Pior que tá não fica?

O que não é normal é a nossa superconfiança nos poderes de líderes carismáticos, os únicos capazes de nos proteger de grandes ameaças ou de colocar comida em nossa mesa. Atividade de baixa reputação junto à sociedade, a política precisa não apenas ser limpa, mas demonstrar que é limpa. É preciso que acordos de gabinetes sejam substituídos por alianças programáticas, que mostrem aos eleitores os temas e os motivos que unem, mesmo que pontualmente, partidos e políticos outrora antagônicos. O Brasil do futuro é o país de propostas e propósitos, não pode ser o país do cheque em branco.

Trecho retirado do artigo “Voto sem reflexão” do cientista político Magno Karl, publicado na edição de 02 de outubro do jornal O Globo

O Brasil está se condenando à mediocridade, a uma enorme concentração de renda, a uma população de zumbis que não têm acesso à educação, não sabem operar com as ferramentas do mundo contemporâneo. […] Nosso destino é cada vez mais correr em direção ao Terceiro, Quarto, Quinto Mundo, a história é implacável, não tem essa. […] Ninguém vota num candidato, vota contra o outro.

Trecho da entrevista do humorista Marcelo Madureira, em entrevista ao site O Antagonista, em 3 de outubro, comentando sobre o resultado das eleições do dia 2 de outubro

    Prezados leitores, a Legisla Brasil é uma ONG que presta um serviço de utilidade pública aos cidadãos, avaliando a atuação dos parlamentares brasileiros em relação a quatro quesitos básicos: produção legislativa, fiscalização do Poder Executivo, capacidade de articulação e cooperação com outros agentes políticos e alinhamento em relação à votação da maioria do partido.  Esses quesitos são divididos em 17 indicadores que descem a detalhes da atuação parlamentar, tais como o número de relatorias, as emendas de medidas provisórias e o número de requerimentos de audiência pública. A avaliação produz um ranking dos deputados cinco estrelas que, na atual legislatura, somam 41, em um total de 513 deputados federais, ou seja, míseros 8% do total.

    Felizmente, eu fiquei sabendo desse site e escolhi meu candidato levando em conta quantas estrelas a Legisla Brasil deu a ele e verificando na página da Câmara Federal os projetos com os quais o deputado esteve envolvido, o que ele conseguiu aprovar de sua autoria e o que ele conseguiu aprovar de autoria de outros colegas. Minha esperança era, em votando em um candidato que tivesse já mostrado serviço, se ele fosse eleito isso premiaria o bom comportamento do meu representante e o estimularia a continuar nessa rota do bem.

    Pois bem, meu candidato não foi eleito em São Paulo. Daquela lista dos que exerceram seu mandato da melhor maneira possível, 29 se reelegeram, o que corresponde a mais ou menos 70% deles. Considerando que a taxa de renovação da Câmara dos Deputados foi de 39%, menor do que em 2018, os deputados federais cinco estrelas que conseguiram se manter no cargo para a próxima legislatura tiveram um desempenho nas urnas relativamente melhor do que os deputados federais não cinco estrelas. É algo a se comemorar, se não fosse pelo fato de termos ainda eleito novamente, entre outros, o Tiririca em São Paulo para o quarto mandato, Aécio Neves em Minas Gerais para um quinto mandato e Átila Lins que terá seu nono mandato como deputado federal pelo Amazonas. Em comum esses três têm o fato de terem sido avaliados com duas estrelas pelo Legisla Brasil.

    Ou seja, parece que a reeleição dos parlamentares de melhor qualidade é uma coincidência feliz, e que os brasileiros ao escolherem seus representantes no Legislativo o fazem sem realizarem um esforço sistemático de averiguação da ficha suja ou limpa do candidato, tanto no aspecto de contas a prestar à Justiça, quanto no aspecto do que o indivíduo fez em prol dos seus representados. Pois se houvesse essa tentativa de melhorar o nível da atuação parlamentar, nós não elegeríamos seguidas vezes pessoas que têm um desempenho pífio e elegeríamos todos aqueles que são muito bem avaliados. Não que a Legisla Brasil tenha a última palavra em matéria de quem é bom e de quem é ruim, mas se as pessoas ao menos consultassem o site da Câmara Federal (camara.leg.br) teriam informações básicas sobre de quantas votações em plenário ele participou e quanto ele gastou da verba de gabinete. .

