Obviedades ostensivas

“A definição ostensiva” pode ser definida como “qualquer processo pelo qual a pessoa é ensinada a entender uma palavra de outra maneira que não seja pelo uso de outras palavras.”. […] as palavras que têm definições ostensivas frequentemente denotam características recorrentes do ambiente, tais como membros da família, comidas, brinquedos, animais de estimação, etc. […] A linguagem, desde o início, ou melhor, desde o início da reflexão sobre a linguagem, corporifica a crença em pessoas ou coisas mais ou menos permanentes.

Trecho retirado do livro “Human Knowledge – Its Scope and Limits” do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970)

Senadora do Estado do Tennessee Marsha Blackburn: Você consegue dar uma definição de mulher?

Juíza Ketanji Brown Jackson: “Não neste contexto, Eu não sou uma bióloga.

Diálogo ocorrido na sessão de sabatina da candidata à juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos em 23 de março

 

[…] nós como humanos, não somos deuses nem oráculos. Só temos uma maneira de tentar alcançar a verdade: apresentar hipóteses e ideias, e depois avaliá-las, refutando aquelas que se mostram erradas. Se algumas ideias não podem nem mesmo ser expressadas, e outras não podem ser questionadas, então estamos desabilitando nosso mecanismo principal de chegar à verdade.

Trecho da entrevista dada pelo psicólogo Steven Pinker, catedrático da Universidade Harvard  à revista VEJA de 30 de março

    Prezados leitores, no livro mencionado na abertura deste humilde artigo Bertrand Russell propõe-se a investigar as características da linguagem natural para determinar que tipo de conhecimento é acessível ao homem. Para tanto, ele começa com as palavras que têm uma definição ostensiva, isto é, palavras cujo sentido pode ser explicado simplesmente mostrando à pessoa que está aprendendo a língua a que o termo se refere. Russell dá detalhes desse processo descrevendo o modo pelo qual as crianças aprendem a falar e como os adultos as ensinam. Podemos tomar como exemplo a palavra mulher.

    Para que a criança aprenda o que é uma mulher, é preciso que o adulto repita a palavra toda vez que a criança está em presença de um indivíduo que apresenta uma característica distintiva, facilmente observável, recorrente e emocionalmente interessante, de forma que com o tempo a criança adquira o hábito de associar o substantivo mulher a todos os seres humanos que apresentam um grau de semelhança que pode ser estabelecido imediatamente. Dessa forma, o sentido das palavras com definição ostensiva é obtido pelo reconhecimento sensorial de por parte do falante da língua que, depois de ser exposto inúmeras vezes à mesma experiência de ouvir o substantivo mulher ser utilizado para se referir a uma espécie com determinados atributos, aprende finalmente a fazer por si mesmo a associação entre o nome e o referente e a considerar isso como algo permanente.

    Nesse sentido, não é mera coincidência que a noção filosófica de substância, isto é, de natureza essencial esteja associada aos substantivos ou nomes da língua. Conforme explica o trecho que abre este artigo, a língua tem uma série de premsisas e entre as mais importantes está a de que certas coisas não mudam, são estáveis: qualquer falante da língua reconhecerá um cachorro, uma mulher, uma árvore. Falar que uma mulher é um significante utilizado para se referir a uma série de impressões sensíveis conectadas por uma similaridade e relações causais, mas sem identidade material, pode ser mais apropriado do ponto de vista estritamente empírico, mas não faz parte das regras do jogo do falante nativo da língua: para ele, o significado de mulher é óbvio ululante e basta ele apontar para um indivíduo do sexo feminino na rua que o sentido do substantivo ficará imediatamente cristalino.

    E no entanto, em pleno século XXI, ao menos nos Estados Unidos, as definições ostensivas estão sendo postas à prova, como mostra o diálogo entre a senadora do Tennessee e a a juíza que acabou sendo confirmada como nova ministra da Suprema Corte dos EUA. O significado de mulher não é mais o que costumava ser quando nós crianças aprendemos a associar o substantivo a indivíduos com características biológicas femininas, isto é, seios, poucos pelos, quadris mais largos que os dos homens. Tanto é assim, que Ketaji Jackson recusou-se a responder à pergunta sobre o que é uma mulher, pois o que era óbvio ululante passou a ser objeto de disputa ideológica, disputa esta que a juíza reconhece pela sua resposta.

