Sobre cardeais e banqueiros

Ela havia começado com a profunda sinceridade e a devoção de Pedro e Paulo; ela cresceu como um sistema majestoso de disciplina, ordem e moralidade familiar, escolástica, social e internacional; agora ela estava degenerando em um interesse arraigado, absorvido na autoperpetuação e no autofinanciamento. […] Os cardeais eram escolhidos raramente por sua devoção, normalmente por causa da sua riqueza ou conexões políticas ou capacidade administrativa; eles viam-se a si mesmos não como monges que carregavam o ônus dos votos, mas como senadores e diplomatas de um estado rico e poderoso; em muitos casos eles não eram padres; e eles não deixavam que seu chapéu vermelho impedisse que desfrutassem a vida. A Igreja esqueceu a pobreza dos Apóstolos diante das necessidades e das despesas do poder.

Trecho descrevendo a Igreja Católica no século XIV retirado do livro “A Reforma” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981)

O Sr. Macron também às vezes afasta os eleitores com seu jeito indiferente e jupiteriano. Os críticos o denominam “o presidente dos ricos”. A alcunha cola, em parte porque ele cortou o impraticável imposto sobre a riqueza na França, mas em grande parte porque seu estilo é o do banqueiro pretensioso e ambicioso que ele era.

Trecho retirado do artigo “Por que Macron importa”, publicado na edição de 9 de abril da revista The Economist

    Prezados leitores, o que têm em comum a elite financeira global que dá as cartas no Ocidente neste início do século XXI e os príncipes da Igreja do século XIV, às vésperas da Reforma Protestante? Meu objetivo nesta semana é traçar alguns paralelos com as figuras cosmopolitas e poderosas de antes com as de agora, valendo-me da descrição que Will Durant faz do estado lamentável em que se encontrava a Igreja Católica quando começaram as críticas de intelectuais, devotos católicos e reis europeus que culminaram no cisma da Igreja no Ocidente, com o surgimento da Igreja Anglicana, da Igreja Calvinista e da Igreja Luterana no início da Idade Moderna.

    Em seu livro, A Reforma, que trata da história da civilização europeia fora da Itália no período entre 1300 e 1564,  Will Durant descreve a transformação por que passou a Igreja Católica, conforme o trecho que abre este artigo: uma instituição que foi fundada na ética dos apóstolos que seguiram os preceitos de Cristo e sacrificaram sua vida em prol deles chegou ao auge no século XI, quando desempenhava funções essenciais à sociedade: era a fonte da moral, permitindo a manutenção da ordem social, era a fonte do direito internacional, resolvendo em última instância disputas entre os soberanos europeus e era fonte de cultura, pois suas escolas formavam a elite intelectual que governava os países e os intelectuais católicos tiveram papel fundamental na preservação do legado da Antiguidade Clássica. À guisa de exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274), doutor da Igreja, utilizou a filosofia aristotélica para criar seu próprio sistema fundado no dogma cristão e elaborar seus cinco argumentos provando a existência de Deus. Em assim fazendo garantiu o predomínio da filosofia de Aristóteles no Ocidente de maneira completa e permanente até o advento do Humanismo no século XIV.

    Dotada do poder de ditar as normas éticas, as normas jurídicas e a maneira de pensar das pessoas, a Igreja Católica foi acumulando ao longo da Idade Média uma influência muito grande em todas as áreas que acabou levando-a por caminhos dúbios, pois como diz Durant, a proposta espiritual da instituição religiosa esbarrou na natureza dos homens que a administravam e que acabaram inebriados pelo poder que pertencer à Igreja lhes dava. O modo como os cardeais eram escolhidos e como se comportavam era emblemático a esse respeito: o que se procurava no indivíduo convocado a ser príncipe da Igreja não era sua devoção sincera aos preceitos de Cristo, mas sua capacidade de transitar bem no mundo das cortes europeias, celebrando alianças, negociando acordos de trégua e até comandando expedições militares financiadas pelas exações impostas pela Igreja aos fiéis. Cesare Borgia (1475-1507), foi nomeado cardeal aos 18 anos e ajudou seu pai, o Papa Alexandre VI (1431-1503), a aumentar a área dos Estados Papais, obtendo vitórias na Romanha, na península itálica. Enfim, a tarefa de um cardeal não era guiar seu rebanho rumo a uma vida de imitação de Cristo, mas a de agir para aumentar o poder da Igreja de forma que como instituição internacional que era, sua capacidade de ditar o rumo dos acontecimentos estivesse sempre acima daquela dos soberanos europeus.

