Símbolos carismáticos

O poder contido nos ritos esvaía-se e o imperador colaborava com isso. Ao se democratizar colocando-se como igual aos demais, a mística do trono, coroa e cetro caía por terra. Em 27 de abril de 1872, ele ordenou ao ministro do império que o beija-mão fosse abolido. D. Pedro II queria civilizar sua corte acabando com rituais antiquados, sem atualizá-los ou substituí-los por outros. Isso esvaziava o poder contido neles. Sem rituais, sem demonstrações de poder da parte do monarca, D. Pedro enfraquecia o poder da Coroa e permitia que se levantassem questões a respeito da necessidade de um imperador que agia como uma pessoa comum.

Trecho retirado do capítulo intitulado “O bom burguês”, no livro “D. Pedro II, A história não contada” de Paulo Rezzutti

Quando a Rainha for velada, seu caixão estará coberto pelo Estandarte Real, como ocorreu em Edimburgo. O estandarte será acompanhado pela Coroa Imperial, que era utilizada uma vez por mês pela Rainha na abertura oficial do Parlamento. A Coroa tem mais de 3.000 pedras preciosas, incluindo safiras, esmeraldas e rubis. A coroa foi feita para a Rainha Vitória em 1838. Ela contém mais de 3.000 pedras preciosas, incluindo 2.700 diamantes. As pedras mais significativas historicamente incluem a safira de Eduardo o Confessor, que foi retirada do anel de coroação de Eduardo. Considerando que Eduardo foi coroado em 1042, é a pedra mais antiga de toda a coleção real.

Trecho retirado de um artigo publicado na versão eletrônica do jornal inglês The Daily Mail, dando detalhes sobre os símbolos da Coroa britânica que estarão presentes nos funerais da Rainha Elizabeth II (1926-2022), morta em 8 de setembro

Mas aqui e no Canadá […] vocês têm as quatro divisões. O Judiciário, o Legislativo, o Executivo e o Simbólico. E a monarquia fica com o peso do simbólico. E isso é muito inteligente, porque o separa da esfera política. E vocês vejam o que acontece nos Estados Unidos. O presidente tende a se transformar no tzar.

Trecho da fala de Jordan Peterson, ex-professor de psicologia na Universidade de Toronto, sobre a morte da Rainha Elizabeth

    Prezados leitores, milhares de pessoas são esperadas em Londres para prestar uma última homenagem à Rainha Elizabeth, morta aos 96 anos de idade. Na segunda-feira haverá o funeral na Catedral de Westminster, com a presença de vários chefes de Estado, inclusive do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Se fôssemos fazer uma comparação com a primeira rainha Elizabeth (1533-1603), Elizabeth II fica bem abaixo. De acordo com Will Durant em seu livro “The Age of Reason Begins”, a primeira falava francês, italiano e inglês fluentemente, além de conseguir conversar em latim e até em grego, e ser especialista na teologia protestante. Elizabeth II não era conhecida pelos seus dotes intelectuais, e seus passatempos prediletos eram montar quebra-cabeça e assistir à televisão tendo como companhia seus cachorros corgi. No reinado de Elizabeth I, a Inglaterra venceu a poderosa Armada em 1588, pondo fim à hegemonia espanhola na Europa que havia durado quase um século, desde a descoberta das América por Cristóvao Colombo, em 1492. No reinado de Elizabeth II, a única vitória da Inglaterra foi contra a pequena Argentina, em 1982, na disputa pelas remotas Ilhas Falkland no Atlântico Sul. No reinado de Elizabeth I, floresceu William Shakespeare (1564-1616), o maior dramaturgo da história da civilização ocidental. Que homem de gênio mostrou suas artes sob Elizabeth II? Nenhum.

    Em que pese as conquistas materiais e intelectuais serem tão diferentes entre as duas Elizabetes, ambas foram glorificadas por serem rainhas. Talvez as pessoas que estão guardando seu lugar na fila há mais de 30 horas nas ruas de Londres queiram simplesmente tirar uma foto do caixão com os símbolos da monarquia britânica, conforme descritos no trecho que abre este artigo. Talvez tenham curiosidade de ver esses símbolos todos reunidos pela primeira vez no ataúde de Elizabeth II. O fato é que a pessoa Elizabeth Alexandra Mary estava tão inextricavelmente ligada a esses apanágios da realeza que, independentemente das qualidades individuais da rainha morta nesta semana, ela se tornou grande e imortal por ter usado a coroa, o cetro e por ter encarnado uma tradição de monarcas que tem mais de 1.000 anos, com a qual os cidadãos do país se identificam e da qual obviamente se orgulham pois, do contrário, não iriam prestar homenagens a quem a simbolizava.