    No entanto, a julgar pelos títulos de alguns dos eleitos, que começam com “Capitão”, “Delegado”, “General”, “Pastor”, o critério de escolha dos eleitores foge de métricas qualitativas ou quantitativas, e acaba sendo a identificação com uma tribo que compartilha os mesmos valores morais e a mesma visão de mundo. O pessoal de direita que quer a lei e a ordem vota nos capitães, delegados e generais, os evangélicos votam nos pastores, o pessoal de esquerda que quer defender o direito das minorias vota em homossexuais, transsexuais, “movimento pretas” e por aí vai. Se o eleito de fato cumpre suas promessas parece pouco importante, o importante é sempre votar em alguém que pertença a sua tribo.

    Considerando o modus operandi do eleitor brasileiro, será que algum dia concretizaremos a visão do país do futuro, exposta por Magno Karl no trecho que abre este artigo? Será que passaremos a um estágio mais amadurecido da democracia, em que abandonaremos o foco nos lideres carismáticos salvadores da pátria, nos chefes de tribo que expressam nossos valores mais profundos? Será que passaremos a eleger indivíduos normais, que serão forçados a entregar resultados porque serão chamados a prestar contas a cada quatro anos com base no julgamento informado de cada um de nós? Ou será que medir a eficiência da atuação dos políticos não está na nossa psiquê e estamos fadados a medir só o quanto os odiamos e o quanto os amamos, que segundo Marcelo Madureira, na entrevista que abre este artigo, parece ser o nosso critério de votação?

    Prezados leitores, será que o slogan tão eficiente de Tiririca para se eleger “Vote em Tiririca, Pior que tá não fica” ficará para trás nos próximos anos e rumaremos rumo ao abismo dos vários mundos mencionados por Marcelo Madureira, pela nossa displicência no exercício da democracia? Aguardemos, se sobrevivermos ao segundo turno das eleições presidenciais.

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Ídolos

Temos a tendência, diz ele, de ceder a quatro tipos de fraquezas mentais, que ele chama de ‘ídolos’. Primeiramente, há os ‘ídolos da tribo’, que nos pertencem porque somos humanos. O pensamento positivo seria um exemplo, particularmente a expectativa de uma maior ordem nos fenômenos naturais do que de fato existe. Além disso, há os ‘ídolos da caverna’, que são as idiossincrasias de cada pessoa, as quais são infinitas. Os ‘ídolos do mercado’ são os erros causados pela tendência da mente de deslumbrar-se com as palavras, um erro particularmente comum na filosofia. Por último, os ‘ídolos do teatro’ são os erros que resultam dos sistemas e das escolas de pensamento. O aristotelismo era o exemplo típico mencionado por Bacon para esse tipo de erro.

Trecho retirado do livro “The Wisdom of the West” do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o filósofo, político, advogado e diplomata inglês Francis Bacon (1561-1626)

As vertentes platônica e artística da Renascença pouco se coadunavam com uma economia pujante; crescia a demanda por um procedimento mental que lidasse com fatos e quantidades, assim como com teorias e ideias […]. A ênfase do humanismo italiano nas glórias da literatura e da arte antigas deu lugar a uma ênfase menos etérea nas necessidades práticas do momento. Os homens precisavam contar e calcular, medir e desenhar, com precisão e velocidade competitivas.

Trecho sobre a ciência no século XVI retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

Minha irmã, meu irmão, não dê o seu voto precioso a quem não aceita sequer ir aos debates para apresentar propostas para o futuro do Brasil. Como disse Einstein, “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Twitter do candidato à Presidência, Ciro Gomes, postado em 12 de agosto de 2022

    Prezados leitores, em seu livro sobre a História da Civilização Europeia de 1558 a 1648, Will Durant, mostra, conforme o trecho que abre este artigo, como as necessidades intelectuais da sociedade mudaram radicalmente devido à expansão da atividade econômica e à descoberta pelos europeus de novos continentes a serem explorados. Não era mais possível, como na Renascença, somente cultuar as belas palavras, as ideais abstratas, os sistemas filosóficos criados pelas grandes autoridades do pensamento ocidental, como Platão e Aristóteles.

    A necessidade de traçar rotas marítimas, de calcular distâncias entre locais distantes no globo, de elaborar mapas, de calcular o capital a ser investido em um empreendimento e o valor do seguro necessário para diminuir o risco do negócio, tornava premente o desenvolvimento de novas habilidades intelectuais. De acordo com a descrição de Durant, Francis Bacon foi um dos grandes pensadores que no século XVI ousou formular uma nova estrutura conceitual, tanto assim que hoje ele é considerado o pai do método indutivo.

