Não se reprima?

 A religião respalda a moralidade de duas maneiras principais: o mito e o tabu. O mito cria a crença sobrenatural por meio da qual as sanções celestiais podem ser dadas a formas de conduta social (ou sacerdotalmente) desejáveis; as esperanças e terrores celestiais inspiram o indivíduo a tolerar restrições que lhe são impostas por seu senhor ou pelo grupo. O homem não é naturalmente obediente, gentil ou casto; e ao lado daquela antiga compulsão que finalmente gera a consciência, nada conduz de maneira tão tranquila e contínua a essas virtudes destoantes como o medo dos deuses. As instituições da propriedade e do casamento em larga medida se apoiam nas sanções religiosas, tendendo a perder o vigor em épocas em que impera a descrença.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, que acaba de ser lançado no Brasil, o renomado neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, aponta as baterias de combate ao estado atual de estagnação intelectual para o que afirma ser sua maior causa: o excesso de tempo passado diante da tela dos mais variados aparelhos digitais. […] Estudo da Universidade de Alberta, no Canadá, mostrou que crianças de 5 anos ou menos que passam mais de duas horas por dia on-line têm chance cinco vezes maior de apresentar dificuldade de concentração e sete vezes mais risco de exibir sintomas de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).

Trecho retirado do artigo “Mentes nem tão brilhantes” publicado na edição da revista Veja de 6 de outubro

Em diferentes medidas, todos eles acreditavam que o homem era, por natureza, racional e sociável: ou que, pelo menos, sabia o que melhor lhe convinha – bem como aos outros – quando não eram desvirtuados por velhacos ou mal conduzidos por tolos; acreditavam também que, se ao menos o homem aprendesse a descobrir seus interesses, ele seguiria as regras de conduta passíveis de descoberta mediante o emprego do entendimento humano corriqueiro; […] Eles acreditavam que a descoberta e o conhecimento de tais leis tenderiam, desde que fossem suficientemente difundidos, por si mesmos a promover uma harmonia estável tanto entre os indivíduos e as associações quanto no interior do próprio indivíduo.

Trecho retirado do livro “Os limites da utopia” do pensador nascido na Letônia e naturalizado britânico Isaiah Berlin (1909-1997) sobre os filósofos do Iluminismo

 

A única solução para o problema das drogas é a coragem que o Uruguai teve: liberalizar o comércio das drogas […] Esta foi a solução que propôs, há muitos anos, um economista liberal, Milton Friedman, que, ademais, acrescentou que seguia crescendo a luta contra as drogas, e aqueles que viviam desse trabalho seriam os piores inimigos de sua liberação. Exatamente assim ocorreu.

Trecho retirado do artigo “Liberdade para as drogas”, escrito pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa e publicado no Estadão de 7 de novembro

    Prezados leitores, na semana passada eu descrevi as descobertas do antropólogo francês Pierre de Clastres sobre a organização política de certas tribos indígenas brasileiras, que prescindiram da organização de um Estado nos moldes encontrados nas sociedades ocidentais, para ilustrar a argumentação desenvolvida por Will Durant em seu livro “Our Oriental Heritage”: cada cultura humana tem sua lógica, sua maneira de estruturar-se e de estruturar o mundo à sua volta. A lição que ele tira é que se o que é bom e o que é mal do ponto de vista da moral é relativo a cada grupo humano que se organizou autonomamente ao longo da história do Homo Sapiens na Terra, isso não deve necessariamente levar-nos a um desencanto com todo e qualquer código de ética pelo fato de seus preceitos não terem um valor absoluto. Ao contrário, essa relatividade é um indício da capacidade dos homens de responderem aos desafios colocados pelo seu ambiente e de acumular uma experiência que lhes permite pela tentativa e erro achar as melhores regras para a convivência social naquele local e para aquelas pessoas que formam o grupo.

    Nesta semana, abordarei um outro aspecto da visão que Durant tem da moral, além da sua utilidade para a organização da sociedade. Fica claro pela leitura do trecho que abre este humilde artigo que para aquele filósofo americano a religião é um pilar indispensável da moral. Não há como fazer os homens comportarem-se de acordo com as regras do bem viver se não lhes for instilado o medo da punição e a esperanças das recompensas que só os mitos religiosos proporcionam. Quando a crença na religião começa a vacilar a disposição dos homens de obedecer também segue o mesmo caminho. Durant ilustra esse ciclo inevitável em seu livro “The Life of Greece”, ao explicar como a ascensão da descrença permitida pelo florescimento da filosofia levou os gregos, independentemente de sua maior ou menor capacidade intelectual, a utilizar argumentos filosóficos relativistas para justificar sua negação das restrições desagradáveis impostas pela moral fundada na religião. Em suma, a fina camada civilizatória que o homem é capaz de criar se sustenta sobre as sólidas fundações do medo irracional do castigo dos deuses ou do fogo do inferno, a depender de qual religião está em voga.