     Afinal, se é preciso recorrer a um biólogo para uma definição do que é mulher, isso significa que não é mais possível a um mero falante da língua explicar o significado de mulher simplesmente apontando na rua um indivíduo: existem pessoas que têm características biológicas do sexo masculino e no entanto, se identificam como mulheres, se vestem como mulheres ou se comportam como mulheres ou simplesmente se sentem mulheres. Serão essas pessoas mulheres apesar de terem órgãos do sexo oposto porque o sentido do termo mulher não pode mais ser limitado por critérios estritamente biológicos? Havendo um aumento no número de critérios a serem aplicados para definir o que é uma mulher será possível daqui por diante reconhecê-las na rua? Será possível ensinar às crianças o sgnificado de “woman”, “femme”, “mulher” ou “mujer” apenas com base no tradicional método indutivo?

    Considerando as implicações da recusa da juíza em responder à pergunta, não admira que a senadora conservadora do Tennessee tenha usado tal resposta para criticar a educação progressista que, segundo ela, é oferecida às crianças americanas e tem como fundamento questionar as noções mais fundamentais. Se em 2022 a pessoa não consegue dar uma resposta direta a uma pergunta que até algumas décadas atrás teria como resposta o óbvio ululante, pois todos concordavam sobre o que era uma mulher e saberiam apontar uma mulher na rua, isso significa que há discordâncias profundas sobre os pressupostos da linguagem.

    De fato, aquilo que era substância imutável tornou-se fluido, sujeito a disputas ideológicas: quem acredita que a biologia é o único critério para definir o que é um indivíduo do sexo feminino continuará reconhecendo mulheres na rua com base em suas características físicas; quem acredita que a biologia é um critério limitado e utilizado propositalmente para oprimir minorias atribuirá um significado mais amplo ao substantivo mulher, de forma que ele deixará de ter uma definição meramente ostensiva: será preciso usar outras palavras para descrever o que é uma mulher, palavras que, ao descreveram o estado psicológico da pessoa digam respeito à percepção que ela pessoa tem de si.

    Aonde vamos parar se passarmos a nos desentender dessa maneira tão fundamental? Será que o caminho proposto por Pinker na abertura deste artigo para chegar à verdade ficará inviabilizado? De um lado há pessoas que consideram ridícula uma juíza que não consegue responder a uma pergunta óbvia sobre o que é uma mulher e de outro lado há pessoas que entendem perfeitamente a dificuldade de definir o que é uma mulher. Nesse contexto de polarização, como fazer para que os partidários da biologia e os partidários das minorias troquem ideias e pratiquem a racionalidade de Pinker, que nada mais é do que um humilde processo de busca da melhor aproximação possível da verdade, sem nenhuma pretensão de chegar finalmente a ela? Será possível discutir, isto é, dialogar sem insultar, quando não concordamos sobre o significado das palavras mais comezinhas da língua?

    Prezados leitores, o óbvio ululante de outrora abriu-se ao meio e criou um abismo entre pessoas de diferentes espectros ideológicos. O desafio será evitar que a fissura se alargue tanto que a margem esquerda do rio perca de vista a margem direita. Não deixemos de ter esperança: talvez um dia voltemos ao mundo das obviedades ostensivas em que todos éramos felizes como as crianças que aprendiam que mulher era uma mulher.

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De que lado da dialética ficaremos?

As regularidades e recorrências do tipo que normalmente se manifestam no reino da natureza são estranhas, sustentava Hegel, à esfera da mente e do espírito, que se caracterizava ao invés disso por implicar um impulso constante em direção à autotranscendência e à remoção das limitações sobre o pensamento e a ação. O homem não deveria ser concebido de acordo com os modelos mecanicistas do materialismo do século 18; ele era essencialmente livre, mas a liberdade que constituía sua natureza somente poderia ser atingida por meio de um processo de luta e de superação de obstáculos que eram eles mesmos a expressão da própria atividade humana.

Trecho retirado do verbete “Filosofia da História” da 15ª (1974) edição da Enciclopédia Britânica, sobre as ideias do filósofo idealista alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

 

Toda a cadeia de produção, distribuição de produtos e logística, toda essa geografia de comércio será afetada. Estamos presenciando um princípio de fim da globalização como conhecemos”, afirmou a especialista em comércio internacional e professora adjunta de Direito Internacional da American University, Renata Amaral. “Como o Brasil vai continuar se dando bem com EUA, Rússia e China? A questão de escolha de lado vai ficar muito mais evidente daqui para a frente, e isso vai se refletir nas decisões de investimento futuro das empresas.

