Pareto e o PROUNI

Existe uma percepção, principalmente de grupos sociais emergentes, de que ter um diploma é uma maneira de ascender socialmente. Não há nada de errado com isso, inclusive é natural que se pense assim, pois o próprio mercado de trabalho pressiona por mais qualificação. Quem não tem o ensino médio dificilmente consegue ocupação. Porém essa é uma visão credencialista da educação e nem sempre obter uma credencial corresponde à efetiva aquisição de habilidades, competências e saberes equivalentes ao grau conquistado. O que vemos hoje no Brasil é uma inflação dessas credenciais educacionais sem lastro. […] Acho que o papel do governo seria garantir que, para obter qualquer diploma, o aluno teria necessariamente de demonstrar publicamente que houve aquisição das competências, dos conhecimentos e das habilidades correspondentes.

Trecho retirado da entrevista dada pelo economista Eduardo Gianetti da Fonseca a Paola Gentile e publicada em 30 de maio de 2015

As pessoas se esquecem que nós espalhamos universidades por esse país afora. E vou dizer uma coisa pra você: o Prouni foi a maior revolução educacional que a gente fez nesse país. Milhões de meninos da periferia, meninos negros e negras que estudavam em escola pública tiveram a oportunidade de primeira vez fazer uma universidade que era privilégio de rico. Era privilégio da classe média alta. Aliás, Ciro, você sabe perfeitamente bem que esse país é tão contra a educação que o Peru teve a sua primeira universidade em 1554, e a nossa primeira foi em 1920. Ou seja, a elite brasileira nunca se preocupa a educar. Precisou um metalúrgico sem diploma cuidar disso.

Trecho retirado da fala do candidato Luiz Ignácio Lula da Silva no debate presidencial ocorrido em 28 de agosto´

 

A distribuição da riqueza e da renda, e as posições de autoridade e responsabilidade devem ser consistentes com as liberdades básicas e com a igualdade de oportunidade. Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, a não ser que a distribuição desigual de alguns desses valores ou de todos eles, seja vantajosa para todos.

Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, em seu livro Uma Teoria da Justiça, John Rawls busca chegar a um conceito de justiça tomando como premissas dois conceitos de igualdade: o de que todos terão a oportunidade de chegar a posições destacadas na hierarquia social, sem haver nenhuma restrição relativa à raça, à origem étnica ou social do indivíduo, e o de que as carreiras estarão abertas a pessoas de talento. Além disso, ele assume que os membros da sociedade usufruem das liberdades naturais, a saber, a liberdade de religião, de manifestação do pensamento, de associação, de opinião.

    O percurso que John Rawls estabelece para chegar à ideia do que é justo, considerando que os homens são livres para se esforçar e concretizar seus talentos, é dividido em duas etapas. De início, há uma estrutura básica em que os bens da sociedade são distribuídos igualitariamente: as pessoas têm direitos e obrigações, renda e patrimônio iguais. Tal estrutura básica serve como ponto de referência para julgar melhorias na estrutura social e avaliar se ela é justa ou injusta. No âmbito da estrutura liberal explicada no parágrafo anterior, como justificar as diferenças na distribuição dos bens que podem surgir quando se abandona esse estágio de igualdade total? John Rawls estabelece uma proibição e um mandato.

    A proibição consiste em que as diferenças nas posições de autoridade e responsabilidade, e na quantidade de renda e riqueza possuída, não podem ser justificadas sob o argumento de que as desvantagens de um grupo social são compensadas pelas vantagens maiores angariadas por outro grupo social. Conforme o trecho que abre este artigo, o mandato de concretização da justiça consiste em organizar a sociedade de forma que mesmo que haja uma distribuição desigual dos recursos, essa distribuição seja vantajosa para todos os membros da sociedade, porque o ambiente de liberdade e de igualdade de oportunidades oferece boas perspectivas para todos.

    Sob essa perspectiva, para evitar o jogo de soma zero, em que o ganho de um é compensado pela perda do outro e estimular uma situação em que todos ganham, a formulação do conceito de justiça liberal proposto por John Rawls requer a aplicação de um princípio fundamental na economia, qual seja o princípio da eficiência, proposto pelo economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) segundo o qual um arranjo é eficiente quando é impossível modificá-lo de forma a tornar a vida de pelo menos uma pessoa melhor sem que ao mesmo tempo a situação de outra pessoa seja tornada pior. Meu objetivo a partir desse ponto é analisar as conquistas educacionais propaladas pelo candidato à presidência Lula, conforme explicadas no trecho que abre este humilde artigo, à luz desse princípio e das ideais de Rawls.

    Não há dúvida de que o acesso ao ensino superior foi grandemente facilitado por meio do PROUNI, o Programa de Universidade para Todos, criado em 2005, que fornece bolsas de estudo integrais ou parciais em instituições de ensino privadas de todo o Brasil para estudantes cuja renda familiar é de até um salário mínimo e meio por pessoa. Durante os dois mandatos de Lula na presidência, de acordo com a União Nacional dos Estudantes, mais de 1 milhão e duzentas mil pessoas foram atendidas. Esses dados permitem-nos dizer que Lula não mentiu no debate de 28 de agosto quando disse que seu governo democratizou o acesso à universidade, permitindo a estudantes de escola pública, tradicionalmente alijados do ensino superior por não conseguirem ser aprovados nos exames de admissão às universidades públicas, conseguirem seu diploma. A pergunta que se coloca é: essa concessão mais fácil de diplomas, viabilizada pela frequência a instituições privadas, foi eficiente do ponto de vista paretiano?