    Sob essa perspectiva, Durant é um cético em relação aos preceitos dos filósofos iluministas do século XVIII, homens como Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778) e Montesquieu (1689-1755). Conforme o trecho reproduzido acima, extraído do livro de Isaiah Berlin, o Iluminismo, trouxe a concepção de que o homem tinha uma vocação natural para a razão: se ele fosse exposto às informações necessárias e não fossem manipulado por pessoas mau intencionadas ou imbecis que tivessem o poder de lhe impor suas mentiras ou superstições, o homem se utilizaria de suas faculdades mentais e de suas percepções sensoriais para encontrar por si mesmo as regras do bem viver, isto é, a melhor maneira de comportar-se em relação aos seus semelhantes e ao mesmo tempo de atender seus próprios interesses, de forma a criar uma harmonia social em que os membros do grupo se entenderiam porque seriam capazes de perceber qual era o denominador comum que criaria o máximo de prosperidade e bem-estar para o maior número de pessoas. Em suma, a religião, longe de ser o pilar da moral, era um obstáculo a ela, por causa dos preconceitos imemoriais que ela embutia e que prejudicavam a visão imparcial dos fatos. A tradição, representada por regras reproduzidas sem questionamento através dos séculos, é estúpida e obscurantista, porque ela impede o homem de ser livre e de escolher o seu caminho de acordo com seu melhor julgamento.

    Quem tem razão neste debate? Durant ou Voltaire? Conservadores ou liberais? É um debate que está implícito na discussão sobre a liberalização ou não das drogas. No artigo citado acima, o escritor peruano Mario Vargas Llosa mostra-se claramente um iluminista. Em sua opinião, o comércio das drogas deve ser livre porque a política de repressão até agora adotada só levou à consolidação do poder dos narcotraficantes, à violência e à corrupção das instituições estatais. A solução é jogar luzes sobre esse poço sem fundo: deixemos que as pessoas tenham a liberdade de optar por se drogar ou não, com base em um consentimento informado, isto é, na análise por cada um de nós, sujeitos do nosso destino, dos riscos e benefícios de ingerir substâncias que causam alterações no cérebro e que têm potencial de causar vício.

    Para Llosa, pior que está não pode ficar: os narcotraficantes se beneficiam da repressão auferindo lucros fabulosos e oferecendo seus produtos livremente, a despeito de todo o aparato policial. Sua mensagem é de um perfeito filósofo iluminista: façamos uma análise desapaixonada dos fatos, livremo-nos das nossas ideais pré-concebidas, fundadas no medo e na ignorância sobre as drogas, e tenhamos a coragem de confiar na capacidade de cada ser humano, dotado da capacidade de pensar e perceber, de decidir o que é melhor para si.  A droga não é pecaminosa ou demoníaca em si, ela pode ser deletéria se for mal utilizada por pessoas desinformadas.

    Não há dúvida de que nem todo usuário de drogas é um viciado incorrigível e não há dúvida sobre a influência corruptora exercida pelos narcotraficantes sobre as frágeis democracias na nossa América Latina. No entanto, será que nós realmente somos capazes de nos proteger de escolhas erradas simplesmente pela exposição ao maior número de informações sobre as vantagens e desvantagens de determinado comportamento?

    De fato, o artigo de Veja sobre os efeitos deletérios do uso exagerado de aparelhos digitais é mais um dos tantos que nos alertam sobre os perigos da nossa fissura pela tela dos celulares, tablets e quejandos. Quem já não leu sobre o impacto das fake news sobre as campanhas eleitorais, o impacto dos algoritmos utilizados pelas mídias sociais sobre nossas preferências ideológicas, reforçando-as e nos fazendo fecharmo-nos cada vez mais na nossa tribo? E no entanto, apesar de todas essas informações, de todas essas advertências de especialistas como o Sr. Desmurget sobre o impacto do excesso de tempo na frente das telas, continuamos aqui e não desgrudamos delas. Qual será a razão? Será que o nosso prazer em navegar na internet, no Facebook e no WhatsApp é maior do que nossa tênue consciência acerca dos males do vício? Será que no final das contas só conseguimos controlar nossas emoções e impulsos quando eles são suaves o suficiente para não importunar o funcionamento da razão? Será que quando somos deixados livres para decidir, isso não é necessariamente garantia de que decidiremos o que é melhor para nós porque nossa irracionalidade, livre das amarras da religião e da moral vem à tona?

    Prezados leitores, viciada que sou como vocês nas telas digitais, ainda que não nas drogas, eu não tenho resposta ao dilema reprimir ou não reprimir, liberar ou não liberar, emoção ou razão. Espero ao menos ter contribuído para que cada um possa perceber a complexidade da questão inquirindo sobre as origens históricas e filosóficas da dialética entre moral e religião.