Trecho retirado do artigo “Pandemia e guerra põem a globalização em xeque” publicado no jornal O Estado de São Paulo em 20 de março

    Prezados leitores, na semana passada eu tratei do sistema de crédito social da China como uma aplicação direta da filosofia de Confúcio e o fiz com o intuito de ter uma ideia do que pode nos esperar se houver uma movimentação das placas tectônicas na geopolítica mundial de forma que a ordem mundial vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial e capitaneada pelos Estados Unidos seja substituída por outro sistema organizado sob princípios da cultura chinesa. Nesta semana, meu humilde objetivo é o de explorar como um novo estado de coisas pode surgir à luz dos ensinamentos de Hegel, o inventor da dialética, sobre o modo como a História se processa, além de algumas das características econômicas dele.

    Conforme o trecho que abre este artigo, a filosofia da história hegeliana colocava-se como contraponto ao materialismo, segundo o qual os fenômenos do mundo visível são resultado das interações entre partículas de matéria, as quais não têm nem inteligência e nem propósito, comportando-se como bolas que se chocam. Para Hegel, o homem é o sujeito da História, atua no processo histórico, toma decisões de acordo com o ideal que ele quer ver concretizado. Ao enfrentar obstáculos à concretização da sua ideia, o homem atua para superá-los e é por haver uma luta entre o que o homem quer e as condições materiais do momento que não se pode dizer que os acontecimentos históricos se desenrolam por meio de uma série de transições imperceptíveis. Ao contrário, eles são fruto do esforço e da ação humanos.

    Uma vez tendo surgido um novo modo de vida na sociedade a partir da atuação consciente do homem, suas potencialidades se concretizam na prática, e com o tempo o mesmo homem que por suas ações viabilizou a existência dessa sociedade específica percebe que ela é inadequada, que ela tem falhas. As instituições que antes eram aceitas de maneira inquestionável passam a ser vistas como entraves ao desenvolvimento pleno das aspirações do homem. Nesse sentido, cada fase do processo histórico contém os germes de sua própria destruição, a qual ocorrerá quando uma nova sociedade for constituída a partir da luta do homem para superar um estado de coisas que não mais atende seus interesses e anseios.

    Eis o processo dialético em ação, fruto da vontade dos sujeitos históricos atuando para dar à luz a um determinado estado de coisas, de modo que a tese proposta na mente e concretizada na prática gera em si mesma sua própria antítese e no futuro uma síntese é elaborada a partir do conflito. Sob essa perspectiva a História não é aleatória, cega, fruto do acaso, de uma confluência imprevisível de fatores que estão presentes simultaneamente em determinado momento no tempo.

    À luz dessa concepção de Hegel da História  como vontade presentificada, o que vemos ocorrer hoje é o parto de uma nova sociedade, diferente da sociedade globalizada baseada no princípio de que o comércio internacional, guiado pela atuação irrestrita das forças competitivas do mercado, resultará no melhor resultado possível para todos. Nesta antiga ordem que vigeu mais ou menos desde 1945 e à qual os países do Leste Europeu aderiram após a queda do Muro de Berlim, em 1989, alguns países se especializaram na produção de bens manufaturados, outros na prestação de serviços, outros na produção de commodities agrícolas, outros de commodities energéticas, e ainda outros de commodities minerais. Tudo funcionou muito bem quando as necessidades complementares dos países podiam ser facilmente atendidas pelas cadeias de suprimento organizadas em escala mundial e pela comunicação instantânea viabilizada pela internet.

    E de repente surge uma pandemia em novembro de 2019 que mostra aos atores da globalização as falhas no processo: em um momento de emergência médica, descobriu-se que itens fundamentais, como máscaras, equipamentos de proteção individual e respiradouros eram em grande parte fabricados na China, a qual naturalmente priorizou o atendimento de suas próprias necessidades internas, deixando seus parceiros comerciais desamparados quando tais produtos faziam a diferença entre a vida e a morte. Ainda hoje, mais de dois anos depois do início do surto de covid-19, se o pior já passou em termos de menos necessidade de internações em UTIs por causa do vírus, o fato é que o fornecimento de chips pela China, que em 2018 era o maior exportador mundial, com receitas de mais 300 bilhões de dólares ao ano, ainda não foi regularizado, o que afeta a produção de veículos, de eletrodomésticos e de equipamentos eletrônicos.

