I did it my way, We did it our way

Apesar do plano de relançar a marca do Minha Casa, Minha Vida (MCMV) em fevereiro, o governo levará mais tempo para, de fato, engrenar o programa habitacional em seu novo modelo. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o Executivo não planeja usar as regras do Casa Verde e Amarela (CVA) para contratar novas moradias enquanto o desenho do MCMV é estruturado. A expectativa, por sua vez, é de que a definição de todo arcabouço do novo programa demore meses.

Trecho retirado do artigo “Minha Casa, Minha Vida: contratações devem ocorrer apenas no segundo semestre”, publicado em 5 de fevereiro no jornal o Estado de São Paulo

Mas eu vou supor que enquanto os princípios racionais podem dar foco aos nossos julgamentos e estabelecer diretrizes para reflexão, no final das contas devemos escolher nós mesmos no sentido de que a escolha sempre depende do nosso autoconhecimento direto não somente das coisas que queremos, mas também do quanto nós as queremos. […] Ele caracteriza o futuro bem da pessoa como um todo como aquilo que ela desejaria e procuraria agora se as consequências de todos os modos de conduta disponíveis para ela, no presente momento no tempo, fossem previstas precisamente pela pessoa e vislumbradas adequadamente na imaginação.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

    Prezados leitores, em meu último artigo eu tratei do conceito de bom plano de vida do filósofo John Rawls, ilustrando-o com a descrição da vida de Maria Graham que, em pleno século XIX, conseguiu fazer determinadas escolhas de rumos que lhe permitiram seguir suas tendências naturais: ela viajou, casou, conheceu várias partes do mundo, teve contato com diferentes culturas e civilizações e isso lhe serviu de conteúdo para ela se expressar por meio da escrita e da pintura. Nesta semana, meu objetivo é explorar a ideia de racionalidade deliberativa descrita por Rawls para aplicá-la não a um indivíduo isolado, mas a um país.

    O indivíduo racional de John Rawls é racional não porque ele seja objetivo e imparcial e tome sempre a decisão correta. Conforme o trecho que abre este artigo, ele é racional porque tem conhecimento de si mesmo e das circunstâncias que o rodeiam tanto no espaço, quanto no tempo. Conhecendo-se a si mesmo, ele sabe aquilo que ele deseja atingir na vida, sabe das suas paixões e dos seus desejos e sabe o que é mais importante para ele, de maneira que ele possa estabelecer uma ordem de prioridades sobre em que despender seus recursos físicos, intelectuais, morais e econômicos. Conhecendo seu entorno, o homem racional tem consciência das possibilidades maiores ou menores de concretizar seus objetivos de acordo com as limitações e oportunidades que se lhe apresentam.

    Sob essa perspectiva, a racionalidade deliberativa do homem é a capacidade que ele tem de tomar decisões que o levem da maneira mais segura possível ao destino a que ele se propôs, seguindo um plano de ação elaborado com base na ponderação de todos os fatores que desempenham um papel no desenrolar dos acontecimentos. É claro que a tal racionalidade se concretiza dentro de uma certa estrutura: uma vez inserido nela, nem sempre é possível ao homem racional vislumbrar no presente os desdobramentos dos acontecimentos no futuro, porque ele nunca tem todas as informações ao seu dispor para traçar cenários e tomar a decisão de descartar aquilo que no longo prazo será maléfico e cultivar o que será benéfico.

    O importante nesse percurso de deliberações é que, mesmo que não seja possível que o homem racional atinja as metas estabelecidas no início, ele não se sentirá frustrado e não criticará a si mesmo. Isso porque, consciente do que ele mais quer e tendo a liberdade de usar os meios disponíveis para obtê-lo, ele terá o sentimento da autorrealização advindo do fato de ter feito a coisa do seu jeito, como Frank Sinatra (1915-1998) cantou na música My Way: I did it my way…

    Todo esse introito a respeito do homem livre que escolhe seu caminho ponderando os prós e os contras das alternativas disponíveis e tomando decisões, serve para a colocação de uma pergunta: será que a racionalidade deliberativa pode existir coletivamente, no conjunto dos membros da sociedade que estabelecem suas metas e tentam achar a maneira de atingi-las?