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Das Relatividades e Relativismos

Não devemos concluir que a moral é inútil porque ela muda de acordo com o tempo e o lugar, e que seria sábio mostrar nosso conhecimento histórico imediatamente desacatando as regras morais do grupo. Um pouco de antropologia é algo perigoso. Nossa rejeição heroica dos costumes e da moralidade da nossa tribo, quando descobrimos na adolescência que eles são relativos, revela a imaturidade da mente; mais uns dez anos e começamos a entender que pode haver mais sabedoria no código moral do grupo – a experiência formulada de gerações da raça – do que pode ser explicado em um curso na faculdade. Mais cedo ou mais tarde vem a constatação perturbadora de que mesmo aquilo que não conseguimos entender pode ser verdade. […] Temos razão em concluir que as regras morais são relativas, mas indispensáveis.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

O selvagem de qualquer tribo indígena ou australiana considera sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em elaborar um discurso científico sobre elas, ao mesmo tempo que a etnologia quer se situar no campo da universalidade sem se dar conta de que em muitos aspectos ela está solidamente situada em sua particularidade, e que seu pseudodiscurso científico se degrada rapidamente em verdadeira ideologia. […] a velha convicção ocidental, frequentemente compartilhada pela etnologia, ou pelo menos por muitos daqueles que a praticam, é que a história tem um sentido único, que as sociedades sem poder são a imagem daquilo que nós não somos mais e que nossa cultura é para elas a imagem daquilo que deve ser.

Trecho retirado do ensaio “Copérnico e os Selvagens” do livro A Sociedade contra o Estado do antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977)

    Prezados leitores, há um pouco mais de sete anos eu abordei o tema da antropologia neste meu humilde espaço, citando um trecho deste mesmo autor francês, Pierre Clastres, que realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios guayaki, guarani e yanomami. Em 2014, eu questionava a utilidade do estudo da antropologia na universidade como atalho para a resolução dos problemas enfrentados pelas sociedades capitalistas. Hoje, retomo Clastres para uma abordagem com mais nuances do porquê ou não de estudarmos antropologia como parte da formação geral dada no primeiro ano dos estudos superiores. Para tanto, tentarei explicar a contribuição de Clastres para a antropologia política, que questiona tanto a visão marxista da política como superestrutura necessariamente derivada da infraestrutura econômica quanto a visão de muitos etnólogos ocidentais.

    Meu ponto de partida será a crítica que o antropólogo francês, morto prematuramente aos 43 anos em um acidente de carro, faz do conceito de economia de subsistência, utilizado frequentemente para descrever o modo de produção econômica das tribos indígenas. A palavra subsistência implica falta de algo e sua utilização nesse contexto tem o propósito de descrever a economia indígena como carente de algo, a saber, do excedente. Os indígenas, de acordo com a explicação predominante, só conseguiam produzir o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas mais prementes, mas não conseguiam produzir para acumular de forma que estivessem preparados para enfrentar períodos de desastres naturais, daí por que sua vida consistia no esforço de estabelecer um equilíbrio precário entre as necessidades alimentares do grupo e os meios de satisfazê-las.

    Clastres se insurge contra essa descrição pejorativa da organização econômica dos índios, fruto do ponto de vista ocidental. Os índios produziam para satisfazer suas necessidades e só. Isso lhes era suficiente e não viam motivo para mudar seu modo de vida e passar a trabalhar muito mais para gerar excedentes. Mais importante, não foram constrangidos a fazê-lo, pois o poder político nas tribos indígenas era disperso e não coercitivo. Não havia uma entidade personificada na figura de um rei ou chefe supremo que tivesse poder reunido em sua pessoa para obrigar seus comandados a trabalhar mais para produzir mais. Os chefes indígenas tinham poderes durante o período de guerra, mas em épocas de paz os outros membros da tribo não permitiam que ninguém acumulasse poder de modo a conseguir coagir as pessoas a agir de determinado modo contra a vontade delas.

    A antropologia política de Clastres representa um desafio tanto à visão marxista quanto à visão tradicional da etnologia. Para uns e outros há um desenvolvimento natural de um modo de vida de subsistência, em que os membros do grupo compartilham aquilo que é produzido, para um modo de vida em que o avanço técnico leva à produção de excedentes, que por sua vez leva à elaboração de estruturas sociais e políticas hierarquizadas, as quais serão responsáveis pela tomada de decisão sobre quem vai trabalhar ou não e como os excedentes serão distribuídos. Para o antropólogo francês a tal da economia de subsistência não foi fruto da incapacidade técnica dos indígenas de evoluir para uma forma mais sofisticada de produção econômica, mas uma escolha dos membros do grupo de não trabalhar mais, viabilizada pelo fato de não haver nenhuma força externa que tivesse o poder de impor essa mudança no regime econômico.

    Daí o nome do livro de ensaios de Clastres: A Sociedade contra o Estado. Os indígenas impediram que houvesse concentração de poder e que surgisse o Estado com o poder de impor comportamentos a um grande número de pessoas. Se o Estado tivesse surgido como surgiu nas sociedades ocidentais, a produção de excedentes ocorreria porque seria imposta de fora para dentro.  E como foi possível aos indígenas fazer isso? Clastres estabelece como causa provável o fato de não ter havido um crescimento demográfico que acabasse com a dispersão dos pequenos grupos e os colocasse mais juntos e portanto, mais suscetíveis a uma organização unificadora das diferenças.

