De Pitágoras a Jung

À medida que resumimos agora a ciência, a pedagogia e a filosofia da Europa Ocidental nos séculos catorze e quinze, devemos lembrar que os estudos racionais tinham que lutar por espaço e oxigênio em uma floresta de superstições, intolerância e medo.

Treco retirado do livro “A Reforma” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)

A biologia, a física e a geologia, eles [alguns críticos da religião] afirmaram, somente fizeram o rápido progresso que fizeram quando foram libertados de um contexto de crença religiosa pelo filósofo do século XVII René Descartes, que formulou um mito metafísico da separação entre a mente e o corpo.

Trecho retirado do verbete sobre Filosofia da Religião da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

De acordo com Aristóteles, a especulação sobre os números é a característica mais marcante do pitagorismo. As coisas “são” números, ou se “parecem” com números. Para muitos pitagóricos, esse conceito significava que as coisas são mensuráveis e comensuráveis ou proporcionais em termos de número – uma ideia de considerável importância para a civilização ocidental.

Trecho retirado do verbete sobre pitagorismo da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

Ao mesmo tempo, ele considerava o reino espiritual como detentor de uma realidade psicológica que não pode ser minimizada e certamente não da maneira sugerida por Freud. Jung postulava, além do inconsciente pessoal (mais ou menos da mesma maneira que Freud), o inconsciente coletivo, que é o repositório da experiência humana e que contém “arquétipos” (isto é, imagens básicas que são universais pelo visto de serem recorrentes em culturas independentes). A irrupção dessas imagens do inconsciente na consciência ele considerava como a base da experiência religiosa e frequentemente da criatividade artística.

Trecho retirado do verbete sobre o Estudo da Religião da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, no seu esforço de descrever o contexto cultural em que ocorreu a Reforma Protestante, Will Durant tem um capítulo dedicado aos mágicos, em que ele dá detalhes sobre a mentalidade pouco propícia à investigação da natureza com base nas evidências, o que basicamente caracteriza a ciência praticada atualmente. Conforme mostra o primeiro trecho que abre este artigo, o uso desassombrado da razão para explicar os fenômenos era muito prejudicado pela precariedade da vida em uma época de pouca tecnologia: as fomes, as pragas e as guerras que surgiam e desapareciam de maneira inesperada levavam o homem a encarar a Natureza com medo e para diminuir seus temores e achar uma solução para os problemas, recorria à explicação de que forças ocultas precisavam ser aplacadas de forma que o homem pudesse ter algum alívio existencial. Aplacar essas forças significava recorrer a expedientes mágicos que pudessem fazer frente, pelo poder que colocavam em marcha, ao poder misterioso delas. Eles incluíam a necromancia, a leitura das mãos, a observação do movimento dos astros, a numerologia, a bruxaria, as profecias, adivinhações, as conjunções estelares portentosas, as curas miraculosas, as transmutações químicas. Todos esses expedientes pressupunham a crença absoluta na sua eficácia, crença essa incólume às evidências factuais, justamente porque respaldada em uma concepção religiosa do mundo, em que o bem lutava contra o mal.

    Daí que foi preciso que essas superstições e crendices fossem abandonadas para que as ciências pudessem se desenvolver, tal como descrito no segundo trecho que abre este artigo. Só livre dessa estrutura mental, em que tudo estava conectado por uma narrativa religiosa, é que o homem ocidental cristão começou a utilizar sua razão de maneira científica, isto é, de maneira a ver os fenômenos naturais em si mesmos e a tentar explicá-los em si mesmos sem recorrer a forças sobrenaturais onipresentes. E assim, rebelando-se contra os pré-conceitos derivados da religião, ele embarcou na jornada científica que causou uma revolução tecnológica e nos colocou em um nível inédito de conforto material, jamais visto na história da Humanidade. Como disse o físico americano Lawrence Krauss (1954-) em uma palestra dada em abril de 2012 na Universidade Nacional da Austrália juntamente com o biólogo britânico Richard Dawkins (1941- ), ambos ateus militantes, a diferença entre a religião e a ciência é que a ciência funciona: ela nos dá carros que andam e – acrescentaria eu – fogões que cozinham e celulares que transmitem mensagens. Os benefícios da religião definitivamente não são tão palpáveis.

    E no entanto, não foi sempre que religião e ciência estiveram em campos opostos. A investigação para achar a causa dos fenômenos naturais e explicá-los foi feita antes do advento do cristianismo na Grécia por homens que tinham um pé na razão e outro nos mistérios do mundo. Um deles é Pitágoras de Samos (570 a.C. – 495 a.C.), a quem conhecemos por ter dado nome ao teorema da geometria que estabelece uma relação matemática entre os lados de um triângulo retângulo. Conforme o terceiro trecho que abre este artigo, Pitágoras introduziu uma noção que seria de fundamental importância para o desenvolvimento da ciência ocidental, a de que o mundo só pode ser entendido se acharmos os números nas coisas e uma vez revelada a estrutura numérica nós adquirimos controle sobre o mundo. De acordo com Bertrand Russell, a concepção moderna de ciência é fundada na ideia de que as coisas são números. Sem ela, não teríamos a física e suas equações.