    Parece que a eleição para cargos majoritários no país oferece essa oportunidade de fazer as escolhas fundamentais sobre o que queremos para depois traçarmos um plano de como podemos obter o objeto do nosso desejo coletivo. Ao escolhermos Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2022, a sociedade brasileira fez uma opção por certo conjunto de valores: justiça social, priorização dos mais vulneráveis e dos direitos das minorias. Um exemplo disso é a retomada do projeto Minha Casa Minha Vida, conforme o trecho que abre este artigo. O novo governo vai colocar de lado totalmente o Casa Verde e Amarela de Bolsonaro porque ele não concedia subsídios para a compra da casa própria para famílias com renda de até R$ 1.800,00, que é o grupo prioritário para o governo do PT.

    Uma vez escolhida a meta de conceder acesso à moradia a pessoas da classe E, cabe ao novo governo achar os meios de concretizá-la. O processo é longo: é preciso fazer um levantamento dos conjuntos habitacionais com obras paradas, definir o quanto de dinheiro estará de fato disponível no orçamento público, definir que tipo de habitações serão construídas com base na verba alocada para esse fim. O Minha Casa Minha Vida será relançado em 14 de fevereiro na Bahia, mas na prática só no segundo semestre de 2023 haverá um plano mais concreto, já que para o governo de Lula a política habitacional de Bolsonaro é inaceitável, como fora para Bolsonaro a política habitacional dos governos do PT.

    Assim, será preciso reelaborar toda a política pública do zero porque a escolha fundamental feita pelo povo brasileiro em 2022 foi diferente da feita em 2018. Mas mesmo que nossas metas sociais tenham mudado bastante, será producente jogar tudo o que foi feito no governo anterior no lixo e gastar tempo e dinheiro para reinventar a roda do financiamento habitacional? Será que, considerando as limitações orçamentárias, o mandato relativamente curto de quatro anos, não seria mais eficiente aproveitar alguma coisa do que foi feito antes, mesmo porque dinheiro público foi gasto para isso? E se em quatro anos elegermos um governo de direita? Colocaremos o programa Minha Casa Minha Vida abaixo?

    Prezados leitores, John Rawls também dizia que o homem racional respeita tanto os interesses e valores do seu ser presente quanto o do seu ser futuro, assim como os interesses dos outros, porque só assim ele se veria como um indivíduo perene, solidamente inserido em uma rede de relações com o passado, o presente e o futuro e com as pessoas do seu entorno. Oxalá um dia nós, no Brasil, transformemo-nos em uma sociedade com racionalidade deliberativa: que nós não somente sejamos capazes de fazer escolhas sobre o que queremos, mas que as façamos levando em consideração o objetivo maior que é o de nos mantermos ao longo do tempo como um conjunto de pessoas unidas por laços em comum que trabalham todas para construir um futuro em que cada um tenha a liberdade e a oportunidade de perseguir seus objetivos individuais. Quem sabe possamos um dia dizer I did it my way e We did it our way com orgulho por aquilo que conseguimos?

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Vidas paralelas

Em primeiro lugar, o plano de vida de uma pessoa é racional se, e somente se, (1) é um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando estes aplicam-se a todas as características relevantes da situação, e (2) é aquele entre os planos que atendem essa condição que seria escolhido por ele com plena racionalidade deliberativa, isto é, com plena consciência dos fatos relevantes e depois de uma consideração cuidadosa das consequências.

 Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Maria Graham era uma mulher peculiar. Era uma aventureira e uma intelectual. Além de livros a respeito da Índia, onde conhecera seu falecido marido e casara-se com ele, escreveria outros, inclusive biografias. Estudou botânica e traduziu obras para a educação de crianças. Até mesmo produziu um relato de um grande terremoto que vivenciou no Chile em 1822. Esse depoimento seria usado em Londres para provar a teoria de que as montanhas se originavam de tais fenômenos e a colocaria como pivô de uma briga científica, na qual Charles Darwin se alinharia a seu lado.

Trecho retirado do livro “D. Leopoldina, a história não contada” de Paulo Rezzutti, sobre Maria Graham (1785-1842), escritora e ilustradora britânica, que foi preceptora de Maria da Glória, filha de D. Pedro e D. Leopoldina, de 5 de setembro a 10 de outubro de 1824

A governanta era uma espécie de pólipo, um ser intermediário entre o homem e a planta, ou seja, entre os patrões e os criados. A família a trataria com um ar de condescendência revoltante e os domésticos só a obedeceriam se fosse a upper nurse, essa rainha absoluta em seus domínios, intimidante em sua majestade e tendo educado pelo menos duas gerações na casa. A infeliz criatura passaria os dias com seus alunos na sala de estudos.