    Sob essa perspectiva, a organização da sociedade em classes sociais e a produção regular de excedentes não é o ápice da história, a evolução natural do homo sapiens da barbárie à civilização. Ela é uma entre várias alternativas que foi possibilitada por determinadas circunstâncias materiais que para o antropólogo francês são o surgimento de um poder político centralizado e o crescimento populacional.

    Qual a utilidade de sabermos que o regime político e econômico ocidental não é a única rota que pode ser trilhada pelo homem? No artigo Maus Selvagens que escrevi em 2014 eu argumentei que saber que é possível viver de maneira a satisfazer nossas necessidades sob um regime de economia de “subsistência” (agora entre aspas para chamar a atenção para o viés ideológico dadefinição) não nos serve muito agora, em pleno século XXI, para resolvermos os problemas ambientais criados pela ênfase na produção ininterrupta de excedentes. Teremos que achar soluções dentro do nosso próprio sistema para enfrentar os desafios por ele criados, porque mudar radicalmente as bases da economia é impraticável. Em primeiro lugar atualmente temos quase 8 bilhões de bocas para sustentar no mundo. Em segundo lugar, as necessidades básicas de uma pessoa habituada ao conforto material proporcionado pela tecnologia do século XXI não são as mesmas daqueles que só precisavam alimentar-se e proteger-se dos elementos naturais.

    Por outro lado, como Durant explica no trecho que abre este artigo, estudar a antropologia e com isso adquirir o conhecimento das infinitas possibilidade dos modos de organização social humana não deve nos levar ao niilismo relativista. Sim, não há nada de absoluto ou de fim da história em termos de como o homem se relaciona com seus semelhantes. Por outro lado, cada regime social criado ao longo da história é o fruto de escolhas feitas ao longo de gerações por seres humanos que enfrentaram determinados desafios e deram sua resposta a eles. Negar a sabedoria acumulada pela experiência de enfrentar a morte, as doenças, as catástrofes naturais ou acidentais porque ela não é a última palavra é negar o poder de criação do homem.

   Prezados leitores, cada uma a seu modo as sociedades indígenas que viviam sem poder coercitivo e produzindo o suficiente para sua sobrevivência resolveram seus problemas tanto quanto as sociedades com poder estatal instituído que produziam excedentes. A lição ensinada por Clastres sobre a relativização das concepções ocidentais e a advertência dada por Durant sobre não deixar que a antropologia nos cegue sobre nossas próprias conquistas mostram o caminho: o meio termo entre valorizarmos aquilo que conseguimos construir ao longo da história enquanto grupo e percebermos que o que construímos não é o supra sumo das realizações humanas, pois houve quem criasse de outra maneira em outros tempos e outros lugares. Celebremos as diferenças sem triunfalismos, nem negacionismos. Apenas com a consciência de que tudo é relativo, mas ao mesmo tempo indispensável para sobrevivermos e prosperarmos no planeta Terra.

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Condenados

Provavelmente foi ao longo de séculos de escravidão que nossa raça adquiriu as tradições e os hábitos da labuta. Ninguém faria nenhum trabalho duro ou persistente se pudesse evitá-lo sem alguma punição física, econômica ou social. A escravidão tornou-se parte da disciplina pela qual o homem foi preparado para a indústria. De maneira indireta ela fez avançar a civilização, pelo fato de ter aumentado a riqueza e – para uma minoria – ter criado o lazer.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

 

Parece-nos que aí está um dos aspectos menos fraternos entre as classes dos dominadores e dominados. Os que ainda hoje lamentam, no Brasil, a expulsão dos holandeses do Nordeste talvez não tenham reparado convenientemente para esse aspecto. As antigas colônias portuguesas eram bem uma mostra do que teríamos que suportar dos flamengos: uma minoria de louros explorando e dominando um proletariado de gente de cor, ao contrário do que nos legaram os portugueses: uma terra de brancos confraternizando-se com negros e índios.

Trecho retirado do livro “Holandeses em Pernambuco: 1630-1654”, de Leonardo Dantas Silva, citando o historiador recifense José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002)

 

Mas o principal elemento para melhorar o PIB per capita, aponta a OCDE, é o avanço da produtividade do trabalho. Os países que melhoraram nos aspectos sociais e econômicos nas últimas décadas mostraram grandes ganhos na produtividade do trabalho, associados a altas taxas de investimentos. Não se observou isso no Brasil.

Trecho do editorial intitulado “Não somos um país condenado ao atraso” publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 24 de outubro

 

    Prezados leitores, a Grécia ficou para trás e agora os convido a compartilhar comigo as ideias elaboradas por Will Durant em um outro livro de sua série sobre a História das Civilizações. Em “Our Oriental Heritage”, Durant discorrer sobre as civilizações que se desenvolveram no Oriente Médio, no Egito, na Índia, na China e no Japão. E como entre elas estão as primeiras civilizações que o homem criou, Durant tenta estabelecer alguns princípios gerais para que houvesse a passagem da vida primitiva para a vida civilizada. Para ele os três fatores que devem estar presentes para este salto qualitativo são a fala articulada, a agricultura e a escrita. Meu humilde objetivo neste humilde artigo é deter-me sobre o papel da agricultura e suas implicações econômicas, sociais e culturais.