    Assim, cultivando cardeais que benziam canhões e usufruíam da boa vida que a posição no topo da hierarquia católica lhes dava, a Igreja foi acumulando contra si ressentimentos. Ressentimento dos governantes do Norte da Europa, que viam que o dinheiro arrecadado ia todo para Roma e nada ficava nas Igrejas locais, sendo usado pelos papas para financiar suas ambições territoriais; ressentimento dos católicos devotos que se indignavam com o luxo e a vida de prazeres e lassidão moral vivida pela alta hierarquia da Igreja; ressentimento de filósofos como Guilherme de Ockham (1285-1347), que considerava que a Igreja não era o clero, mas a comunidade dos fiéis, e que esta comunidade tinha o poder soberano de delegar sua autoridade para um conselho geral de bispos e abades que escolheria, puniria ou deporia o papa.

    Esse acúmulo de ressentimentos ao longo de séculos diante dos abusos perpetrados pela Igreja Católica culminou com a Reforma do século XVI, o que abalou a instituição internacional que fundamentava seu poder político na autoridade moral e espiritual conferida por Jesus Cristo a Pedro, o primeiro papa. O surgimento de igrejas cristãs nacionais submetidas ao poder secular do governo dos respectivos países privou a Igreja Católica da sua primazia no Direito Internacional, pois o reconhecimento da soberania do governante local dava-lhe o poder discricionário de recusar a interferência da Igreja nas disputas entre Estados. Desse modo, a Reforma enfraqueceu a atuação supranacional da Igreja, privando-lhe do poder, exercido pelos seus príncipes, de ditar regras a todos e de impor consensos.

    É neste ponto que pretendo traçar um paralelo entre os agentes do internacionalismo no século XIV, conforme descritos por Durant, e os agentes do internacionalismo no século XXI, que atualmente não são os cardeais com seu chapéu púrpura, mas os banqueiros vestidos de ternos bem cortados como Emmanuel Macron, o presidente da França reeleito no dia 24 de abril que, antes de tornar-se político fez fortuna trabalhando na filial francesa do Banco Rothschild. Na qualidade de sócio do Rothschild, Macron foi responsável, entre outras operações societárias, pela aquisição bem-sucedida de uma filial da Pfizer pela Nestlé em 2012, no valor de 12 bilhões de euros.

    Macron, portanto, é um homem que transita bem nas altas esferas do poder das multinacionais e não é de admirar as medidas que tomou durante a pandemia de COVID, tornando a vacinação obrigatória na França por meio do passe vacinal e prometendo, em entrevista dada ao jornal Le Parisien em 4 de janeiro, de tornar a vida dos não vacinados um inferno, pois segundo o presidente francês eles não podem ter a liberdade de prejudicar os vacinados, colocando a saúde destes em risco.

    Será que a postura de Macron foi ditada pelo interesse dos franceses ou pelo interesse da indústria farmacêutica de garantir um mercado cativo para seus produtos, vendidos em toda a Europa? A dúvida é pertinente, considerando que hoje se sabe que os vacinados transmitem a doença da mesma maneira que os não vacinados (para que não me acusem de propagadora de fake news, consultem o artigo publicado na revista The Lancet em janeiro de 2022 e disponível na internet  intitulado “Transmissibility of SARS-CoV-2 among fully vaccinated individuals”. Considerando que quando Macron deixar a presidência da França ele terá míseros 50 anos, não é descabido pensar que ele possa voltar a ser sócio de algum banco de investimentos e portanto cultivar suas relações com grandes conglomerados internacionais pode ser uma acertada decisão para sua futura transição de carreira.

    Conforme mencionei neste humilde espaço na semana passada, o filósofo francês Michel Onfray define Macron como o executor do consenso de Masstricht na França, isto é, o líder político responsável por implantar os ideais globalistas da União Europeia no nível local, independentemente do interesse da população local. Um exemplo prático disso, conforme relatado pela The Economist, ocorreu durante a campanha presidencial de 2017, quando Macron reuniu-se em Amiens, sua cidade natal, com os trabalhadores da fábrica da Whirlpool que havia sido fechada e transferida para outro local na Europa com custos menores de produção.

