A democracia e a porta giratória

É importante então entender que a democracia não é um pacto de silêncio, a democracia é um processo de efervescência da sociedade na busca da construção de um mundo justo, mais solidário, mais fraterno e mais humanista.

Trecho de fala de uma videoaula sobre a democracia lançada em 12 de dezembro pelo ex-presidente Lula juntamente com o presidente da Argentina, Alberto Fernandez e o ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica.

Porta giratória é o movimento de pessoas de uma função de legislador e regulador de um lado para a de membros do segmento econômico afetado pela legislação e pela regulamentação de outro.

Trecho do verbete “Porta giratória” retirado da enciclopédia eletrônica Wikipedia

    Prezados leitores, já ouviram falar da expressão “porta giratória” utilizada para fazer referência às relações próximas entre os órgãos reguladores e as indústrias objeto da regulação? De acordo com essa concepção, há um troca-troca sem fim entre as pessoas que trabalham nas agências governamentais encarregadas de elaborar normas reguladoras de certas atividades econômicas e as empresas cujas operações submetem-se a tais normas.

    De um lado, as pessoas que trabalham para o governo conseguem emprego na iniciativa privada porque muitas vezes elas têm informações privilegiadas sobre o que ocorre dentro do governo em termos do conteúdo das regulamentações que estão sendo elaboradas e podem acionar seus amigos que continuam sendo funcionários públicos para influenciá-los a elaborar normas que sirvam aos interesses da empresa onde elas vão trabalhar.

    De outro lado, as pessoas que trabalham em empresas reguladas muitas vezes são contratadas pelo governo porque têm experiência de como funciona aquele segmento econômico e podem funcionar como elo de ligação entre o governante de plantão, que precisa de doações para a próxima campanha eleitoral, e a iniciativa privada, que precisa que a mão da autoridade política de plantão não seja muito pesada de modo a não tornar a atividade econômica onerosa demais pela imposição de múltiplas obrigações.

    No final das contas, tem-se o que em inglês se chama “regulatory capture”, isto é, as agências que supostamente deveriam criar um ambiente de negócios em que o consumidor fosse protegido dos excessos das empresas na busca pelo lucro transformam-se em meras chanceladoras daquilo que a indústria quer ou tolera em termos de regulamentação. E tal fenômeno traz em seu bojo uma desigualdade brutal entre aquilo que o consumidor é levado a esperar quando adquire um produto e o que de fato ele obtém. Vou dar-lhes um exemplo concreto falando de uma experiência recente por mim vivida. Meu objetivo é que ela sirva de alerta aos que me leem.

    Precisando muito de dinheiro para cobrir certas despesas inadiáveis e não tendo de outro lugar para tirar, decidi valer-me de um seguro de vida cuja apólice adquiri há mais de dez anos. De acordo com as informações que os corretores me deram à época, 20% do valor pago seria resgatável como capital de sobrevivência. Pois bem, fui atrás dos termos e condições da apólice para saber como eu conseguiria exercer o direito a tal capital. E onde estão os Termos e Condições? Não encontrei no site da seguradora, não encontrei no site da SUSEP, no qual teoricamente o cidadão-consumidor pode obter informações sobre todos os produtos de seguro aprovados pela agência reguladora para comercialização, mediante a inserção do número do produto. Falando com a corretora que atua na agência bancária em que tenho conta, ela me disse que era só solicitar pelo telefone os Termos e Condições. Ligando na seguradora protocolei um pedido, mas nunca obtive resposta nenhuma.