    A prática da agricultura permitiu ao homem mudar de patamar e ter condições de criar cultura, pelo fato de que deu à vida previsibilidade e segurança por meio da geração de excedentes alimentares, permitindo fazer planos para o futuro, o que não era possível quando o homo sapiens dedicava-se exclusivamente à caça e à coleta. A vida do caçador é incerta e insegura: ele pode voltar com um belo animal morto que será compartilhado com os membros da tribo, ou pode voltar de mãos vazias, ou pode mesmo não voltar, tendo sido vencido pelo alvo da sua caçada. Seu trabalho é exaustivo e feito de espasmos: ele precisa correr, cobrir grandes espaços, subir em árvores e observar, aguardar o melhor momento, estar sempre alerta aos perigos. A agricultura, ao contrário, requer um outro tipo de trabalho: o trabalho metódico e regular de preparar o solo para o plantio, semear e colher.

    E é por isso que a agricultura causa um grande impacto econômico e social, de acordo com Durant. Para ele, o cultivo de plantas leva necessariamente à instituição da escravidão, pois o trabalho ininterrupto de sol a sol contando unicamente com a força dos músculos não seria feito de bom grado por ninguém, a não ser se lhe fosse imposto. Apesar do risco de morte envolvido na caça, ela implica uma atividade física variada e cheia de surpresas agradáveis e desagradáveis, ao passo que a agricultura é sempre a rotina monótona que mói o corpo.

    Assim, a necessidade de forçar as pessoas a tornarem-se trabalhadores agrícolas cria as primeiras divisões de classe entre os que eram forçados ao ingrato trabalho agrícola e os que forçavam outros a ele. Com o aumento da riqueza proporcionada pela produção agrícola que podia ser armazenada, surgem mais oportunidades para aqueles livres do trabalho no campo e naturalmente dotados de mostrarem suas habilidades, levando a uma maior divisão de tarefas e a um aumento ainda maior da distância entre os que trabalhavam a terra e aqueles que usufruíam da garantia de suprimentos alimentares para dedicar-se à criação da cultura.

    Agricultura e escravidão juntas levam à destruição do antigo modelo comunista normalmente encontrado nas sociedades caçadoras-coletoras, em que tudo era dividido irmanamente, rumo à especialização, à criação de riquezas e à apropriação dessa riqueza pela instituição da propriedade privada. De acordo com a explicação de Durant, não teria sido possível a civilização sem a escravidão. Nesse sentido, no mundo de hoje, em que muitos pensam, por falta de conhecimento histórico ou por motivos ideológicos, que a escravidão foi instituída pelos brancos contra os negros no quadro do desenvolvimento inicial do capitalismo, a lição de Durant mostra que o homem estava condenado a criar a escravidão para criar riqueza e com isso a cultura e a civilização.

    Sob essa perspectiva, nosso Brasil tropical, quente e úmido na maior parte do ano, também estava condenado a ter a escravidão instituída aqui. Não nos iludamos: não teria havido produção agrícola em larga escala no que hoje é o Brasil se os portugueses não tivessem importado os africanos subsaarianos, geneticamente adaptados ao calor, para serem imolados no altar das plantations. Como mencionei aqui há duas semanas, João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), capitão e almirante-geral do Brasil Holandês, tratou logo de capturar possessões portuguesas na África para poder ter acesso a negros africanos escravizados e garantir que as lavouras de cana de açúcar, a principal riqueza da terra, fossem devidamente abastecidas com mão de obra.

    Sem escravos o Brasil não teria sido viável economicamente e José Antônio Goncalves de Mello nos ensina que tanto portugueses quanto os holandeses sabiam disso. Os flamengos podiam estar no século XVII na vanguarda do comércio internacional, Amsterdã certamente era uma cidade mais rica, mais tolerante e mais cosmopolita que Lisboa, os portugueses dependiam dos flamengos para comercializar o açúcar e, no entanto, uns e outros fizeram a mesma coisa em cá chegando: trataram de arranjar mão de obra escrava.

    Considerando que a invenção da agricultura condenou uma grande parte da humanidade à escravidão e à exploração ao mesmo tempo que liberou uma minoria para a criação da civilização, ela teve influências sobre a economia, na produção e alocação de excedentes, na sociedade, criando as classes sociais e na cultura, viabilizando o tempo livre necessário à criação intelectual. Sob essa perspectiva, o Brasil, fundado há pouco mais de 500 anos sobre a base da escravidão necessária ao estabelecimento das monoculturas de exportação, também sofreu tais impactos.

    Entre eles está aquele tratado no editorial do Estadão, que descreve as conclusões de um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. O Brasil condena seus habitantes a uma baixa qualidade de vida porque não consegue aumentar a produtividade do trabalho e não investe, fazendo com que não haja crescimento econômico, geração de empregos e aumento real de salários.