    Por outro lado, ainda segundo o mesmo Russell, Pitágoras diferenciou-se pelo fato de mostrar um interesse puro na matemática, não ditado por necessidades práticas, como ocorria no Egito, por exemplo. E aqui revela-se a outra dimensão dos esforços intelectuais do filósofo grego. A escola pitagórica era também uma seita religiosa, cujos membros praticavam rituais de iniciação, seguiam regras de vida e tomavam alucinógenos para terem experiências religiosas que os colocavam em contato com a unidade do cosmos. Sob essa perspectiva, os números não eram simplesmente instrumentos para descrever e entender a realidade, mas símbolos que, ao estabelecer relações numéricas, permitiam aos iniciados no culto abrir-se à harmonia e à ordem transcendentes. Os pitagóricos elaboraram a primeira escala musical no Ocidente usando a ferramenta da matemática para terem acesso a uma experiencia mística por meio da música tocada da maneira ditada pela escala proporcional que haviam inventado.

    Essa união entre experiência religiosa e busca da verdade acabou perdendo-se no Ocidente depois do advento do cristianismo. A forma como os dogmas da Igreja Católica foram estabelecidos e impostos pelas autoridades eclesiásticas, por meio do medo e da coação típicos do exercício do poder absoluto, fez com que a investigação do mundo só pudesse ocorrer pelo uso do argumento de autoridades sancionadas pela Igreja, ou de superstições que serviam para encher as pessoas de temor reverencial e fazê-las render-se ao poder da religião para consolar o homem do sofrimento e da miséria onipresentes. No entanto, não ajudavam muito para tornar essa investigação eficaz e fazê-la funcionar da maneira como a ciência é capaz atualmente, produzindo resultados concretos pela tecnologia. E assim foi preciso que para a ciência florescer a religião teve que perecer, ao menos para pessoas com curiosidade intelectual, como Lawrence Krauss e Richard Dawkins.

    Se formos tirar lições do pensamento do psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) tal separação entre ciência e religião é algo a se lamentar. Conforme mostrado no quarto trecho que abre este artigo, as investigações de Jung sobre a psiquê humana o levaram a desenvolver a ideia de que todos nós, enquanto homo sapiens, compartilhamos imagens arquetípicas que desempenham um papel fundamental na mente: carregadas de significados, essas imagens viabilizam a constituição da personalidade do indivíduo, pois lhe oferecem símbolos que remetem ao mistério da condição humana e ao significado das coisas. Nesse sentido, os arquétipos desempenham um papel religioso, estabelecendo uma narrativa que explica a origem e a criação do mundo, e um papel artístico, pois permitem ao homem usar símbolos para chegar a significados profundos sobre a natureza da existência.

    Prezados leitores, será que a recuperação por Jung da dimensão espiritual do homem por meio dos arquétipos algum dia permitirá uma nova síntese de religião e ciência? Ou será que elas estarão sempre em campos opostos no Ocidente com os ateístas defendendo-se das religiões monoteístas, como ocorre atualmente? Diante da possibilidade de que a humanidade não consiga sobreviver ao século XXI devido ao esgotamento dos recursos naturais e ao perigo nuclear seria bom que os investigadores da alma e os investigadores da natureza chegassem a uma entente, porque a salvação material do homo sapiens só poderá vir da boa vontade de todos em prol do bem comum, o que requer um compartilhamento de valores éticos e um comprometimento sincero em colocá-los em prática. Aguardemos.

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A Mãe Coragem norueguesa

O primeiro-ministro da Polônia conclamou a Noruega a compartilhar os enormes lucros que o país tem obtido das suas vendas de petróleo e gás como resultado da guerra na Ucrânia. Falando em um encontro de jovens em Varsóvia, Mateusz Morawiecki observou que os lucros obtidos pela Noruega pela venda de petróleo e gás neste ano serão de 100 bilhões de euros a mais do que em anos recentes.

Trecho retirado de um artigo escrito pelo jornalista Daniel Tilles, editor-chefe de Notes from Poland e publicado em 22 de maio de 2022

Brecht define o que uma apresentação de “Mãe Coragem e seus Filhos” deve evidenciar: que não são os humildes que fazem os grandes negócios numa guerra. Que a guerra, essa outra maneira de continuar o comércio, faz de toda virtude um poder de morte que se volta exatamente contra quem o detém.

Trecho retirado do texto Mãe Coragem escrito por Fernando Peixoto para o catálogo da produção da peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) encenada no Teatro SESC Anchieta em 2002

    Prezados leitores, eu cultivo o hábito de guardar catálogos de todas as peças e exposições a que eu assisti ao longo da minha vida. Para falar a verdade, quase nunca leio os textos incluídos nesses materiais, mas sempre os levo para casa para lembrar-me do meu percurso cultural. A guerra na Ucrânia, que se desenrola há quase três meses, sem perspectiva de fim à vista, lembrou-me da Mãe Coragem interpretada pela atriz Maria Alice Vergueiro, há exatos 20 anos, em maio de 2002. Explicarei o porquê da associação.