    Mesmo não sabendo dos detalhes das condições de exercício do direito ao capital de sobrevivência, resolvi tentar abrir uma solicitação de sinistro, usando o telefone que me foi dado pela corretora. Era preciso acessar um site, abrir o chamado, preencher a documentação, digitalizá-la, carregá-la no site. Preparei meu dossiê e quando tentei inseri-los no chamado, o site não os carregava. Tentei isso por dois dias, sem sucesso. Por que será que um site de regulação de sinistros funciona tão mal? Não desisti, porque precisava do dinheiro. Obtive um e-mail de um funcionário e para ele mandei a documentação. Para minha felicidade, ele acusou recebimento. Então imaginei que era deitar em berço esplêndido e aguardar os trinta dias necessários para o processamento. Assim o fiz, sonhando com meu dindin na conta, para saldar minhas dívidas. De vez em quando eu acessava o site, mas lá eu só via quatro bolinhas, três ticadas de verde, sinalizando que estava tudo OK e a quarta em vermelho. Achei que eu estava na boca do gol, só faltando dar a cabeçada…

    Hoje pela manhã resolvi ligar para a seguradora para saber porque decorridos já 30 dias meu capital de sobrevivência ainda era uma nuvem virtual. Qual foi minha surpresa e meu choque quando o operador de telemarketing disse que meu chamado havia sido fechado porque não era a maneira correta de proceder, apesar de eu ter pedido orientações à corretora que atua na agência bancária para fazê-lo. Foi então que começou minha saga da busca da verdade, durante a qual eu me transformei em uma bola que cada atendente do SAC passava displicente para outro atendente, em outro telefone e outra opção. Meu desespero foi tanto que liguei na minha agência e pedi ajuda ao gerente e à corretora. Eles só acharam outros telefones e opções diferentes daquelas que eu havia tentado e me ofereceram: eu que me virasse, porque resolver meu problema não era prioridade. Estava tentando usufruir de um direito, não estava tentando comprar nada, então eu me transformei aos olhos deles em um ser descartável.

    Depois de uma breve pausa para o almoço, em que engoli a comida de preocupação, tentei novamente caminhar no Labirinto do Minotauro, digo, da Seguradora e seu serviço de telemarketing passivo. Finalmente consegui falar com uma senhorita que tinha um pouco mais de conhecimento do que a média dos funcionários e me explicou o que ocorrera: o chamado foi encerrado porque minha apólice havia sido renovada em outubro e eu não tenho mais direito ao capital de sobrevivência, só à reserva matemática, que obviamente é menor. Premida pela necessidade do dinheiro, optei em aceitar receber a reserva, porque não posso esperar mais um ano.

    Assim é na prática a relação do humilde consumidor com as empresas supostamente reguladas pelos órgãos governamentais. Caímos no buraco negro do telemarketing, no qual todos dão respostas prontas, ninguém se responsabiliza por erros de informação, ninguém tem autonomia ou conhecimento para lidar com situações que fogem do Manual de Procedimentos Operacionais Padrão. Recorrer a quem? Ao PROCON, que já recebeu n reclamações do mesmo tipo? À SUSEP, em cujo site não consegui nem achar detalhes sobre a apólice que eu havia adquirido? À Justiça, que demora em média dois anos para processar uma demanda em cada uma de suas instâncias? Como dizia um professor meu na faculdade de Direito, as grandes empresas – operadoras de telefonia, seguradoras, bancos – são clientes contumazes do Judiciário. Um processo a mais ou a menos não faz diferença para elas, mas para aquele que busca seus direitos é uma aporrinhação em perda de tempo e de dinheiro e em termos de quantos sapos são engolidos.

    Prezados leitores, para que a democracia não seja um pacto de silêncio, mas uma efervescência, conforme preconiza Lula com seus coleguinhas latino-americanos, seria preciso que em nossa vida cotidiana tivéssemos a oportunidade de exercer pequenos direitos sem delongas ou tergiversações, sem que tenhamos que pagar pela ignorância e incompetência de empresas que agem muitas vezes de má-fé para vencer pelo cansaço o cliente que exige seus direitos pelos quais ele pagou. Seria preciso que em nossa vida cotidiana nossas queixas e preocupações pudessem ser ouvidas e não simplesmente que fôssemos submetidos a gravações automáticas, a opções infinitas no telefone que não levam a lugar nenhum.