    Prezados leitores, não será o círculo vicioso de baixa formação, baixo capital intelectual, pouca inovação, baixa produtividade, pouco crescimento e pouca renda em que vira e mexe estamos metidos um resquício dos séculos em que a maioria da população brasileira era de escravos? Será que nossa mentalidade e nossas práticas sociais não estão impregnadas dos valores da escravidão que nos condenam ao atraso? Será que o mal necessário que foi a escravidão para que o Brasil existisse sempre fará parte do nosso comportamento individual e social?

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O pequeno jardim de Epicuro

A glória do estado ateniense tinha acabado, e a filosofia teve que enfrentar o que para os gregos era um divórcio sem precedentes entre a política e a ética. Ela tinha que encontrar um modo de vida que fosse ao mesmo tempo aceitável para a filosofia e compatível com a impotência política. Assim, ela concebeu seu problema não mais como o de construir um Estado justo, mas o de formar um indivíduo satisfeito e auto-suficiente.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Não é possível viver de maneira prazerosa sem viver de maneira prudente, honrada e justa; nem viver de maneira prudente, honrada e justa sem viver de maneira prazerosa

Máxima atribuída a Epicuro (341-270 a.C.), filósofo nascido em Samos

Que o epicurismo tenha se tornado sinônimo de uma vida luxuosa deve-se ao fato de que Epicuro foi bastante vilificado pelos seus contemporâneos estoicos e por seus sucessores, que desprezavam o que lhes parecia uma visão grosseiramente materialista da doutrina epicurista. Isso é ainda mais enganador considerando a circunstância de que o círculo de Epicuro realmente levava uma vida frugal.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, “The Life of Greece” descreve as transformações por que passam as cidades gregas devido ao domínio por elas exercido pelo reino da Macedônia, primeiramente por Felipe II (359 a.C.-336 a.C.) e depois por seu filho, Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.). Sem entrar nos detalhes dos motivos, o fato é que Atenas, a pioneira da democracia e da filosofia, deixa de ser o império marítimo que era, que ditava regras às outras cidades-Estado que tinham feito parte da Confederação de Delos, formada em 476 a.C. para enfrentar o império persa. No final das contas, a democracia ateniense havia falhado em garantir a prosperidade, a paz e a estabilidade e não restavam opções em termos de regimes políticos para serem testados: a grande ideia do governo pelos cidadãos reunidos na Ágora e escolhidos por sorteio para exercer cargo público tinha se exaurido. Tal desilusão teve reflexos na mentalidade dos intelectuais da época, como mostra Durant em seu livro. Um dos reflexos deste cair das nuvens é a corrente filosófica do epicurismo.

    Se Sócrates e Platão haviam se preocupado com a questão de como criar um Estado bom e justo, isso não é mais um problema para os filósofos da época helenista, inaugurada pelo breve reinado de Alexandre. As disputas políticas entre democratas e aristocratas, entre populistas e tiranos eram coisa do passado e não tinham levado a nada. Se o indivíduo não podia realizar-se como animal político, o que restava a ele? E com o questionamento da religião e das histórias sobre os Deuses por Sócrates, passando pelos sofistas e cínicos nos séculos V e IV a.C., como era possível estabelecer regras morais que não tivessem respaldo em um legislador sobrenatural que estabelecesse o que era virtude e o que era vício ou em um regime político que definisse o que era justo e o que era injusto?

    A saída para alguns filósofos foi adotar como foco não a busca pela verdade nem pela justiça, mas a busca da felicidade individual. Se não havia como fundar a moral em fontes externas, porque a religião tradicional e o regime político haviam sido desacreditados, então que ela fosse fundada no próprio homem enquanto indivíduo, enquanto ser que experimenta sensações a partir das emanações dos objetos do mundo material e que raciocina com base naquilo que os seus sentidos lhe apresentam do mundo exterior. Uma moral não transcendental, mas natural, sem grandes aspirações metafísicas sobre chegar ao Bem supremo, inatingível pelo homem, que nunca conseguirá sair do seu quadrado de experiências sensoriais.

    Essa moral natural conjuga o corpo e a alma do homem para estabelecer as regras do bem viver. A chave reside em tornar a virtude não um fim em si mesmo, algo a ser perseguido com paixão dogmática, mas um instrumento para a vida feliz. A vida feliz é aquela em que a moderação e a prudência dão o tom, de modo a evitar os extremos que causam o sofrimento e a dor. Conforme a máxima de Epicuro, o fundador dessa corrente filosófica, a razão e a emoção devem temperar-se mutuamente.

    Entregar-se à paixão e ao desejo é prejudicial porque uma vez satisfeitos eles levam ao entorpecimento da saciedade. Considerando que a saciedade tem curta duração, o indivíduo passa a sentir-se insatisfeito de novo e vai atrás de outros desejos, numa perseguição febril de um horizonte que foge sempre e que só causa perturbação na alma.