    Uma pena que nosso segundo imperador não tenha dado a devida importância aos rituais e símbolos da monarquia, conforme explica o trecho retirado do livro de Paulo Rezzutti. De acordo com o historiador, esse desleixo de D. Pedro com a simbologia do poder contribuiu em muito para o descrédito da monarquia na população. Afinal, por que dar importância a alguém, chamando-o de Vossa Majestade, que fazia questão de colocar-se no nível de todos? Porque dar-lhe privilégios de moradia em palácio, de deferência, de cargo e remuneração vitalícios se o imperador mesmo achava tudo isso uma bobagem antiquada? De fato, depois de anos agindo como burguês, em 15 de novembro de 1889, D. Pedro II levou um chute no traseiro dado pelos militares, que o escorraçaram junto com sua família, despachando todos dois dias depois em 17 de novembro a bordo de um navio rumo à Europa. Os 49 anos de serviços do imperador-burguês, tolerante com as críticas que lhe fazia a imprensa e cioso do dinheiro público a ponto de gastar quase nada com o aparato da monarquia, de forma que nem as carruagens reais eram reformadas para economizar, só lhe serviram para ser banido definitivamente do Brasil. D. Pedro sofreu resignado essa humilhação, como homem de paz que era, mas não há dúvida de que o modo ingrato como foi tratado corroeu-lhe os últimos dois anos de vida, passados na Europa dos seus antepassados. Quem mandou não se dar ao respeito?

     Assim, temos trajetórias diferentes de dois monarcas: de um lado Elizabeth II, adorada simplesmente por ser símbolo do Reino Unido; e de outro lado, Pedro II, expulso do seu país, entre outras razões, por ter falhado em mostrar, por rituais e símbolos, que ele encarnava a ideia do Brasil de 8 milhões de quilômetros quadrados, criado como nação independente por seus pais, Pedro e Leopoldina. É esse poder do símbolo que Jordan Peterson enfatiza em sua fala de 9 de setembro, reproduzida na abertura deste artigo. O psicólogo canadense ilustra seu ponto contando o episódio em que ele estava em um festival no estado americano de Kentucky e correu o boato que Donald Trump estava chegando. Peterson pôde sentir a energia no ar, o modo como a noticia excitou as pessoas, considerando o carisma do ex-presidente americano. Mas o fato de ser objeto de adoração tem um lado negro: a pessoa fica cercada de aduladores e acaba se desacostumando de ser criticada. Para quem exerce o poder de fato, isso é ruim, porque leva o líder a tomar decisões erradas, baseadas na crença na sua própria infalibilidade.

    Daí a vantagem da cisão dos poderes simbólico e político que ocorre nos regimes monárquicos: a adulação, a mística tem como foco o monarca, que não precisa tomar as decisões corretas sobre políticas públicas, não precisa ter qualidades excepcionais, mas apenas ser o elo de ligação entre as gerações passadas e as gerações futuras, simbolizando o país cuja história atravessa séculos; o poder  político fica com o líder que não precisa ter carisma, não precisa ser símbolo de nada, não precisa inspirar os sonhos e as esperanças de ninguém porque ele não encarna o Estado, mas é simplesmente o funcionário encarregado no momento da administração dos negócios públicos.

    Prezados leitores, é tarde demais para nós brasileiros voltarmos ao regime monárquico, porque uma vez quebrado o encanto da continuidade da tradição, ele não pode ser reinstaurado. Mas talvez se tivéssemos nos transformado em uma monarquia constitucional, não estaríamos agora às vésperas de elegermos um líder carismático, no qual projetamos expectativas exageradas e que certamente nos decepcionará, seja ele de direita ou de esquerda. Estaríamos de quando em quando enterrando nossos imperadores e imperatrizes, coroando-os e utilizando essas cerimônias como momentos de catarse coletiva, como estão fazendo agora os britânicos, sem precisarmos fazer das eleições de líderes do poder político um momento de ajuste de contas do bem contra o mal, com todos os perigos que isso traz à nossa democracia.

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Ressalvas democráticas

Se a estrutura básica é injusta, esses princípios [o princípio da diferença e o princípio da eficiência] autorizarão mudanças que poderão diminuir as expectativas de alguns dos membros das classes mais abastadas; então, a concepção democrática não é consistente com o princípio da eficiência se esse princípio é interpretado como significando que somente mudanças que melhoram a situação de todos são permitidas.

Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

O que o país gasta com educação era para ter um aprendizado muito melhor, a mesma coisa no saneamento, infraestrutura. Há um descuido muito grande, não só com a gestão, mas também com o resultado da política pública. Como se apenas realizar o gasto fosse necessário.

Trecho de uma entrevista dada pelo economista Marcos Lisboa, ex-secretário de política econômica e atual diretor-presidente do INSPER ao jornal O Globo e publicada em 4 de setembro

Quanto à Abolição, as iniciativas do imperador no sentido de extinguir gradualmente o sistema escravista provocaram fortes ressentimentos entre proprietários rurais, e não só entre eles. Os fazendeiros de café do Vale do Paraíba desiludiram-se do Império, de quem esperavam uma atitude de defesa de seus interesses. Com isso, o regime perdeu sua principal base social de apoio.