Trecho retirado do livro ”A Viajante Inglesa – O Senhor dos Mares e o Imperador na Independência do Brasil”, de Mary Del Priore

    Prezados leitores, para elaborar sua teoria da justiça, fundada em princípios a serem escolhidos livremente pelos indivíduos em um momento hipotético anterior à existência da sociedade, John Rawls faz uma identificação entre o bem, a justiça e a racionalidade. A justiça é um bem, e o bem é algo racional. Para explicar o que é o bem ou o que é bom, Rawls vale-se de uma definição geral: bom é aquilo que tem as propriedades necessárias para que cumpra seus objetivos. Na prática, o que é bom e o que é ruim depende do contexto particular: um objeto como um relógio, por exemplo, é bom se ele mostra a hora de maneira precisa e ele o faz porque tem um mecanismo eficaz que cumpre o objetivo para o qual o objeto foi criado. Assim, haverá critérios específicos para avaliar a qualidade de determinado objeto, a depender dos seus objetivos. Os critérios mudarão quando estivermos falando dos seres humanos e dos seus planos de vida, conforme mostra o trecho que abre este artigo.

    Um bom plano de vida embute a noção de racionalidade como um bom relógio o faz: ele é aquele escolhido pelo indivíduo que analisa as circunstâncias que o cercam e pondera as consequências das várias alternativas que pode escolher, de acordo com os objetivos que ele coloca para sua vida. Sob essa perspectiva, o plano bom é o que escolhe o método mais eficaz para o indivíduo atingir suas metas, metas essas que ele escolhe livremente de acordo com seus interesses e valores. Meu objetivo nesta semana é ilustrar esse tipo de plano de vida bom e racional, com as escolhas feitas por Maria Graham, escritora e ilustradora britânica.

    Filha de um oficial da Marinha Britânica, aos 23 anos Maria acompanhou o pai à Índia, onde ele trabalharia para a Companhia das Índias Orientais. Durante a viagem conheceu Thomas Graham, também oficial da Marinha Britânica e lá se casaram em 1809. Em 1821, Maria veio com o marido ao Brasil a bordo da fragata Doris por ele comandada. Estiveram em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e depois zarparam de novo, mas Thomas faleceu no Chile em 1822. Viúva e vivendo da pensão do marido militar, Maria fica um ano no Chile, mas volta ao Brasil em 1823. Em carta endereçada a José Bonifácio, ela pede uma audiência a d. Leopoldina, então imperatriz do Brasil. É ideia de José Bonifácio fazer dela a preceptora da filha mais velha do casal imperial, considerando a cultura e a experiência de vida da então viúva de 38 anos, como mostra o trecho que abre este artigo. Não foi difícil para Maria estabelecer uma relação amistosa com Leopoldina, uma intelectual como ela, isolada em meio a pessoas que não tinham um décimo da sua cultura e educação e que não lhe davam o devido valor, a começar pelo seu mal-educado e priápico esposo.

    Maria aceitou o cargo de governanta sabendo do status ambíguo de que ela gozava no século XIX, como descreve Mary Del Priore em seu livro: tinha mais educação que os empregados domésticos, mas ao mesmo tempo não estava no nível da família, mesmo porque precisava do emprego para sustentar-se. No capítulo que Paulo Rezutti dedica à governanta em seu livro sobre Leopoldina, o historiador lista as razões pelas quais Maria acabou pedindo demissão do cargo: o boicote dos portugueses membros da Corte que não aturavam uma britânica metida que achava que era missão dela levar as luzes da civilização das Ilhas aos confins do mundo; as intrigas feitas contra ela ao Imperador; o fato de ela ser do partido de Leopoldina, que àquela altura, dois anos antes de morrer, já não tinha nenhuma influência sobre seu marido, apaixonado irremediavelmente pela Marquesa de Santos.