    Para Bacon, era inútil elaborar sistemas filosóficos pela dedução de verdades eternas a partir de uns poucos axiomas e princípios. Há dois problemas fundamentais com essa abordagem. Esses axiomas e princípios muitas vezes não são neutros ou objetivos, mas são fruto da tradição, do preconceito ou do desejo, a que ele dá o nome de ídolos, dividindo-os em quatro categorias conforme explica Bertrand Russell no trecho que abre este artigo. Apegamo-nos a certas hipóteses porque elas estão estabelecidas há muito tempo e foram elaboradas por aqueles que são considerados como as autoridades intelectuais supremas; porque temos nossas idiossincrasias individuais que nos faz valorizar certas coisas em detrimento de outras; porque desejamos que a realidade seja algo que ela na verdade não é; e porque temos uma tendência a admirarmos palavras rebuscadas que nada mais são do que absurdos verbais que só denotam um pensamento obscuro.

    Tais ídolos, não sendo intelectualmente puros, mas ainda assim utilizados para abordar a realidade, acabam deturpando o pensamento, levando-nos a selecionar na experiência aquilo que os confirma e deixando de lado aquilo que os contraria. Daí o método indutivo de Francis Bacon: entender a realidade requer que nós no livremos dessas hipóteses, premissas e teorias mergulhando na experiência e na experimentação, acumulando fatos, analisando-os, comparando-os e classificando-os e em assim fazendo, rejeitando e eliminando uma hipótese atrás da outra. Ao final, chegaremos à essência e à ordem subjacente dos fenômenos e de posse desse conhecimento, dado pelo método científico, remodelaremos o ambiente e o próprio ser humano. “Ipsa scientia potestas est”, nas palavras do autor do Novo Organum, o próprio conhecimento é poder.

    Prezados leitores, será que neste momento no Brasil não estamos cultivando um dos ídolos descritos por Francis Bacon, qual seja, o do pensamento positivo? É a isso que Ciro Gomes parece se referir quando adverte, no Twitter citado na abertura deste artigo, sobre a insanidade de repetir a mesma receita fracassada e achar que desta vez a coisa dará certo. Na entrevista que o candidato deu ao programa Roda Viva no último dia 15 de agosto, ele explicou o que ele quis dizer ao citar o físico Albert Einstein.

    Se votarmos em Lula ou em Bolsonaro estaremos insistindo na ideia, já sobejamente testada na realidade política brasileira, de que fazer acordos com um amplo espectro de partidos políticos, no chamado presidencialismo de coalizão, só leva ao toma-lá-dá-cá, à corrupção e ao enfraquecimento da Presidência da República. Essas grandes costuras políticas enfraquecem o Executivo Federal porque se baseiam em um mínimo denominador comum e impedem que uma agenda de reformas seja executada para que nós nos livremos da estagnação econômica e o governo entregue resultados à população. O saldo de anos de conchavos é que de 2000 a 2021 o crescimento médio do PIB foi de 2%, de acordo com os dados do IBGE, o que não é suficiente para resolvermos nossas disparidades de renda e aumentarmos o nível de vida da população.  Considerando as mudanças cataclísmicas que ocorrerão com a disrupção da ordem mundial estabelecida pelos Estados Unidos desde 1945, a não solução desses problemas tornará nossa vida ainda mais difícil em termos de acharmos nosso lugar ao sol na nova ordem que se estabelecerá neste século XXI.

    Apostar em candidatos que adotarão o mesmo modelo de governança baseado em busca de apoios no Congresso a todo custo, sem estratégia nem programa, e achar que dessa vez o resultado será diferente, é cultivar ídolos e fechar os olhos ao teste anterior da hipótese de que o presidencialismo de coalizão funciona. Ao contrário, esse regime tem levado a impeachments recorrentes, à prisão de ex-presidentes e tem condenado o Brasil a seguir tapando buracos sem enfrentar as questões de fundo. Quem sabe um dia possamos nos livrar dos nossos ídolos e seguirmos o caminho traçado por Francis Bacon há quase quinhentos anos? Será que ainda teremos tempo?