Trecho retirado do livro “História do Brasil”, do historiador e cientista político Boris Fausto (1930-

    Prezados leitores, na semana passada eu introduzi a vocês a concepção político-filosófica de John Rawls, associando-a ao liberalismo e à eficiência de Pareto. Para ilustrar meu ponto, eu falei do PROUNI, que democratizou o ensino superior, mas não proporcionou ao país os profissionais com as habilidades necessárias nas ciências exatas para podermos dar um salto de crescimento econômico pelo estímulo à inovação e ao ganho de produtividade resultante. Meu parecer foi de que o PROUNI não é eficiente, pois ele melhora o lado dos que nunca teriam frequentado uma universidade se não tivessem recebido a ajuda financeira do governo e piora o lado dos que arcam com os custos pagando impostos, porque a sociedade toda financia um programa que não proporciona o aprimoramento da qualidade na formação dos nossos recursos humanos. Em suma, é mais um item da carteira populista do Partido dos Trabalhadores.

    Essa dimensão da falta de eficiência das políticas públicas é enfatizada por Marcos Lisboa, conforme o trecho que abre este artigo. O governo investe em programas e depois não avalia os resultados concretos deles, o que para o diretor-presidente do INSPER contribui para manter o Brasil “na armadilha de baixo crescimento há quatro décadas”.  Até aqui tudo o que eu lhes trouxe corrobora minha interpretação liberal do que John Rawls quis dizer ao falar de justiça. No entanto, é preciso fazer certas ressalvas a esse quadro liberal que eu pintei do pensamento do filósofo americano, pois do contrário eu estaria deturpando-o. Eu o farei explicando o lado negro da eficiência paretiana, para o qual Rawls chama a atenção dos leitores de modo a modular seu liberalismo.

    Conforme ele explica na seção “O Princípio da Eficiência”, supondo uma sociedade em que haja a instituição da servidão – diga-se de passagem, algo análogo ao que tivemos no Brasil durante os 388 primeiros anos de nossa existência –, caso houvesse a abolição da servidão por decisão política, tal abolição certamente prejudicaria os interesses dos proprietários rurais e do ponto de vista de Pareto seria ineficiente, pois seria um jogo de soma zero, em que o benefício de um grupo seria contrabalançado pelo malefício causado a outro. Tal situação foi exemplificada em nosso país ao final do século XIX, conforme o trecho no início deste artigo: a abolição da escravidão sem indenização aos proprietários rurais os fez ter prejuízos financeiros e foi um dos fatores que contribuíram para a queda da Monarquia e a instauração da República, em 1889.

    Em que pese ter havido perdedores com a libertação dos escravos em 1888, a saber latifundiários e a família real brasileira, será que a aplicação pura e simples do princípio da eficiência serve para estabelecer o que é justo em uma sociedade? Daí por que, conforme o trecho retirado de “Uma Teoria da Justiça” citado acima, Rawls refuta a ideia de que só pode ser justo aquilo que é eficiente, isto é, aquilo que melhora as condições para todo mundo. Pois haverá sociedades em que o acesso aos bens sociais básicos – em termos gerais direitos, liberdades, oportunidades, renda e patrimônio – é tão discrepante que é preciso uma modulação que leva a uma concepção democrática da justiça. Essa modulação estabelece que só poderão ser toleradas a distribuição desigual e não igualitária dos recursos, levando à existência de classes sociais, e a aplicação do princípio da eficiência, caso isso sempre leve a que os grupos com menos acesso aos bens sociais possam gozar dos maiores benefícios possíveis. Assim, será justa uma medida que beneficie as camadas mais pobres da sociedade apenas pelo fato de ela diminuir as diferenças de acesso aos bens sociais.

    Sob essa perspectiva, um programa como o PROUNI certamente não é eficiente, pois ele não promove a qualidade e não promove o mérito. Nenhuma aferição objetiva do conhecimento adquirido é realizada e as universidades privadas que gozam do benefício das mensalidades pagas pelo governo têm todo o interesse em facilitar a vida do aluno de modo que ele possa cumprir os quatro anos regulares. No entanto, à luz da justiça democrática de Rawls, uma sociedade não pode ser baseada só na recompensa ao talento e ao mérito, pois eles dependem de fatores acidentais que fogem ao controle humano e social e jamais poderão ser distribuídos de maneira igual a todos os membros da sociedade, de modo a criar um ambiente de competição em igualdade de condições entre todos os membros da sociedade. Há pessoas mais inteligentes que outras, há pessoas com melhor estrutura familiar, há pessoas não sujeitas a vícios ou a doenças e a recompensa ao mérito só reforça desigualdades estruturais. A sociedade deve também proporcionar aos cidadãos autorrealização, independentemente das vantagens competitivas de cada um na luta pelos bens sociais.