    Assim como de início viu no cargo de governanta uma oportunidade de ganhar a vida, frequentar pessoas de fino trato como Leopoldina e ser testemunha ocular dos acontecimentos políticos, Maria logo percebeu que era muito intelectual para envolver-se em fofocas e intrigas de áulicos do poder. Sua vocação não era essa. E em 1825, um ano depois de ter saído do Palácio de São Cristóvão, voltou para a Europa e em Londres instalou-se em Notting Hill Gate, um vilarejo de artistas, onde conheceu seu futuro esposo, o pintor Augustus Calcott, com quem se casou em 1827. Lá eles recebiam pintores, poetas, historiadores e editores, e Maria podia falar das suas viagens, dos seus encontros e de suas relações com cabeças coroadas.  De fato, apesar da pouca convivência com a Imperatriz do Brasil, elas sempre se correspondiam e há uma carta de Leopoldina datada de 22 de outubro de 1826, menos de dois meses antes do seu falecimento, agradecendo-lhe a balança mineralógica e os livros que Maria lhe tinha enviado.

    Maria continuou até o fim da vida fazendo aquilo que sempre quis: viajando, pintando, estudando, escrevendo. Imbuída dos seus valores e das suas metas, humildemente ela tomou as decisões certas para que ela pudesse seguir seu destino peculiar de mulher intelectual. Quanto a Leopoldina, ela nunca pôde fazer essas escolhas que uma pessoa livre como Maria podia e queria, apesar de ter a mesma disposição de espírito: filha e esposa de imperadores, Leopoldina viveu para cumprir suas obrigações e morreu exaurida de tantos partos necessários para dar à luz a um herdeiro varão, o futuro imperador do Brasil, Pedro II.

    Prezados leitores, o bom plano de vida de John Rawls, feito de escolhas ponderadas pelo indivíduo racional que escolhe as melhores rotas para chegar a sua meta, é bom para seres livres como Maria Graham, não para seres presos em uma gaiola dourada, como Leopoldina. Que o exemplo dessas vidas paralelas que um dia se cruzaram para nunca mais se encontrar sirva para nos mostrar o que é a liberdade, com seus ônus e bônus.

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Desobediência civil ou bárbara?

Juntamente com coisas como eleições livres e periódicas e um judiciário independente com poderes para interpretar a constituição (não necessariamente escrita), a desobediência civil utilizada com o devido comedimento e sensatez ajuda a manter e fortalecer instituições justas. Ao resistir à injustiça nos limites da fidelidade à lei, ela serve para coibir desvios da justiça e corrigi-los quando ocorrem. […]É mais provável que o senso de justiça de uma comunidade se revele no fato de que a maioria não consegue decidir-se a tomar as medidas necessárias para suprimir a minoria e a punir atos de desobediência civil como a lei permite.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Nós temos que saber ter tolerância. Se o governo e os democratas começarem a agir com uma retaliação generalizada, vamos ter uma radicalização, e aí isso fortalece o Bolsonaro”, afirmou Jobim em seminário virtual promovido nesta quinta-feira (19) pela Fundação FHC, ligada ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Trecho retirado do artigo “Retaliação generalizada após atos fortalece Bolsonaro, diz Nelson Jobim”, publicado no site UOL

    Prezados leitores, na semana passada eu lamentei a depredação generalizada ocorrida em Brasília no dia 8 de janeiro, principalmente com relação ao patrimônio cultural objeto da sanha raivosa dos participantes da balbúrdifa. Naquela ocasião eu me vali das lições de Edmund Burke para dizer que o melhor para a sociedade é que não haja rupturas bruscas com o que está atualmente em vigor e que o melhor caminho a longo prazo é que aprimoramentos sejam introduzidos gradualmente, incorporando-as ao que existe, de modo a haver uma transição tranquila entre o velho e o novo. Nesta semana, adicionarei uma nuance a essa apologia do bom comportamento, explicando-lhes o conceito de desobediência civil e sua utilidade para o aprimoramento da sociedade, à luz do que propõe John Rawls no livro mencionado acima. O objetivo é tirar uma lição dos acontecimentos daquele malfadado domingo em Brasília.

    A desobediência civil é o desrespeito consciente à lei, uma atitude deliberada que tem o objetivo de ter um impacto político, isto é, de mostrar aos membros da sociedade que há algo de errado no modo como ela está funcionando e que isso deve ser corrigido. Esse conceito implica que todos compartilham uma noção de justiça: se não houvesse um senso comum do que é justo e injusto, a desobediência civil perderia a razão de ser, porque a minoria desobediente nunca conseguiria convencer a maioria obediente. Sob esse aspecto é preciso que haja referências básicas, sobre as quais não haja discussão.

