A trilha da tolerância e da intolerância

Mas apesar de a Reforma ter sido salva, ela sofreu, juntamente com o Catolicismo, do ceticismo estimulado pela grosseria das polêmicas religiosas, pela brutalidade da guerra e pelas crueldades da crença. Durante o holocausto, milhares de “bruxas” foram mortas. Os homens começaram a duvidar das crenças que pregavam sobre Cristo e praticavam o fratricídio puro e simples. Eles descobriram as motivações políticas e econômicas escondidas em fórmulas religiosas, e suspeitavam que os governantes não tinham fé nenhuma, mas sede de poder. […] A Paz de Westfália acabou com o reinado da teologia na mente europeia, deixando a estrada obstruída, mas transitável para as tentativas da razão.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) na Europa que opôs os católicos aos luteranos, calvinistas, unitaristas, anabatistas e demais seitas protestantes

 

Na qualidade de cidadão do Catar, tenho orgulho do que aconteceu. Não sei quando os ocidentais vão perceber que os valores deles não são universais, Há outras culturas com valores diferentes que devem ser igualmente respeitadas. Não nos esqueçamos que o Ocidente não é o porta-voz da humanidade.

Comentário retirado do Twitter sobre a proibição por um guarda à entrada de um torcedor vestido com uma camiseta com arco-íris para assistir ao jogo entre Estados Unidos e País de Gales em 21 de novembro

 

Talvez eles não estejam prontos para receber um mundo tão diverso quanto o nosso. Vocês querem ser os anfitriões de uma festa, mas nem mesmo gostam dos convidados.

Comentário retirado do Twitter sobre o mesmo episódio

 

    Prezados leitores, neste meu humilde espaço eu já fiz referência algumas vezes à Guerra dos Trinta Anos e à Paz de Westfália, que pôs fim a ela. Foi uma disputa por ideologias religiosas para decidir quem falava a verdade sobre o significado da Bíblia e da figura de Cristo. Foi uma disputa de poder entre o Sacro Império Romano-Germânico, liderado pela ultra-católica dinastia dos Habsburgos, cujas possessões incluíam terras europeias americanas, africanas e asiáticas, e os Estados europeus como França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca e os principados alemães, que queriam limitar o poder imperial e adquirir maior autonomia. E finalmente foi uma disputa pelo patrimônio material da Igreja Católica, dona de terras e dos direitos atrelados a elas, como cobrar direitos de passagem e de uso.

   Em seu balanço final sobre o impacto da guerra sobre a Europa, Durant destaca certos fatos estabelecidos pelos historiadores que estudaram o assunto: a diminuição drástica da população na Alemanha e na Áustria de 21 milhões para 13 milhões e 500 mil habitantes; o esvaziamento de 29.000 das 35.000 vilas que existiam no Reino da Boêmia em 1618; a destruição de 1.090 das 1.717 casas que estavam de pé em 1618 em 19 vilas da região da Turíngia. E principalmente, Durant aponta quem mais sofreu com a Guerra dos Trinta Anos, os camponeses, sobre cujos cultivos as tropas de católicos e protestantes passavam com seus cavalos e charretes, cujas colheitas eram confiscadas pelos exércitos para abastecer os soldados, cujas filhas eram estupradas e assassinadas, cujas casas eram saqueadas e queimadas.

    Como a brutalidade e a crueldade aconteceram de todos os lados que teoricamente lutavam para colocar em prática os ideais morais de Cristo, a Guerra dos Cem Anos foi um divisor de águas mental na Europa, conforme explica o filósofo e historiador americano no trecho que abre este artigo. Houve a total perda de credibilidade das religiões que pretendiam ser a verdade suprema. Se o convencimento dos que professavam uma fé diferente só era possível na base do uso da força bruta, será que a fé católica ou a protestante tinham algum elemento de verdade? Ou eram um mito para instilar medo nas pessoas, fazê-las obedecer ao chamado de guerra e permitir que o defensor de uma religião ou outra conquistasse poder pela derrota do inimigo e pela conquista do botim?

    Daí que depois de 1648, a tolerância abriu caminho na Europa, não porque tenha havido um acordo entre as partes opostas para chegar a uma contemporização, a uma terceira via que contemplasse aspectos de todas as seitas religiosas, mas simplesmente porque o exaurimento material causado pela matança e destruição levou também a um exaurimento espiritual, à perda da crença naquelas verdades que haviam inspirado o horror da guerra. A teologia, como construção intelectual sobre o significado e o conteúdo da religião, deixou de ser levada a sério, porque a fé no sobrenatural deixou de ser um motivo válido para matar e morrer. As milhões de vítimas da refrega entre católicos e protestantes haviam sido sacrificadas em vão, porque ao final, pela Paz de Westfália, estabeleceu-se que cada Estado teria a religião que seu soberano escolhesse e aqueles que fossem de outra confissão deveriam partir. Não se chegou a uma conclusão definitiva sobre o que era verdadeiro e falso sobre Deus e Jesus Cristo, simplesmente decidiu-se pelo fim da guerra por razões práticas, para que houvesse a ordem necessária que permitisse às pessoas ter uma vida normal de trabalho rotineiro.