    Prezados leitores, fica aqui feita minha ressalva democrática, para o bem da honestidade intelectual: a concepção de justiça de Rawls não é liberal, mas democrática. O PROUNI pode não nos dar os engenheiros de que precisamos, mas ele proporciona um diploma universitário a pessoas que com ele conseguem realizar o sonho de ser “doutores” e “doutoras”. E oferecer a oportunidade de autorrealização a pessoas que não teriam acesso a ela por outras vias mais eficientes é um objetivo democrático que deve ser perseguido pela sociedade, à luz das lições de Rawls.

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Pareto e o PROUNI

Existe uma percepção, principalmente de grupos sociais emergentes, de que ter um diploma é uma maneira de ascender socialmente. Não há nada de errado com isso, inclusive é natural que se pense assim, pois o próprio mercado de trabalho pressiona por mais qualificação. Quem não tem o ensino médio dificilmente consegue ocupação. Porém essa é uma visão credencialista da educação e nem sempre obter uma credencial corresponde à efetiva aquisição de habilidades, competências e saberes equivalentes ao grau conquistado. O que vemos hoje no Brasil é uma inflação dessas credenciais educacionais sem lastro. […] Acho que o papel do governo seria garantir que, para obter qualquer diploma, o aluno teria necessariamente de demonstrar publicamente que houve aquisição das competências, dos conhecimentos e das habilidades correspondentes.

Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Eduardo Gianetti da Fonseca a Paola Gentile e publicada em 30 de maio de 2015

As pessoas se esquecem que nós espalhamos universidades por esse país afora. E vou dizer uma coisa pra você: o Prouni foi a maior revolução educacional que a gente fez nesse país. Milhões de meninos da periferia, meninos negros e negras que estudavam em escola pública tiveram a oportunidade de primeira vez fazer uma universidade que era privilégio de rico. Era privilégio da classe média alta. Aliás, Ciro, você sabe perfeitamente bem que esse país é tão contra a educação que o Peru teve a sua primeira universidade em 1554, e a nossa primeira foi em 1920. Ou seja, a elite brasileira nunca se preocupa a educar. Precisou um metalúrgico sem diploma cuidar disso.

Trecho retirado da fala do candidato Luiz Ignácio Lula da Silva no debate presidencial ocorrido em 28 de agosto´

 

A distribuição da riqueza e da renda, e as posições de autoridade e responsabilidade devem ser consistentes com as liberdades básicas e com a igualdade de oportunidade. Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, a não ser que a distribuição desigual de alguns desses valores ou de todos eles, seja vantajosa para todos.

Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, em seu livro Uma Teoria da Justiça, John Rawls busca chegar a um conceito de justiça tomando como premissas dois conceitos de igualdade: o de que todos terão a oportunidade de chegar a posições destacadas na hierarquia social, sem haver nenhuma restrição relativa à raça, à origem étnica ou social do indivíduo, e o de que as carreiras estarão abertas a pessoas de talento. Além disso, ele assume que os membros da sociedade usufruem das liberdades naturais, a saber, a liberdade de religião, de manifestação do pensamento, de associação, de opinião.

    O percurso que John Rawls estabelece para chegar à ideia do que é justo, considerando que os homens são livres para se esforçar e concretizar seus talentos, é dividido em duas etapas. De início, há uma estrutura básica em que os bens da sociedade são distribuídos igualitariamente: as pessoas têm direitos e obrigações, renda e patrimônio iguais. Tal estrutura básica serve como ponto de referência para julgar melhorias na estrutura social e avaliar se ela é justa ou injusta. No âmbito da estrutura liberal explicada no parágrafo anterior, como justificar as diferenças na distribuição dos bens que podem surgir quando se abandona esse estágio de igualdade total? John Rawls estabelece uma proibição e um mandato.

    A proibição consiste em que as diferenças nas posições de autoridade e responsabilidade, e na quantidade de renda e riqueza possuída, não podem ser justificadas sob o argumento de que as desvantagens de um grupo social são compensadas pelas vantagens maiores angariadas por outro grupo social. Conforme o trecho que abre este artigo, o mandato de concretização da justiça consiste em organizar a sociedade de forma que mesmo que haja uma distribuição desigual dos recursos, essa distribuição seja vantajosa para todos os membros da sociedade, porque o ambiente de liberdade e de igualdade de oportunidades oferece boas perspectivas para todos.

    Sob essa perspectiva, para evitar o jogo de soma zero, em que o ganho de um é compensado pela perda do outro e estimular uma situação em que todos ganham, a formulação do conceito de justiça liberal proposto por John Rawls requer a aplicação de um princípio fundamental na economia, qual seja o princípio da eficiência, proposto pelo economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) segundo o qual um arranjo é eficiente quando é impossível modificá-lo de forma a tornar a vida de pelo menos uma pessoa melhor sem que ao mesmo tempo a situação de outra pessoa seja tornada pior. Meu objetivo a partir desse ponto é analisar as conquistas educacionais propaladas pelo candidato à presidência Lula, conforme explicadas no trecho que abre este humilde artigo, à luz desse princípio e das ideais de Rawls.