    O ideal assim é um prazer passivo, que não seja fruto do desejo, mas da contemplação sóbria por parte do indivíduo dotado de razão que decide o que evitar e o que escolher em prol da felicidade, isto é, da ausência de dor e de sofrimento, em prol da tranquilidade do corpo e do espírito. Nada de lascívia, de cupidez, de gulodice: como descreve Bertrand Russell em sua história da filosofia ocidental, a transformação do epicurismo em sinônimo de vida luxuosa é uma conspurcação do ideário de Epicuro, cuja moral, focada no indivíduo e não na comunidade, faz do homem em si e por si mesmo sua própria bússola, valendo-se de sua capacidade de raciocinar com base em suas experiências e de decidir que rumo tomar para evitar os perigos.

    Daí a imagem de jardineiro de Epicuro. Ele cuida do seu pequeno jardim individual, evita entrar em disputas políticas que dão em nada, evita engajar-se na vida de maneira muito ativa, para proteger-se contra as incertezas de um mundo exterior cujos fundamentos religiosos e políticos viraram pó. É uma boa receita a ser seguida por alguém que está protegido pela cerca do jardim e que consegue manter as condições objetivas da sua vida controladas, mas para quem é atingido pela pobreza, pelo infortúnio, pelo luto de maneira inapelável, ela não vale de nada pois não dá esperança, nem consolo quando as cercas do jardim são destruídas e as plantas pisoteadas. Não admira que o epicurismo, conforme informa Russell, tenha sido adotado pelas classes altas de Roma no início do Império. No entanto, conforme denunciou Herégias de Cirene, considerando que para a maior parte dos pobres mortais a vida tem mais dor que prazer, mais sofrimento do que alegria, levada às últimas consequência uma filosofia moral naturalista como o epicurismo tinha como consequência lógica o suicídio.

    Prezados leitores, nesses tempos turbulentos de nossa democracia tropical, em que as disputas se tornam cada vez mais acirradas, rasteiras e destituídas de qualquer senso do bem comum, feitas de intrigas, fofocas e disputas pelo poder pelos membros da mesma patota de donos das prebendas e sinecuras, não é tentador refugiar-se no jardim de Epicuro? Ou será que de nada adianta cultivar o jardim se ele está rodeado pelos hipopótamos?

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Boas e más vontades

Não penses que o castelo do governo consiste de fortalezas, muralhas e trincheiras: ele se encontra no interior das consciências. […] A grandeza dos Estados não pode ser medida pelas extensões territoriais e latifúndios, mas pela lealdade, benevolência e respeito dos habitantes.

Trecho do discurso de despedida do Brasil pronunciado em 1644 por João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), capitão e almirante-geral do Brasil Holandês e citado no livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva

Decadentes com a guerra, endividados pelas altas taxas de juros que lhes eram cobradas, mas com o controle da produção do açúcar, esses senhores vieram a ser os responsáveis pelo declínio e perda do Brasil Holandês.

Trecho retirado do livro Holandeses em Pernambuco: 1630-1654 de Leonardo Dantas Silva

[…] na esteira de regimes escancaradamente brutais, como o nazismo, ou dissimulados mas também cruelmente eficazes, como os autoritarismos do Terceiro Mundo, requer-se certo esforço de reflexão para conceber a simbiose entre a carreira militar e o humanismo que caracterizava a antiga cultura aristocrática.

Trecho retirado do livro Nassau de Evaldo Cabral de Melo, escrito para a série Perfis Brasileiros

    Prezados leitores, na semana passada eu expus a ideia do que seria um regime político estável para Aristóteles, citando uma passagem do filósofo grego em que ele defende que a dominação da administração dos negócios públicos seja pelos mais ricos seja pelos mais pobres leva à tirania: no primeiro caso haverá concentração de riqueza e poder nas mãos de uma minoria, que se utilizará do seu poder de fogo para organizar a sociedade de acordo com seus próprios interesses, e no segundo caso a maioria de pobres fará valer sua voz por meio das instituições democráticas para vingar-se dos ricos e distribuir o dinheiro destes à força, levando à destruição da estrutura econômica. Assim, a estabilidade de qualquer regime político exige que haja uma classe média suficientemente robusta para servir de contrapeso às tendências de radicalização nos polos extremos da sociedade.

    Nesta semana meu objetivo é abordar um outro aspecto da estabilidade, qual seja, a adesão dos habitantes ao regime político, manifestada na boa vontade que mostram em fazer com que o sistema funcione. Para tanto, chamo a atenção para certos aspectos da breve passagem de João Maurício de Nassau pelo Brasil (1637-1644), como governador do Brasil Holandês, que compreendia desde o rio São Francisco na Bahia, até o Maranhão.