    Se ouvirmos os comentários de Eduardo Gianetti da Fonseca citados acima, os diplomas universitários concedidos aos membros das “classes emergentes” não foram benéficos para todos. Os diplomados podem ter realizado o sonho de ser doutores, mas quanto às habilidades e conhecimentos que pudessem ser usados para a realização de atividades econômicas produtivas, o PROUNI deixou a dever e seria tarefa do governo exigir, em contrapartida à benesse do financiamento dos estudos, que o aluno demonstrasse ter de fato aprendido alguma coisa que o tornasse um recurso humano valioso. E a necessidade de tais recursos é premente no Brasil. De acordo com Roberto Leal Lobo e Silva, citado no artigo “Engenharia em construção”, publicado na edição da revista FAPESP de março de 2022, na segunda metade dos anos 2000, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento, havia o temor de que se o país continuasse a crescer 4% ao ano, não haveria engenheiros suficientes para dar conta da demanda de profissionais que atuassem entre outras, nas obras de infraestrutura que então estavam a todo vapor, embaladas pelo dinheiro proporcionado pelo boom das commodities.

    Como sabemos, o apagão foi evitado não porque houve um esforço para a formação dos profissionais de que o Brasil necessitava, mas simplesmente porque o crescimento econômico diminuiu muito: o pico de aumento do PIB obtido em 2010, de 7,5%, jamais foi atingido depois, e a última vez em que tivemos 4% de aumento no PIB foi em 2011.  Quanto à formação dos profissionais que poderiam satisfazer a demanda gerada pela expansão das atividades econômicas, ela definitivamente ficou para as calendas. Para citar novamente o artigo da revista FAPESP: “Em 2019, segundo o último Censo da Educação Superior no Brasil, os cursos de engenharia, produção e construção registraram 1.225,243 novas matrículas: 869.781 na rede privada e 355.462 na rede pública.” Em estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria, cobrindo o período de 2001 a 2011, a média de evasão ficou em mais de 60% nos cursos pagos e passou de 40% nas instituições públicas.

    Em suma, o PROUNI permitiu que os “meninos da periferia”, conforme a definição de Lula, conquistassem o direito ao ensino superior, mas a conquista desse direito ficou longe de proporcionar os engenheiros de que o país precisa para inovar e empreender e assim gerar valor. O foco na concessão de direitos sem contrapartidas em termos de demonstração de conhecimento por parte dos alunos fez com que o PROUNI não oferecesse o salto de qualidade na educação que é um dos requisitos para que nossa economia seja mais produtiva e assim cresça de maneira sustentável. Nesse sentido, a democratização do ensino sem critérios de avaliação é ineficiente e portanto injusta, à luz da ordem liberal proposta por Rawls.

    Prezados leitores, quando assistirem ao próximo debate dos presidenciáveis e ouvirem as propostas dos candidatos, tentem analisar seu custo-benefício não do ponto de vista estritamente monetário do quanto custa, mas do ponto de vista dos benefícios que elas trazem a todos os membros da sociedade. Tenho certeza que em assim fazendo derrubarão muitos véus de mistificação colocados pela retórica populista tão em voga na nossa democracia.

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O Grilo Falante

A teoria geocêntrica tinha se encaixado razoavelmente bem em uma teologia que supunha que todas as coisas tinham sido criadas para uso do homem. Mas agora os homens se sentiam jogados de lá para cá em um planeta menor cuja história estava sendo reduzida a “uma mera notícia local do universo”. […] Só havia uma única proteção contra tais homens, e era que somente uma pequena minoria em uma geração reconheceria as implicações do seu pensamento. O sol irá “levantar-se” e “pôr-se” quando Copérnico tiver sido esquecido.

Trecho retirado do livro “A Reforma” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

As pessoas dão ouvidos a um astrólogo arrivista que se esforçou para mostrar que a Terra gira, não os céus ou o firmamento, o Sol e a Lua … Esse imbecil quer colocar de cabeça para baixo todo o esquema da astronomia; mas as Sagradas Escrituras nos dizem que Javé mandou que o Sol permanecesse parado, não a Terra.

Comentário de Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e um dos líderes da Reforma Protestante, sobre Nicolau Copérnico

O candidato pelo PDT, Ciro Gomes, afirmou que quer vencer a eleição para poder discutir o modelo econômico. “Esta é a razão pela qual eu, pela quarta vez, tento ser presidente do Brasil. Claro que desta vez chega. Porque se eu não ganho agora, vou botar a viola no saco, porque eu virei o grilo falante, o chato, o destemperado, porque falo números” – afirmou.