    Tais falhas ficaram ainda mais escancaradas em 24 de fevereiro de 2022, data do início da operação militar da Rússia na Ucrânia. O bloco liderados pelos EUA impôs sanções econômicas, que incluíram o confisco das reservas internacionais em moedas e em ouro que estavam depositadas fora da Rússia nos países ocidentais e o encerramento das operações no país de pelo menos 400 empresas desde o início da guerra. Como retaliação, a Rússia criou uma lista negra de países com os quais ela deixará de manter relações comerciais normais, incluindo a venda de fertilizantes, de trigo, de minerais estratégicos como o níquel, utilizado em baterias elétricas e as terras-raras utilizadas para a fabricação de semicondutores e baterias solares, para não falar do gás e do petróleo. Em suma, as cadeias globais de suprimento que fizeram a riqueza da economia mundial por meio da especialização que gerava eficiências de um lado e causava dependências perigosas em momentos de crise do outro, estão pouco a pouco se desfazendo.

    Face a essa dupla disrupção do comércio internacional pela pandemia e pela guerra, como os países responderão? Investirão recursos para tornar-se autarquias econômicas, produzindo tudo de que necessitam? Será que isso é viável para todos os países? Ou será que o caminho será escolher um lado e estabelecer relações comerciais unicamente naquele grupo para adquirir os produtos nos quais o país não goza de vantagem competitiva e por isso faz mais sentido econômico que sejam importados? De acordo com a opinião da especialista citada na abertura deste artigo, será inevitável que o Brasil faça sua própria escolha, seja pelos países do bloco ocidental, tendo à frente os Estados Unidos, seja pelos países do novo bloco da Ásia, a ser formado em torno da China e da Rússia.

    Se quisermos seguir as lições de Hegel, nós brasileiros teremos que tomar uma decisão sobre aquilo que queremos para nós e agirmos no mundo real para concretizar esse ideal. De que lado da dialética ficaremos? Será que atuaremos como senhores da nossa própria vontade e artífices da nossa própria História ou seremos simplesmente bolas que movem daqui para lá no xadrez da geopolítica internacional impulsionadas pelos reis, bispos e rainhas que nos empurram ao sabor das suas próprias decisões? Aguardemos.

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Confúcio e a algocracia

Os antigos que desejavam exemplificar a maior virtude em todo o império primeiro colocavam seu próprio estado em ordem. Desejando colocar seu estado em ordem, eles regulavam primeiro as famílias. Desejando regular as famílias, eles primeiro cultivavam seu próprio ser. Desejando cultivar seu próprio ser, eles arrumavam primeiro seu coração. Desejando arrumar seu coração, eles procuravam primeiro ser sinceros nos seus pensamentos. Desejando ser sinceros em seus pensamentos, eles aumentavam ao máximo seu conhecimento. Tal expansão do conhecimento baseava-se na investigação das coisas.

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) citando trecho da obra “O Grande Aprendizado” sobre Confúcio, filósofo chinês (551-479 a.C.)

Em 2018, algumas restrições foram impostas aos cidadãos […]. Em novembro de 2019, além do comportamento financeiro desonesto e fraudulento, outro comportamento que algumas cidades listaram oficialmente como fatores negativos de classificações de crédito incluem tocar música alta ou comer em metrôs/trens, violar as regras de trânsito, como atravessar fora da faixa de pedestres e violar o sinal vermelho, fazer reservas em restaurantes  ou hotéis  mas não comparecer, deixar de separar corretamente os resíduos pessoais, usar de forma fraudulenta carteiras de identidade de outras pessoas em transporte público, fumar, etc. Por outro lado, os comportamentos listados como fatores positivos de classificações de crédito incluem doar sangue, doar para instituições de caridade, trabalho voluntário para serviços comunitários, elogiar os esforços do governo nas redes sociais e assim por diante.

Trecho retirado do verbete da Wikipedia sobre o sistema de crédito social, implantado pelo governo da China em 2014

    Prezados leitores, na semana passada utilizei este meu humilde espaço para apresentar a proposta de não violência de Mahatma Gandhi (1869-1948), que enfrentando o governo colonial inglês apenas com a força de suas sábias palavras contribuiu para que a Índia conquistasse sua independência. A guerra em curso atualmente no Leste Europeu, depois da invasão da Ucrânia pelas tropas de Vladimir Putin, parece representar um choque de civilizações entre o Ocidente democrático, liderado pelos Estados Unidos, e os regimes vigentes na Rússia e na China, que em 4 de fevereiro deste ano declararam ter firmado uma parceria ilimitada. Pode ser útil examinar o que mais os orientais tem a oferecer em termos de organização social e política, porque a depender dos resultados e das consequências do conflito atual, poderemos ter que lidar com uma nova ordem mundial.