    Garantir na prática os direitos do consumidor frente às empresas que agem com desfaçatez porque sabem que quem as regulam trabalharam ou trabalharão para elas faria muito para que nós brasileiros acreditássemos em nossas instituições, porque nossas relações de consumo afetam nossa vida todos os dias, de manhã à noite. Oxalá que nas próximas eleições, para além das belas e abstratas palavras sobre democracia, justiça e humanidade, os candidatos apresentem planos concretos para resolver o problema das portas giratórias.

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Nem só de pão vive o homem

Não é só a pessoa de Emmanuel Macron que derrotaremos em 2022, melhor, sua ideologia, da qual ele é o estandarte, o porta-voz e o executor. A pessoa de Macron não nos interessa, porque ela é fundamentalmente desinteressante. Ache para mim um único francês no país que possa explicar o que pensa Emmanuel Macron, um único! Não há nenhuma pessoa. Nem mesmo ele. Ninguém sabe quem ele é, porque ele não é ninguém. Atrás da máscara da inteligência perfeitamente tecnocrática, atrás da montanha de ideias superficiais, atrás dos slogans contraditórios, atrás do “ao mesmo tempo”, sinônimo de desordem, e “qualquer que seja o custo”, sinônimo de ruína, não há ninguém, não há nada. Macron esvaziou nossa economia, nossa identidade, nossa cultura, nossa liberdade, nossa energia, nossas esperanças, nossa existência, ele esvaziou tudo, porque ele em si mesmo é o grande vazio, o abismo. Em 2017, a França elegeu o nada, e ela caiu lá dentro. Meus amigos, é hora de tirar nosso país e nosso povo desse poço sem fundo. Deixaremos na vitrine, esse manequim de plástico, esse autômato […] essa máscara sem face que desfigura a nossa face. Nós deixaremos esse adolescente buscar-se eternamente.

Trecho do discurso de Éric Zemmour, ensaísta francês de origem judia e argelina, no primeiro evento realizado em 5 de dezembro em Villepinte, após lançar sua candidatura à presidência da França

A sociedade, afirma De Maistre, […] não é uma associação artificial construída de forma elaborada e baseada no cálculo do interesse e da felicidade individuais, mas algo que se baseia também no anseio humano incriado, original e irresistível de se sacrificar, no impulso de se imolar sobre um altar sagrado sem esperança de volta. Os exércitos obedecem ordens e caminham para a morte; seria grotesco supor que são animados por pensamentos de vantagem pessoal.

Trecho retirado do ensaio “Joseph de Maistre e as origens do fascismo”, incluído na coletânea “Limites da utopia” do ensaísta britânico Isaiah Berlin (1909-1997)

    Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da conversa entre três especialistas em psicologia, Steven Pinker, Jonathan Haidt e Jordan Peterson em que eles falavam sobre a influência deletéria do tipo de comunicação estimulado pelo Twitter sobre a possibilidade de argumentação, da busca de verdades comuns e do próprio exercício da democracia. Entre os muitos insights que os três acadêmicos compartilharam foi a respeito da natureza tribal do homem, fruto da nossa evolução nas savanas africanas. Precisávamos reunirmo-nos em grupos para juntos derrotar um inimigo, seja um predador ou outro grupo, em busca de recursos finitos, que se tornavam ainda mais raros considerando a pouca tecnologia disponível nos primórdios da humanidade que viabilizasse a exploração eficiente daquilo que tínhamos.

    Essa característica tribalista ficou introjetada no nosso cérebro e ela aflora seja na internet, por meio da troca de desaforos nas mídias sociais, seja na política. Meu objetivo nesta semana é explorar essa face politica do tribalismo por meio de um acontecimento político que não recebeu muita atenção no Brasil, o primeiro comício de Éric Zemmour como candidato à presidência da França. Nascido em 1958, ele é filho de judeus do norte da África que depois da Guerra da Argélia resolveram ir para a França para reconstruir a vida na metrópole, depois que a colônia havia sido perdida. Já escreveu vários livros de ensaios e seu grande tema em todos eles é o declínio da França.