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A Bíblia da Lei

Não queremos políticos bonitos e inteligentes, mas pessoas que enfrentaram uma folha de pagamento, educaram seus filhos, visto (se possível) a horrível face da guerra e erraram o suficiente para tentar evitar errar mais. Os executivos de propaganda e o pessoal de relações públicas ficariam desesperados ante a tarefa de vender essas pessoas ao público como se fossem uma nova fragrância. Mas essa era tola do líder empacotado já durou muito tempo. […] Nossa constituição real é escrita na Bíblia, no Livro das Orações e em Shakespeare e nos grandes poetas, não em um sitio na internet ou em uma pasta de algum ministério. É um arranjo pelo qual nós nos governamos como um povo livre, sob o Estado de Direito. É um arranjo adaptado a pessoas adultas. Longe de ser uma relíquia da infância, é a forma de governo mais madura conhecida pelos homens.

Trecho do artigo intitulado “Por que nosso Chefe de Estado, não os políticos e seus marqueteiros que tantos de nós reverenciamos, é o verdadeiro defensor das nossas liberdades, publicado em 10 de setembro de 2022 pelo jornalista inglês Peter Hitchens (1951-

 

No entanto, ela partia do pressuposto, como quase todos os governos antes de 1789, que alguma religião, alguma fonte sobrenatural de sanção moral, era indispensável à ordem social e à estabilidade do Estado.

Trecho sobre a Rainha Elizabeth I retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

 

Fui convocado, Madame, a exercer uma função pública na Congregação de Deus, e fui nomeado por Deus para repreender os pecados e vícios de todos

Resposta de John Knox (1514-1572), teólogo escocês a Maria, Rainha da Escócia (1542-1587)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre a vantagem oferecida pela monarquia de separar o poder simbólico do poder político. A pompa, a circunstância, o ritual, o carisma das personagens que encantam e fazem sonhar ficam com o monarca. O poder político fica com um primeiro-ministro, que é simplesmente um homem que cumpre suas tarefas sem pretender ser um salvador da pátria. Para corroborar essa ideia citei a fala do psicólogo e professor universitário canadense Jordan Peterson.

    Nesta semana tentarei expandir o argumento para ir além do foco nas características psicológicas das personalidades carismáticas, a quem é dado poder de fato pelo voto da população e de quem se espera muito em termos de realizações. Falarei da questão dos fundamentos do poder em uma monarquia constitucional, como a que está em vigor no Reino Unido atualmente. E para isso me apoiarei em outro monarquista, Peter Hitchens, irmão do polemista Christopher Hitchens (1949-2011), famoso por criticar duramente a Madre Teresa de Calcutá.

    No artigo cujo trecho abre este artigo, Hitchens mostra-se preocupado com o futuro da monarquia porque de acordo com ele nas últimas décadas os políticos que exerceram o poder no Reino Unido se dedicaram a fazer coisas além do arroz com feijão da administração costumeira dos assuntos de governo e dessa forma minando o regime político britânico por fazer sombra ao Chefe de Estado. Para o jornalista inglês, ao invés de tentar resolver a injustiça social, as disparidades de renda e todos os outros males que afligem a sociedade, o primeiro-ministro ou a primeira-ministra deve seguir o caminho que foi traçado ao longo da história do país e que garantiu aos cidadãos o direito de não serem presos ou ter seus bens confiscados sem o devido processo legal, o direito ao habeas corpus, o direito à liberdade de expressão. Todas essas liberdades fundamentais tem como origem basicamente a religião anglicana.

    Se considerarmos o desenvolvimento paralelo do Protestantismo e da monarquia inglesa conforme Will Durant explica em seu livro, é possível perceber a ligação entre a Igreja e o Estado e a fundamentação do poder de um pelo poder do outro. Elizabeth I, que consolidou o Anglicanismo na Inglaterra, tornando-o a religião oficial e proibindo a celebração pública de missas no rito católico, considerava a religião de suma importância para que o Estado pudesse manter-se de pé. Conforme o trecho que abre este artigo, para Elizabeth a religião dava uma justificativa sobrenatural às regras morais e às sanções aos desvios das regras, permitindo o controle do comportamento das pessoas e a manutenção da ordem social, sem a qual não haveria estabilidade e o governo estaria sujeito a ser contestado.