Trecho retirado do artigo “50s de propaganda na TV e o adeus melancólico do ‘grilo falante’, citando a fala do candidato à Presidência, Ciro Gomes, na entrevista dada ao programa Roda Viva de 15 de agosto

    Prezados leitores, no artigo “A revolução dos astros e dos filósofos” eu abordei a teoria heliocêntrica do astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543) para exemplificar o modo pelo qual ocorrem as mudanças nos paradigmas científicos, de acordo com o filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996). O astrônomo polonês não fez grandes observações astronômicas, mesmo porque ele não tinha telescópio, tendo se valido em grande parte das observações de Cláudio Ptolomeu (90-168) de Alexandria, cuja teoria geocêntrica era a que então vigia. Assim, o que fez a comunidade científica ao final aceitar a substituição do sistema ptolemaico não foi um acúmulo de constatações experimentais que levaram gradual e certamente ao sistema copernicano. Na verdade, foi preciso que a comunidade científica se deixasse convencer de que a hipótese de que a Terra girava em torno do Sol salvava melhor as aparências, isto é, explicava melhor os fenômenos naturais de maneira mais simples do que o sistema de Ptolomeu, e era mais útil, pois permitia um melhor cálculo da duração do ano.

    Assim a teoria heliocêntrica foi adotada amplamente, abrindo os caminhos que seriam trilhados por Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727). Além disso, conforme a descrição que Will Durant faz das contribuições de Nicolau Copérnico à ciência e que abrem este artigo, a mudança de paradigmas deu-se também na dimensão filosófica e teológica. Se a Terra era apenas o quarto dos planetas que completavam uma órbita em torno do sol em um tempo relativamente curto, em comparação com os 30 anos de Saturno ou os 12 anos de Júpiter, como acreditar que Deus tinha enviado seu Filho, Jesus Cristo, para morrer neste planeta medíocre? Se a Terra não era o centro do mundo, ficava mais difícil continuar a conceber Deus da maneira provinciana e antropomórfica que a religião cristã preconizava.

    É nesse sentido que Will Durant considera que o sistema de Copérnico teve uma influência muito mais revolucionária do que a Reforma Protestante. Nos séculos XV e XVI as disputas entre católicos e protestantes giravam em torno de questões bizantinas, como por exemplo se o corpo e o sangue de Jesus Cristo estavam de fato presentes na hóstia ou se o homem tem livre arbítrio para decidir entre o bem ou o mal ou se já está predestinado a arder no Inferno ou a usufruir da graça de Deus. Nenhum debate a respeito delas poderia chegar a uma conclusão que fosse aceita por todos, porque não era possível estabelecer um meio de verificação das proposições que não fosse pela referência às próprias premissas dos argumentos defendidos, e tais premissas eram violentamente contestadas. Sob uma perspectiva histórica, as discussões teológicas que absorviam tantos homens de intelecto não contribuíram em nada para o salto intelectual dado pelo Homem Ocidental rumo à investigação desassombrada da Natureza. Afinal, como mostra o comentário de Martinho Lutero sobre Copérnico que abre este artigo, a ciência não era a preocupação central dos homens que defendiam ardentemente a reforma do cristianismo corrompido pelo poder e pela riqueza da Igreja Católica. A ênfase deles nas Escrituras, como textos inspirados diretamente pelo Espírito Santo, as alçavam acima de qualquer teoria que tentasse explicar os mecanismos do Universo. Onde as teorias se chocassem com a literalidade da Bíblia, esta tinha a palavra final, pois ela era a palavra de Deus.

    Ao colocar o Homem como habitante de um pequeno planeta que faz parte de um Cosmos muito maior, a revolução de Copérnico abriu as portas, para aqueles que conseguiram ver suas implicações, ao Iluminismo do século XVIII e ao agnosticismo do século XIX. À pequena elite pensante não era mais possível aceitar o conteúdo proposicional da religião cristã, isto é, o que ela, inspirada pelas narrativas bíblicas, dizia a respeito da criação do Mundo e do Homem. Por outro lado, para a maior parte do povo que nunca leu “De revolutionibus orbium coelestium”, o Sol continuava a nascer e a morrer e Nicolau Copérnico foi apenas mais um homem que do pó viera e ao pó retornou, em 24 de maio de 1543, no mesmo dia em que viu uma cópia impressa de sua obra-prima.

    A discrepância entre o impacto daquilo que Nicolau Copérnico pensou e escreveu sobre o desenvolvimento da ciência e sobre as crenças da maioria das pessoas nos faz lembrar da figura do grilo falante, o companheiro de Pinóquio no desenho animado que funciona como uma espécie de consciência moral do boneco: o grilo falante continua a falar porque é seu dever alertar seu amigo sobre os perigos do seu comportamento. Se todos tivessem atentado para as lições de Copérnico, as autoridades religiosas teriam se limitado a ponderar sobre a ética e a moral e se absteriam de considerar a Bíblia como fonte de conhecimentos sobre a física e a biologia, como fizeram para confrontar Galileu, Giordano Bruno (1548-1600) e Charles Darwin (1809-1882). Ao final, esse comportamento revelou-se fatal para a religião cristã, que perdeu a credibilidade intelectual por insistir em confrontar seu conteúdo proposicional ao da ciência e acabou com isso perdendo autoridade para ditar normas às pessoas sobre como se comportar umas com as outras para que a sociedade pudesse funcionar de maneira civilizada.