    Não há dúvida de que o acesso ao ensino superior foi grandemente facilitado por meio do PROUNI, o Programa de Universidade para Todos, criado em 2005, que fornece bolsas de estudo integrais ou parciais em instituições de ensino privadas de todo o Brasil para estudantes cuja renda familiar é de até um salário mínimo e meio por pessoa. Durante os dois mandatos de Lula na presidência, de acordo com a União Nacional dos Estudantes, mais de 1 milhão e duzentas mil pessoas foram atendidas. Esses dados permitem-nos dizer que Lula não mentiu no debate de 28 de agosto quando disse que seu governo democratizou o acesso à universidade, permitindo a estudantes de escola pública, tradicionalmente alijados do ensino superior por não conseguirem ser aprovados nos exames de admissão às universidades públicas, conseguirem seu diploma. A pergunta que se coloca é: essa concessão mais fácil de diplomas, viabilizada pela frequência a instituições privadas, foi eficiente do ponto de vista paretiano?

    Se ouvirmos os comentários de Eduardo Gianetti da Fonseca citados acima, os diplomas universitários concedidos aos membros das “classes emergentes” não foram benéficos para todos. Os diplomados podem ter realizado o sonho de ser doutores, mas quanto às habilidades e conhecimentos que pudessem ser usados para a realização de atividades econômicas produtivas, o PROUNI deixou a dever e seria tarefa do governo exigir, em contrapartida à benesse do financiamento dos estudos, que o aluno demonstrasse ter de fato aprendido alguma coisa que o tornasse um recurso humano valioso. E a necessidade de tais recursos é premente no Brasil. De acordo com Roberto Leal Lobo e Silva, citado no artigo “Engenharia em construção”, publicado na edição da revista FAPESP de março de 2022, na segunda metade dos anos 2000, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento, havia o temor de que se o país continuasse a crescer 4% ao ano, não haveria engenheiros suficientes para dar conta da demanda de profissionais que atuassem entre outras, nas obras de infraestrutura que então estavam a todo vapor, embaladas pelo dinheiro proporcionado pelo boom das commodities.

    Como sabemos, o apagão foi evitado não porque houve um esforço para a formação dos profissionais de que o Brasil necessitava, mas simplesmente porque o crescimento econômico diminuiu muito: o pico de aumento do PIB obtido em 2010, de 7,5%, jamais foi atingido depois, e a última vez em que tivemos 4% de aumento no PIB foi em 2011.  Quanto à formação dos profissionais que poderiam satisfazer a demanda gerada pela expansão das atividades econômicas, ela definitivamente ficou para as calendas. Para citar novamente o artigo da revista FAPESP: “Em 2019, segundo o último Censo da Educação Superior no Brasil, os cursos de engenharia, produção e construção registraram 1.225,243 novas matrículas: 869.781 na rede privada e 355.462 na rede pública.” Em estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria, cobrindo o período de 2001 a 2011, a média de evasão ficou em mais de 60% nos cursos pagos e passou de 40% nas instituições públicas.

    Em suma, o PROUNI permitiu que os “meninos da periferia”, conforme a definição de Lula, conquistassem o direito ao ensino superior, mas a conquista desse direito ficou longe de proporcionar os engenheiros de que o país precisa para inovar e empreender e assim gerar valor. O foco na concessão de direitos sem contrapartidas em termos de demonstração de conhecimento por parte dos alunos fez com que o PROUNI não oferecesse o salto de qualidade na educação que é um dos requisitos para que nossa economia seja mais produtiva e assim cresça de maneira sustentável. Nesse sentido, a democratização do ensino sem critérios de avaliação é ineficiente e portanto injusta, à luz da ordem liberal proposta por Rawls.

    Prezados leitores, quando assistirem ao próximo debate dos presidenciáveis e ouvirem as propostas dos candidatos, tentem analisar seu custo-benefício não do ponto de vista estritamente monetário do quanto custa, mas do ponto de vista dos benefícios que elas trazem a todos os membros da sociedade. Tenho certeza que em assim fazendo derrubarão muitos véus de mistificação colocados pela retórica populista tão em voga na nossa democracia.

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O Grilo Falante

A teoria geocêntrica tinha se encaixado razoavelmente bem em uma teologia que supunha que todas as coisas tinham sido criadas para uso do homem. Mas agora os homens se sentiam jogados de lá para cá em um planeta menor cuja história estava sendo reduzida a “uma mera notícia local do universo”. […] Só havia uma única proteção contra tais homens, e era que somente uma pequena minoria em uma geração reconheceria as implicações do seu pensamento. O sol irá “levantar-se” e “pôr-se” quando Copérnico tiver sido esquecido.

Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

As pessoas dão ouvidos a um astrólogo arrivista que se esforçou para mostrar que a Terra gira, não os céus ou o firmamento, o Sol e a Lua … Esse imbecil quer colocar de cabeça para baixo todo o esquema da astronomia; mas as Sagradas Escrituras nos dizem que Javé mandou que o Sol permanecesse parado, não a Terra.

Comentário de Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e um dos líderes da Reforma Protestante, sobre Nicolau Copérnico

O candidato pelo PDT, Ciro Gomes, afirmou que quer vencer a eleição para poder discutir o modelo econômico. “Esta é a razão pela qual eu, pela quarta vez, tento ser presidente do Brasil. Claro que desta vez chega. Porque se eu não ganho agora, vou botar a viola no saco, porque eu virei o grilo falante, o chato, o destemperado, porque falo números” – afirmou.

Trecho retirado do artigo “50s de propaganda na TV e o adeus melancólico do ‘grilo falante’, citando a fala do candidato à Presidência, Ciro Gomes, na entrevista dada ao programa Roda Viva de 15 de agosto

    Prezados leitores, no artigo “A revolução dos astros e dos filósofos” eu abordei a teoria heliocêntrica do astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543) para exemplificar o modo pelo qual ocorrem as mudanças nos paradigmas científicos, de acordo com o filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996). O astrônomo polonês não fez grandes observações astronômicas, mesmo porque ele não tinha telescópio, tendo se valido em grande parte das observações de Cláudio Ptolomeu (90-168) de Alexandria, cuja teoria geocêntrica era a que então vigia. Assim, o que fez a comunidade científica ao final aceitar a substituição do sistema ptolemaico não foi um acúmulo de constatações experimentais que levaram gradual e certamente ao sistema copernicano. Na verdade, foi preciso que a comunidade científica se deixasse convencer de que a hipótese de que a Terra girava em torno do Sol salvava melhor as aparências, isto é, explicava melhor os fenômenos naturais de maneira mais simples do que o sistema de Ptolomeu, e era mais útil, pois permitia um melhor cálculo da duração do ano.

    Assim a teoria heliocêntrica foi adotada amplamente, abrindo os caminhos que seriam trilhados por Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727). Além disso, conforme a descrição que Will Durant faz das contribuições de Nicolau Copérnico à ciência e que abrem este artigo, a mudança de paradigmas deu-se também na dimensão filosófica e teológica. Se a Terra era apenas o quarto dos planetas que completavam uma órbita em torno do sol em um tempo relativamente curto, em comparação com os 30 anos de Saturno ou os 12 anos de Júpiter, como acreditar que Deus tinha enviado seu Filho, Jesus Cristo, para morrer neste planeta medíocre? Se a Terra não era o centro do mundo, ficava mais difícil continuar a conceber Deus da maneira provinciana e antropomórfica que a religião cristã preconizava.

    É nesse sentido que Will Durant considera que o sistema de Copérnico teve uma influência muito mais revolucionária do que a Reforma Protestante. Nos séculos XV e XVI as disputas entre católicos e protestantes giravam em torno de questões bizantinas, como por exemplo se o corpo e o sangue de Jesus Cristo estavam de fato presentes na hóstia ou se o homem tem livre arbítrio para decidir entre o bem ou o mal ou se já está predestinado a arder no Inferno ou a usufruir da graça de Deus. Nenhum debate a respeito delas poderia chegar a uma conclusão que fosse aceita por todos, porque não era possível estabelecer um meio de verificação das proposições que não fosse pela referência às próprias premissas dos argumentos defendidos, e tais premissas eram violentamente contestadas. Sob uma perspectiva histórica, as discussões teológicas que absorviam tantos homens de intelecto não contribuíram em nada para o salto intelectual dado pelo Homem Ocidental rumo à investigação desassombrada da Natureza. Afinal, como mostra o comentário de Martinho Lutero sobre Copérnico que abre este artigo, a ciência não era a preocupação central dos homens que defendiam ardentemente a reforma do cristianismo corrompido pelo poder e pela riqueza da Igreja Católica. A ênfase deles nas Escrituras, como textos inspirados diretamente pelo Espírito Santo, as alçavam acima de qualquer teoria que tentasse explicar os mecanismos do Universo. Onde as teorias se chocassem com a literalidade da Bíblia, esta tinha a palavra final, pois ela era a palavra de Deus.

    Ao colocar o Homem como habitante de um pequeno planeta que faz parte de um Cosmos muito maior, a revolução de Copérnico abriu as portas, para aqueles que conseguiram ver suas implicações, ao Iluminismo do século XVIII e ao agnosticismo do século XIX. À pequena elite pensante não era mais possível aceitar o conteúdo proposicional da religião cristã, isto é, o que ela, inspirada pelas narrativas bíblicas, dizia a respeito da criação do Mundo e do Homem. Por outro lado, para a maior parte do povo que nunca leu “De revolutionibus orbium coelestium”, o Sol continuava a nascer e a morrer e Nicolau Copérnico foi apenas mais um homem que do pó viera e ao pó retornou, em 24 de maio de 1543, no mesmo dia em que viu uma cópia impressa de sua obra-prima.