    Não há dúvida de que Nassau, depois de consolidar o controle militar holandês após a guerra de conquista das áreas produtoras de açúcar, procurou fazer com que a economia da colônia voltasse a funcionar. Para tanto, conforme explica Leonardo Silva em seu livro que reconta a história da presença holandesa no Brasil, João Maurício de Nassau colocou à venda engenhos pertencentes a luso-brasileiros que haviam sido abandonados e estavam em ruínas. Concedeu empréstimos aos produtores de açúcar para a recuperação das fábricas e dos campos e para a compra de escravos que repusessem a mão de obra perdida com fugas e mortes. Para garantir o suprimento de escravos aos engenhos, empreendeu expedições militares em possessões portuguesas na África (São Jorge da Mina, Golfo da Guiné, São Paulo de Luanda), levando a um aumento na importação de negros pela Companhia das Índias Ocidentais, que monopolizava tal comércio e que havia nomeado Nassau para o cargo de governador, capitão e almirante-geral das terras conquistadas no Brasil.

    Como mostra Evaldo Cabral de Melo em sua biografia deste conde nascido em Dillenburg que nos governou por sete anos, Nassau tinha uma formação humanista e cultivou ao longo da vida uma paixão pela jardinagem e pela paisagem, de acordo com o ideal de subordinação das armas à contemplação da natureza. Em 1642, Nassau fez plantar um jardim no Recife com pomar, açudes para a criação de peixes em cativeiro e animais. Tal jardim serviu de laboratório para membros da comitiva que o acompanhou ao Brasil, como o médico Willem Piso (1611-1678), o botânico, cartógrafo e astrônomo George Marcgrave (1610-1644) e o artista Albert Eckhout (1610-1664). Como resultado surgiram o Historia naturalis Brasiliae, o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, os Manuais e o Miscellanea Cleyeri com desenhos de animais, plantas, flores, frutos e figuras humanas. O Theatrum encontra-se atualmente na Biblioteca Jagelônica de Cracóvia, na Polônia.

     Esses valores humanistas também transparecem em muitas das obras que Nassau legou ao Brasil, a começar pela Cidade Maurícia ou Mauritstaad, na ilha de Antônio Vaz, projetada por Pier Post e que abrigava várias construções: o palácio de Friburgo ou palácio das Torres (construído em 1643 demolido no final do século XVIII em 1787, do qual hoje resta uma placa em uma praça em frente ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo do Estado de Pernambuco); o Palácio da Boa Vista (construído em 1643 e do qual hoje há restos) e o primeiro observatório das Américas. Para a população de baixa renda o governador fez construir a Nova Maurícia ou Nieuw Mauritsstad, entre a atual Igreja do Divino Espírito Santo, no Recife, e o forte das Cinco Pontas.

    Tantas realizações, típicas de um homem com sólida formação intelectual que colocou em prática aquilo para o qual havia sido educado, realizando assim suas aspirações humanistas. E no entanto, como ele mesmo reconheceu em sua despedida do Brasil, a estabilidade e a prosperidade de um Estado requer que os governantes conquistem o coração dos habitantes e isso os holandeses não souberam fazer. Os senhores de engenho nunca aceitaram a presença estrangeira no país, seja porque deviam muito dinheiro à Companhia das Índias Ocidentais, seja porque os luso-brasileiros e neerlandeses nutriam aversão mútua. Se a princípio os luso-brasileiros recuaram e fugiram para outras regiões onde não havia a presença holandesa, o fato é que eles continuaram a controlar a principal atividade econômica, a produção de açúcar, o que na prática colocou os conquistadores em uma posição isolada econômica e geograficamente: os neerlandeses concentravam-se no Recife, a cidade reurbanizada e embelezada por João Maurício, e dedicavam-se ao comércio. Com o tempo, o ressentimento criado pela exigência da Companhia das Índias Ocidentais de receber cada tostão emprestado aos senhores de engenho e o fato de os habitantes da terra terem uma presença em todo o interior do território deu aos luso-brasileiros o ímpeto para iniciar uma guerrilha nativista e aos poucos desafiar a supremacia militar holandesa, o que culminou com a expulsão definitiva dos holandeses em 1654, dez anos depois da saída de Nassau, descontente que estava com os rumos puramente mercantilistas que a WIC dava ao empreendimento colonial no Brasil, que para João Maurício, inviabilizava qualquer possibilidade de ganhar a adesão dos habitantes e portanto uma presença de longo prazo.

    Prezados leitores, a lição que fica para nós que estamos em pleno século XXI tentando manter nosso regime político em meio à inflação, ao desemprego e ao aumento da pobreza é que há uma dimensão da estabilidade que vai além das condições materiais da vida: sem a boa vontade dos governados para acatar as decisões dos governantes, para colaborar em prol daquilo que foi decidido como o rumo a ser seguido, resta aos que estão no poder lidar com o comportamento de guerrilha daqueles que não têm compromisso nenhum com o que está sendo proposto e que com sua má vontade sistemática acabam minando as bases do regime vigente. Será que nós brasileiros conseguiremos ser benevolentes, leais e respeitosos com quem quer que seja eleito no ano que vem ou continuaremos com má vontade e empregando nossas táticas de guerrilha, entre elas o uso do Judiciário para tentar ganhar disputas políticas por outros meios? Aguardemos.

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