    Por outro lado, a teologia protestante, ao colocar a Bíblia como a autoridade suprema, cujos preceitos deveriam ser seguidos à risca por todos, coloca um limite ao poder do monarca. Conforme lembra John Knox, o fundador do presbiterianismo na Escócia à rainha católica Maria, mesmo os reis e as rainhas devem se submeter à ordem criada por Deus e expressa na Bíblia e o monarca que não o faz é um pecador que deve ser deposto. Dessa forma, se a Igreja Anglicana foi criada pelo monarca para servir os interesses de autopreservação do Estado, ao mesmo tempo ela estabeleceu limites à atuação do governante, colocando a fonte da lei na Bíblia e não na vontade do poderoso de plantão.

   Daí porque Hitchens considera que o regime monárquico britânico, de bases religiosas, deve ser preservado porque ele é a melhor forma de garantir as liberdades dos cidadãos, os seus direitos inalienáveis de filhos de Deus, submetidos aos preceitos morais da Bíblia, mas ao mesmo dotados da dignidade dos homens e mulheres que não estão sujeitos aos caprichos de nenhum líder que queira fundar uma nova ordem social e política à sua própria imagem e semelhança, pois a única fonte de legitimidade é a palavra de Deus.

    Privilegiada foi a Inglaterra que à época de Elizabeth I, no século XVI, conseguiu, conforme explica Will Durant em “Começa a Idade da Razão”, fazer uma síntese entre a Reforma Protestante e a Renascença. Da Reforma os ingleses retiraram o fundamento religioso do poder político, que lhes deu a estabilidade que lhes poupou das revoluções que varreram outros países da Europa. Da Renascença retiraram o gosto pela vida, pela aventura, o abandono de superstições, inibições e velhos dogmas do catolicismo medieval. O resultado foi que há cinco séculos os cidadãos gozam de liberdades políticas e econômicas que nunca foram contestadas por estarem ancoradas em solo firme. Com o advento de Charles III ao poder, Peter Hitchens espera que essa receita bem-sucedida continue a ser seguida, apesar das ameaças cada vez mais concretas dos republicanos que atacam o anacronismo da monarquia.

    Prezados leitores, cada país tem uma história e uma cultura, que o leva a obter uma solução mais ou menos boa, ou mais ou menos duradoura para os problemas colocados pelas condições materiais num determinado momento. Transplantar soluções de um lugar a outro tende a ser uma atividade fadada ao fracasso se elas não forem adaptadas às condições locais. Oxalá que no Brasil, se o tempo da monarquia constitucional já passou e não pode mais ser recuperado, ao menos seja possível evitar as armadilhas do foco nas personalidades carismáticas pela adoção do parlamentarismo.

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Símbolos carismáticos

O poder contido nos ritos esvaía-se e o imperador colaborava com isso. Ao se democratizar colocando-se como igual aos demais, a mística do trono, coroa e cetro caía por terra. Em 27 de abril de 1872, ele ordenou ao ministro do império que o beija-mão fosse abolido. D. Pedro II queria civilizar sua corte acabando com rituais antiquados, sem atualizá-los ou substituí-los por outros. Isso esvaziava o poder contido neles. Sem rituais, sem demonstrações de poder da parte do monarca, D. Pedro enfraquecia o poder da Coroa e permitia que se levantassem questões a respeito da necessidade de um imperador que agia como uma pessoa comum.

Trecho retirado do capítulo intitulado “O bom burguês”, no livro “D. Pedro II, A história não contada” de Paulo Rezzutti

Quando a Rainha for velada, seu caixão estará coberto pelo Estandarte Real, como ocorreu em Edimburgo. O estandarte será acompanhado pela Coroa Imperial, que era utilizada uma vez por mês pela Rainha na abertura oficial do Parlamento. A Coroa tem mais de 3.000 pedras preciosas, incluindo safiras, esmeraldas e rubis. A coroa foi feita para a Rainha Vitória em 1838. Ela contém mais de 3.000 pedras preciosas, incluindo 2.700 diamantes. As pedras mais significativas historicamente incluem a safira de Eduardo o Confessor, que foi retirada do anel de coroação de Eduardo. Considerando que Eduardo foi coroado em 1042, é a pedra mais antiga de toda a coleção real.

Trecho retirado de um artigo publicado na versão eletrônica do jornal inglês The Daily Mail, dando detalhes sobre os símbolos da Coroa britânica que estarão presentes nos funerais da Rainha Elizabeth II (1926-2022), morta em 8 de setembro

Mas aqui e no Canadá […] vocês têm as quatro divisões. O Judiciário, o Legislativo, o Executivo e o Simbólico. E a monarquia fica com o peso do simbólico. E isso é muito inteligente, porque o separa da esfera política. E vocês vejam o que acontece nos Estados Unidos. O presidente tende a se transformar no tzar.