    Para Zemmour a França está decadente porque, dentre outras razões, deixou-se invadir por imigrantes muçulmanos que não conseguem se adaptar à República laica criada pela Revolução Francesa de 1789, que separou a Igreja do Estado, e não fazem a mínima questão de assimilar-se, mesmo porque, sucessivos governos, de esquerda e direita, em nome da diversidade e da inclusão, permitiram que eles entrassem no país e que continuassem seguindo suas práticas sociais e religiosas sem nenhuma limitação. O resultado é que se a imigração continuar sem controle e considerando a baixa taxa de natalidade dos franceses tradicionais, o país, tal como ele é há mil anos, deixará de existir, por causa da substituição de uma população por outra e a cultura e a civilização francesas serão destruídas.

    No último dia 5 de dezembro, depois de pintar esse quadro negro das perspectivas da nação francesa, Zemmour propôs sua receita de salvação: acabar totalmente com a imigração, expulsar cidadãos com dupla nacionalidade que tenham cometido crimes, coibir ao máximo o direito de asilo e o direito de estrangeiros de gozarem do Estado do bem-estar social francês, reduzir drasticamente a concessão de cidadania a membros da família de cidadãos que conseguiram a cidadania francesa. No plano da educação, Zemmour quer acabar com a escrita inclusiva, pela qual pronomes que denotam gênero são eliminados para acabar com a escolha binária entre masculino e feminino, e no geral acabar com as políticas de inclusão e diversidade para focar no mérito, tal como segundo ele, fazem os asiáticos, que copiaram a educação tradicional que era dada aos franceses até 40 anos atrás.

    Ouvindo esse ensaísta tornado político falar ficamos com a impressão de que a França está num estado lamentável de podridão e decadência, só solucionável pela tomada de medidas enérgicas. Como ilustrado pelo trecho do seu discurso citado na abertura deste artigo, Zemmour utiliza palavras fortes como a França lançada no abismo pela eleição de um fantasma como Macron, a França desprovida dos seus elementos mais fundamentais, a França no caminho da autoimolação. No entanto, olhando os dados do CIA World Factbook, vemos que esse catastrofismo está longe dos fatos gerais: a França é um país em que 100% da população rural e urbana tem acesso à água potável e ao saneamento básico, em que não há crianças com menos de cinco anos desnutridas, em que a expectativa de vida das mulheres é de 85 anos e a de homens é de 82 anos, que tem a nona maior economia do mundo, cujo PIB per capita é de 42.000 dólares.

    Nesse sentido, ele não segue a receita iluminista de Steven Pinker, para quem devemos enfatizar mudanças graduais e seguras que levem a prosperidade, a felicidade e a liberdade para um número cada vez maior de pessoas por uma análise racional do custo-benefício das políticas públicas. Falar que a França está perdendo sua identidade e que o atual presidente da República Emmanuel Macron é desprovido de alma remete ao pensamento reacionário de Joseph-Marie de Maistre (1753-1821), tal como descrito no ensaio de Isaiah Berlin, citado acima. De Maistre não acreditava que o Iluminismo enquanto sistema de ideias servisse para organizar a sociedade, porque para ele, a natureza humana não tinha como ponto forte esse componente racional tão enfatizado pelos filósofos das Luzes que lhes justificava o otimismo com relação ao futuro da humanidade, no qual os seres humanos resolveriam suas diferenças em bases contratuais, isto é, de mútuo consentimento, por meio da troca de concessões e vantagens. Para De Maistre, a natureza humana era tal que o indivíduo está disposto a se sacrificar por uma fé cega em algo que está além dele e que o motiva a lutar, seja a religião, o grupo, a nação, a ideologia. Esse é o fundamento do poder e quem quer que ache que há outro fundamento, mais racional e menos misterioso, só causa violência e caos quando quer criar a sociedade perfeita sem levar em conta o que o homem realmente é.