    Assim, não haveria mais guerras entre confissões religiosas rivais porque não haveria mais motivo para disputas teológicas: cada Estado soberano ficaria no seu quadrado ideológico (em latim, Cuius regio eius religio), sem invadir o espaço do outro e estamos conversados. A universalidade da Igreja Católica caiu por terra e o papa nunca mais teve o poder político de que gozava quando a religião era considerada relevante o suficiente para levar as pessoas a lutar pela sua defesa.  A tolerância que surgiu na Europa na primeira metade do século XVII era a da constatação de que não era possível ter bases sólidas, aceitas por todos, para uma dedução das verdades religiosas. Cada um que adotasse a sua verdade e não pretendesse ter a última palavra. Quem pretendera atingir a unanimidade só causara danos às pessoas e às coisas.

    Livre da religião como assunto digno de reflexão, a Europa embarcou no rumo da razão como ferramenta para conquistar poder sobre a natureza e moldá-la às necessidades materiais do Homem, o que se revelou mais produtivo para as pessoas do que discutir se o corpo de Cristo está ou não na hóstia consagrada ou se o destino de cada um de nós já foi estabelecido por Deus no começo dos tempos. Foi um percurso particular, que não se reproduziu em outras regiões do mundo, e daí que essa tolerância desenvolvida no continente europeu, fruto da decepção com o efeito da religião sobre a vida do homem, ser um valor determinado historicamente.

    À luz dessa explicação sobre o impacto da Guerra dos Trinta Anos sobre a mentalidade europeia e sobre os valores que a civilização ocidental acabou adotando, as palavras do cidadão do Catar mencionadas na abertura deste artigo não são tão chocantes, como poderia parecer à primeira vista. Esse tuiteiro quer que os torcedores que estão no país para assistir à Copa do Mundo parem de reclamar sobre a proibição de qualquer imagem de arco-íris que possa ser vista como apologia LGBT. O Catar é um país que segue os preceitos da religião muçulmana, que nos países em que ela é praticada pela maioria da população, é seguida como guia de comportamento moral.

    Afinal, qual é a culpa dos muçulmanos se os Ocidentais consideram há quatro séculos que a religião é uma questão de escolha que não pode pretender ser universal? Os muçulmanos não tiveram sua fé nos benefícios da religião abalada irrremediavelmente pela fome, pelas pragas, pelas torturas e pela morte causadas pelas guerras religiosas em nome de Cristo. Por que haveriam de duvidar do seu profeta Maomé, se ele não foi usado em vão por irmãos para odiarem-se e vingarem-se mutuamente, ao mesmo tempo que esses cristãos sanguinários pretendiam saber quem era o verdadeiro Filho de Deus?

    Sob essa perspectiva, o Ocidental que exigiu no Twitter que os habitantes e as autoridades do Catar recebam os apologistas de LGBT de braços abertos em nome da diversidade quer que os muçulmanos adotem a mesma atitude indiferente que uma ampla parcela da população nos países ocidentais têm em relação aos preceitos religiosos: já que nenhum deles pode ser considerado verdadeiro, então que todos sejam tolerados, inclusive o preceito da não religiosidade.

    Prezados leitores, em 2022 no Catar a trilha da tolerância ocidental, fruto da desilusão religiosa, cruzou a trilha da intolerância oriental, fruto da fé na religião, que ainda vigora. O melhor a fazer nessa encruzilhada é que os transeuntes das respectivas trilhas, ao findar a Copa do Mundo, sigam o preceito estabelecido na Paz de Westfália: cada um que continue em seu caminho, construído ao longo de um percurso histórico irreproduzível e irredutível às premissas de outra civilização, cuja trilha é fruto de outros desafios e de outras respostas, como nos ensinou o historiador Arnold Toynbee (1889-1975) em sua obra-prima “Um Estudo da História”. Que a tolerância e a intolerância de ocidentais e orientais possam assim conviver no planeta Terra sem que uns queiram se imiscuir nos assuntos do outro.

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Ostracismo Verde

Ação e reflexão são atividades que exigem, cada uma separadamente, qualidades que mutuamente se repelem. São bem raros os que possuem ambas; mesmo nestes casos, haverá que, mais cedo ou mais tarde, melhor mais cedo do que mais tarde, optar pelo exercício exclusivo de uma delas sob pena de não se realizar em nenhuma. A biografia do secretário florentino é um caso-limite do fenômeno que se repete todos os dias, do homem de talento disposto a vender a alma ao Diabo e preparado para sacrificar a formulação de suas ideias, por mais inteligentes que lhe pareçam, à satisfação passageira de haver impingido ao príncipe de plantão ao menos uma parte delas.