    Em assim ocorrendo, a violação à lei é um desafio ao sistema no sentido de fazê-lo realizar uma autocrítica, conforme o trecho que abre este artigo: com seus atos, os desobedientes chamam a atenção para as falhas, para o desvio em relação aos princípios de justiça acordados por todos na posição original, em que os indivíduos decidiram organizar-se em sociedade. Uma vez a minoria sensibilizando a maioria para a necessidade de ajustes e a maioria deixando-se convencer, a sociedade sai fortalecida, pois seus membros foram lembrados daquilo que os une, isto é, as liberdades fundamentais que eles se concederam mutuamente.

    Daí porque o grau de tolerância ou intolerância da maioria com a desobediência da minoria é um indicador da existência ou não de um senso comum de justiça. Quanto maior for o acordo sobre as questões fundamentais, maior será a flexibilidade da sociedade em aceitar em seu seio violações à lei como ato político. Quanto maior for a discordância sobre elas, mais dividida a sociedade e menos espaço ela terá para as violações. Nesse último caso, a desobediência civil não tem condições para ser viabilizada e tornar-se fonte de aprendizado mútuo e melhora da coesão social.

    Considerando tal visão da desobediência civil e do seu possível papel positivo na sociedade, como devemos interpretar as palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, citadas na abertura deste artigo? Será um convite a nós, brasileiros, que não participamos do vandalismo de 8 de janeiro, darmos chance aos desobedientes civis exporem suas reclamações, suas propostas e chegarmos a um acordo para que possamos caminhar juntos daqui por diante, livres das polarizações? Mas será que a destruição de móveis, equipamentos, quadros, esculturas e relógios é um ato político que pode ser considerado como desobediência civil ou simplesmente um ato de delinquência?

    E o que dizer a respeito daqueles manifestantes que acamparam em frente aos quartéis do Exército? Podemos considerá-los como legítimos desobedientes civis, já que não depredaram o patrimônio público, mas apenas expuseram sua visão do que eles consideram como justo? Será então que Nelson Jobim está fazendo um convite à tolerância em relação a uma parcela dos manifestantes que ao menos articulou propostas políticas por meio de cartazes, ao invés de simplesmente quebrarem tudo o que vissem pela frente como sinal de protesto?

Prezados leitores, mais cedo ou mais tarde, nós brasileiros, teremos que tomar uma decisão a respeito do que será tolerável e do que não será tolerável em termos de protestos na nossa sociedade. Se não tomarmos essa decisão conjuntamente, nós o faremos separadamente, cada tribo encastelada na sua fortaleza. Oxalá que encontremos em nosso sistema político modos de desobediência civil que nos permitam aprimorar nossa democracia, ao invés de chafurdar na barbárie, como fizemos no dia 8 de janeiro.

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Patrimônio de quem?

A França tem muitos monumentos históricos, mas sua preservação excelente tem tanto a ver com o ‘vandalismo’ da Revolução quanto com os esforços da estrutura de conservação de monumentos históricos. […] As pessoas procuravam apagar as lembranças visuais do Antigo Regime, mas a atitude implacável em relação a monumentos culturalmente significativos, especialmente aqueles ligados ao feudalismo, não foi vista com bons olhos por todos. […] O abade Grégoire (1750-1831) uma figura proeminente na Revolução, defendeu os monumentos em 1794, descrevendo sua destruição como vandalisme.

Trecho retirado do artigo “How the Revolution gave France a head for heritage conservation” publicado no site The Connection

A História consiste, em sua grande parte, das misérias infligidas ao mundo pelo orgulho, pela ambição, pela avareza, pela vingança, pela luxúria, pela sedição, pela hipocrisia, pelo zelo incontrolado, além de toda a gama de apetites rebeldes que perturbam o público com o mesmo.   

Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês

Ao mesmo tempo preservar e reformar é outra coisa. Quando as partes úteis de um antigo estabelecimento são mantidas, e o que deve ser adicionado deve ser encaixado naquilo que é mantido, uma mente vigorosa, uma atenção perseverante e constante, vários poderes de comparação e de combinação e os recursos de um entendimento frutífero em expedientes devem ser colocados em prática…

Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês

Governo vai criar memorial com obras vandalizadas por extremistas

Manchete de artigo publicado no sítio da Agência Brasil sobre a decisão da Ministra da Cultura, Margareth Menezes de criar um memorial em defesa da democracia

    Prezados leitores, na semana passada eu citei Edmund Burke e suas previsões apocalípticas sobre os desdobramentos da Revolução Francesa, para ilustrar a existência de regularidades na História que podem ser detectadas independentemente da análise detalhada das sequências de fatos, cujo desenrolar depende muito de uma confluência imprevisível de fatores. Em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, Burke não se preocupa em elaborar uma narrativa de tudo o que havia acontecido desde 1789 com a queda da Bastilha e dos acontecimentos específicos que culminaram no evento de 14 de julho daquele ano. Seu foco é estabelecer lições sobre os males de uma revolução e porque toda revolução é necessariamente ruim.