    Para tanto, concentrarei meus esforços no resgate do pensamento de Confúcio, tal como explicado no livro de Will Durant citado na abertura deste artigo e tentarei estabelecer uma repercussão desse pensamento na China do século XXI, portanto 2500 anos após o filósofo autor dos Anacletos ter vivido. Conforme mostra o trecho retirado de “Our Oriental Heritage”, a paz e a prosperidade são construídas de baixo para cima, quando o indivíduo disciplina a si mesmo, e não pela imposição de leis de cima para baixo. Esse processo de cultivo da virtude começa pela busca do conhecimento do mundo e do indivíduo ele mesmo. Conhecendo-se, o homem saberá determinar seus pontos fortes e seus pontos fracos, quais são suas paixões, sua natureza. De posse desse conhecimento, ele não mentirá para si mesmo, pretendendo ser algo que não é e tendo pensamentos falsos, ao contrário sua sinceridade colocará o foco da sua reflexão na melhora da sua personalidade, para livrar-se de seus defeitos.  Em assim fazendo, o homem conseguirá retificar seu comportamento, reprimindo aquilo que é prejudicial e incentivando aquilo que é benéfico. Atuando com retidão moral, ele conseguirá servir de exemplo a seus familiares e manterá bom relacionamento com eles, garantindo que sua família funcione bem. Funcionando bem, a família disciplinada torna-se o sustentáculo da ordem social, pois cada um dos membros da comunidade agirá no mundo com inteligência, coragem e boa vontade, senhor de si mesmo, dos seus impulsos, das suas propensões, de modo que as interações sociais são proveitosas para todos os envolvidos, sem que nenhum tire vantagem do outro. Havendo relações sociais amistosas e fundadas na boa fé, a ordem é criada espontaneamente e o governo naturalmente funciona porque seus objetivos são respaldados pelo comportamento correto da população.

    Ao fazer um balanço da influência de Confúcio sobre a sociedade chinesa, Durant reconhece que sua ênfase no aprendizado e na sabedoria permitiu ao Império do Meio desenvolver uma vida comunitária harmoniosa que foi seu sustentáculo espiritual ao longo de séculos de tumultos causados pelas invasões dos “bárbaros”. Por outro lado, a ênfase no comportamento correto, socialmente responsável, na construção cotidiana da virtude, no controle dos impulsos, reprimiu a natureza humana na China, tirando-lhe o vigor, a naturalidade, a energia criativa das paixões e sufocando a busca do prazer e da aventura. Em assim fazendo a aplicação prática da filosofia de Confúcio tornou a sociedade chinesa conservadora e estéril ao extremo, em que pese ter conseguido a paz e a perfeição da harmonia social.

    À luz dessa explicação sobre o pensamento do filósofo mais influente da China, o sistema de crédito social instituído pelo governo chinês, exercido pelo Partido Comunista capitaneando por Xi Jiaoping, tem nítidas raízes confucianas. Fazendo uso dos algoritmos proporcionados pela inteligência artificial, o governo elaborou um sistema de pontuação que atribui pesos diferentes a determinados comportamentos individuais, a depender do que é considerado socialmente benéfico e maléfico, tal como descrito no trecho que abre este artigo. De acordo com as ponderações adotadas e os pontos acumulados pelo indivíduo em suas interações sociais, ele terá um saldo positivo e obterá recompensas, ou terá um saldo negativo e será punido.

    Os críticos de Confúcio em seu tempo consideravam que fazer com que o bom andamento da sociedade, do governo e do estado dependa do comportamento virtuoso de cada indivíduo era muito arriscado e o melhor seria impor leis que coagissem as pessoas a obedecer. Parece que os comunistas atualmente no poder na China preferiram apostar na receita milenar de autocontrole pelo indivíduo com a ajuda da mais avançada tecnologia: é a algocracia, a governança pelo algoritmo, que torna o poder do governo menos escancarado e mais sutil, prescindindo de leis, decretos, garantindo que a ordem social surja naturalmente da disciplina que cada indivíduo impõe a si mesmo.