Trecho retirado do ensaio “À maneira de prólogo ou elogio do ostracismo”, escrito pelo historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello (1936-)

Até pouco tempo atrás, socialistas, comunistas, capitalistas, conservadores e progressistas, todos eram desenvolvimentistas. O planeta está dizendo que ele tem um limite e, por isso, a visão linear de uso indefinido da biodiversidade não cabe mais. Precisamos de um desenvolvimento sustentável e talvez o Brasil seja o país que reúne as melhores condições para ser o pioneiro nesse projeto viável. Sustentabilismo não é engessar a economia. É criar um novo ciclo de prosperidade.

Trecho retirado da entrevista dada por Marina Silva, recém eleita deputada federal por São Paulo à revista VEJA na edição de 16 de novembro

 

    Prezados leitores, o secretário florentino a que Evaldo Cabral de Mello faz referência no trecho que abre este artigo é nada mais nada menos do que Niccolò Machiavelli (1469-1527), o filósofo que iria escrever uma das principais obras de Ciência Política da história ocidental. Em 1512, o então secretário da Segunda Chancelaria florentina perdeu seu cargo devido à volta da família Medici ao poder, enterrando o regime republicano inaugurado 20 anos antes. Condenado ao ostracismo, Machiavel, como seu nome é escrito na língua portuguesa, refugiou-se na pequena propriedade que seu pai lhe deixou, chamada de San Casciano, a 30 quilômetros da cidade. Ali dedicou-se à gestão dos seus humildes negócios e à leitura dos historiadores clássicos, sobretudo Tito Lívio e Políbio. Sua recôndita esperança era que houvesse uma reversão da situação política na cidade e ele voltasse a cair nas graças dos donos do poder, para que pudesse colocar em prática, por meio de sua influência intelectual, seu programa político para a península itálica.

    E qual era esse programa? Era livrar a península da influência das potências estrangeiras, principalmente da Espanha e da França, que usavam o solo italiano como palco das suas disputas de geopolíticas e em o fazendo invadiram-no militarmente inúmeras vezes, causando destruição e desordem. Machiavel achava que um homem providencial e de resolução, pronto para exercer o poder da maneira que fosse necessária, como César Bórgia (1475-1507) e Fernando, o Católico (1452-1516), poderia unificar a península, acabar com as disputas entre as diferentes cidades e inaugurar uma era de paz e prosperidade, ainda que para tanto muita violência tivesse que ser perpetrada.

    Conforme explica Evaldo Cabral de Mello em seu ensaio, o sonho de Machiavel de exercer influência sobre os acontecimentos políticos na Península Itálica foi frustrado por completo. Quando da restauração mediciana ele foi nomeado historiador oficial e chegou a realizar duas ou três missões diplomáticas de pouca importância a cidades vizinhas, mas quando a república florentina foi restaurada após uma nova derrocada dos Medici, os novos republicanos não o convocaram para nada, pois ressentiram-se do fato de ele ter trabalhado para o governo anterior. Machiavel permaneceu em San Casciano até a morte e, com tempo de sobra para ler e refletir, escreveu O Príncipe, que expressava aquilo que na sua visão era necessário para viabilizar na prática a unificação italiana que, como sabemos, só ocorreu de fato mais de 300 anos depois, ao final do século XIX.

    Longe de lamentar a incapacidade do filósofo florentino de influenciar os eventos na sua terra natal, Evaldo considera que sem o ostracismo a que Machiavel foi forçado, ele não teria se dedicado àquilo que realmente sabia fazer, que era refletir e formular suas ideias para serem exploradas pelos seus conterrâneos e pelas futuras gerações. Machiavel, se tivesse conseguido algum cargo no governo florentino, teria sido medíocre porque não era um homem de ação e os homens de ação normalmente suspeitam dos intelectuais, que não têm que tomar decisões sobre os negócios públicos no dia a dia e portanto, podem dar-se ao luxo de entreter em sua mente grandes projetos. No frigir dos ovos, melhor para o pensamento político ocidental que Machiavel tenha desfrutado do ócio para maturar e escrever O Príncipe, do que ter perdido tempo de sua vida tentando fazer concretizar seu grand design da unificação italiana, dando conselhos a algum príncipe de carne e osso.

    Todo esse introito sobre as vicissitudes práticas e o triunfo intelectual de Niccolò Machiavelli serve para introduzir o tópico desta semana deste humilde artigo, o papel que Marina Silva exercerá no governo de Lula. Considerando que se espera uma grande virada em relação aos quatro anos de Jair Bolsonaro, em que houve aumento do desmatamento e enfraquecimento das estruturas de fiscalização do mau comportamento ambiental, Marina Silva poderá ser a guru de Lula, fornecendo-lhe um programa para a área.