Trecho da fala de Jordan Peterson, ex-professor de psicologia na Universidade de Toronto, sobre a morte da Rainha Elizabeth

    Prezados leitores, milhares de pessoas são esperadas em Londres para prestar uma última homenagem à Rainha Elizabeth, morta aos 96 anos de idade. Na segunda-feira haverá o funeral na Catedral de Westminster, com a presença de vários chefes de Estado, inclusive do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Se fôssemos fazer uma comparação com a primeira rainha Elizabeth (1533-1603), Elizabeth II fica bem abaixo. De acordo com Will Durant em seu livro “The Age of Reason Begins”, a primeira falava francês, italiano e inglês fluentemente, além de conseguir conversar em latim e até em grego, e ser especialista na teologia protestante. Elizabeth II não era conhecida pelos seus dotes intelectuais, e seus passatempos prediletos eram montar quebra-cabeça e assistir à televisão tendo como companhia seus cachorros corgi. No reinado de Elizabeth I, a Inglaterra venceu a poderosa Armada em 1588, pondo fim à hegemonia espanhola na Europa que havia durado quase um século, desde a descoberta das América por Cristóvao Colombo, em 1492. No reinado de Elizabeth II, a única vitória da Inglaterra foi contra a pequena Argentina, em 1982, na disputa pelas remotas Ilhas Falkland no Atlântico Sul. No reinado de Elizabeth I, floresceu William Shakespeare (1564-1616), o maior dramaturgo da história da civilização ocidental. Que homem de gênio mostrou suas artes sob Elizabeth II? Nenhum.

    Em que pese as conquistas materiais e intelectuais serem tão diferentes entre as duas Elizabetes, ambas foram glorificadas por serem rainhas. Talvez as pessoas que estão guardando seu lugar na fila há mais de 30 horas nas ruas de Londres queiram simplesmente tirar uma foto do caixão com os símbolos da monarquia britânica, conforme descritos no trecho que abre este artigo. Talvez tenham curiosidade de ver esses símbolos todos reunidos pela primeira vez no ataúde de Elizabeth II. O fato é que a pessoa Elizabeth Alexandra Mary estava tão inextricavelmente ligada a esses apanágios da realeza que, independentemente das qualidades individuais da rainha morta nesta semana, ela se tornou grande e imortal por ter usado a coroa, o cetro e por ter encarnado uma tradição de monarcas que tem mais de 1.000 anos, com a qual os cidadãos do país se identificam e da qual obviamente se orgulham pois, do contrário, não iriam prestar homenagens a quem a simbolizava.

    Uma pena que nosso segundo imperador não tenha dado a devida importância aos rituais e símbolos da monarquia, conforme explica o trecho retirado do livro de Paulo Rezzutti. De acordo com o historiador, esse desleixo de D. Pedro com a simbologia do poder contribuiu em muito para o descrédito da monarquia na população. Afinal, por que dar importância a alguém, chamando-o de Vossa Majestade, que fazia questão de colocar-se no nível de todos? Porque dar-lhe privilégios de moradia em palácio, de deferência, de cargo e remuneração vitalícios se o imperador mesmo achava tudo isso uma bobagem antiquada? De fato, depois de anos agindo como burguês, em 15 de novembro de 1889, D. Pedro II levou um chute no traseiro dado pelos militares, que o escorraçaram junto com sua família, despachando todos dois dias depois em 17 de novembro a bordo de um navio rumo à Europa. Os 49 anos de serviços do imperador-burguês, tolerante com as críticas que lhe fazia a imprensa e cioso do dinheiro público a ponto de gastar quase nada com o aparato da monarquia, de forma que nem as carruagens reais eram reformadas para economizar, só lhe serviram para ser banido definitivamente do Brasil. D. Pedro sofreu resignado essa humilhação, como homem de paz que era, mas não há dúvida de que o modo ingrato como foi tratado corroeu-lhe os últimos dois anos de vida, passados na Europa dos seus antepassados. Quem mandou não se dar ao respeito?