    Um movimento político que pretenda recriar a sociedade e fazer tábula rasa de tudo o que havia antes é nefasto porque a concretização desse projeto se vale dos vícios humanos, conforme relacionados no trecho que abre este artigo. As pessoas apaixonadamente acreditavam que um novo homem e uma nova maneira de organizar as relações mútuas dos indivíduos eram possíveis e imbuídos dessa visão ingênua acabaram dando vazão às características mais reprováveis do ser humano. Acabar com o feudalismo significava acabar com os símbolos concretos dele consistentes nos castelos, fortes, igrejas, túmulos e palácios da nobreza e do clero.   Dessa maneira, as pessoas podiam destruir e pilhar os bens dos privilegiados, sob a santa justificativa de que estavam acabando com as injustiças sociais tirando de quem tinha muito para dar a quem não tinha nada ou simplesmente pondo abaixo tudo o que pertencia aos famigerados exploradores. Várias características humanas podiam ter expressão nesse processo de “distribuição de renda”: o desejo de vingança dos despossuídos, a cobiça dos que aproveitavam o tumulto para roubar esculturas, obras de arte e auferir lucro pela venda, a necessidade humana de racionalizar seus atos egoístas, dando-lhes uma aura de moralidade.

    Assim é que nesse processo de construção da ordem pós-feudal, os revolucionários deixaram um rastro de destruição, que o abade Gregóire identificou como vandalismo puro, conforme mostra o trecho que abre este artigo. A ação política movida pela “filosofia” como diz Burke, que hoje chamaríamos de ideologia, não deixa um legado porque a visão maniqueísta de que o passado é maligno e o futuro é maravilhoso impede os homens de praticarem aquilo que para o pai do conservadorismo é a base da prosperidade: a capacidade de reformar, que nada mais é do que adicionar elementos novos à tessitura social antiga, fazendo com que esta se renove, se adapte às novas condições, ao mesmo tempo em que sua estrutura é mantida pela robustez que ela mostrou no curso da História. O que é conservado e atualizado sem lhe alterar a natureza básica é intrinsicamente melhor do que aquilo que é construído do nada, pois essa tentativa de ignorar os pilares da sociedade só tornam o novo edifício – para usar a metáfora burkiana construída no segundo trecho citado no início deste artigo- fraco, construído no calor das paixões humanas, mas sem a reflexão necessária e a visão de conjunto que permitem combinar o velho com o novo e de perseverar no esforço de adaptação mútua de um e de outro para o bem da sociedade a longo prazo.

    Os franceses aprenderam a lição do preservar e reformar quanto aos seus monumentos históricos. À época da Revolução, uns poucos privilegiados tinham permissão de entrar nos edifícios e apreciar os tetos pintados, os afrescos, as esculturas, os móveis entalhados. Atualmente, aquilo que sobrou da sanha revolucionária faz parte do patrimônio público, sendo acessível por qualquer um, independentemente da classe social a que pertence. Assim, os símbolos da opressão feudal são mantidos pelos órgãos encarregados da conservação do patrimônio, mas a função que exercem segue os ideais do Iluminismo que foi proposto no século XVIII: são instrumentos de educação do povo, e não mais de ostentação do poder e do prestígio dos membros de uma casta em relação a seus pares. A Revolução Francesa, com todos os vícios que Burke apontou em seu livro, teve seu ápice no período do Terror (1792-1794), marcado pelas execuções diárias na guilhotina dos inimigos da Revolução”, mas ela acabou com o advento de Napoleão, a que Burke não conheceu, pois morreu antes da ascensão do corso ao poder, em 1799. Napoleão soube fazer a combinação e a comparação dos elementos novos e dos antigos que permitiram restaurar a ordem, terminar a violência e preservar o legado iluminista da Revolução em termos de liberdades civis e igualdade perante a lei.