    Prezados leitores, Éric Zemmour reuniu quase 15.000 pessoas em Villepinte, entusiasmadas com seu discurso catastrofista e exclusivista, cheio de expressões poéticas, como vencer a desesperança com o destino do país mediante um esforço heróico de superação. Ao apelar à emoção dos franceses, receptivos à ideia de defesa da civilização, da cultura e da identidade do país, o ensaísta e jornalista aspirante a político não segue os ensinamentos de De Maistre a respeito da natureza profunda dos homens, tribalista e irracional? Será que eleger Macron como bode expiatório dos males da nação, personificando-os em um ser destituído de humanidade, como Zemmour descreve o atual presidente francês, permitirá tornar esse judeu de origem argelina popular o suficiente para fazê-lo derrotar o tecnocrata que não tem resposta definitiva para nenhum problema porque seu foco é buscar consensos e não incentivar o conflito? E se eleito, Zemmour realmente cumprirá suas promessas de campanha, ou vai contemporizar e trair seu eleitorado? Será ele um novo Trump, cheio de retórica bombástica na campanha, mas que em quatro anos de governo fez muito pouco para atender às reivindicações daqueles que o elegeram?

    Aguardemos os próximos capítulos. Uma coisa é certa: o sucesso da retórica inflamada de Zemmour num país de Primeiro Mundo mostra que nem só de pão vive o homem.

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A canga e o capote

Resolveram imediatamente fazer uma coleta para ele, mas reuniram uma quantia ínfima, porque os funcionários já haviam gasto muito na compra de um retrato do diretor e na aquisição de um livro qualquer, sugerido pelo chefe da repartição, que era amigo do autor; portanto, só conseguiram reunir uma ninharia. […] Pois é, na Santa Rússia tudo está contaminado pela imitação, cada um arremeda seu chefe e banca o chefe.

Trecho retirado do conto “O Capote”, do escritor Nikolai Gógol (1809-1852), considerado uma das pedras fundadoras do Realismo literário na Rússia no século XIX

Um país que quer sair do subdesenvolvimento deve abrir sua economia que, em grande parte, se encontre nesta condição por causa de sua estrutura fechada e da asfixia que lhe imprime o Estado, que, geralmente, monopoliza o grosso das atividades econômicas. Enquanto elas estejam controladas pelo Estado, o resultado é invariavelmente a corrupção, o privilégio de uma minoria de burocratas, o atraso científico e técnico, e a dependência do exterior, sua subordinação aos países mais desenvolvidos e prósperos.

 

Trecho retirado do artigo “Uma sociedade democrática e moderna” de Mario Vargas Llosa, publicado no Estadão em 21 de novembro

    Prezados leitores, O Capote trata de um humilde burocrata, Akáki Akákievitch, que fazendo inúmeros sacrifícios ao longo de vários meses, adquire um capote feito sob medida para ele por um artesão seu amigo, Pietróvitch; ao voltar de uma festa na casa de um colega da repartição, Akákievitch é atacado em uma praça deserta por homens que acabam lhe roubando o capote. Akákievitch morre de desgosto porque não consegue ajuda de ninguém para reparar a injustiça que lhe é feita.

    De fato, por recomendação de um colega de departamento, o herói do conto procura um figurão que possa encontrar os bandidos e fazê-los devolver o capote, mas o tal do figurão considera desrespeitosa a maneira como Akákievitch dirige-se diretamente a ele para fazer seu pedido, sem passar pelas devidas instâncias de processamento de demandas. Por isso, trata-o de maneira grosseira, o que assusta Akákievitch, e o faz voltar para casa com o rabo entre as pernas.