    Prezados leitores, à luz dessa descrição da dimensão profética do grilo falante, não é pertinente a descrição que Ciro Gomes faz de si mesmo, em tom jocoso, nessas eleições, conforme mostrada na abertura deste artigo? Num ambiente em que um dos principais acontecimentos da campanha até agora foi o comparecimento de Lula a um culto africano, considerado demoníaco pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, detalhar propostas sobre como criar empregos, aumentar investimentos públicos, atacar o déficit fiscal, financiar a previdência não é bancar o grilo falante? Algum eleitor quer saber disso? Algum eleitor acha isso relevante o suficiente para determinar seu voto? Ou queremos só ver vídeos e memes de desqualificação mútua dos candidatos?

    Em 1581, foi erguido um monumento em homenagem a Copérnico na Catedral de Frauenburg, que em 1746 foi removido para dar lugar à estátua de um bispo. Talvez um dia, no Brasil, façamos uma homenagem ao nosso grilo falante que falava sobre assuntos prementes que precisavam ser resolvidos para que pudéssemos evitar mais desastre social e econômico. Ou então nem essa singela lembrança ele terá. A esperança é que suas ideias, em que pesem não significarem nada para a maioria dos eleitores, possam influenciar alguns poucos que pensam sobre os rumos do país, chacoalhado pelos radicalismos.

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Você decide

Em suma, caso um novo candidato a paradigma tivesse que ser julgado deste o início por pessoas objetivas que examinassem somente a capacidade relativa de solução de problemas, as ciências passariam por muito poucas grandes revoluções. […] O homem que adota um novo paradigma logo no início frequentemente o faz a despeito das evidências proporcionadas pela solução de problemas. Ele deve, isso sim, ter fé que o novo paradigma será bem-sucedido com os muitos problemas que o confrontam, sabendo somente que o paradigma mais antigo falhou na solução de uns poucos problemas.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

Foto retirada pelo site UOL de um prédio no Rio Grande do Sul.

    Prezados leitores, nas duas últimas semanas eu tenho aproveitado as lições de Thomas Kuhn sobre como a ciência se desenrola na prática para fazer uma analogia com o processo democrático. A razão de eu ter traçado tal paralelo é que, conforme expliquei no artigo “Circularidades”, o próprio autor faz uso do conceito de revolução da ciência política para explicar a revolução na prática científica: tanto na política quanto na ciência, ocorre a introdução de uma nova ordem que assenta sobre princípios totalmente diferentes dos da ordem antiga, tornando-as incompatíveis e inviabilizando que elas coexistam.  Nesta semana, meu objetivo é explorar o modo como à luz da “A Estrutura das Revoluções Científicas”, a nova ordem é estabelecida, isto é, como os novos paradigmas se introduzem na comunidade científica e se impõem como consenso. Novamente, seguirei a trilha de me utilizar dos conceitos de Kuhn para iluminar o momento político pelo qual o Brasil passa.

    Até que o novo paradigma atinja o status de estrutura conceitual amplamente aceita que permita aos cientistas praticarem a ciência normal, é preciso que haja um movimento de adoção por parte de cientistas normalmente mais novos e não tão adeptos dos paradigmas da ciência normal, porque desprovidos da experiência dos cientistas veteranos em fazer uso da estrutura vigente para produzir resultados. Essa falta de apego ao consenso vigente faz com que esses revolucionários estejam mais dispostos a adotar abordagens disruptivas para dar conta das anomalias que a ciência normal não consegue resolver. No entanto, essa disrupção não é uma opção clara e por isso, é cheia de perigos.

    Conforme explica Kuhn no trecho que abre este artigo, o caminho da disrupção é perigoso porque não há critérios objetivos que permitam decidir de maneira unívoca em prol de um paradigma em detrimento de outro. Isso porque raramente ocorre de o novo paradigma resolver muito mais problemas do que o paradigma antigo. Ao contrário, apesar de ele ter sido pensado como uma resposta aos problemas criados pelo paradigma antigo, o novo paradigma frequentemente resolve alguns problemas e cria outros, os quais eram mais bem tratados pelo paradigma antigo e, portanto, sua utilidade não é flagrante desde o primeiro momento. Kuhn fornece o exemplo da teoria de Newton para ilustrar esse ponto: ela foi rejeitada por muitos porque colocava a gravidade como uma força de atração entre partículas de matéria sem tentar explicar a razão de tal atração, como haviam feito Aristóteles e Descartes antes dele. Newton tornava assim a gravidade um conceito metafísico: ela existia e pronto, não havia na estrutura da física Newtoniana espaço para questionamentos sobre o porquê de ela existir.