    O banqueiro tornado político e acostumado ao grand monde das finanças internacionais nem fez questão de pretender ter uma solução para ajudar os franceses lá desempregados pelo encerramento das atividades da Whirlpool. Era preciso aceitar o fato inelutável da globalização e prometer salvar-lhes o emprego era demais, era populismo barato e Macron é um intelecto sofisticado demais para isso. Ele não pode dar conforto material e espiritual ao proletariado francês, viúvo da desindustrialização, pois a tarefa dele é maior, é garantir que as engrenagens da União Europeia, a promotora da livre circulação de produtos e serviços a bem da eficiência econômica, funcione sem atropelos no país o qual ele foi escolhido para governar.

    Prezados leitores, será que os príncipes do século XXI terão o mesmo destino dos seus congêneres do século XIV? Será que banqueiros como Emmanuel Macron que executam o projeto globalista da União Europeia terão o mesmo destino dos cardeais que zelavam pelo poder da grande instituição internacional de então, a Igreja Católica? Será que haverá uma reação dos governos nacionais como houve há 700 anos? Aguardemos, e enquanto isso, admiremos o aplomb, o cosmopolitismo e a sofisticação de figuras como o presidente francês.

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Entre a cólera e a peste

Eu não votei no primeiro turno porque eu considero que os dados estão viciados.

Trecho de entrevista dada por Michel Onfray, filósofo francês, à rádio RMC sobre as eleições presidenciais na França, vencidas por Emmanuel Macron

Toda abstenção reforça o poder

André Bercoff, jornalista, escritor e ensaísta franco-libanês e um dos apresentadores da rádio Sud Radio

    Prezados leitores, o voto deve ser obrigatório ou facultativo? No Brasil os bem pensantes consideram que o voto obrigatório é um contrassenso em um regime democrático, pois deveria ser um direito e não uma obrigação, além do que nos países desenvolvidos o voto é facultativo, o que reforça o argumento em favor de tornar o voto opcional. Como tem acontecido muito em nosso país, o Judiciário legisla sutilmente no lugar do Congresso Nacional também na seara do direito eleitoral. Na prática, ele tem flexibilizado a regra da obrigatoriedade do voto no Brasil, consagrada na Constituição, tornando o processo de justificação da abstenção cada vez mais fácil: nas últimas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral colocou à disposição dos brasileiros um aplicativo para isso, que podia ser baixado no celular. Dessa forma, comendo pelas beiradas, nosso Judiciário está tornando o voto facultativo, porque seus membros consideram que essa é a visão que deve prevalecer em uma democracia moderna, em que a participação nas eleições deve ser um exercício de liberdade e não de coação.

    Tal liberdade de se abster foi exercida com bastante intensidade nas eleições presidenciais francesas, que neste domingo dia 24 de abril tiveram o segundo turno. O presidente Emmanuel Macron conseguiu um segundo mandato, a despeito do fato de que dos 48,7 milhões de franceses que têm o direito de voto, 14 milhões deles decidiram não exercê-lo, uma taxa de abstenção de 28,01%, maior que a verificada há cinco anos, quando os mesmos candidatos, Macron e Marine Le Pen, chegaram à disputa final. Esse direito de ignorar o acontecimento que seria o ápice da democracia é defendido na França por pessoas como Michel Onfray, citado na abertura deste artigo, recorrendo a uma metáfora sobre os dados viciados que requer uma explicação.

    Para Onfray, o atual regime político na França não oferece nenhuma opção real, pois desde 1992 quando foi assinado o Tratado de Maastricht, que instituiu a União Europeia e estabeleceu a livre circulação de pessoas e produtos, os países-membros da EU perderam sua soberania de forma que os líderes políticos que são escolhidos nos respectivos países têm um poder limitado àquilo que o Direito Comunitário lhes concede em termos de competência, que nada mais é do que implementar no nível nacional as diretivas federais que regulam a organização e o funcionamento da União Europeia. Na visão de Onfray, o presidente da França nada mais é do que um comissário da EU e é nesse sentido que os dados estão viciados: o povo percebe que o presidente que elegem pode prometer mundos e fundos, mas na prática não têm poder real nenhum, porque a política monetária é decidida pelo Banco Central Europeu e assim o orçamento público utilizado para concretizar aquilo que o líder eleito estabelece como seu programa de governo fica engessado por aquilo que o BCE estabelece em termos de taxas de juros, metas de inflação, valor da moeda e possibilidade de endividamento.