    A Mãe Coragem brechtiana é uma mulher de nome Anna Fierling, que atravessa a Guerra dos 30 anos (1618-1648), puxando sua carroça e vendendo aos soldados o que nela contém. Para quem não sabe, essa foi a primeira grande guerra europeia, opondo católicos a protestantes e acabando por esfacelar o Sacro Império Romano Germânico, constituído à época de 300 territórios autônomos.  A Paz de Vestfália, que colocou fim ao conflito, consagrou um princípio de direito internacional segundo o qual cada estado tem soberania sobre seu próprio território, e tem o poder de determinar o tipo de regime de governo e de religião que quer estabelecer. A noção de ordem internacional formada por Estados independentes, que se relacionam entre si em pé de igualdade jurídica em termos de soberania mutuamente reconhecida, tem validade até hoje, ao menos na teoria.

    Bertold Brecht constrói uma personagem equívoca, no sentido de ser repleta de ambiguidades morais. Anna Fierling ganha sua vida lucrando com o negócio da guerra, mas ao mesmo tempo que se aproveita ela é própria vítima, pois perde seus três filhos: os dois homens morrem como combatentes e a filha muda morre quando fala pela única vez através de um tambor, avisando que uma pequena cidade está para ser invadida. Com seu último rebento morto, a Mãe Coragem fica sozinha. Isso não a leva a indignar-se, a tirar alguma lição moral da guerra: a última cena da peça é a de Anna retomando sua caminhada e puxando sua carroça de comerciante.

    A indiferença da personagem principal da peça de Brecht serve para mostrar ao espectador a ambiguidade da própria guerra: para uns a guerra é justa, para outros é injusta. Aquele que luta heroicamente defendendo sua causa provoca tanta destruição quanto o lado oposto. A posição vacilante da Mãe Coragem no século XVII, que com seu humilde apoio logístico aos esforços da soldadesca permite que a engrenagem bélica continue funcionando, mas ao mesmo tempo vê sua família dizimada, é ilustrada hoje pela Noruega, que conforme mostra o trecho que abre este artigo, lucrará 100 bilhões de euros a mais só neste ano, com a disparada dos preços do petróleo e do gás causada pelo boicote imposto à Rússia pelas potências ocidentais por sua invasão da Ucrânia.

    A Noruega é um país de 5 milhões e meio de habitantes. De acordo com o CIA World Factbook, a expectativa de vida dos homens é de 80 anos e a das mulheres é de 84 anos. O PIB per capita é de 63.600 dólares, e para tornar as coisas ainda melhores, o governo do país criou um fundo soberano para poupar os lucros auferidos com a exploração de petróleo e gás, que são recursos finitos, e assim garantir a segurança material das futuras gerações de noruegueses.

    Em 2017 esse fundo já tinha um trilhão de dólares aos quais serão adicionados os 100 bilhões de euros a mais só de 2022. Como a Rússia agora exige que as compras de seu petróleo e gás sejam liquidadas em rublos e os países europeus mostram-se pouco dispostos a aceitar essa condição, a Noruega é a tábua de salvação dos países europeus que dependem da importação de energia para sustentar sua economia. Então, enquanto as relações com a Rússia forem difíceis ou inexistentes, o que deve se prolongar por vários anos, o país tende a beneficiar-se por ter excedentes para vender. Em suma, a Noruega é uma típica Mãe Coragem que vive da desgraça alheia em plena guerra e no entanto, há um outro lado.

    Diferentemente de Anna Fierling que dá sua cota de sacrifícios sem ser consultada se aceita fazê-lo, perdendo três filhos para a guerra, a Noruega, de acordo com o artigo de Daniel Tilles, por meio do seu Partido Verde, propôs uma expiação voluntária de suas culpas pela alocação de parte dos lucros com os preços do petróleo e gás nas alturas a um fundo para prestar ajuda humanitária às vítimas da guerra na Ucrânia e ajudar na reconstrução da infraestrutura do país. Será que a Noruega realmente fará uma lavagem do seu dinheiro “sujo”, investindo em projetos moralmente corretos? E será que o país, que figura na quarta colocação do Índice de Corrupção da Transparência Internacional e, portanto, é um dos menos corruptos no mundo, se dará por satisfeito em enviar o dinheiro à Ucrânia, ou fará questão de fiscalizar sua aplicação, considerando que o país invadido pelas tropas russas em 24 de fevereiro está na 122ª posição neste mesmo ranking, que reúne 180 países? Será que no final das contas, por mais que a Noruega tente honestamente limpar sua barra ajudando a minorar os estragos causados pela guerra, não teria sido melhor ela se recusar a vender petróleo e gás aos países europeus para obrigá-los, sob a pressão da falta de energia, a entrar em acordo com a Rússia em relação à não entrada da Ucrânia na órbita da OTAN, que era o que o presidente da Rússia, Vladimir Putin e seu Ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, pediam? Um acordo desse tipo não teria evitado a guerra? Ou será que a Rússia apenas achou uma justificativa para dar ares de guerra justa a uma ofensiva de conquista de território?

    Prezados leitores, grande dramaturgo que era, Bertold Brecht criou uma personagem cuja trajetória individual ilustra a violência da guerra, suas realidades econômicas, as mistificações que se constroem em torno dela e acaba mostrando sua verdadeira face. No final das contas, as Mães-Coragem e as Noruegas acabam assumindo posições que do ponto de vista moral são uma mistura do bem e do mal, por mais que sejam humildes participantes num caso ou protagonistas bem intencionadas no outro. Vejamos até quando e a que preço a Noruega continuará puxando sua carroça pelos campos europeus em pleno século XXI.