    Como mostra o trecho citado da entrevista dada por Marina à VEJA, ideias não lhe faltam. Marina faz uma distinção entre desenvolvimentismo, perseguido como meta de crescimento econômico a despeito das externalidades ambientais por ele causadas, e desenvolvimento sustentável, que parte do pressuposto de que não se pode explorar a biodiversidade da Terra ad infinitum. E fazendo tal contraposição, ela chega a uma síntese no conceito de sustentabilismo, que gera prosperidade pela geração de empregos na bioeconomia, como no reflorestamento, no aproveitamento farmacológico da diversidade botânica do Brasil e na produção de energia limpa, isto é, sem a utilização de carvão, petróleo e gás. Não fica claro para todo mundo aonde a ex- Ministra do Meio Ambiente quer chegar?

    Sem dúvida, mas consideremos os fatos. Em 2008 ela pediu demissão do cargo porque discordava do Plano de Aceleração do Crescimento, que incluía a construção de duas gigantescas hidrelétricas no coração da Floresta Amazônica. Elas acabaram sendo construídas, Jirau, no Rio Madeira, que ficou pronta em 2013, e Belo Monte, no rio Xingu, que começou a funcionar em 2016 e Marina Silva denunciou que a pauta ambiental não era prioridade do governo petista. Será que as condições mudaram agora de tal maneira que a dileta amiga de Chico Mendes considere que se for Ministra do Meio Ambiente de Lula uma segunda vez ela terá mais sucesso em colocar em prática seu grand design?

    De fato, será que o nível de escolaridade dos brasileiros da Região Norte deu um tal salto de qualidade que será possível ter à disposição os recursos humanos necessários para, mediante os investimentos do governo, criar empregos de maior valor agregado no futuro, que não se limitem à exploração predatória da Floresta Amazônica, como o corte de madeira e a mineração? Os dados do IDEB, que medem a proficiência dos estudantes brasileiros do ensino fundamental e do ensino médio em português e matemática não são animadores: Pará teve nota 4,8 em 2021, Rondônia e Roraima 5,3, Acre 5,4, Amapá 4,7, Tocantins 5,1, Amazonas 5,3. Em suma nenhum dos Estados da Região Norte chegou ao desempenho dos melhores no ranking Ceará, São Paulo e Paraná, com 6,1.

    E quanto ao orçamento que o futuro Ministro do Meio Ambiente terá para, dentre outras atividades, criar novas reservas indígenas e aumentar o quadro de funcionários e melhorar a infraestrutura do IBAMA e do ICMBio, que realizam a fiscalização dos desmatamentos? A equipe de transição do governo Lula conseguiu dinheiro por quatro anos para manter a ajuda de 600 reais aos mais necessitados por meio de um acordo para furar o teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, que foi aprovada em 2016 e estabeleceu um limite aos gastos públicos por 20 anos. Será que o governo Lula conseguirá mais flexibilizações do teto para ter mais margem de investimentos? Ou será que o mercado financeiro reagirá mal a tal flexibilização, por receio de inviabilização do pagamento dos juros da dívida? Será que o novo governo, se insistir em mais exceções à regra do teto vencerá uma queda de braço com os donos dos títulos da dívida brasileira?

    Prezados leitores, essa pincelada nas condições sociais e políticas do Brasil permite-nos ver os desafios à execução de algum grand design ambiental e é nesse ponto que traço um paralelo entre Marina Silva e Niccolò Machiavelli. Será que nossa paladina da Floresta Amazônica terá capacidade e possibilidade de ser uma mulher de ação e causar impacto com sua agenda ambiental? Ou será que ela é melhor na formulação de ideias, mas na prática sempre falha em lidar com o desafio dos interesses conflitantes do dia a dia da política no Brasil? Será que Marina viverá um novo ostracismo, como ocorreu em 2008? E se isso de fato ocorrer será tão produtivo como foi o de Machiavel, que nos legou uma obra prima do pensamento político? Aguardemos.

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Verde ou amarelo? Bem público ou privado?

Foto de uma área na Amazônia tirada pela autora em uma exposição sobre o Parque Nacional do Xingu

Um sistema econômico regula quais coisas são produzidas e por que meios, quem as recebe e recebe como recompensa de quais contribuições, e que fração dos recursos sociais é alocada à poupança e ao fornecimento de bens públicos. Idealmente todas essas questões devem ser resolvidas de maneira a satisfazer os dois princípios de justiça.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

 

Por exemplo: a questão da destinação das áreas florestadas na ordem de 57 milhões de hectares para Terras Indígenas, Unidades de Conservação de Proteção Integral ou de Uso Sustentável. Essa é uma ferramenta muito poderosa para se fazer uma muralha verde de proteção da Amazônia. Temos também a política voltada para a questão de uma nova economia na Amazônia, com investimento nessa nova economia, na bioeconomia. É uma mudança de paradigma.