    Para que votar se qualquer candidato escolhido, à esquerda ou à direita terá de se submeter ao “consenso de Maastricht”, como define Onfray? Para que se dar ao trabalho de ir às urnas e na prática fazer o papel de palhaço que dá chancela democrática a escolhas que já foram feitas antes em Bruxelas e a portas fechadas pelo grupo de tecnocratas que dirige a União Europeia? Não é melhor abster-se a participar da farsa e mostrar aos donos do poder que o cidadão sabe o que está ocorrendo? Mostrar que o cidadão sabe que o jogo é de cartas marcadas ou de dados que ao serem jogados dão sempre o mesmo resultado, isto é, a supremacia do interesse supranacional sobre o interesse de cada país europeu?

    Onfray considera que o regime agora em vigor na França é totalitário, na medida em que não permite nenhuma deriva dos princípios dogmáticos e a trajetória de Marine Le Pen ilustra a camisa de força a que todos os políticos precisam se submeter se querem ter alguma viabilidade eleitoral: se em sua primeira campanha presidencial, em 2012, Marine colocava-se firmemente contra a moeda única e o projeto federalista da União Europeia, a cada derrota ela foi diluindo sua mensagem radical para se tornar palatável aos autores do consenso e provavelmente sua terceira derrota a fará abandonar ainda mais sua ideias mais radicais sobre a soberania francesa, com a esperança de que um dia ela se torne plenamente aceitável e mainstream.

    Onfray não votou nem no primeiro turno e nem no segundo turno e fez questão de dizer isso publicamente, expondo as razões da sua escolha, inclusive a quem é contra o abstencionismo e o voto em branco, como André Bercoff, citado na abertura deste artigo. Ao longo da campanha presidencial de 2022 Bercoff incitava seus ouvintes na Sud Radio a não deixar de votar, conclamando-os a escolher o menos pior, mas escolhendo de toda forma. Pois mesmo que as opções sejam entre a peste e a cólera, para o jornalista franco-libanês a não participação dos cidadãos no processo eleitoral só piora as coisas, porque facilita a manutenção do status quo, reforçando o poder dos empoderados, que sempre podem contar com o voto dos seus apoiadores mais extremados e assim conseguem se eleger com uma minoria de votos, por obterem a maioria dos votos válidos. Bercoff inclusive defende que a revitalização da democracia na França requer que o voto se torne obrigatório, pois do contrário o círculo vicioso não será quebrado: quanto mais abstencionismo houver, mais os líderes políticos se sentirão confortáveis por saberem poder contar com seu grupo de apoiadores para se eleger, e assim menos contas prestarão à população, que por sua vez ficará mais desencantada com os resultados da democracia e menos inclinada se mostrará a participar do processo eleitoral.

    Prezados leitores, desde 2002 quando Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine Le Pen, disputou o segundo turno contra Jacques Chirac, os eleitores franceses vêm sendo submetidos à polarização, isto é, à escolha entre a peste a cólera, e a classe política está cada vez mais desacreditada, como mostram os protestos que se seguiram à reeleição de Macron em várias cidades do país. Será que nós no Brasil seguiremos o mesmo destino, e estaremos fadados a escolher por anos a fio entre extremos que de tão distantes acabam se juntando e se tornando iguais na qualidade do que oferecem ao povo? Será que estaremos submetidos eternamente ao consenso de Washington, conforme tenho humildemente explicado neste espaço a política de austeridade monetária e fiscal que é a única política aceita, da mesma forma que o consenso de Maastricht é a unanimidade na Europa? Ai de nós, eleitores empesteados ou encolerizados!

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A economia e suas falácias

Usar os juros contra surtos inflacionários é um remédio socialmente amargo. Primeiro, surto inflacionário é principalmente fruto de choques de oferta. Portanto, o remédio pode exigir uma profunda retração de demanda, da produção e do emprego […] Uma elevação da SELIC para dois dígitos poder á jogar o desemprego para além, dos atuais 12 milhões. Pode também restringir o consumo, num país em que quase cem milhões vivem o desespero da insegurança alimentar. E deverá aumentar o rendimento para os ricos, que parecem, a olho nu, ostensivamente mais ricos. […] Se minha análise estiver correta, a austeridade monetária não é só um remédio amargo; é ineficaz, concentradora de renda e politicamente irresponsável.