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Novos obscurantismos

Aos obscurantistas verdes que fazem um grande comércio da idolatria, da culpabilidade e do apocalipse, ele opõe os fatos. E ao tribunal do bom senso e da lucidez, ele convoca suas testemunhas: a história da Terra, a grande aventura humana, as ciências e as tecnologias. […] Podemos viver em harmonia com a natureza sem dominá-la? Não. […] A ecologia? Yves Roucaute é a favor dela, mas uma ecologia não punitiva, alimentada pelo saber e voltada para o futuro.

Trecho retirado de um texto de apresentação do livro “O Obscurantismo Verde”, do filósofo e cientista político Yves Roucaute (1953- )

No Tratado sobre a Fé ele definitivamente colocou a razão acima da Bíblia como teste da verdade – uma posição que a Europa levaria 200 anos para conquistar de novo.

Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) comentando sobre a obra de Reginald Pecock (1395-1461), bispo de Chichester nascido no País de Gales

A proteína cozida é mais digerível, explicou Wrangham, e as pessoas obtêm mais calorias da comida cozida do que da mesma quantidade de comida crua. Ele explicou que a energia extra que as pessoas obtiveram ao comer comida cozida permitiu que os seres humanos tivessem cérebros maiores.

Trecho retirado do artigo “Wrangham lança luz sobre a relação entre o fogo e a evolução”, sobre a palestra dada a alunos da Universidade Harvard em 11 de março de 2010 pelo professor de antropologia biológica Richard Wrangham (1948- )

    Prezados leitores já mencionei aqui neste meu humilde espaço a rádio francesa Sud Radio que conta como um dos seus apresentadores o jornalista André Bercoff. Bercoff realiza entrevistas com pessoas que escreveram algo interessante e as convida para falarem sobre sua obra. A qualidade do jornalista está no fato de que muitas vezes esses autores entrevistados têm ideias que desafiam a ortodoxia dominante e por isso não têm espaço em veículos de mídia mais tradicionais. Se alguma vez são convidados a expor suas ideias inusitadas precisam fazê-lo sob o fogo cerrado de entrevistadores que têm como principal objetivo derrotar o entrevistado, forçando-o por meio de perguntas que demandam uma resposta de sim ou não a comprometer-se com afirmações polêmicas, de forma que o jornalista possa mostrar o absurdo das ideias defendidas pelo entrevistado e reforçar o ponto de vista amplamente aceito.

    Em tal contexto, o fato de Bercoff dialogar com seus entrevistados de modo a que eles tenham a chance de expor seus argumentos sem serem atropelados por seguidas contestações permite que os ouvintes possam entender o que o autor do livro realmente pensa e tirar suas próprias conclusões. Assim é que semana passada Bercoff convidou o autor de “O Obscurantismo Verde”, o filósofo e cientista político Yves Roucaute, a falar sobre seu livro, o qual apresenta uma visão bem diferente da ecologia predominante nos meios intelectuais e jornalísticos do Ocidente na atualidade. Na ortodoxia ambientalista, o homem é o grande vilão, o depredador da natureza que ao longo de milhares de anos foi explorando os recursos naturais para satisfazer suas necessidades materiais e deixou atrás de si um rastro de destruição em termos de poluição do ar, da água e da terra, da extinção ou da drástica diminuição de espécies animais e vegetais e da exaustão dos recursos essenciais à vida como a água. Se o ser humano continuar neste caminho de consumo cada vez maior, chegaremos ao dia do apocalipse em que a Terra não mais será capaz de sustentar a vida porque nós teremos arruinado a capacidade de ela reabastecer-se. Haverá então fome, doenças, destruição e o colapso das civilizações.

    A abordagem de Roucaute é bem diferente do pessimismo e da estigmatização das atividades humanas. Para contrapor-se a essa mitologia do juízo final a que será submetido o Homo Sapiens pelos seus pecados ambientais o filósofo francês baseia-se nos fatos que conhecemos a respeito da história da Terra. O planeta azul não é este local idílico que foi conspurcado pela cupidez humana. Ao contrário, os desastres naturais são a regra e não a exceção na atribulada saga de mais ou menos 4,5 bilhões de anos que se passaram desde que a Terra foi formada: ciclones, terremotos, glaciações, aquecimentos, meteoros caindo e gerando explosões, destruição em massa de espécies animais e vegetais.

    Considerando tal cenário, o Homo Sapiens na verdade é um herói, porque conseguiu sobreviver inventando maneiras de proteger-se da Natureza e de utilizá-la em seu benefício. Caso o Homo Sapiens tivesse sido fatalista e deixado se levar pelo fluxo natural das coisas, a espécie humana já teria soçobrado há muito tempo ou mesmo sobrevivendo levaria uma existência precária, com baixa expectativa de vida. Rocaute reconhece os problemas ambientais que foram causados pela atividade humana na Terra, mas para ele a única saída para enfrentá-los é mais crescimento econômico que gere mais riqueza e os excedentes necessários para investir em ciência e tecnologia e assim achar soluções para a reciclagem de materiais, a geração de energia de maneira renovável e por aí vai, de maneira que a Terra continue a hospedar-nos por mais alguns milhares de anos.