    Quanto aos outros colegas do escrivão, conforme mostra o trecho que abre este artigo, eles timidamente tentam fazer uma vaquinha para arranjar-lhe outro capote, mas há outras prioridades dos burocratas, que seguem estritamente os ritos do serviço público: é preciso puxar o saco do chefe, mostrar-lhe deferência oferecendo-lhe presentes ou ajudando seus amigos literatos e para isso uma vaquinha para angariar os fundos é uma necessidade. Mas fazer uma vaquinha para comprar um novo capote para um pobre coitado que não tinha com o que se vestir é totalmente supérfluo, porque Akákievitch figurava humildemente na nona posição da classificação das dezoito categorias de servidores civis e militares do Estado, criada por Pedro, o Grande (1672-1725). Era um nada, sempre fora um nada e não valia a pena ajudar um nada que não traria nenhuma vantagem ao benfeitor, pelo contrário, poderia prejudicá-lo na carreira, considerando o absurdo de fazer algo de bom por alguém que ocupava uma posição tão subalterna.

    E assim Gógol mostra por meio de O Capote a cultura da carteirada, os rituais rígidos seguidos pelos membros da burocracia não como um meio de aumentar o bem-estar geral e promover a justiça, mas simplesmente para sinalizar os respectivos lugares de cada um, uns no topo, a maioria obedecendo, para mostrar poder, para reforçar o modo correto de agir de um bom funcionário e assim manter tudo como está, funcionando à perfeição para que a burocracia seja mantida para seu próprio bem.

    Conforme já expus aqui quando abordei outro livro de Gógol, “Almas Mortas” e quando citei trechos de “Memórias de um Caçador”, de Ivan Turguêniev, considero haver muitas coisas em comum entre o Brasil e a Rússia, a começar pela escravidão em um e a servidão no outro. Com seus símbolos de poder e hierarquias, a burocracia são outra instituição que nos unia já no século XIX, talvez como corolário da existência de habitantes oficialmente sem direitos, como eram os escravos e os servos.

    Da Rússia de agora, pós-comunista, nada posso falar, pois além de jamais tê-la visitado, não tive contato com nenhuma obra literária escrita sobre o país de agora. mas do Brasil burocrático posso falar e podemos nós todos que aqui moramos. Afinal, quem nunca teve a desagradável experiência de receber um peremptório não em um cartório? Quem nunca intuiu no não do oficial de plantão um prazer sádico, escondido sob a racionalização de que o procedimento é assim e deve ser seguido para segurança de todos? Quem nunca se viu em terras tropicais às voltas com uma exigência estapafúrdia, cuja origem ninguém sabe determinar, mas cuja força coercitiva é óbvia a qualquer um quando ela é pronunciada pelo dono da caneta ou do carimbo?

    Haverá solução para que aqui como acolá essa instituição retrógrada seja extirpada? Como bom herdeiro intelectual do Século das Luzes, Mario Vargas Llosa, analisando os males da América Latina, considera que a liberdade é a chave para acabar com a burocracia e a corrupção que ela engendra. Liberdade para que os empreendedores invistam e gerem empregos sem interferência do Estado, liberdade para que os cidadãos comuns tenham a possibilidade de fazer as melhores escolhas para sua vida com base nas informações de que dispõem e na educação de qualidade que lhes for ministrada pelo Estado. Só assim, quando os membros da sociedade tiverem igualdade de oportunidades, sem favorecimentos obscuros e sem preconceitos contra determinados grupos, é que haverá prosperidade geral e está será tão grande que compensará as desigualdades criadas pelo laissez -faire.

    Há duas semanas, eu expus minhas restrições ao projeto libertário de Vargas Llosa de tornar as drogas um produto comercializável normalmente, porque considero que nem todas as pessoas sabem escolher o melhor caminho para si mesmas e o exercício da liberdade relativamente a substâncias potencialmente viciantes pode gerar mais problemas do que soluções. No entanto, de modo geral, colocar em prática os princípios iluministas do escritor peruano na América Latina seria uma boa ideia contra a canga da burocracia, corporificada nas demonstrações de poder, na corrupção dos que se locupletam em criar dificuldades para vender facilidades.