    Será este nosso futuro, tornarmo-nos súditos da algocracia confuciana? Será que as sociedades ocidentais sacrificarão sua liberdade em prol da paz social proporcionada pelos algoritmos do sistema de crédito chinês? Ou será que o impulso individual nunca será domado no Ocidente como o é no Oriente? Aguardemos o raiar dessa possível nova ordem mundial, em que os países da Ásia formarão o novo eixo de poder.

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Relatos Selvagens

“A História”, ele dizia a eles, “nos ensina que aqueles que, sem dúvida imbuídos de motivos honestos, livraram-se dos gananciosos usando a força bruta contra eles, tornaram-se eles mesmos vítimas da doença dos conquistados … Meu interesse na liberdade da Índia cessará se ela adotar meios violentos. Porque o seu fruto não será a liberdade, mas a escravidão.”

Trecho retirado do livro “Our Oriental Heritage”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) sobre Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), advogado e nacionalista indiano

Os métodos lentos da variação e da hereditariedade são suplantados pelos processos mais rápidos da aquisição e transmissão da experiência. E na medida que o mecanismo da evolução deixa de ser cego e automático e se torna consciente, a ética pode ser inserida no processo evolucionário. Antes do homem aquele processo era simplesmente amoral. Depois de sua emergência na vida, tornou-se possível introduzir a fé, a coragem, o amor pela verdade, o bem – em resumo, um propósito moral – na evolução. Tornou-se possível, mas a possibilidade tem sido e frequentemente negligenciada.

Trecho retirado das “Romane Lectures” publicadas em 1943 pelo biólogo, filósofo e educador britânico Julian Huxley (1887-1975)

    Prezados leitores, Relatos Selvagens é um filme de 2014 que reúne histórias de pessoas que, confrontadas com situações em que se sentem injustiçadas, magoadas, ou violentadas, perdem o controle e deixam aflorar seus instintos mais primários. Num caso, dois motoristas trocam insultos na estrada e acabam matando-se mutuamente; noutro caso um engenheiro que tem seu carro guinchado quatro vezes se depara com o sadismo de pequenos burocratas que exercem poder dizendo não às pessoas,  e para se vingar explode um carro de guincho e vai parar na prisão; na última história do filme, na festa do seu casamento a noiva descobre que seu esposo a trai com uma colega de trabalho que também é convidada da cerimônia e para se vingar joga a moça contra um espelho, deixando-a toda ensanguentada.

    Em todos os casos, as reações viscerais acabam prejudicando o indivíduo, mas ele não deixa de tomar a atitude de dar vazão à sua raiva porque não consegue controlar-se ou porque se não o fizer explode. Nesse sentido, o filme, retratando situações do cotidiano vividas por cidadãos do século XXI, mostra que ainda estamos longe do ideal preconizado por Julian Huxley no trecho que abre este artigo. Em 1943 Huxley aventava a possibilidade que a evolução física do homem tinha chegado ao fim, ou procederia de forma muito lenta como resultado das pressões da seleção natural. Por outro lado, o homem poderia evoluir do ponto de vista moral, aprendendo com a experiência, incorporando esses ensinamentos ao seu comportamento e construindo assim uma prática que o levasse a refletir sobre os erros e a permeá-la de valores éticos que norteassem tanto as correções de rota quanto os fins a serem alcançados.

    Huxley sabia que tal potencial moral do homem estava longe de se tornar uma realidade mas, como bom humanista, ele nunca deixou de propor esse novo método de evolução como um meio de tornar o homem o senhor do seu destino na Terra.  Se nem todos nós somos capazes de agirmos sempre com um senso de propósito, com autocrítica e com consistência, é inegável que um homem como Mahatma Gandhi chegou perto disso. Em sua luta para garantir o direito aos indianos de autogovernarem-se sem ser tutelados pelos ingleses, o advogado de Gujarat sempre propôs e foi fiel ao princípio da não-violência, pelas razões expostas no trecho que abre este artigo.

    Ao ser preso inúmeras vezes pelos ingleses por sua atuação política anticolonialista, ele nunca se rebelou contra as autoridades e sempre se submeteu às leis então vigentes, pois considerava que se os indianos conseguissem tomar o poder pela força, no longo prazo a violência voltar-se-ia contra eles e eles tornar-se-iam tão tirânicos quanto os ingleses eram em relação aos seus colonizados Gandhi manteve-se fiel a seus princípios até o fim de sua vida: ao ser alvejado por tiros disparados por Nathuram Godse em 30 de janeiro de 1948, logo depois da promulgação da Lei de Independência da Índia em 1947, pediu que seu assassino não fosse punido, para que não houvesse estímulo ainda maior às violências mútuas cometidas por hindus e muçulmanos.