    A capacidade única do homem de achar soluções que nenhuma outra espécie animal achou para reproduzir-se e sobreviver no ambiente natural também é enfatizada pelo primatologista inglês e professor na Universidade Harvard, Richard Wrangham. Conforme o treco que abre este artigo, em seu livro “Pegando Fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos”, Wrangham defende a tese de que a descoberta pelo homem de como dominar o fogo e utilizá-lo para preparar comida deu-nos uma vantagem competitiva inigualável porque permitiu que despendêssemos muito menos tempo mastigando e digerindo alimentos e que obtivéssemos mais nutrientes da comida, ao contrário dos nosso primos chimpanzés, gorilas e orangotangos que gastam várias horas no dia mastigando plantas de pouco valor nutricional. Já foi verificado experimentalmente que todos os animais preferem a comida cozida à comida crua, mesmo porque ela é mais fácil de ser processada, mas só o ser humano foi capaz de inventar o cozimento que lhe permitiu alimentar-se melhor, ter mais energia disponível para que o cérebro pudesse aumentar em volume e ter mais tempo para que com um cérebro mais avantajado nós pudéssemos dedicar-se a outras atividades que não fossem a busca incessante por comida.

    Essa breve descrição das ideias defendidas por Rocaute e Wrangham permite-nos ver que ideologicamente eles se colocam ao lado dos que enfatizam o quanto o cérebro poderoso do Homo Sapiens nos tornou criaturas especiais que souberam achar mecanismos únicos de sobrevivência no meio natural hostil. Nesse sentido, ambos se colocam contra aqueles que enfatizam que somos gananciosos e destruidores e que nossa capacidade cerebral apenas torna nosso potencial de destruição maior.

    Que visão predominará neste século XXI em que enfrentamos os desafios de lidar com o impacto das nossas atividades sobre o meio ambiente? A visão pessimista de que o ser humano é irremediavelmente falho? Ou a visão otimista de que não há nenhum problema que nos tenha sido apresentado ao longo da história das civilizações que não tenhamos conseguido resolver usando o poder do nosso intelecto? Será que, conforme mostra o trecho na abertura deste artigo, estamos na mesma encruzilhada em que se encontrou Reginald Pecock no século XV, que de tanto estudar a Bíblia chegou à conclusão de que ela tinha muitas respostas erradas, muitas inconsistências e absurdos e que o melhor era recorrer à razão para investigar o mundo? Será que se quisermos que o percurso do homem na Terra ainda gere frutos culturais e civilizacionais teremos que abandonar a atitude pessimista e fatalista tão em voga hoje em dia e adotar uma atitude de confiança na capacidade do homem de reinventar-se e prosperar por meio da sua capacidade de pensar? Quem viver verá.

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A Peste

A epidemia teve efeitos em todas as esferas da vida. Pelo fato de os pobres morrerem em maior proporção que os ricos, ocorreu uma falta de mão de obra; milhares de acres deixaram de ser cultivados, milhões de peixes morreram de causas naturais. Os trabalhadores desfrutaram por um tempo de um poder maior de barganha; a epidemia aumentou os salários, extinguiu muitas obrigações feudais remanescentes, e levou a revoltas que mantiveram os nobres com medo por meio século; até os padres entraram em greve por melhores salários. Os servos deixaram as fazendas para irem às cidades, a indústria expandiu-se, a classe de comerciantes obteve ainda mais vantagens em relação à aristocracia fundiária.

Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre a Peste Negra, que matou no século XIV entre 30% e 60% da população da Europa

Como a China é detentora de uma fatia de 15,4% do total das exportações comerciais globais, é natural que o país desperte a preocupação do resto do mundo. O mercado de alguns tipos de produto com alta dependência das fábricas chinesas, como chips e semicondutores, por exemplo, vive uma crise sem igual. Na semana passada, a Volkswagen do Brasil anunciou a paralisação das atividades de sua fábrica em São Bernardo do Campo por vinte dias em decorrência da falta desses dispositivos eletrônicos para instalar em seus automóveis.

Trecho retirado do artigo Caos no Mar, publicado na edição da revista VEJA de 11 de maio

Mas os economistas normalmente consideram que tal problema localizado [desaparecimento de indústrias locais e desemprego] é mais do que compensado pela disponibilidade de melhores automóveis ou toca CDs ao público consumidor. Essa conclusão se baseia em larga medida em modelos tradicionais e simples do comércio internacional. Esses modelos descrevem um mundo em que, pela troca irrestrita de bens, com todos os ganhos que ela ocasiona, cada país acaba produzindo os bens nos quais ele é naturalmente o melhor, comparativamente a outros países e produtos, e todos os países que participam do comércio beneficiam-se da troca de bens produzidos dessa maneira eficiente.

Trecho retirado do livro “O Comércio Global e os Interesses Nacionais Conflitantes” de Ralph E. Gomory e William J. Baumol

    Prezados leitores, além de descrever a decrepitude moral da Igreja Católica às vésperas do Cisma do Ocidente, conforme mencionei na semana passada ao falar sobre os cardeais, em seu livro “A Reforma” Durant descreve a mudança radical das condições econômicas na Europa que ocasionaram uma grande transferência de renda das mãos da aristocracia fundiária para a burguesia.