    A discrepância entre o impacto daquilo que Nicolau Copérnico pensou e escreveu sobre o desenvolvimento da ciência e sobre as crenças da maioria das pessoas nos faz lembrar da figura do grilo falante, o companheiro de Pinóquio no desenho animado que funciona como uma espécie de consciência moral do boneco: o grilo falante continua a falar porque é seu dever alertar seu amigo sobre os perigos do seu comportamento. Se todos tivessem atentado para as lições de Copérnico, as autoridades religiosas teriam se limitado a ponderar sobre a ética e a moral e se absteriam de considerar a Bíblia como fonte de conhecimentos sobre a física e a biologia, como fizeram para confrontar Galileu, Giordano Bruno (1548-1600) e Charles Darwin (1809-1882). Ao final, esse comportamento revelou-se fatal para a religião cristã, que perdeu a credibilidade intelectual por insistir em confrontar seu conteúdo proposicional ao da ciência e acabou com isso perdendo autoridade para ditar normas às pessoas sobre como se comportar umas com as outras para que a sociedade pudesse funcionar de maneira civilizada.

    Prezados leitores, à luz dessa descrição da dimensão profética do grilo falante, não é pertinente a descrição que Ciro Gomes faz de si mesmo, em tom jocoso, nessas eleições, conforme mostrada na abertura deste artigo? Num ambiente em que um dos principais acontecimentos da campanha até agora foi o comparecimento de Lula a um culto africano, considerado demoníaco pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, detalhar propostas sobre como criar empregos, aumentar investimentos públicos, atacar o déficit fiscal, financiar a previdência não é bancar o grilo falante? Algum eleitor quer saber disso? Algum eleitor acha isso relevante o suficiente para determinar seu voto? Ou queremos só ver vídeos e memes de desqualificação mútua dos candidatos?

    Em 1581, foi erguido um monumento em homenagem a Copérnico na Catedral de Frauenburg, que em 1746 foi removido para dar lugar à estátua de um bispo. Talvez um dia, no Brasil, façamos uma homenagem ao nosso grilo falante que falava sobre assuntos prementes que precisavam ser resolvidos para que pudéssemos evitar mais desastre social e econômico. Ou então nem essa singela lembrança ele terá. A esperança é que suas ideias, em que pesem não significarem nada para a maioria dos eleitores, possam influenciar alguns poucos que pensam sobre os rumos do país, chacoalhado pelos radicalismos.

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Você decide

Em suma, caso um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado deste o início por pessoas objetivas que examinassem somente a capacidade relativa de solução de problemas, as ciências passariam por muito poucas grandes revoluções. […] O homem que adota um novo paradigma logo no início frequentemente o faz a despeito das evidências proporcionadas pela solução de problemas. Ele deve, isso sim, ter fé que o novo paradigma será bem-sucedido com os muitos problemas que o confrontam, sabendo somente que o paradigma mais antigo falhou na solução de uns poucos problemas.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

Foto retirada pelo site UOL de um prédio no Rio Grande do Sul.

    Prezados leitores, nas duas últimas semanas eu tenho aproveitado as lições de Thomas Kuhn sobre como a ciência se desenrola na prática para fazer uma analogia com o processo democrático. A razão de eu ter traçado tal paralelo é que, conforme expliquei no artigo “Circularidades”, o próprio autor faz uso do conceito de revolução da ciência política para explicar a revolução na prática científica: tanto na política quanto na ciência, ocorre a introdução de uma nova ordem que assenta sobre princípios totalmente diferentes dos da ordem antiga, tornando-as incompatíveis e inviabilizando que elas coexistam.  Nesta semana, meu objetivo é explorar o modo como à luz da “A Estrutura das Revoluções Científicas”, a nova ordem é estabelecida, isto é, como os novos paradigmas se introduzem na comunidade científica e se impõem como consenso. Novamente, seguirei a trilha de me utilizar dos conceitos de Kuhn para iluminar o momento político pelo qual o Brasil passa.

    Até que o novo paradigma atinja o status de estrutura conceitual amplamente aceita que permita aos cientistas praticarem a ciência normal, é preciso que haja um movimento de adoção por parte de cientistas normalmente mais novos e não tão adeptos dos paradigmas da ciência normal, porque desprovidos da experiência dos cientistas veteranos em fazer uso da estrutura vigente para produzir resultados. Essa falta de apego ao consenso vigente faz com que esses revolucionários estejam mais dispostos a adotar abordagens disruptivas para dar conta das anomalias que a ciência normal não consegue resolver. No entanto, essa disrupção não é uma opção clara e por isso, é cheia de perigos.