    Em última análise, a adoção de um novo paradigma é uma questão de fé: o proponente da revolução crê que no longo prazo ela dará frutos em termos de solução de problemas, mesmo que no momento em que ela é proposta não haja como escolhê-la com base em sua eficiência ou o grau de aproximação da verdade que ela traz. Aliás, nenhum cientista adota um paradigma em seus estágios iniciais porque ele considera que assim a verdade estará mais próxima, afinal tal alegação, segundo Kuhn, está fora do escopo de questões científicas válidas. O que é pertinente questionar a respeito de um novo conjunto de paradigmas é se, passado algum tempo de sua adoção, ele foi capaz de ser útil, isto é, se ele foi capaz de estruturar a operação da ciência normal, aquela, que faz medições e consegue fazer previsões corretas a respeito do que ocorrerá no mundo dos fenômenos, aquela que estabelece padrões de ocorrência e melhor ainda aquela que consegue, baseando-se nos novos paradigmas, revelar fenômenos inesperados que iluminam uma nova faceta da realidade jamais prevista antes.

    Daí porque podemos dizer que o percurso de um conjunto de paradigmas até ele se transformar em consenso aceito e utilizado pela comunidade científica para fazer ciência requer um movimento de coragem da parte dos que, não tendo sólidas bases para defender sua adoção, mesmo assim o fazem por acreditarem que a nova estrutura conceitual revelará suas qualidades epistemológicas no longo prazo. É neste ponto que traço o paralelo entre os paradigmas científicos e os paradigmas políticos, por meio da foto que abre este humilde artigo. Ela mostra à esquerda o paradigma do que é considerado como posições ideológicas da direita, e mostra à direita o paradigma da esquerda, tal como ela se apresenta atualmente no Brasil na visão dos que se colocam à direita no espectro político.  E convida o leitor a decidir entre um paradigma e outro, entre o verde e amarelo dos patriotas e o vermelho dos comunistas, cujo símbolo tradicional são a foice e o martelo.

    Será que devemos lamentar que as eleições presidenciais de 2022 tenham chegado a esse estágio de polarização? Se é para decidir, significa que a resposta à pergunta que eu coloquei na semana passada – sobre em que estágio do esquema de Kuhn estamos em nosso processo político – já tem resposta. Não temos consenso nenhum que nos permita operar na mesma estrutura conceitual. No mundo da ciência isso significa que a produção científica emperra: nada é mensurado, previsto ou descoberto. No mundo da política, isso significa que as políticas públicas emperram: não são formuladas porque não há premissas sobre as quais elas possam ser criadas. Um exemplo gritante disso é na área da educação: enquanto ainda não decidimos se queremos ou não que a escola aborde temas como multiplicidade de gêneros, diferenças entre sexo e gênero, o papel da religião na escola, o papel dos pais no conteúdo curricular, a validade do ensino em casa, não temos como unir esforços para estabelecer e implementar os melhores métodos de ensinar a ler, a entender um texto, a compreender conceitos matemáticos e a colocá-los em prática.

    Já que é inquestionável que estamos em um momento de grande falta de consenso e de disputa entre paradigmas, uma nova questão se coloca: como resolveremos a disputa dos paradigmas políticos? Denunciando-os como uma mera disputa ideológica que faz nós perdermos tempo que poderia ser mais bem utilizado pelo foco na solução dos problemas práticos da população – como gerar emprego, como diminuir os juros, como melhorar os serviços públicos? Ou tornando a decisão sobre que paradigma adotar algo fundamental para que possamos passar às questões que afetam a vida cotidiana dos cidadãos? Se adotarmos a segunda opção, como introduziremos o novo paradigma: pela força da convicção dos revolucionários, tal como ocorreu ao longo da história da ciência? Ou pelo voto da maioria dos eleitores, que em outubro de 2022 terão de escolher o lado esquerdo ou o lado direito da empena do edifício gaúcho? Você decide.

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Circularidades

Quando os paradigmas são introduzidos, como devem ser, em uma discussão sobre a escolha de paradigmas, o papel deles é necessariamente circular. Cada grupo utiliza seus próprios paradigmas para argumentar na defesa dos seu paradigma. […] No entanto, qualquer que seja sua força, o status do argumento circular limita-se à força da persuasão. Ele não pode tornar-se convincente do ponto de vista lógico ou mesmo probabilístico para aqueles que se recusam a entrar no círculo.  As premissas e valores compartilhados pelas duas partes no debate sobre os paradigmas não são suficientemente abrangentes para isso.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

O perigo em uma democracia é este: do que depende a democracia? A democracia depende de o eleitor individualmente tomar uma decisão inteligente e racional sobre o que ele considera seu interesse próprio esclarecido em todas as circunstâncias.

Trecho retirado de uma entrevista dada em 1958 pelo escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) ao jornalista americano Mike Wallace (1918-2012), em que Huxley compartilha suas visões e apreensões sobre o admirável mundo novo do aumento da população, das comunicações e da tecnologia e os impactos disso sobre a liberdade dos cidadãos

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei explicar o modo como a ciência se desenrola na prática à luz da descrição feita por Thomas Kuhn, que em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, faz uso do seu conhecimento da história da ciência, particularmente da química, da física e da astronomia, para ilustrar seu ponto. Estabelecem-se paradigmas que permitem que a ciência normal se desenvolva. O desenvolvimento das pesquisas e das experimentações levam ao surgimento de exceções às teorias pressupostas pela ciência normal, o que leva a um estado de crise, que só é superado quando novos paradigmas surgem e se consolidam que dão conta das exceções e as normalizam, abrindo novos caminhos para o empreendimento científico. Nesta semana, meu objetivo é explorar um pouco mais a etapa em que há uma disputa entre diferentes paradigmas sobre os quais a comunidade científica ainda não chegou a um consenso, de modo a traçar uma analogia com outro campo da atividade humana.