    A humilhação e o martírio vividos por Akáki Akákievitch em busca de seu capote perdido e de pessoas que o pudessem ajudá-lo nos fazem rememorar o quanto já perdemos nosso tempo e dinheiro oprimidos pelo peso das nossas autoridades inapeláveis, sejam elas funcionários públicos, representantes de empresas de telefonia, bancos, seguradoras e todos que escondem seu desleixo e descaso atrás de Serviços de Atendimento ao Consumidor cheios de protocolos e registros de chamadas, mas poucos efetivos para resolver os problemas de nós, pobres mortais. Que um dia aqui e lá vivenciemos uma sociedade livre, próspera e que dê oportunidades  aos cidadãos de todas as categorias, com ou sem capote.

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As Areias do Tempo

O corpo de leão transforma-se na cabeça de um ser humano com queixo prógnato e olhos cruéis; a civilização que a construiu (cerca de 2990 a.C.) ainda não havia esquecido seus modos bárbaros. As areias costumavam cobri-la e Heródoto, que viu muita coisa que atualmente não está mais ali, não fala absolutamente nada sobre ela. […] À beira do Nilo, ao longo de 20 quilômetros em ambos os lados, corre uma faixa de solo fértil; do Mediterrâneo a Núbia há somente essa tira resgatada do deserto. Esse é o fio no qual se pendurava a vida no Egito.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage” de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

A Vila Itororó é um espaço público e cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que contempla um conjunto remanescente de edificações construídas nos anos 1920 e que está em fase de restauro. A Vila Itororó sempre teve como uso principal a moradia, mas foi tornada patrimônio histórico e desapropriada para fins culturais a partir de 2013.

Trecho retirado do site vilaitororo.prefeitura.sp.giv.br sobre o conjunto de casas situado na Bela Vista, mandado construir pelo filho de portugueses nascido em Guaratinguetá Francisco de Castro

 

O desemprego, superior a 13% da força de trabalho no trimestre móvel encerrado em agosto, é mais que o dobro da média dos 38 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). […] Segundo economistas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a desocupação no Brasil poderá continuar elevada até 2026.

Trecho retirado do artigo “O desmonte” do jornalista Rolf Kuntz, publicado no Estadão em 14 de novembro

 

    Prezados leitores, em sua descrição da civilização egípcia, que se desenvolveu graças ao rio Nilo, Will Durant adota como ponto de vista as impressões que ele tem em sua própria viagem pelo rio ao longo da qual ele vai parando nos locais históricos. Nesse sentido, ele imita o pai da História, Heródoto (484 a.C.-430 ou 420 a.C.), que esteve no Egito em algum momento depois de 460 a.C. e começando no delta do rio chegou até a primeira catarata, tenho parado em Mênfis, em Tebas e em Gizé, local das Grandes Pirâmides.

    Heródoto descreveu o Egito como uma dádiva do Nilo e não sem exagero, pois conforme explica Durant em seu livro, as cheias sazonais do Nilo permitiram a agricultura irrigada em uma estreita faixa de 20 km às margens. Fora dessa faixa não havia nada mais do que a areia do deserto. O avanço inexorável do Saara é tanto que há uma informação curiosa, incluída no trecho que abre este humilde artigo: Heródoto não conheceu a Grande Esfinge, a estátua do faraó Quéfren, quarto rei da quarta dinastia do Antigo Egito, localizada em Gizé, e que na época dele já tinha 2.000 anos, pois ela já estava coberta pela areia e só depois foi redescoberta.

    Entre o que as areias do Saara engoliram ao longo dos séculos e o que foi recuperado do patrimônio material deixado pelos antigos habitantes das margens do Nilo em termos de arquitetura, escultura e pintura, o fato é que o Egito atual, produto da conquista árabe no século X d.C., e que por isso hoje é um país muçulmano, tem no turismo uma fonte indispensável de receitas. Em 2010, antes da Primavera Árabe em 2011, ele empregava 12% da força de trabalho, gerava 12,5 bilhões de dólares e contribuía com 11% do PIB. Daí que o governo continua a investir no setor, a despeito dos distúrbios sociais e políticos ocorridos no país desde então. Prevê-se para novembro de 2022, a um custo de quase 800 milhões de dólares, a inauguração do Grande Museu Egípcio, próximo às Pirâmides em Gizé, e que exibirá toda a coleção existente do rei Tutancâmon, ao redor de 5000 peças, e outros 13.000 artefatos, muitos deles jamais exibidos antes, por falta de espaço adequado.   É de se esperar que quando este museu comece a funcionar ele atraia um número suficiente de turistas que faça com que o país gere empregos para os 105 milhões de egípcios, cuja idade média é de 24 anos de idade.