    Conforme explica Kuhn no trecho que abre este artigo, o caminho da disrupção é perigoso porque não há critérios objetivos que permitam decidir de maneira unívoca em prol de um paradigma em detrimento de outro. Isso porque raramente ocorre de o novo paradigma resolver muito mais problemas do que o paradigma antigo. Ao contrário, apesar de ele ter sido pensado como uma resposta aos problemas criados pelo paradigma antigo, o novo paradigma frequentemente resolve alguns problemas e cria outros, os quais eram mais bem tratados pelo paradigma antigo e, portanto, sua utilidade não é flagrante desde o primeiro momento. Kuhn fornece o exemplo da teoria de Newton para ilustrar esse ponto: ela foi rejeitada por muitos porque colocava a gravidade como uma força de atração entre partículas de matéria sem tentar explicar a razão de tal atração, como haviam feito Aristóteles e Descartes antes dele. Newton tornava assim a gravidade um conceito metafísico: ela existia e pronto, não havia na estrutura da física Newtoniana espaço para questionamentos sobre o porquê de ela existir.

    Em última análise, a adoção de um novo paradigma é uma questão de fé: o proponente da revolução crê que no longo prazo ela dará frutos em termos de solução de problemas, mesmo que no momento em que ela é proposta não haja como escolhê-la com base em sua eficiência ou o grau de aproximação da verdade que ela traz. Aliás, nenhum cientista adota um paradigma em seus estágios iniciais porque ele considera que assim a verdade estará mais próxima, afinal tal alegação, segundo Kuhn, está fora do escopo de questões científicas válidas. O que é pertinente questionar a respeito de um novo conjunto de paradigmas é se, passado algum tempo de sua adoção, ele foi capaz de ser útil, isto é, se ele foi capaz de estruturar a operação da ciência normal, aquela, que faz medições e consegue fazer previsões corretas a respeito do que ocorrerá no mundo dos fenômenos, aquela que estabelece padrões de ocorrência e melhor ainda aquela que consegue, baseando-se nos novos paradigmas, revelar fenômenos inesperados que iluminam uma nova faceta da realidade jamais prevista antes.

    Daí porque podemos dizer que o percurso de um conjunto de paradigmas até ele se transformar em consenso aceito e utilizado pela comunidade científica para fazer ciência requer um movimento de coragem da parte dos que, não tendo sólidas bases para defender sua adoção, mesmo assim o fazem por acreditarem que a nova estrutura conceitual revelará suas qualidades epistemológicas no longo prazo. É neste ponto que traço o paralelo entre os paradigmas científicos e os paradigmas políticos, por meio da foto que abre este humilde artigo. Ela mostra à esquerda o paradigma do que é considerado como posições ideológicas da direita, e mostra à direita o paradigma da esquerda, tal como ela se apresenta atualmente no Brasil na visão dos que se colocam à direita no espectro político.  E convida o leitor a decidir entre um paradigma e outro, entre o verde e amarelo dos patriotas e o vermelho dos comunistas, cujo símbolo tradicional são a foice e o martelo.

    Será que devemos lamentar que as eleições presidenciais de 2022 tenham chegado a esse estágio de polarização? Se é para decidir, significa que a resposta à pergunta que eu coloquei na semana passada – sobre em que estágio do esquema de Kuhn estamos em nosso processo político – já tem resposta. Não temos consenso nenhum que nos permita operar na mesma estrutura conceitual. No mundo da ciência isso significa que a produção científica emperra: nada é mensurado, previsto ou descoberto. No mundo da política, isso significa que as políticas públicas emperram: não são formuladas porque não há premissas sobre as quais elas possam ser criadas. Um exemplo gritante disso é na área da educação: enquanto ainda não decidimos se queremos ou não que a escola aborde temas como multiplicidade de gêneros, diferenças entre sexo e gênero, o papel da religião na escola, o papel dos pais no conteúdo curricular, a validade do ensino em casa, não temos como unir esforços para estabelecer e implementar os melhores métodos de ensinar a ler, a entender um texto, a compreender conceitos matemáticos e a colocá-los em prática.

    Já que é inquestionável que estamos em um momento de grande falta de consenso e de disputa entre paradigmas, uma nova questão se coloca: como resolveremos a disputa dos paradigmas políticos? Denunciando-os como uma mera disputa ideológica que faz nós perdermos tempo que poderia ser mais bem utilizado pelo foco na solução dos problemas práticos da população – como gerar emprego, como diminuir os juros, como melhorar os serviços públicos? Ou tornando a decisão sobre que paradigma adotar algo fundamental para que possamos passar às questões que afetam a vida cotidiana dos cidadãos? Se adotarmos a segunda opção, como introduziremos o novo paradigma: pela força da convicção dos revolucionários, tal como ocorreu ao longo da história da ciência? Ou pelo voto da maioria dos eleitores, que em outubro de 2022 terão de escolher o lado esquerdo ou o lado direito da empena do edifício gaúcho? Você decide.

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