    Essa diminuição da importância da agricultura para a geração de riqueza em prol do comércio e da indústria contribuiu para solapar o poder da Igreja pelo fato de que tornou as pessoas menos propensas a tornar a religião parte do seu cotidiano, pois os moradores da cidade não mais dependiam dos caprichos do céu e da fertilidade imprevisível da terra para conseguir realizar seu trabalho. O citadino deixou de ter o temor reverencial que a natureza insondável e misteriosa despertava no camponês que arava o solo, semeava e realizava a colheita. Sua vida tornou-se mais previsível e isso teve um impacto sobre sua psiquê, livrando-o de muitos medos e também da necessidade de consolo dos infortúnios cotidianos por meio da religião.

    Tal êxodo do campo para a cidade, que mudou a relação do homem com a religião católica, teve como catalisador a Peste Negra, conforme é explicado no trecho que abre este artigo. Os pobres, que passavam fome quando a safra não era boa, tinham no geral menos condições físicas de sobreviver a uma epidemia e portanto, morriam muito mais do que os proprietários de terras, que podiam se isolar em seus castelos e eram muito mais bem alimentados, pois gozavam do privilégio da caça de animais e dos frutos dela. Morrendo como moscas, os camponeses deixavam não só de cultivar a terra como deixavam de pegar a talha, a corveia e as banalidades, privando o senhor dos proventos advindos da terra, que havia sido sua única e infalível fonte de riqueza há séculos. Os camponeses que sobreviveram à peste se tornaram parte da mão de obra escassa e gozaram de maior poder de barganha, que utilizaram para conseguir melhores condições de trabalho na agricultura ou simplesmente para livrar-se do fardo de uma vez e ir para a cidade em busca de uma nova vida, menos árdua do que a vida no campo, à mercê dos fenômenos climáticos.

    Em suma, o que era um mundo bucólico para os aristocratas rentistas e infernal para os que faziam o serviço agrícola transformou-se radicalmente com a Peste Negra, fazendo surgir um novo estado de coisas, em que novos modos de criação de riquezas tornaram quem era rico e poderoso incapaz de explorar o trabalho alheio, pois este passou a ser explorado pelos empreendedores nas cidades, responsáveis pela organização das primeiras indústrias, juntando trabalhadores com diferentes especialidades em um único lugar. É inevitável neste ponto traçar um paralelo com a situação que vivemos hoje depois da epidemia de COVID-19, que até hoje matou um pouco mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo, o que é risível, em face dos 75 milhões de indivíduos, no mínimo, que pereceram por causa da Peste Negra. Embora não tenhamos tido uma peste na acepção histórica do termo, a pandemia do século XXI promete ser um divisor de águas em termos econômicos como ocorreu no século XIV na Europa.

    A notícia objeto do artigo publicado na VEJA ilustra esse efeito disruptivo. O governo de Xi Jinping decretou um lockdown draconiano em 27 cidades chineses para combater um recrudescimento dos casos de COVID. Entre as cidades afetadas, encontram-se metrópoles costeiras, como Shenzen, Guangzhou e Xangai, cujo porto, o maior do mundo, movimenta anualmente 43 milhões de contêineres. O confinamento causou uma redução drástica nas atividades de embarque e desembarque, resultando em filas enormes de navios à espera de autorização para atracar. Considerando que, segundo dados da Divisão de Estatísticas das Nações Unidas, a China responde por 28,7% da produção manufatureira no mundo, a falta de movimentação de mercadorias no porto de Xangai afeta as cadeias de suprimento globais e causa efeitos perversos nos países que dependem dos produtos chineses, como é o caso do Brasil, conforme explicado no trecho que abre este humilde artigo.

    Várias perguntas surgem a respeito do que está ocorrendo na China. Será que o lockdown era mesmo necessário? Ou será que o governo chinês está usando a epidemia de COVID-19 como uma desculpa para usar o poder proporcionado ao país, por ser a fábrica do mundo, para afetar a produção e o comércio de países com os quais a China tem disputas? Será que tais disrupções logísticas levarão o mundo a abandonar os dogmas sobre o comércio internacional que prevaleceram durante toda a segunda metade do século XX, conforme explicados no trecho que abre este artigo? Será que a visão benevolente das trocas globais como a melhor maneira de criar eficiência e gerar riqueza para todos pela divisão internacional do trabalho de acordo com as vantagens competitivas naturais de cada país será suplantada pela visão de que o comércio internacional cria dependências perigosas de países que podem usar sua posição predominante como moeda de troca ou de chantagem? Será que a eficiência da China em produzir bens industriais a preços baixos continuará a ser vista como uma fonte de prosperidade para todos ou passará a ser vista como uma ameaça à soberania das nações?