Trecho da entrevista dada ao site UOL por Marina Silva, cotada para ser Ministra do Meio Ambiente no futuro governo Lula e eleita deputada federal por São Paulo

    Prezados leitores, no capítulo cinco de “Uma Teoria da Justiça” John Rawls estabelece uma relação entre a economia política e os princípios de justiça por ele defendidos em sua obra e em fazendo isso surgem dois tipos de desafios. Primeiramente, como organizar a forma de produção e de distribuição dos bens, a forma de remuneração das pessoas de maneira que sejam garantidas as liberdades básicas, isto é, a liberdade de consciência, de associação, de crença, de voto, de acesso a qualquer profissão ou cargo público? E como fazê-lo de maneira que as desigualdades sociais e econômicas que possam existir sejam de sorte que todos se beneficiem dos arranjos institucionais, que tais desigualdades sejam devidas apenas a diferenças de ocupações que qualquer um na sociedade pode exercer, independentemente de sua origem, e que não sejam devidas a impedimentos intransponíveis, já que há igualdade de oportunidades?

    Há um modo capitalista e um modo socialista de colocar os princípios da justiça em prática nas condições materiais da sociedade. No regime capitalista, as decisões sobre o que produzir, que investimentos fazer e como alocar os produtos serão tomadas no mercado, com base nos preços decididos pelos agentes econômicos individuais em suas transações, reguladas pela oferta e pela procura dos produtos, de forma que o que é produzido é dado àquele que pode pagar, independentemente da sua necessidade. No regime socialista, tais decisões são tomadas por uma autoridade central encarregada do planejamento econômico, que leva em conta a necessidade dos membros da sociedade como um todo e não sua capacidade individual de contribuição à produção e de pagamento pelos produtos. Em que pese podermos fazer essa distinção clara entre os dois regimes, há uma zona em que o individual e o coletivo se encontram tanto no capitalismo quanto no socialismo. Essa zona cinzenta é a dos bens públicos, mencionados no trecho que abre este artigo. Eles serão o foco nesta semana e a razão será explicada mais adiante.

    Conforme John Rawls explica, os bens públicos têm duas características: são indivisíveis e compartilhados por todos. Não é possível dividi-los de maneira que cada indivíduo possa comprar um pedaço de acordo com seus desejos e possibilidades. Para que tais bens possam ser usufruídos, eles têm que ser ofertados a todos os membros da sociedade ao mesmo tempo e cada um deles usufruirá da mesma quantidade. O bem público por excelência é a defesa do país contra ataques estrangeiros: a existência de um exército nacional beneficia todos os cidadãos que vivem naquele território, independentemente da condição social e econômica individual. Em um regime capitalista, em que a alocação dos recursos é ditada pelos preços, como financiar a produção de bens públicos indivisíveis e usufruídos por todos ao mesmo tempo?

    O modo de viabilizá-los é a tributação: todos os cidadãos pagando impostos gerarão os recursos necessários para produzir tais bens coletivos. Mas como garantir a adesão de cada indivíduo a esse consórcio? Porque se uma única pessoa não pagar os impostos ela mesmo assim usufruirá do bem público, da mesma maneira que aquela que os paga regularmente. A única forma é a atuação do Estado, impondo a obrigação tributária, sob pena de sanção: tendo a segurança de que os que querem apenas o bônus dos bens públicos, mas querem evitar o ônus do financiamento serão punidos, o indivíduo será estimulado a pagar os impostos porque ele pode confiar que todos o farão. E assim, a coerção estatal viabiliza a tributação e a geração dos recursos para que a sociedade possa ter acesso a bens públicos.

    Por outro lado, a coerção e a punição têm limites: a tributação não pode ser de tal monta que impeça que o indivíduo possa adquirir os bens privados que lhe dão conforto material. Não é possível financiar a produção de uma infinidade de bens públicos, há que se estabelecer uma prioridade. Tal prioridade é definida no processo político, quando a sociedade toma as decisões sobre quais bens públicos serão produzidos e qual o nível de tributação necessário para isso. É aqui que chegamos ao leitmotiv deste humilde artigo, qual seja as reservas indígenas no norte do Brasil, na região da Floresta Amazônica. Elas devem ser bens públicos e serem criadas com dinheiro público para que todos usufruam dos benefícios do meio ambiente preservado?

    A resposta de Marina Silva a esta pergunta, com base no trecho mencionado na abertura deste artigo, parece ser um retumbante sim. Criar reservas para que os índios possam viver de acordo com seu modo tradicional, que causa pouco impacto na floresta, é a maneira de blindá-la das atividades de madeireiros, mineradores e agricultores de soja. A foto que abre este artigo ilustra a dicotomia entre bem privado e bem público que respalda a visão ambientalista de Marina Silva: do lado esquerdo, amarelo (ou laranja agora e amarelo quando a soja crescer), a terra de propriedade privada, pronta para a prática da agricultura de exportação, cujo produto será vendido em dólares e trará lucros para o capitalista que a explora e divisas para o Brasil; do lado direito, verde, o bem público representado pela floresta preservada, o manto de clorofila cuja umidade cria os rios voadores que são responsáveis pelas chuvas no Sudeste do Brasil, e cujas folhas capturam CO2, permitindo que consigamos atingir as metas de redução de emissões de carbono na atmosfera.