Trecho retirado do artigo “Juros e a morte súbita da democracia” escrito pelo economista Rogério Studart, associado sênior no Centro de Economia Política do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e publicado no jornal O Globo em 17 de abril

 

O teto de gastos é a condição mais importante para se chegar ao crescimento sustentável. Porém, ele exige reformas, como a administrativa. […] O cumprimento do teto de gastos deve criar condição para que os juros caiam, permitindo aos concessionários se financiarem no mercado privado de capitais.

Trecho da entrevista dada pelo economista Affonso Celso Pastore ao jornal O Estado de São Paulo em 17 de abril sobre o documento que ele preparou para o candidato à presidência Sérgio Moro com diagnósticos e proposições econômicas

Falácias verbais – Essas falácias, chamadas de falácias da ambiguidade, surgem quando a conclusão é obtida por meio de um uso inapropriado das palavras. […] A falácia da figura de linguagem é o caso especial que decorre da confusão entre o sentido comum de uma palavra e seu emprego metafórico, figurativo ou técnico (exemplo: Na última semana, a Joana tem vivido nos píncaros do êxtase.” E qual é o endereço dela lá?”).

Trecho retirado do verbete sobre Lógica Aplicada sobre a edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

    Prezados leitores, na semana passada eu abordei as propostas audaciosas que Sergey Glazyev têm para colocar a Rússia no caminho virtuoso seguido pela China em termos de alta crescimento econômico e distribuição de renda e as contrapus à receita da presidente do Banco Central russo, Elvira Nabiullina, que segue a cartilha de austeridade monetária que o FMI preconiza. Nesta semana, continuarei a discorrer sobre esse tópico comparando a opinião do economista da terceira via, Affonso Celso Pastore, cujas sugestões, em suas próprias palavras, fogem dos extremos, que são extremos, que são “extremos populistas, tanto o Lula quanto o Bolsonaro.” Farei isso tentando analisar o conceito de crescimento sustentável preconizado por ele como um exemplo de falácia, tal como definida no trecho que abre este artigo.

    Para Pastore, só estabelecendo o teto de gastos e aderindo rigidamente a ele será possível controlar as despesas governamentais de forma que a dívida pública não aumente exponencialmente, exigindo que as autoridades monetárias subam os juros para atrair recursos de investidores que permitam a rolagem da dívida e a manutenção do valor da moeda. Com o controle das despesas e a menor necessidade de financiamento público, os juros podem diminuir e com juros menores os investidores privados poderão captar dinheiro mais facilmente para investirem em projetos de infraestrutura. Tais investimentos permitirão que o Brasil volte a crescer e se a dívida pública diminuir consistentemente por meio da diminuição constante das despesas governamentais, os juros poderão ser baixados, o que facilitará a concessão de empréstimos aos concessionários que continuarão tomando empréstimos e investindo e fazendo a roda da economia gerar. Nesse sentido, o crescimento será sustentável, pois permanecerá ao longo do tempo pela adesão à receita correta, isto é, à realização de sacrifícios no curto e no médio prazo para colher os frutos no longo prazo.

    Este é o mantra que sustenta o sentido positivo que tais economistas responsáveis, não populistas, dão à expressão crescimento sustentável. E no entanto, se tomarmos o sentido literal de sustentável, podemos nos perguntar: o crescimento pode ser sustentado por quem? Nos ombros de quem será colocado o sacrifício da austeridade fiscal que gerará prosperidade econômica? A resposta quem nos dá é Rogério Studart. É a parcela mais pobre da população que sofrerá em duas frentes: tanto com os juros altos necessários para que o governo possa continuar rolando a dívida pública sem causar a desvalorização excessiva da moeda e a inflação, quanto com o corte das despesas governamentais necessário para que os juros altos possam no futuro cair.

    De um lado, os juros altos fazem com que os capitais disponíveis sejam canalizados para financiar a dívida pública. Sem investimentos produtivos não há geração de empregos, nem oferta de produtos, portanto há alta de preços mesmo não havendo consumo. De outro lado, o corte de despesas governamentais é sentido na pele pelas parcelas mais pobres. Afinal, quando economistas como Pastore falam de reforma administrativa, no mais das vezes na prática o que se consegue fazer, considerando o jogo de forças políticas no Brasil, é cortar as despesas de maneira indiscriminada e os grupos de funcionários públicos que estão na elite conseguem de uma forma ou de outra livrar-se dos sacrifícios fazendo greves ou pressionando deputados e senadores no Congresso por aumentos de salários ou regalias na aposentadoria não disponíveis para os mortais comuns.