    Prezados leitores, ainda é muito cedo para estabelecermos com certeza se haverá uma mudança de paradigmas econômicos, sociais e culturais causada pela pandemia do século XXI como a Peste Negra causou no século XIV. Pode ser que daqui a alguns anos a globalização volte a funcionar perfeitamente: os navios transportando as mercadorias singrem os mares de um país para o outro, regularmente e sem atropelos, para a prosperidade geral de todos. Ou pode ser que surja uma outra cortina de ferro, como aquela que dividiu o Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, e essa nova cortina separe os países alinhados a cada uma das superpotências mundiais, que são a China e os Estados Unidos, ao menos por enquanto. Aguardemos os desdobramentos.  A Peste Negra engendrou o capitalismo e a decadência da Igreja Católica. O que fará a epidemia da COVID?

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Sobre cardeais e banqueiros

Ela havia começado com a profunda sinceridade e a devoção de Pedro e Paulo; ela cresceu como um sistema majestoso de disciplina, ordem e moralidade familiar, escolástica, social e internacional; agora ela estava degenerando em um interesse arraigado, absorvido na autoperpetuação e no autofinanciamento. […] Os cardeais eram escolhidos raramente por sua devoção, normalmente por causa da sua riqueza ou conexões políticas ou capacidade administrativa; eles viam-se a si mesmos não como monges que carregavam o ônus dos votos, mas como senadores e diplomatas de um estado rico e poderoso; em muitos casos eles não eram padres; e eles não deixavam que seu chapéu vermelho impedisse que desfrutassem a vida. A Igreja esqueceu a pobreza dos Apóstolos diante das necessidades e das despesas do poder.

Trecho descrevendo a Igreja Católica no século XIV retirado do livro “A Reforma” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)

O Sr. Macron também às vezes afasta os eleitores com seu jeito indiferente e jupiteriano. Os críticos o denominam “o presidente dos ricos”. A alcunha cola, em parte porque ele cortou o impraticável imposto sobre a riqueza na França, mas em grande parte porque seu estilo é o do banqueiro pretensioso e ambicioso que ele era.

Trecho retirado do artigo “Por que Macron importa”, publicado na edição de 9 de abril da revista The Economist

    Prezados leitores, o que têm em comum a elite financeira global que dá as cartas no Ocidente neste início do século XXI e os príncipes da Igreja do século XIV, às vésperas da Reforma Protestante? Meu objetivo nesta semana é traçar alguns paralelos com as figuras cosmopolitas e poderosas de antes com as de agora, valendo-me da descrição que Will Durant faz do estado lamentável em que se encontrava a Igreja Católica quando começaram as críticas de intelectuais, devotos católicos e reis europeus que culminaram no cisma da Igreja no Ocidente, com o surgimento da Igreja Anglicana, da Igreja Calvinista e da Igreja Luterana no início da Idade Moderna.

    Em seu livro, A Reforma, que trata da história da civilização europeia fora da Itália no período entre 1300 e 1564,  Will Durant descreve a transformação por que passou a Igreja Católica, conforme o trecho que abre este artigo: uma instituição que foi fundada na ética dos apóstolos que seguiram os preceitos de Cristo e sacrificaram sua vida em prol deles chegou ao auge no século XI, quando desempenhava funções essenciais à sociedade: era a fonte da moral, permitindo a manutenção da ordem social, era a fonte do direito internacional, resolvendo em última instância disputas entre os soberanos europeus e era fonte de cultura, pois suas escolas formavam a elite intelectual que governava os países e os intelectuais católicos tiveram papel fundamental na preservação do legado da Antiguidade Clássica. À guisa de exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274), doutor da Igreja, utilizou a filosofia aristotélica para criar seu próprio sistema fundado no dogma cristão e elaborar seus cinco argumentos provando a existência de Deus. Em assim fazendo garantiu o predomínio da filosofia de Aristóteles no Ocidente de maneira completa e permanente até o advento do Humanismo no século XIV.

    Dotada do poder de ditar as normas éticas, as normas jurídicas e a maneira de pensar das pessoas, a Igreja Católica foi acumulando ao longo da Idade Média uma influência muito grande em todas as áreas que acabou levando-a por caminhos dúbios, pois como diz Durant, a proposta espiritual da instituição religiosa esbarrou na natureza dos homens que a administravam e que acabaram inebriados pelo poder que pertencer à Igreja lhes dava. O modo como os cardeais eram escolhidos e como se comportavam era emblemático a esse respeito: o que se procurava no indivíduo convocado a ser príncipe da Igreja não era sua devoção sincera aos preceitos de Cristo, mas sua capacidade de transitar bem no mundo das cortes europeias, celebrando alianças, negociando acordos de trégua e até comandando expedições militares financiadas pelas exações impostas pela Igreja aos fiéis. Cesare Borgia (1475-1507), foi nomeado cardeal aos 18 anos e ajudou seu pai, o Papa Alexandre VI (1431-1503), a aumentar a área dos Estados Papais, obtendo vitórias na Romanha, na península itálica. Enfim, a tarefa de um cardeal não era guiar seu rebanho rumo a uma vida de imitação de Cristo, mas a de agir para aumentar o poder da Igreja de forma que como instituição internacional que era, sua capacidade de ditar o rumo dos acontecimentos estivesse sempre acima daquela dos soberanos europeus.