    Prezados leitores, faço votos que o episódio da depredação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal ocorrido em 8 de janeiro em Brasília não seja o início de um período de acirramento das paixões no nosso país e de fúria revolucionária. Que a escultura simbolizando a justiça, o quadro “As mulatas” de Di Cavalcanti, o relógio de Balthazar Martinot do século XVIII sejam restaurados e se tornem patrimônio público, apreciado por todos no Memorial a ser criado pelo governo federal e deixem de ser símbolos de poderes repressores para uma parte da população. Nossa paz e prosperidade agradecem.

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Plus ça change, plus c’est la meme chose

A sociologia pressupõe a explicação que transcende o curso dos acontecimentos para buscar as regularidades macroscópicas, trazendo embutida uma opção teórica que se manifesta através da eficácia, real ou pretendida, de certos “fatores”, que as escolas sociológicas de Oitocentos e começos de Novecentos procuraram erigir em chaves de suas macroexplicações: o “fator” geográfico, o racial, o demográfico, o econômico etc.  Por sua vez, a causalidade histórica seria uma explicação imanente ao curso dos acontecimentos, devendo levar em conta a sucessão cronológica.

Trecho retirado do ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, do historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Melo (1936-

Uma coisa é terrível: malditos austríacos a cada passo! Ah, esses austríacos! A propósito, não sei se os senhores ouviram, no Danúbio deu-se uma batalha decisiva: trezentos oficiais turcos foram abatidos, Silistra foi tomada e a Sérvia já declarou independência. É verdade que o senhor, como patriota, deveria estar muito animado, não? Em mim mesmo, ferve o sangue eslavo! Entretanto, aconselho-lhe a ter mais cuidado, tenho certeza de que estão nos vigiando. A espionagem é terrível aqui! Ontem uma pessoa suspeita se aproximou de mim e perguntou se eu era russo. Eu lhe disse que era dinamarquês…

Trecho retirado do livro “A Véspera” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883), cuja trama é baseada em fatos reais

  Prezados leitores, o livro “Um imenso Portugal”, publicado em 2002, inclui vários ensaios sobre a historiografia, cujo objeto de reflexão é o modo como a História tem sido escrita ao longo do tempo. No ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, Evaldo Cabral de Melo contrapõe dois tipos de conhecimento histórico: o generalizante e o individualizante. O objetivo deste humilde artigo é o de explicar as características de cada um dos dois, à luz das ideias do historiador pernambucano, e de posse desses conceitos, tentar aplicá-los a certos fatos históricos para dar-lhes uma interpretação.

    Para descrever um tipo e outro de conhecimento, Evaldo Cabral de Melo toma como base os conceitos de causalidade sociológica e de causalidade histórica. Conforme o trecho que abre este artigo, a causalidade sociológica é aquela que procura explicar o porquê de determinados resultados históricos ignorando a série de acontecimentos que se desenrolam ao longo do tempo. Para o defensor de tal abordagem sociológica, o foco nos fatos impede que o historiador veja as tendências gerais da sociedade, levando-o a se perder em detalhes que não têm importância. A única maneira de obter um conhecimento histórico que estabeleça a origem do estado atual da sociedade é escolher um fator-chave à luz do qual todos os acontecimentos podem ser vistos e enquadrados. Daí porque a causalidade sociológica ter natureza generalizante: ela estabelece uma explicação que é válida independentemente dos fatos históricos particulares, pois estes são subsidiários aos fatores-chave que desencadeiam o curso da história, seja porque são meros reflexos deles, ou porque não atrapalham a atuação desses fatores.

    Ao contrário, a causalidade histórica foge das abstrações que pretendem categorizar tudo. Seu foco é na cronologia de acontecimentos que conservam sua individualidade ao serem descritos em uma narrativa. Essa abordagem narrativa dá margem ao imponderável, ao inesperado, que deve ser explicado na riqueza dos seus detalhes, porque tais detalhes fazem toda a diferença na determinação de um resultado ou de outro. O individualismo da causalidade histórica reside justamente no fato de a história vivida pelos indivíduos, a história que eles acham que estão fazendo, ser mais importante do que a história que os homens fazem sem saber que estão fazendo, porque não a enquadraram em nenhuma categoria mental, como é o caso da causalidade sociológica.