    No frigir dos ovos, cortam-se professores, agentes comunitários, médicos, enfermeiros, que não têm o poder de influência que têm a turma de cima dos fiscais da Receita Federal, dos policiais federais, dos membros do Ministério Público, diplomatas, membros de Tribunais de Contas e dos magistrados do Judiciário, consultores legislativos, advogados-gerais, defensores públicos e procuradores da Fazenda, em suma as ditas carreiras típicas de Estado. Assim, esses cortes afetam os serviços públicos utilizados pela população mais pobre, como saúde e educação, e não afetam os serviços públicos prestados ao andar de cima, no caso os serviços de prestação jurisdicional, fiscalização de contas e de obrigações tributárias.

    Os sacrifícios necessários para o crescimento sustentável tal como preconizado por economistas ortodoxos como Affonso Celso Pastore na verdade recaem sobre quem menos deveria pagar o pato, porque tem menos gordura para queimar em termos de renda disponível para absorver altas nos preços e diminuição de serviços públicos gratuitos. E nesse sentido, a austeridade monetária sustentada pela população mais pobre acaba não criando crescimento sustentável nenhum, porque ele nem ocorre conforme prometido por essa receita de sacrifícios e nem tem condições de perdurar.

    A taxa de inflação média entre 2010 e 2021, medida pelo IPCA, ficou em 6.09%, o que é algo a se comemorar, considerando nosso histórico de hiperinflação nas últimas décadas do século XX. Mas tal meta foi conseguida à custa do sacrifício do crescimento econômico, impossível em um ambiente de pouco investimento. Entre 2001 e 2019 o Brasil cresceu 26,3% de acordo com o Banco Mundial, uma média de menos de 1.5% ao ano. E de acordo com números do IBGE, nossa taxa de investimentos como porcentagem do PIB só vem diminuindo desde a década de 90: 18,8% no período entre 1991 e 2000, 18,2% entre 2001 e 2010 e 18% entre 2011 e 2019. Como crescer sustentavelmente sem investimentos? E como haver investimentos produtivos se todo o capital disponível é atraído pelos juros altos oferecidos pelos títulos públicos? Como diminuir tais juros? Impondo os sacrifícios aos mais pobres pelo corte de despesas públicas? É só isso que os economistas “responsáveis” têm a nos oferecer? Mais desemprego e maior concentração de renda? Como garantir crescimento ao longo de vários anos no século XXI sem investir para que a população seja educada e saudável? Afinal, é viável no longo prazo colocar o tipo de crescimento preconizado pelos não populistas nas costas dos brasileiros que não têm representação política para garantir que eles não sejam os principais sustentáculos da conta a ser paga em termos de falta de investimentos, tanto públicos quanto privados, falta de emprego, falta de oferta de bens públicos e privados a preços acessíveis?

    Prezados leitores, a falácia de que somente a austeridade fiscal garante crescimento sustentável está proposta como o único meio-termo entre a polarização à esquerda e à direita. Oxalá que encontremos uma Terceira Via que rechace tal receita fadada ao fracasso, como mostra o desempenho pífio do Brasil no século XXI, que nos torna presos na armadilha de baixos níveis de investimento, de produtividade, de emprego, de renda, de consumo, de oferta e impede que a inflação seja controlada por outros mecanismos que não os juros altos, como por exemplo, pelo choque da oferta. Se continuarmos nessa trilha, ninguém, nem mesmo aqueles que são sempre chamados a fazer sacrifícios, poderá sustentar nosso crescimento.

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Oportunidades à vista

A busca é por cadeias mais curtas e mais ágeis e que também poluem menos. Diferentemente de outros momentos em que a industrialização contou com apoio do governo, agora é um movimento orgânico das empresas. Por outro lado, há movimentos contrários que não ajudam, como alta taxa de juros, que tende a tornar a tomada de decisão de investimento mais demorada.

Trecho retirado do artigo “Saída Nacional – Nó das cadeias globais estimula indústrias a aumentar a produção local, publicado na edição de 10 de abril do jornal O Globo

O que é a meta de inflação na prática? É um conjunto de medidas extremamente primitivo e internamente contraditório, cuja aplicação leva a economia à armadilha da estagflação. O Banco Central estabeleceu a livre flutuação do rublo, o que é absurdo do ponto de vista das metas de inflação em uma economia aberta, na qual a taxa de câmbio afeta diretamente os preços. E vemos como a desvalorização do rublo periodicamente acelera os preços. Além disso eles reduziram a política monetária a somente uma ferramenta absolutamente primitiva – a manipulação da taxa de juros básica. Mas essa taxa é a porcentagem na qual o Banco Central empresta dinheiro aos agentes econômicos e retira dinheiro da economia. Suas tentativas de suprimir a inflação pelo aumento das taxas de juros não conseguem ser bem-sucedidas na economia atual, porque quanto maior a taxa de juros, menor o crédito, menor o investimento, menor o nível técnico e a competitividade.