    Aqui em nossas terras tropicais, a situação social e ambiental não é tão dramática como no norte da África acossado pelo deserto e pela alta densidade populacional, mas o rastro de destruição deixado pela pandemia de covid é nítido em uma cidade como São Paulo para quem como eu a percorre semanalmente a bordo da minha bicicleta. Vou rodando a esmo, atrás das ciclovias que frequentemente começam e terminam abruptamente. É difícil haver circuitos completos que possam ser percorridos do começo ao fim que nos levem de um a outro ponto conhecido da cidade, mas hoje eu encontrei uma rota que passa pela rua 13 de maio e percorrendo a Bela Vista chega no Terminal Bandeira, passando pela Câmara Municipal. À parte as barracas e os fogareiros dos sem teto que estão por toda a parte, à parte as pichações de prédios que recentemente foram restaurados e pintados como a sede dos Correios no vale do Anhangabaú, é possível encontrar boas surpresas em termos de patrimônio resgatado das areias do tempo. A de hoje foi a Vila Itororó, na rua Martiniano de Carvalho.

    Eu lembrava deste local na década de 90, porque trabalhava a dois quarteirões de lá e tinha que passar em frente para voltar para casa. Era um cortiço onde várias famílias se alojavam. Atualmente é um centro cultural e, conforme o trecho mencionado na abertura deste artigo, está em restauração. Como vocês poderão ver abaixo, nas duas humildes fotos que eu tirei do local, ainda falta muito para que as construções se livrem do aspecto de cortiço que ainda têm, mas devemos comemorar o fato de o governo municipal ter tomado a iniciativa de salvar a Vila Itororó de uma degradação que poderia tornar-se irreversível se nada fosse feito.

    Já que jogamos nossa indústria na caçamba, depois dos heroicos esforços que fizemos a partir da segunda metade do século XX para criá-la, e que o agronegócio brasileiro que compete globalmente não empregará muita gente devido à mecanização das lavouras, urge que encontremos meios de gerar empregos para nossa população para que o cenário vislumbrado pelos especialistas da FGV, de alto desemprego até 2026, conforme mencionado no último trecho que abre este artigo, não se concretize. Investir na recuperação do patrimônio arquitetônico degradado pelo descaso e pelo tempo seria uma forma de atrair visitantes e gerar empregos em restaurantes, bares e lojas no entorno dos locais revitalizados. Minha primeira sugestão na cidade de São Paulo seria resgatar os Campos Elíseos, que abriga a antiga sede do governo do Estado (restaurada, mas fechada ao público), vários palacetes do início do século XX, além de uma estátua gigantesca do Duque de Caxias de autoria de Victor Brecheret, do domínio dos craqueiros que se concentram na famigerada rua Helvétia e dos que acampam na praça onde está a escultura e até penduram roupas em um varal improvisado na parte de baixo da coluna realizada por Brecheret.

    Prezados leitores, como mostra o destino da Grande Esfinge de Gizé e a nossa prosaica Vila Itororó, as areias do tempo não são uma maldição eterna. Podemos ressuscitar para a vida econômica e social construções esquecidas e quase destruídas e fazermos delas locais de memória coletiva do nosso passado e de construção do nosso futuro por meio da inclusão dos desempregados, dos desalojados e dos esfomeados que se espalham cada vez mais pela cidade de São Paulo. Oxalá nossos governantes achem meios de tornar a cultura algo mais do que mera perfumaria e a tornem bem valioso na era pós-covid.

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