    Prezados leitores, se a reação instintiva dos homens é vingar-se pelas injúrias sofridas e o comportamento do Mahatma é exceção, o que fazermos nesses tempos em que uma guerra se desenrola na Europa e nenhuma das partes em conflito parece disposta a ceder de verdade para chegarem a um compromisso? O que fazer se russos e ucranianos e seus respectivos aliados exigem a submissão total do outro? Será que entramos em um círculo vicioso de violência e retaliações em que o único desfecho é a selvageria autodestrutiva? Ou será que aparecerá um outro espírito desinteressado, gentil, simples e compreensivo com seus inimigos como o de Gandhi que conseguiu atingir fins políticos sem jamais ter manchado suas mãos de sangue? Aguardemos e quem sabe a evolução moral preconizada por Huxley e praticada por Mohandas se desenrole ante nossos olhos.

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O Rufar dos Tambores

A moralidade é estritamente tribal. […] Talvez, no entanto, os gregos sejam diferentes de nós não com relação à conduta, mas à transparência; nossa maior delicadeza faz com que consideremos ofensivo pregar aquilo que praticamos. O costume e a religião entre os gregos coíbem muito pouco o vitorioso na guerra. É prática comum, mesmo em guerras civis, o saque da cidade conquistada, a matança dos feridos, o assassinato ou a escravização de todos os prisioneiros pelos quais não foi pago resgate e de todos os não combatentes capturados, a queima das casas, das árvores frutíferas, das plantações, o extermínio dos rebanhos e a destruição das sementes para inviabilizar futuras plantações.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) que explica a concepção de moralidade e de lei dos gregos exemplificando pelo modo como atuavam nas guerras

[…] a propaganda de guerra estimula os aspectos mais poderosos da nossa psiquê, nosso subconsciente, nossos impulsos instintivos. Nos faz propositalmente abandonar a razão, provoca um aumento do tribalismo, do chauvinismo, do sentimento de superioridade moral e da emotividade: todos constituindo motivações poderosas embutidas em nós ao longo de milênios de evolução.

Trecho retirado do artigo “A propaganda de guerra relativa à Ucrânia está se tornando mais militarista, autoritária e irresponsável” escrito pelo jornalista Glenn Greenwald em 27 de fevereiro

O heróico comediante contra o covarde ex-agente da KGB

Título de um artigo publicado em O Globo em 27 de fevereiro em que o jornalista Guga Chacra compara a atuação de Vladimir Putin, o presidente da Rússia, com a de Volodymyr Zelensky, o presidente da Ucrânia

    Prezados leitores, o rufar dos tambores de guerra está no ar. A Rússia comandada por Vladimir Putin invadiu o país que lhe faz fronteira, a Ucrânia. Como retaliação por parte dos países do bloco ocidental, a Rússia foi banida do sistema SWIFT de pagamentos internacionais e da Copa do Mundo de futebol a ser realizada no Qatar em dezembro deste ano. Suas reservas internacionais em euros e dólares foram confiscadas. Não é meu objetivo aqui tecer uma argumentação defendendo um ou outro lado, mesmo porque não tenho a ilusão de convencer ninguém de nada. Apenas quero apontar certas semelhanças e diferenças entre aquilo que fazemos em pleno século XXI e o que faziam os gregos cinco séculos antes da era cristã.

    Em primeiro lugar, somos mais hipócritas em relação à nossa atuação do que eram os gregos, talvez porque tenhamos chegado a uma sofisticação inigualável em termos de racionalizações. Como mostra Will Durant em seu capítulo sobre o modo franco como os atenienses concebiam a guerra, os gregos tinham consciência de que a lei e a justiça se aplicavam somente ao seu grupo. Contra os inimigos valia a força bruta, a imposição da sua vontade por todos os meios necessários de modo a obter a subjugação do outro e obter os espólios de guerra. Nesse sentido, a violência, tal como a descrita por Will Durant – a política de terra arrasada que era prática comum – era o meio para a conquista material. O poder fazia a lei e a lei deveria ser solenemente ignorada quando era um obstáculo à conquista: as tréguas eram frequentemente desrespeitadas, as promessas que uma cidade fazia à outra quebradas, os enviados diplomáticos assassinados. Em suma, a noção de Direito Internacional, de Direito da Guerra, de direitos dos prisioneiros de guerra eram totalmente estranhas aos gregos.