    Conforme explica Thomas Kuhn, quando a crise se instala e há um mal-estar sobre a inadequação dos paradigmas vigentes para lidar com as anomalias que surgem, o advento de um novo arcabouço teórico, que permita aos cientistas estabelecer os problemas a serem resolvidos e o modo como resolvê-los, não é simples. Há uma disputa entre paradigmas, que não pode ser resolvida pelas partes envolvidas recorrendo a uma instância superior que decida qual é o melhor paradigma. E a razão de não haver tal órgão adjudicatório, segundo o filósofo americano, reside na própria natureza desses paradigmas em choque, conforme explicada no trecho que abre este artigo: eles têm uma natureza circular, pois para aceitá-los e deixar-se convencer, não é suficiente recorrermos aos dados experimentais e à probabilidade de uma ou outra proposição, porque tanto os dados experimentais quanto as proposições existem no próprio seio da estrutura teórica estabelecida pelos paradigmas em conflito. As premissas e valores propostos por um paradigma determinam aquilo que o cientista enxerga no mundo, aquilo que ele colocará como questões a serem respondidas, os métodos que ele utilizará para responder a tais questões e proporcionar resultados.

    Para ilustrar essa disputa entre paradigmas, Kuhn descreve os conceitos diferentes de Galileu Galilei, físico e astrônomo italiano (1564-1642) e de Aristóteles, o filósofo grego (384 a.C. – 322 a.C.), para explicar um corpo que balança. Para Aristóteles, que considerava que todo corpo tem uma tendência inerente à sua própria natureza de mover-se de uma posição mais alta para um estado de repouso em uma posição mais baixa, tal corpo estava simplesmente caindo com dificuldade e com base nesse conceito, as propriedades que deveriam ser pesquisadas diziam respeito ao seu peso, ao seu tamanho, à distância que faltava para chegar ao seu destino final, que era local da interrupção do movimento e à velocidade média da trajetória. Galileu, por seu turno, partia de outra hipótese teórica, surgida na Idade Média em função do trabalho dos filósofos escolásticos Jean Buridan (1301-1358) e Nicolau de Oresme (1323-1382): todo corpo tinha um poder interno nele implantado pelo agente que iniciou o movimento, de forma que o corpo apresentaria movimento contínuo. Inspirado por essa teoria do ímpeto, Galileu via um corpo que balança como um pêndulo, e tal pêndulo apresentava certos atributos, como amplitude, aceleração, distância em relação à origem e velocidade instantânea.

    Sob essa perspectiva, a escolha de um paradigma e não de outro tem implicações surpreendentes: ela determina aquilo que o cientista pressupõe como existente, e o mundo em que ele se insere como pesquisador. À luz de como a ciência é realmente praticada e como ela se desenvolve, a ideia de que os cientistas divergem apenas quanto à interpretação de dados objetivos não é verdadeira sempre. Nos momentos de crise e de disputa a respeito dos princípios que nortearão a prática da ciência normal, a divergência é mais profunda,  porque a depender do paradigma utilizado, os dados serão outros, pois o método de obtê-los depende das perguntas e dos instrumentos utilizados, e tais perguntas e instrumentos dependem de certos conceitos básicos que devem simplesmente ser aceitos para que a roda do empreendimento científico possa girar: para Aristóteles, o mundo era formado por corpos que tinham a tendência inerente a chegar ao repouso, para Galileu o mundo era formado por corpos que eram impulsionados por uma força que os levava a se movimentar.

    Pelo fato de a ciência apresentar essas premissas irredutíveis, Thomas Kuhn compara o processo de advento dos paradigmas necessários à prática da ciência normal a uma revolução política: toda mudança política requer uma mudança nos pressupostos básicos de funcionamento da sociedade, mudança essa que não surge no seio da estrutura institucional vigente, ao contrário ela surge quando a estrutura institucional está em crise e visões incompatíveis entre si disputam a proeminência sem que seja possível estabelecer critérios compartilhados por todos os membros da sociedade para escolher uma outra forma de organização. Assim como uma revolução política destrói os fundamentos sobre os quais a sociedade se organizava, a revolução científica destrói o arcabouço conceitual antigo e introduz um novo modo pelo qual os cientistas veem o mundo.

    Se a analogia entre o mundo da política e o mundo da ciência feita por Kuhn for levada às últimas consequências, teremos uma situação em que o estabelecimento de uma estrutura que permita o funcionamento de uma e de outra só é possível quando se atinge um consenso, isto é, chega-se a um acordo sobre os princípios fundamentais e as coisas podem voltar a funcionar de maneira normal porque cessam as disputas. Nesse momento, a ciência pode ser objetiva no sentido de que haverá procedimentos estabelecidos que darão resultados previsíveis e aceitos pela maioria dos seus praticantes, e a política pode ser racional, tal como vislumbrou Aldous Huxley em sua entrevista sobre as condições para o exercício de escolhas livres pelo cidadão em um regime democrático, conforme o trecho que abre este artigo. De posse de informações críveis, isto é, não manipuladas pela propaganda, e de posse de seu intelecto, o indivíduo em uma democracia escolhe quem irá lhe representar respondendo à pergunta: quem poderá atender melhor meus interesses, isto é, quem dentre os candidatos apresenta propostas de organização da sociedade que permitam que eu tenha uma vida próspera e segura no longo prazo?