    Mas será que todos os brasileiros realmente consideram que as reservas indígenas sejam bens públicos dos quais todos nós usufruímos? Será que os pobres que vivem nas favelas das cidades do Norte do Brasil não preferem serem empregados de madeireiras e mineradoras do que deixarem vastas áreas de floresta disponíveis somente para os índios e seus descendentes de maneira permanente? Será que os plantadores de soja não preferem que tais terras fiquem disponíveis para serem apropriadas privadamente e serem objeto de atividade agrícola? Será que a necessidade de divisas internacionais para pagarmos por nossas importações será mais premente do que a necessidade de garantir a qualidade de vida das futuras gerações de brasileiros? Será que considerando todos os interesses envolvidos, o Congresso Nacional, que tem a palavra final sobre o orçamento elaborado pelo Poder Executivo, colocará como prioridade o financiamento da criação de reservas indígenas aumentando a verba alocada ao Ministério do Meio Ambiente?

    Prezados leitores, veremos quais serão as reais intenções da sociedade brasileira e os bens públicos que ela escolherá a partir de 1º de janeiro de 2023.

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Convivendo com o inimigo

O Brasil vai enfrentar grandes desafios, seja quem for o vencedor das eleições presidenciais. O país está muito dividido, as instituições estão em frangalhos, e estamos perdendo dia após dia a capacidade de conviver. Além disso, a natureza desta eleição, meio plebiscito, meio competição de rejeição, vai eleger um presidente sem um programa. Estamos votando por medo, dando um cheque em branco para quem vencer, com a vã esperança de que podemos espantar o fantasma do inimigo.

Trecho retirado do artigo “Futuro Desafiador”, de Pablo Ortellado, publicado no jornal O Globo de 30 de outubro

Ele não era neutro no duelo pela França, mas “meu interesse não me fez esquecer nem as qualidades louváveis dos nossos adversários nem as características lamentáveis daqueles a quem dei apoio.” […] Montaigne era o francês mais civilizado naquela era selvagem.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre o escritor francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)

    Prezados leitores, na semana passada, na tentativa de explicar a necessidade de tolerar aqueles que não aceitam nossas ideias em prol da liberdade de todos, eu falei da dificuldade histórica de colocar isso em prática. Um dos que tentaram uma trégua entre as facções inimigas no auge das disputas entre católicos e protestantes na Europa foi o rei da França Henrique IV (1553-1610), que por sua tolerância foi considerado inimigo da verdadeira fé e assassinado por um fanático católico. Um dos admiradores de Henrique de Navarra foi o inventor do gênero ensaio na literatura mundial, Michel de Montaigne, que em sua obra justificou a necessidade da tolerância mútua. É tal justificativa que tentarei explicar neste artigo.

    Em sua obra “Ensaios” em três volumes, Montaigne reconhece os limites da razão humana para a obtenção do conhecimento. Ela se baseia na percepção dos nossos sentidos, que é falha e limitada, de forma que a razão não pode ser uma guia infalível. E, no entanto, somos presunçosos: criamos dezenas e dezenas de deuses, formulamos as mais diversas e absurdas hipóteses para explicar o universo e prever o destino do homem depois da morte. Pior, quanto menos sabemos sobre algo, mais acreditamos piamente na teoria filosófica ou religiosa que explica tudo. O fato é que a existência, tanto de nós enquanto seres, como dos objetos que nos rodeiam, está em constante mudança, decadência e morte. Assim, nada pode ser estabelecido com certeza e não temos acesso ao ser enquanto categoria ontológica.

    Daí Montaigne dizer que o pró e o contra são ambos possíveis, que algo pode ser ou não ser e que seu método de pensamento seguia as seguintes regras: “Não estabeleço nada, não compreendo as coisas, evito julgar, eu examino.” Diante das falhas inerentes à razão humana, o melhor era proceder com cautela e adotar uma atitude cética: era forçoso sempre considerar que há um outro ponto de vista que pode ser adotado sobre qualquer assunto, afinal há uma variedade de crenças, leis e códigos morais no mundo. Qual a ciência, filosofia ou religião verdadeira? O que é considerado certo agora, daqui a alguns anos será contestado por uma outra opinião.

    Por outro lado, o ceticismo de Montaigne não o levou nem ao agnosticismo nem ao ateísmo. O agnosticismo para ele era um dogmatismo, pois afinal como podemos ter certeza de que nunca saberemos? Já o ateísmo era monstruoso porque se a constatação socrática de que só sei que nada sei é uma consequência lógica do pensamento cético, Montaigne sabe que enfocar demasiadamente nossas hesitações, dúvidas e contradições filosóficas pode nos levar a trilhar um labirinto intelectual no qual a única certeza será a morte. Depois da revolta ante a constatação de que não é possível chegar a uma verdade absoluta e reverenciar a religião da maneira inocente das almas simples, o intelectual, para seu próprio bem-estar espiritual, deve chegar ao significado profundo das coisas divinas e adotar a fé do seu tempo e lugar. A religião pode encobrir nossa ignorância com mitos reconfortantes, mas devemos fazer as pazes com ela para permanecermos no caminho da civilização.

