrânia pode ser vista como um ato de soberania e de resistência a reconhecer os Estados Unidos como o país que dita as regras e os valores para todo o mundo ou como um ato belicoso de opressão de um país vizinho que é muito menor e que está lutando para seguir seu próprio caminho na cena mundial, livre da influência histórica do seu vizinho mais poderoso e sempre assertivo.

    Prezados leitores, o que hoje chamam de narrativas, para denotar visões dos fatos determinadas por uma determinada ideologia, o velho filósofo de Konigsberg considerava tratar-se de um sistema racional de explicações empiricamente aplicáveis. A diferença entre um e outro é que Kant acreditava que tal estrutura era eficaz e a única possível para obter o conhecimento, ao contrário dos proponentes das narrativas de hoje, que consideram que se trata sempre de uma luta pelo poder e não pela verdade. Espero que, se não me atrevo a dar uma resposta positiva ou negativa sobre os atos de Vladimir Putin, ao menos eu tenha conseguido explicar as origens dos diferentes fatos e narrativas sobre o personagem.

Categories: Politica | Tags: , , , , , , , , , , , , , , | Leave a comment