    Prezados leitores, em que estágio estaremos no Brasil à luz do esquema proposto por Thomas Kuhn? Estaremos na fase da disputa feroz sobre os paradigmas, na qual as pessoas não se entendem porque falam de coisas diferentes? Ou já estamos sob a égide do consenso necessário à organização da sociedade? Será que a polarização nas eleições presidenciais deste ano entre um candidato de direita e de esquerda não é indício de que ainda não chegamos ao estágio de decidirmos racionalmente porque ainda não chegamos a um acordo sobre certos valores fundamentais? Que nível de consenso é necessário para que uma democracia funcione bem? Que nível de conflito pode ser tolerado em uma democracia para que ela não se desestruture? Talvez tenhamos essa resposta aqui no Brasil ao fim do ciclo eleitoral. Aguardemos.

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A revolução dos astros e dos filósofos

Se a consciência da existência de anomalias desempenha um papel na emergência de novos tipos de fenômenos, não deveria ser surpresa para ninguém que uma conscientização similar mas mais profunda é um pré-requisito para todas as mudanças aceitáveis na teoria. […] a consciência da anomalia havia durado tanto tempo e havia penetrado de maneira tão profunda que os campos por ela afetados podem ser descritos de maneira apropriada como estando em um estado de crise crescente. Pelo fato de exigir a destruição de paradigmas em larga escala e grandes mudanças nos problemas e nas técnicas da ciência normal, a emergência de novas teorias normalmente é precedida por um período de grande insegurança profissional.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

Porque é a tarefa do astrônomo contar a história dos movimentos celestes por meio do estudo especializado e cuidadoso. Depois ele deve conceber e elaborar as causas desses movimentos ou hipóteses sobre eles. Pelo fato de ele não poder de jeito nenhum chegar às verdadeiras causas, ele adotará quaisquer suposições que permitam que movimentos sejam calculados de maneira correta de acordo com os princípios da geometria no futuro e no passado. […] Porque essas hipóteses não precisam ser verdadeiras nem mesmo prováveis. Ao contrário, caso elas proporcionem um cálculo consistente com as observações, isso já é suficiente.

Trecho retirado do prefácio da obra De Revolutionibus do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)

A definição da ciência é incompatível com a pretensão de autoridade da ciência. Se a ciência é uma atividade continuamente autocrítica, ela não pode proclamar nada como verdade definitiva.

Trecho retirado do áudio denominado “Você acredita na opinião da ciência”, gravado por Olavo de Carvalho (1947-2022), escritor e professor de filosofia brasileiro

    Prezados leitores, perdoem-me a menção a Olavo de Carvalho como professor de filosofia, pois bem sei que isso fere a sensibilidades de muitos. Considerado o guru intelectual de Jair Bolsonaro, Olavo era considerado um negacionista, por “não acreditar no aquecimento global, mesmo com todas as evidências científicas”, como afirmou a revista VEJA no seu obituário publicado em 29 de janeiro de 2022. Meu objetivo aqui não é emitir um julgamento sobre o pensamento do “autoproclamado filósofo”, mesmo porque nunca li nada do que ele escreveu.

   No entanto, como eu me incomodo com esses epítetos que são usados a torto e a direito para estigmatizar as pessoas, e negacionista é um deles, eu quis fazer uma investigação sobre a opinião que Olavo tinha da ciência e para isso eu ouvi um áudio no YouTube em que ele fala a respeito da natureza do conhecimento científico. E para julgar se a opinião dele é negacionista ou não, isto é, se ele é anticiência ou não, como seus detratores o descrevem, eu fiz uso da concepção de ciência que surge da leitura do livro de Thomas Kuhn, que abre este artigo.

    Para o físico e filósofo americano, a ciência se desenvolve em algumas etapas: na primeira etapa são estabelecidos os paradigmas, que são as fundações da atividade, os pressupostos sem os quais nada é possível ser colocado em prática: o modo de agir e de trabalhar, certas concepções sobre como as coisas funcionam, as questões a serem respondidas, como fazer experimentos, como pensar o mundo. Tais paradigmas são mais implícitos do que explícitos, sendo compartilhados pela comunidade. Uma vez havendo a consolidação desses paradigmas, a segunda fase, a da ciência normal, pode ocorrer: a ciência normal é aquela praticada pelo profissional que, de posse das técnicas e das teorias amplamente aceitas, gera resultados, seja confirmando as teorias e respondendo às questões propostas ou reformulando as teorias de modo que elas possam continuar tendo poder de explicação e de previsão. Na prática da ciência, a teoria e a prática se confundem: quando o cientista encontra elementos que fogem da ordem que ele presume teoricamente, seus paradigmas teóricos lhe permitem refinar as técnicas de observação e com observações mais precisas, o cientista consegue elaborar teorias mais abrangentes, calibrando os paradigmas que são a base do seu trabalho.