    Sob essa perspectiva, na guerra fratricida entre as seitas religiosas cujos membros se matavam na França, Montaigne, consciente da relatividade das coisas, adotou o princípio da tolerância, conforme descrito no trecho que abre este artigo. Embora fosse fielmente católico, pelas razões acima expostas, ele não deixava de ver defeitos nos membros da sua tribo e qualidades nos membros da tribo inimiga, afinal ele podia perceber que as diferenças filosóficas e morais entre as duas correntes eram fruto de um desenvolvimento histórico que levaram à criação de costumes e de regras específicas. Daí sua admiração pelo homem responsável pelo Édito de Nantes, que tentou estabelecer a tolerância religiosa no ordenamento jurídico francês do século XVI.

    Prezados leitores, imbuída do espírito do grande ensaísta francês, proporei um exercício intelectual ao qual os convido para apaziguarmos os ânimos tão acirrados depois das eleições presidenciais de 30 de outubro, conforme corretamente previu o jornalista Pablo Orellano no artigo mencionado na abertura deste artigo. Que tal se os bolsonaristas reconhecerem que o voto em Lula não é necessariamente fruto de fraude nas urnas eletrônicas, mas devido ao carisma do ex-presidente e agora futuro presidente, a sua trajetória pessoal de superação, com a qual muitos brasileiros se identificam por causa da própria formação histórica do país?  Que tal se os lulistas reconhecerem que o voto em Bolsonaro não é necessariamente um voto de extremistas contra a democracia, mas um voto de protesto contra a politização exagerada do Judiciário, contra suas decisões erráticas que levam os cidadãos a desconfiar da motivação delas? E que tal se o ministro do STF Alexandre de Moraes não querer controlar até o sentido que as pessoas dão à palavra culpado?

    Talvez seja um exercício em vão e nosso destino é nos digladiarmos com nossos parentes e amigos, tal como os franceses fizeram à época em que Montaigne viveu. No entanto, fica a lição do primeiro ensaísta: conviver com o inimigo, saber que ele tem as mesmas falhas de julgamento que você, mas ao mesmo tempo tem valores e aspirações espirituais como você tem é o melhor remédio para este Futuro Desafiador.

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Tolerando os intolerantes

Na refrega ocorrida na Europa entre a Reforma (1517) e a Paz de Vestfália (1648), essa competição coletiva usou a religião como uma roupagem e uma arma para fins econômicos e políticos. Quando, depois de um século de lutas, os combatentes depuseram as armas, a cristandade mal sobreviveu entre as ruínas.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), que abre o capítulo sobre as Guerras de Religião que se desenrolaram na França entre 1562-1598

Há uma divisão do país que não é regional, mas por outras categorias. Antes de tudo econômica […]. Desde 2018 surgiram outras duas divisões importantes: a religiosa e a por sexo. […] Na religião, a posição de Lula entre católicos e a de Bolsonaro entre evangélicos se invertem na preferência.

Trecho da entrevista dada pelo professor da UNICAMP Marcos Nobre ao jornal O Estado de São Paulo em 23 de outubro

 

A conclusão, então, é que em que pese o intolerante não ter direito de reclamar de intolerância, sua liberdade pode ser restrita somente quando o tolerante sinceramente e com razão acredita que sua própria segurança e a segurança das instituições da liberdade estão em perigo.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, em “Uma Teoria da Justiça” John Rawls elabora uma estrutura teórica para explicar que tipo de justiça será escolhida por indivíduos na posição original de partes que celebrarão um contrato social, mas que não têm nenhum conhecimento sobre a posição mais ou menos privilegiada que ocuparão na sociedade. Um dos itens do rol de liberdades escolhido por esse cidadão motivado pelo interesse próprio, que deseja estabelecer leis que lhe deem a oportunidade de perseguir seus objetivos de vida, é a liberdade de consciência e seu corolário, a liberdade de religião.

    Como na posição original o indivíduo não sabe a que religião ele estará afiliado, se é que estará, e se essa religião será a da maioria ou a da minoria da população, ele irá escolher regras que façam com que o Estado não favoreça uma crença específica e nem puna quem pertence a uma certa filiação religiosa ou que escolha não pertencer a religião nenhuma. O objetivo será que cada indivíduo tenha a possibilidade de concretizar seus valores espirituais e eventualmente cumprir as obrigações que sua religião lhe impõe no âmbito de um cenário em que outros de religião diferente ou sem religião possam fazer o mesmo.