Trecho da entrevista dada por Sergey Glazyev, economista russo membro da Academia Russa de Ciências e do Conselho Financeiro Nacional do Banco Central Russo à revista eletrônica Business Online Magazine em 27 de março de 2022 intitulada “Acontecimentos como este acontecem somente uma vez a cada cem anos”

    Prezados leitores, neste meu humilde espaço eu muitas vezes tracei paralelos entre a Rússia e o Brasil, com relação, por exemplo, à mentalidade criada por longos períodos de tempos em que houve servos lá e escravidão aqui. Nesta semana, o objeto dessa busca de semelhanças será a economia. Pois lá como aqui há o embate entre os monetaristas e os desenvolvimentistas e no caso específico da Rússia atualmente tal disputa se dá entre a presidente do Banco Central Russo, Elvira Nabiullina, que segue a cartilha ditada pelo FMI, e Sergey Glazyev, que já foi conselheiro de Vladimir Putin e considera que as sanções econômicas impostas ao país pelas potências ocidentais é uma oportunidade única para o país mudar de rota totalmente  e seguir o caminho da China de altos níveis de investimento, desenvolvimento técnico, crescimento econômico consistente e prosperidade. Permitam-me tentar explicar as respectivas posições e vocês verão como elas são pertinentes à própria situação do Brasil.

    O FMI é a instituição que concede empréstimos a países em dificuldades financeiras para que eles possam honrar suas obrigações internacionais. Em troca dos empréstimos o FMI exige que o país siga os princípios que ele considera darem frutos, isto é que permitem que a moeda nacional tenha um valor estável. Para isso é preciso acumular reservas em moedas fortes, principalmente o dólar americano e o euro, os quais são obtidos pela venda dos ativos do país, como obras de infraestrutura (por exemplo, portos, aeroportos, hidroelétricas) e empresas estatais a investidores estrangeiros. Acumulando reservas o país construirá a confiança no valor da moeda local.

    Tal confiança é importante porque, o câmbio flutuante, outro dos princípios do FMI, faz com que a perda de confiança no valor da moeda traduza-se rapidamente em uma fuga de capitais do país. Para evitar tal fuga e as grandes oscilações cambiais, que afetam os preços dos produtos no mercado local, o Banco Central, além de acumular reservas, deve estabelecer uma taxa de juros que impeça a desvalorização excessiva da moeda e a alta de preços, isto é a inflação.

    Um último e importante fator que estimula a confiança dos investidores globais no valor da moeda é o controle do governo sobre as contas públicas, que permita que seja gerado um superávit primário para pagar os juros dos empréstimos soberanos contraídos no estrangeiro e assim manter o fluxo de capitais para dentro e para fora do país, sem que haja perdas bruscas do valor da moeda local. Caso haja uma fuga de capitais por algum motivo há duas saídas possíveis: uma alta exacerbada dos juros ou a venda de moeda forte para sustentar o preço da moeda do país que segue a cartilha do FMI.

    E quando o país obediente do ponto de vista da política econômica foge dos trilhos na seara política? Bem, o sistema internacional, comandado pelos Estados Unidos, impõe sanções. No caso da Rússia, um valor de 350 bilhões de dólares e euros mantidos fora do país foram confiscados como resposta à invasão da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro.  Dona Elvira Nabiullina, que foi responsável pela acumulação dessas reservas desde 2013, viu seu castelo fortificado ser bombardeado. A propósito, a eficácia de quaisquer sanções que a tal da “comunidade internacional” impõe a um país recalcitrante depende justamente de quão à risca ele segue as orientações do FMI. Pois se o valor da moeda local depende inapelavelmente da quantidade de euros e dólares acumulada, então a indisponibilidade repentina desses sustentáculos monetários faz com que haja uma desvalorização brutal da moeda, encarecendo os preços dos produtos e deixando as pessoas insatisfeitas com a carestia, o que pode encorajá-las a derrubar o governo que não está agradando a “comunidade internacional”.