    Quem há de negar que neste sentido evoluímos? Afinal, temos a Organização das Nações Unidas. É verdade que o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU muitas vezes permite que as potências exerçam esse direito para impedir alguma sanção ou colocar algum obstáculo jurídico contra o seu comportamento bélico. Assim ocorreu com os Estados Unidos quando invadiu o Iraque em 2003 e assim está ocorrendo em relação à invasão da Rússia pela Ucrânia: não houve consenso no Conselho de Segurança tanto no passado como no presente devido ao equilíbrio de forças entre os membros. Sob essa perspectiva, o poder está paralisando o Direito, tal como ocorria na Grécia. Por outro lado, é sempre possível convocar uma Assembleia Geral da ONU, em que todos os países possam ser escutados a respeito da solidez da justificativa que está sendo proposta para a guerra. Desse modo, alguma condenação o país invasor sofrerá, o que no mínimo tira a credibilidade da ação militar.

    No entanto, conforme explica Glenn Greenwald em seu artigo, disponível em greenwald.substack.com, há atualmente um consenso que se estabeleceu rapidamente e que pode ser perigoso, por impedir uma reflexão desassombrada sobre o que fazer ante o fato consumado da invasão não provocada pela Rússia da Ucrânia. O consenso, estabelecido na mídia e no establishment político dos Estados Unidos, gira em torno de uma visão maniqueísta dos acontecimentos que estão se desenrolando no Leste Europeu. Vladimir Putin é o homem mal, irracional, louco, o novo Hitler, que atacou gratuitamente um país indefeso. Quem quer que discorde dessa visão é um traidor da pátria, dos valores da liberdade representados pelos Estados Unidos e por isso o país tem a obrigação moral de defender a Ucrânia democrática contra o tirano Putin.

    Greenwald considera isso perigoso porque independentemente da escolha moral que cada indivíduo fizer, seja pelos valores propostos pela Rússia de Putin, seja pelos valores propostos pelo bloco ocidental capitaneado pelos Estados Unidos, essa certeza sobre quem está certo no embate entre o Bem e o Mal obscurece nossa capacidade de pensar. Unidos em um bloco homogêneo em torno do inimigo comum, teremos motivação para enfrentá-lo, mas não teremos lucidez para escolher o melhor caminho a tomar. É producente tornar a Rússia um pária internacional? Resolveremos a situação impondo sanções econômicas que prejudicarão a população de todos os países em termos de alta de preços de alimentos e energia (afinal a Rússia e Ucrânia juntas respondem por 25% das exportações mundiais de trigo e a Rússia é grande fornecedora de gás à Europa)? É justo impor os maiores sacrifícios aos cidadãos comuns que não participam das disputas de poder entre as grandes potências geopolíticas do século XXI? Não é melhor que a negociação diplomática entre em cena e que os dois lados de fato façam concessões recíprocas e cumpram o que prometerem?

    Nesse ambiente de rufar dos tambores, a onipresença das mídias sociais atiça o fogo das paixões. A inteligência artificial embutida em plataformas sediadas nos Estados Unidos, como o Facebook e o Twitter, tem uma capacidade de processamento de informações que lhe permite determinar nossas predileções políticas e assim oferecer a nós, pela aplicação de algoritmos, aquilo que queremos ouvir e ler, i.e. aquilo que reforça nossas convicções, o chamado viés da confirmação. O discurso único em torno da demonização do líder russo e da idealização do líder ucraniano fica assim ainda mais consolidado, em todos os países influenciados pela mídia americana, vide a manchete que abre este primeiro artigo escrita por um jornalista brasileiro em um de nossos principais veículos de informação.

    Prezados leitores, 2022 abre-se como um ano turbulento, em que comparativamente aos gregos de 2500 anos atrás temos uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que temos um Direito Internacional codificado, entre outros documentos, na Carta das Nações Unidas de 1945. Por outro lado, temos veículos como as mídias sociais que permitem o estabelecimento rápido de consensos eficientes que bloqueiam qualquer opinião contrária. Resta esperarmos que nossos pontos fortes sobressaiam e que não acabemos como os gregos destruindo-nos mutuamente em uma versão global da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

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