    Nesse sentido, a liberdade religiosa proposta nessa ordem liberal não é a liberdade de reivindicar mais liberdade para si porque você deve realizar os desígnios de Deus, ou a liberdade de impor sua visão moral e filosófica a outros porque você a considera a única verdadeira. Afinal, não há como escolher uma entidade imparcial que desempenhe o papel de árbitro para decidir qual religião é verdadeira e qual é falsa e por isso nenhuma crença pode arrogar-se uma posição privilegiada em relação a outra. O fundamento da liberdade religiosa reside não em nenhuma teoria filosófica, mas nos princípios escolhidos por cada membro da sociedade na posição original com base no bom senso compartilhado de cidadãos que querem ter a oportunidade de prosperar em uma sociedade e para isso celebram de boa fé um acordo com regras que regulam o comportamento de todos de forma que cada um posso dar vazão a sua individualidade.

    Se, no esquema de Rawls, o fundamento da liberdade de consciência e de religião é simplesmente o interesse próprio de indivíduos que desejam estabelecer condições sustentáveis no longo prazo para sua felicidade, coloca-se o problema se faz sentido tolerar no seio dessa sociedade que garante liberdades iguais para todos os intolerantes, isto é, aqueles que consideram que sua visão de mundo, seus valores morais e filosóficos são os únicos verdadeiros e dignos de serem perseguidos e apoiados. Conforme explica o filósofo americano no trecho que abre este artigo, a resposta é que tal tolerância é possível até certo limite.

    De fato, enquanto os intolerantes estiverem de boa fé e dispostos a aceitar que aqueles que se opõem a suas ideias usufruam da mesma liberdade a eles garantida para expor as deles, seu dogmatismo pode florescer nessa sociedade organizada sob o princípio da liberdade. No entanto, nas circunstâncias em que o comportamento dos intolerantes ameace ou coloque em risco a liberdade dos outros membros da sociedade, para que os princípios escolhidos na posição original possam continuar a embasar a ordem social será preciso colocar limites à liberdade conferida aos intolerantes de denunciar quem não pensa como eles.

    Estabelecer esse critério na prática é o desafio enfrentado ao longo da História. As Guerras de Religião, descritas por Will Durant no livro citado acima, é um exemplo típico da dificuldade de estabelecer regras de convivência e tolerância entre grupos que se odeiam mutuamente, como era o caso dos católicos e dos protestantes na França do século XVI, que eram chamados de huguenotes. Para os católicos, os protestantes não tinham nem direito de existir e para os protestantes, o culto católico era uma idolatria pagã que nada tinha a ver com a Bíblia. Depois de idas e vindas em termos de batalhas vencidas por um grupo ou outro, depois do massacre de São Bartolomeu ocorrido em Paris em 24 de agosto de 1572, e seus desdobramentos em várias cidades da França  nos dias seguintes, em que entre 5.000 a 30.000  huguenotes foram mortos por suas convicções religiosas, o rei da França Henrique IV (1553-1610) decretou o Édito de Nantes em 13 de abril de 1598, conferindo liberdade de culto e de acesso a cargos públicos e a instituições de ensino aos protestantes em 787 das 800 cidades  francesas. No entanto, essa tolerância mútua de grupos que tinham discordâncias profundas sobre Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria e os santos durou menos de um século: o neto de Henrique IV, Luís XIV (1638-1715), revogou o Édito em 18 de outubro de 1685, retirando dos huguenotes todas as liberdades civis e religiosas. Em suma, na França do século XVII não foi possível estabelecer limitações mútuas que permitissem que católicos e protestantes perseguissem seus valores morais e espirituais livremente: a liberdade concedida a um grupo minoritário representava uma ameaça à unidade do Estado, cujos princípios de organização eram fundados na fé católica.

    Prezados leitores, será que essas eleições presidenciais revelam que vivemos nossa versão tupiniquim das Guerras de Religião? Conforme explica Marcos Nobre na entrevista que abre este artigo, há uma divisão profunda entre bolsonaristas e petistas em termos de religião: uns são evangélicos e os outros são católicos. Essa divisão vai além da polarização, porque revela um fosso entre os dois grupos, que vivem em mundos diferentes e tem visões radicalmente opostas. Para o cientista político, a única maneira de sustentar a democracia a longo prazo é que a direita bolsonarista seja isolada pela ação concertada da esquerda e da direita democráticas.

    À luz da experiência histórica explicada acima o que nos aguarda? Uma tolerância precária dos opostos por algumas décadas como ocorreu na França sob o Édito de Nantes? Ou a escolha de um lado e a interrupção da tolerância ao grupo oponente, como ocorreu naquele país, que assistiu ao êxodo dos huguenotes? Ou será que depois de tantas disputas teológicas, chegaremos exaustos à conclusão, conforme Durant explica no trecho que abre este artigo, que as verdades irrefutáveis sobre a religião são ilusões e não iremos crer mais em nada? Aguardemos e no entrementes tentemos tolerar os intolerantes para bem das nossas liberdades.

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