    A conclusão a que chega Evaldo Cabral de Melo em seu ensaio é que o historiador deve combinar essas duas causalidades, pois são mutuamente complementares. Fazer história como Tucídides (460 a.C. – 400 a.C.) fez ao escrever a Guerra do Peloponeso, como um encadeamento factual, impede o leitor de vislumbrar uma moral da História, isto é, o motivo pelo qual a sequência de eventos narrada foi suficiente para desencadear a guerra. Por outro lado, Evaldo critica o Gilberto Freyre (1900-1987) de Casa Grande & Senzala pelo fato de usar o conceito de miscigenação, atribuindo-lhe um poder de harmonização e de criação de uma cultura mestiça, como uma explicação que cobre os três séculos do período colonial do Brasil sem levar em conta as muitas manifestações de conflito e distinções entre pretos e brancos.

    Assim, o melhor é ter em mente que nenhum conceito tem o condão de explicar tudo e prever tudo, que os acontecimentos históricos são determinados por uma confluência de várias sequências cronológicas que calham de ocorrer em determinado momento, cujas interações são complexas e impossíveis de serem vistas de antemão. Ao mesmo tempo, é inegável que há certas regularidades e que, mesmo levando-se em conta o papel do acaso, há acontecimentos que têm mais importância do que outros, cujo impacto pode ser influenciado pelo imponderável, mas que não será totalmente determinado por ele. Um exemplo da existência dessas regularidades é o fato de o pensador político britânico Edmund Burke (1729-1797) ter previsto em 1790, em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, a ascensão de um líder autoritário como Napoleão, pois a destruição dos valores tradicionais da sociedade e a tentativa de reconstrução em bases totalmente novas levaria à violência e o caos por esta engendrado exigiria um restaurador da ordem.

    Tendo em mente o papel tanto das regularidades quanto do acaso, é possível ler o trecho retirado da obra de Turguêniev, citado na abertura deste artigo, sob uma perspectiva histórica. A ação se passa às vésperas da Guerra da Crimeia (1853-1856), em que a Rússia enfrentou a Inglaterra, a França e o Império Otomano. Entre outros motivos, a disputa deveu-se ao desejo da Rússia de exercer proteção sobre os povos de religião ortodoxa que estavam subordinados politicamente ao sultão otomano. Um desses povos é o búlgaro e é um homem búlgaro um dos heróis de “A Véspera”, Dimítri Insárov. Insárov é um nacionalista cujo sonho é voltar para a Bulgária para ajudar seus compatriotas na luta pela emancipação do país do jugo otomano. Para realizar seu sonho, ele vai a Veneza acompanhado de sua esposa russa, Elena Stákhova, e lá encontram Lupoiárov, um russo que lhes relata a experiência de ser espionado na Europa às vésperas de uma guerra na Crimeia.

    Prezados leitores, é óbvia a regularidade aqui detectada: a hostilidade entre a Rússia, cristã ortodoxa, e os países ocidentais, que se uniram aos turcos otomanos para lutar contra a Rússia, apesar da diferença de religião entre católicos, anglicanos e muçulmanos. Atualmente, na guerra da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os turcos não estão no campo de batalha, mas apenas tentam atuar como intermediários para negociações entre as partes conflitantes. De qualquer forma, permanece a desconfiança mútua que existia em 1853, conforme exemplificada na narrativa de Turguêniev.

    Em fevereiro de 1856, a Rússia foi obrigada a aceitar um tratado de paz por não ter conseguido atingir seus objetivos no campo militar, tendo abandonado Sevastopol, na Crimeia, em setembro de 1855. Qual será o desfecho nesta nova guerra em pleno século XXI, em que um dos objetos da disputa continua sendo a Crimeia? Aqui entra o acaso e temos que esperar o desenrolar dos acontecimentos, pois a despeito do constante choque de civilizações entre a Rússia e o Ocidente, não é possível ter certeza neste momento sobre quem está em ascensão e quem está em decadência. A história vivida é incerta, mas pode ser realizada por indivíduos que têm valores que querem colocar em prática, valores esses que permanecem ao longo do tempo. A história pensada pelos grandes teóricos é previsível porque ela dá um sentido às ações de indivíduos que, no calor da hora, tiveram que tomar decisões sem terem certeza se elas eram as melhores para que seus objetivos fossem atingidos.

Crimeia em 1853 e em 2023: plus ça change, plus c’est la meme chose?  Aguardemos.

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