    Na terceira fase há uma quebra no círculo virtuoso pelo qual a teoria e a prática se alimentam mutuamente: a prática começa a gerar resultados que não podem ser compatibilizados de maneira nenhuma com os paradigmas vigentes, surgindo as anomalias. Com o tempo as anomalias se tornam tantas e tão profundas que os cientistas sabem que há algo tremendamente errado com as teorias e elas perdem a capacidade de previsão: não é mais uma questão simplesmente de novos fenômenos inesperados, mas de inconsistências tão profundas com a teoria vigente que esta deixa de ser útil, pois já passou do ponto em que uma pequena correção ou ajuste seriam suficientes para que ela desse conta das descobertas. É o tempo da crise: é unânime a percepção de que os antigos paradigmas precisam ser abandonados porque eles não trarão nenhum fruto, mas ao mesmo tempo não se chegou ao estabelecimento de novas fundações para o empreendimento científico. Somente quando isso ocorrer é que os cientistas poderão a voltar a praticas a ciência normal, que consegue explicar o passado e prever o futuro num todo consistente.

    Kuhn exemplifica esse processo explicando, dentre outras crises na história da ciência, aquela da concepção geocêntrica do sistema solar, que foi elaborada por Ptolomeu, um astrônomo greco-egípcio que viveu no segundo século a.C., presumindo que o Sol e os outros planetas giravam em torno da Terra, descrevendo órbitas circulares. Houve astrônomos gregos, dentre eles Aristarco de Samos (280-264 a.C.), que aventaram a ideia de que era a Terra que girava em torno do Sol, mas naquela época as observações disponíveis e a predileção dos gregos pelos círculos faziam com que a teoria geocêntrica fosse mais conveniente porque se coadunavam melhor com os dados até então coletados e não precisavam pressupor uma órbita elíptica da Terra em torno do Sol, como a teoria heliocêntrica exigia.

    E assim o geocentrismo dominou as mentes por mais de 1.500 anos até que no século XV a crise era evidente. A necessidade de ajustes e correções na teoria de Ptolomeu, em vista das observações acumuladas, haviam-na transformado em um monstro disforme, cheio de remendos e exceções, que precisava ser abatido, pois causava mais mal do que bem, impedindo o progresso na explicação do Universo. A revolução de Copérnico estabeleceu um novo paradigma, mas no próprio prefácio ao De Revolutionibus que abre este artigo, o autor não pretende ter descoberto as causas verdadeiras do movimento dos astros. A teoria heliocêntrica é melhor não por ser mais verdadeira e nem mesmo por ser mais provável, mas porque faz cálculos melhores que a teoria geocêntrica, permitindo encaixar os dados disponíveis num todo consistente e fazer previsões sobre o futuro, dando assim aos cientistas um mapa seguro sobre como fazer experimentações e chegar à descoberta de novos fenômenos que ilustrarão e enriquecerão a teoria.

    À luz  das explicações de Kuhn sobre como a ciência é praticada e da modéstia com que Copérnico apresenta sua teoria heliocêntrica,  será que a afirmação de Olavo de Carvalho de que a ciência não pode se proclamar como verdade definitiva é descabida? Certamente que não, e ele toca num ponto importante a respeito daqueles que invocam a ciência como argumento de autoridade, e portanto, inquestionável, pois a própria natureza da ciência requer um desafio constante à autoridade. Talvez o guru de Bolsonaro peque ao enfatizar demais o desacordo entre os cientistas quando menciona em seu áudio um livro de autoria da historiadora da ciência Milena Wazeck, que relaciona todos os ataques que eram feitos à Teoria da Relatividade até 1940. Aos mais desavisados, isso pode ser evidência de que a ciência é uma disputa sem fim entre teorias. No entanto, a aplicação dos conceitos de Kuhn nos permite encaixar esses desafios aos postulados de Albert Einstein (1879-1955) como parte do processo de elaboração e consolidação de novos paradigmas. Uma vez a Teoria da Relatividade tendo começado a produzir resultados, na forma de previsões e explicações mais consistentes para os fenômenos, ela deixou de ser ferozmente combatida e por enquanto ainda é o paradigma, que claro, um dia será destruído e substituído por outro.

    Prezados leitores, essa minha breve exposição de uma pequena faceta do pensamento de Olavo de Carvalho, pela comparação com os ensinamentos de Kuhn e Copérnico, permite ver que ele não é o aloprado obscurantista que a imprensa descreve. Por outro lado, seu desejo de ser politicamente incorreto às vezes o levava a fazer afirmações polêmicas que poderiam reduzir seu pensamento. A ciência não é uma verdade, mas também ela não é uma simples opinião: o método científico, autodepurativo e em constante evolução, cônscio de suas próprias limitações e por isso capaz de livrar-se dos erros, é o meio mais seguro encontrado até hoje para elaborarmos proposições que representam de alguma forma o mundo que nos cerca.

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