     Assim, temos trajetórias diferentes de dois monarcas: de um lado Elizabeth II, adorada simplesmente por ser símbolo do Reino Unido; e de outro lado, Pedro II, expulso do seu país, entre outras razões, por ter falhado em mostrar, por rituais e símbolos, que ele encarnava a ideia do Brasil de 8 milhões de quilômetros quadrados, criado como nação independente por seus pais, Pedro e Leopoldina. É esse poder do símbolo que Jordan Peterson enfatiza em sua fala de 9 de setembro, reproduzida na abertura deste artigo. O psicólogo canadense ilustra seu ponto contando o episódio em que ele estava em um festival no estado americano de Kentucky e correu o boato que Donald Trump estava chegando. Peterson pôde sentir a energia no ar, o modo como a noticia excitou as pessoas, considerando o carisma do ex-presidente americano. Mas o fato de ser objeto de adoração tem um lado negro: a pessoa fica cercada de aduladores e acaba se desacostumando de ser criticada. Para quem exerce o poder de fato, isso é ruim, porque leva o líder a tomar decisões erradas, baseadas na crença na sua própria infalibilidade.

    Daí a vantagem da cisão dos poderes simbólico e político que ocorre nos regimes monárquicos: a adulação, a mística tem como foco o monarca, que não precisa tomar as decisões corretas sobre políticas públicas, não precisa ter qualidades excepcionais, mas apenas ser o elo de ligação entre as gerações passadas e as gerações futuras, simbolizando o país cuja história atravessa séculos; o poder  político fica com o líder que não precisa ter carisma, não precisa ser símbolo de nada, não precisa inspirar os sonhos e as esperanças de ninguém porque ele não encarna o Estado, mas é simplesmente o funcionário encarregado no momento da administração dos negócios públicos.

    Prezados leitores, é tarde demais para nós brasileiros voltarmos ao regime monárquico, porque uma vez quebrado o encanto da continuidade da tradição, ele não pode ser reinstaurado. Mas talvez se tivéssemos nos transformado em uma monarquia constitucional, não estaríamos agora às vésperas de elegermos um líder carismático, no qual projetamos expectativas exageradas e que certamente nos decepcionará, seja ele de direita ou de esquerda. Estaríamos de quando em quando enterrando nossos imperadores e imperatrizes, coroando-os e utilizando essas cerimônias como momentos de catarse coletiva, como estão fazendo agora os britânicos, sem precisarmos fazer das eleições de líderes do poder político um momento de ajuste de contas do bem contra o mal, com todos os perigos que isso traz à nossa democracia.

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Ressalvas democráticas

Se a estrutura básica é injusta, esses princípios [o princípio da diferença e o princípio da eficiência] autorizarão mudanças que poderão diminuir as expectativas de alguns dos membros das classes mais abastadas; então, a concepção democrática não é consistente com o princípio da eficiência se esse princípio é interpretado como significando que somente mudanças que melhoram a situação de todos são permitidas.

Trecho retirado do livro Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

O que o país gasta com educação era para ter um aprendizado muito melhor, a mesma coisa no saneamento, infraestrutura. Há um descuido muito grande, não só com a gestão, mas também com o resultado da política pública. Como se apenas realizar o gasto fosse necessário.

Trecho de uma entrevista dada pelo economista Marcos Lisboa, ex-secretário de política econômica e atual diretor-presidente do INSPER ao jornal O Globo e publicada em 4 de setembro

Quanto à Abolição, as iniciativas do imperador no sentido de extinguir gradualmente o sistema escravista provocaram fortes ressentimentos entre proprietários rurais, e não só entre eles. Os fazendeiros de café do Vale do Paraíba desiludiram-se do Império, de quem esperavam uma atitude de defesa de seus interesses. Com isso, o regime perdeu sua principal base social de apoio.

Trecho retirado do livro “História do Brasil”, do historiador e cientista político Boris Fausto (1930-

    Prezados leitores, na semana passada eu introduzi a vocês a concepção político-filosófica de John Rawls, associando-a ao liberalismo e à eficiência de Pareto. Para ilustrar meu ponto, eu falei do PROUNI, que democratizou o ensino superior, mas não proporcionou ao país os profissionais com as habilidades necessárias nas ciências exatas para podermos dar um salto de crescimento econômico pelo estímulo à inovação e ao ganho de produtividade resultante. Meu parecer foi de que o PROUNI não é eficiente, pois ele melhora o lado dos que nunca teriam frequentado uma universidade se não tivessem recebido a ajuda financeira do governo e piora o lado dos que arcam com os custos pagando impostos, porque a sociedade toda financia um programa que não proporciona o aprimoramento da qualidade na formação dos nossos recursos humanos. Em suma, é mais um item da carteira populista do Partido dos Trabalhadores.