    Se para a presidente do Banco Central russo as sanções impostas devido à guerra na Ucrânia são um desafio a ser enfrentado com venda das moedas fortes que a Rússia tem dentro do país e com a alta de juros, para Sergey Glazyev está é uma oportunidade única de seu país sair da camisa de força imposta pelo cânone monetarista. O Banco Central não deve ter como única meta estabelecer metas de inflação e persegui-las a todo custo, pois isso causa estagflação. Limitar a oferta de dinheiro à disponibilidade de reservas internacionais torna o país dependente de capitais externos e sujeito à ação de especuladores que lucram com as movimentações do câmbio causadas pelas flutuações nas taxas de inflação e de juros.

    Conforme explica o trecho que abre este artigo, para Sergey o Banco Central deve preocupar-se em garantir a oferta de crédito suficiente para que haja investimentos na produção que permitam à Rússia mudar de patamar em termos de desenvolvimento, inaugurando um círculo virtuoso que quebre o padrão de falta de investimentos e falta de produção em que o país esteve mergulhado desde a década de 1990, quando começou a seguir a cartilha do FMI. Nas contas de Glazyev, 50 trilhões de rublos deixarem de ser produzidos, 20 trilhões de rublos deixaram de ser investidos e o único fruto dessa política monetarista são os 300 bilhões de dólares investidos em ativos estrangeiros para acumular reservas, ativos esses que foram perdidos devido às sanções.

    E como fazer para construir a confiança no rublo sem o pilar das moedas fortes? O economista russo propõe que a China, a Rússia e outros países da Ásia estabeleçam um sistema financeiro paralelo em que as trocas comerciais seriam feitas com base no valor médio de uma cesta de moedas de produtores de commodities, as quais incluiriam ouro, petróleo, metais, grãos e água. Com base nesse padrão monetário de referência, os países ofertariam crédito localmente sem estarem obrigados a manter investimentos em títulos do Tesouro americano para que sua moeda tenha valor.

    Será que esse sistema alternativo à dominância do dólar vingará? Para Glazyev, esta oportunidade é única de criá-lo porque a Rússia, privada de dólares e euros, não conseguirá comprar produtos manufaturados no exterior dos países que só transacionam em dólares e euros, e assim terá que substituir as importações, fabricando localmente. Mas se Elvira Nabiullina permanecer fiel aos princípios que ela introjetou como verdades absolutas, ela tentará manter o valor do rublo por meio de um aperto monetário sem precedentes que fará a festa dos especuladores e dos bancos, mas diminuirá a oferta de crédito para a produção.

    Prezados leitores, considerando que nós no Brasil também seguimos a cartilha do FMI há décadas, não seria a hora de nós também agarrarmo-nos a essa oportunidade de debandada? Afinal, de acordo com dados divulgados pelo jornalista Rolf Kuntz, temos um contingente de 37,3 milhões de pessoas desempregadas, desalentadas, subocupadas com insuficiência de horas e afastadas do mercado e o PIB crescerá apenas 1% neste ano. Será que aumentando os juros como está fazendo o Banco Central para manter o valor da moeda e segurar a inflação não estaremos apenas chafurdando no círculo vicioso da falta de investimentos, de produção e de emprego? Será que o combate à inflação não seria mais eficaz se fosse abordado não do ponto de vista do fluxo monetário, mas do ponto de vista do choque da oferta de produtos por meio da substituição das importações afetadas pela disrupção das cadeias de suprimento causada pela pandemia de covid-19 e pela guerra na Ucrânia?

   Como mostra o trecho na abertura deste artigo, as empresas no Brasil estão tentando produzir localmente por necessidade, mas para que tal esforço surta efeitos e seja sustentável no longo prazo, o governo precisaria ajudar diminuindo as taxas de juros e facilitando o crédito, para viabilizar investimentos e ganhos de escala. Infelizmente, prevê-se que no Brasil as taxas de juros serão baixadas somente em 2024, segundo estimativas divulgadas na edição de VEJA de 13 de abril. Enquanto isso, ficaremos presos na estagflação, assim como os russos ficarão se Dona Elvira continuar estabelecendo a política monetária do país. Sabemos quem são os clones dela no Brasil, pois eles têm estabelecido a política econômica do país desde o choque do petróleo em 1979, mas quem são os similares tupiniquins de Glazyev?  Quem sabe os debates dos candidatos à presidência revelem isso para nós.

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