    Assim, cultivando cardeais que benziam canhões e usufruíam da boa vida que a posição no topo da hierarquia católica lhes dava, a Igreja foi acumulando contra si ressentimentos. Ressentimento dos governantes do Norte da Europa, que viam que o dinheiro arrecadado ia todo para Roma e nada ficava nas Igrejas locais, sendo usado pelos papas para financiar suas ambições territoriais; ressentimento dos católicos devotos que se indignavam com o luxo e a vida de prazeres e lassidão moral vivida pela alta hierarquia da Igreja; ressentimento de filósofos como Guilherme de Ockham (1285-1347), que considerava que a Igreja não era o clero, mas a comunidade dos fiéis, e que esta comunidade tinha o poder soberano de delegar sua autoridade para um conselho geral de bispos e abades que escolheria, puniria ou deporia o papa.

    Esse acúmulo de ressentimentos ao longo de séculos diante dos abusos perpetrados pela Igreja Católica culminou com a Reforma do século XVI, o que abalou a instituição internacional que fundamentava seu poder político na autoridade moral e espiritual conferida por Jesus Cristo a Pedro, o primeiro papa. O surgimento de igrejas cristãs nacionais submetidas ao poder secular do governo dos respectivos países privou a Igreja Católica da sua primazia no Direito Internacional, pois o reconhecimento da soberania do governante local dava-lhe o poder discricionário de recusar a interferência da Igreja nas disputas entre Estados. Desse modo, a Reforma enfraqueceu a atuação supranacional da Igreja, privando-lhe do poder, exercido pelos seus príncipes, de ditar regras a todos e de impor consensos.

    É neste ponto que pretendo traçar um paralelo entre os agentes do internacionalismo no século XIV, conforme descritos por Durant, e os agentes do internacionalismo no século XXI, que atualmente não são os cardeais com seu chapéu púrpura, mas os banqueiros vestidos de ternos bem cortados como Emmanuel Macron, o presidente da França reeleito no dia 24 de abril que, antes de tornar-se político fez fortuna trabalhando na filial francesa do Banco Rothschild. Na qualidade de sócio do Rothschild, Macron foi responsável, entre outras operações societárias, pela aquisição bem-sucedida de uma filial da Pfizer pela Nestlé em 2012, no valor de 12 bilhões de euros.

    Macron, portanto, é um homem que transita bem nas altas esferas do poder das multinacionais e não é de admirar as medidas que tomou durante a pandemia de COVID, tornando a vacinação obrigatória na França por meio do passe vacinal e prometendo, em entrevista dada ao jornal Le Parisien em 4 de janeiro, de tornar a vida dos não vacinados um inferno, pois segundo o presidente francês eles não podem ter a liberdade de prejudicar os vacinados, colocando a saúde destes em risco.

    Será que a postura de Macron foi ditada pelo interesse dos franceses ou pelo interesse da indústria farmacêutica de garantir um mercado cativo para seus produtos, vendidos em toda a Europa? A dúvida é pertinente, considerando que hoje se sabe que os vacinados transmitem a doença da mesma maneira que os não vacinados (para que não me acusem de propagadora de fake news, consultem o artigo publicado na revista The Lancet em janeiro de 2022 e disponível na internet  intitulado “Transmissibility of SARS-CoV-2 among fully vaccinated individuals”. Considerando que quando Macron deixar a presidência da França ele terá míseros 50 anos, não é descabido pensar que ele possa voltar a ser sócio de algum banco de investimentos e portanto cultivar suas relações com grandes conglomerados internacionais pode ser uma acertada decisão para sua futura transição de carreira.

    Conforme mencionei neste humilde espaço na semana passada, o filósofo francês Michel Onfray define Macron como o executor do consenso de Masstricht na França, isto é, o líder político responsável por implantar os ideais globalistas da União Europeia no nível local, independentemente do interesse da população local. Um exemplo prático disso, conforme relatado pela The Economist, ocorreu durante a campanha presidencial de 2017, quando Macron reuniu-se em Amiens, sua cidade natal, com os trabalhadores da fábrica da Whirlpool que havia sido fechada e transferida para outro local na Europa com custos menores de produção.

    O banqueiro tornado político e acostumado ao grand monde das finanças internacionais nem fez questão de pretender ter uma solução para ajudar os franceses lá desempregados pelo encerramento das atividades da Whirlpool. Era preciso aceitar o fato inelutável da globalização e prometer salvar-lhes o emprego era demais, era populismo barato e Macron é um intelecto sofisticado demais para isso. Ele não pode dar conforto material e espiritual ao proletariado francês, viúvo da desindustrialização, pois a tarefa dele é maior, é garantir que as engrenagens da União Europeia, a promotora da livre circulação de produtos e serviços a bem da eficiência econômica, funcione sem atropelos no país o qual ele foi escolhido para governar.

    Prezados leitores, será que os príncipes do século XXI terão o mesmo destino dos seus congêneres do século XIV? Será que banqueiros como Emmanuel Macron que executam o projeto globalista da União Europeia terão o mesmo destino dos cardeais que zelavam pelo poder da grande instituição internacional de então, a Igreja Católica? Será que haverá uma reação dos governos nacionais como houve há 700 anos? Aguardemos, e enquanto isso, admiremos o aplomb, o cosmopolitismo e a sofisticação de figuras como o presidente francês.

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