    Essa dimensão da falta de eficiência das políticas públicas é enfatizada por Marcos Lisboa, conforme o trecho que abre este artigo. O governo investe em programas e depois não avalia os resultados concretos deles, o que para o diretor-presidente do INSPER contribui para manter o Brasil “na armadilha de baixo crescimento há quatro décadas”.  Até aqui tudo o que eu lhes trouxe corrobora minha interpretação liberal do que John Rawls quis dizer ao falar de justiça. No entanto, é preciso fazer certas ressalvas a esse quadro liberal que eu pintei do pensamento do filósofo americano, pois do contrário eu estaria deturpando-o. Eu o farei explicando o lado negro da eficiência paretiana, para o qual Rawls chama a atenção dos leitores de modo a modular seu liberalismo.

    Conforme ele explica na seção “O Princípio da Eficiência”, supondo uma sociedade em que haja a instituição da servidão – diga-se de passagem, algo análogo ao que tivemos no Brasil durante os 388 primeiros anos de nossa existência –, caso houvesse a abolição da servidão por decisão política, tal abolição certamente prejudicaria os interesses dos proprietários rurais e do ponto de vista de Pareto seria ineficiente, pois seria um jogo de soma zero, em que o benefício de um grupo seria contrabalançado pelo malefício causado a outro. Tal situação foi exemplificada em nosso país ao final do século XIX, conforme o trecho no início deste artigo: a abolição da escravidão sem indenização aos proprietários rurais os fez ter prejuízos financeiros e foi um dos fatores que contribuíram para a queda da Monarquia e a instauração da República, em 1889.

    Em que pese ter havido perdedores com a libertação dos escravos em 1888, a saber latifundiários e a família real brasileira, será que a aplicação pura e simples do princípio da eficiência serve para estabelecer o que é justo em uma sociedade? Daí por que, conforme o trecho retirado de “Uma Teoria da Justiça” citado acima, Rawls refuta a ideia de que só pode ser justo aquilo que é eficiente, isto é, aquilo que melhora as condições para todo mundo. Pois haverá sociedades em que o acesso aos bens sociais básicos – em termos gerais direitos, liberdades, oportunidades, renda e patrimônio – é tão discrepante que é preciso uma modulação que leva a uma concepção democrática da justiça. Essa modulação estabelece que só poderão ser toleradas a distribuição desigual e não igualitária dos recursos, levando à existência de classes sociais, e a aplicação do princípio da eficiência, caso isso sempre leve a que os grupos com menos acesso aos bens sociais possam gozar dos maiores benefícios possíveis. Assim, será justa uma medida que beneficie as camadas mais pobres da sociedade apenas pelo fato de ela diminuir as diferenças de acesso aos bens sociais.

    Sob essa perspectiva, um programa como o PROUNI certamente não é eficiente, pois ele não promove a qualidade e não promove o mérito. Nenhuma aferição objetiva do conhecimento adquirido é realizada e as universidades privadas que gozam do benefício das mensalidades pagas pelo governo têm todo o interesse em facilitar a vida do aluno de modo que ele possa cumprir os quatro anos regulares. No entanto, à luz da justiça democrática de Rawls, uma sociedade não pode ser baseada só na recompensa ao talento e ao mérito, pois eles dependem de fatores acidentais que fogem ao controle humano e social e jamais poderão ser distribuídos de maneira igual a todos os membros da sociedade, de modo a criar um ambiente de competição em igualdade de condições entre todos os membros da sociedade. Há pessoas mais inteligentes que outras, há pessoas com melhor estrutura familiar, há pessoas não sujeitas a vícios ou a doenças e a recompensa ao mérito só reforça desigualdades estruturais. A sociedade deve também proporcionar aos cidadãos autorrealização, independentemente das vantagens competitivas de cada um na luta pelos bens sociais.

    Prezados leitores, fica aqui feita minha ressalva democrática, para o bem da honestidade intelectual: a concepção de justiça de Rawls não é liberal, mas democrática. O PROUNI pode não nos dar os engenheiros de que precisamos, mas ele proporciona um diploma universitário a pessoas que com ele conseguem realizar o sonho de ser “doutores” e “doutoras”. E oferecer a oportunidade de autorrealização a pessoas que não teriam acesso a ela por outras vias mais eficientes é um objetivo democrático que deve ser perseguido pela sociedade, à luz das lições de Rawls.

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