Verde ou amarelo? Bem público ou privado?

Foto de uma área na Amazônia tirada pela autora em uma exposição sobre o Parque Nacional do Xingu

Um sistema econômico regula quais coisas são produzidas e por que meios, quem as recebe e recebe como recompensa de quais contribuições, e que fração dos recursos sociais é alocada à poupança e ao fornecimento de bens públicos. Idealmente todas essas questões devem ser resolvidas de maneira a satisfazer os dois princípios de justiça.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

 

Por exemplo: a questão da destinação das áreas florestadas na ordem de 57 milhões de hectares para Terras Indígenas, Unidades de Conservação de Proteção Integral ou de Uso Sustentável. Essa é uma ferramenta muito poderosa para se fazer uma muralha verde de proteção da Amazônia. Temos também a política voltada para a questão de uma nova economia na Amazônia, com investimento nessa nova economia, na bioeconomia. É uma mudança de paradigma.

Trecho da entrevista dada ao site UOL por Marina Silva, cotada para ser Ministra do Meio Ambiente no futuro governo Lula e eleita deputada federal por São Paulo

    Prezados leitores, no capítulo cinco de “Uma Teoria da Justiça” John Rawls estabelece uma relação entre a economia política e os princípios de justiça por ele defendidos em sua obra e em fazendo isso surgem dois tipos de desafios. Primeiramente, como organizar a forma de produção e de distribuição dos bens, a forma de remuneração das pessoas de maneira que sejam garantidas as liberdades básicas, isto é, a liberdade de consciência, de associação, de crença, de voto, de acesso a qualquer profissão ou cargo público? E como fazê-lo de maneira que as desigualdades sociais e econômicas que possam existir sejam de sorte que todos se beneficiem dos arranjos institucionais, que tais desigualdades sejam devidas apenas a diferenças de ocupações que qualquer um na sociedade pode exercer, independentemente de sua origem, e que não sejam devidas a impedimentos intransponíveis, já que há igualdade de oportunidades?

    Há um modo capitalista e um modo socialista de colocar os princípios da justiça em prática nas condições materiais da sociedade. No regime capitalista, as decisões sobre o que produzir, que investimentos fazer e como alocar os produtos serão tomadas no mercado, com base nos preços decididos pelos agentes econômicos individuais em suas transações, reguladas pela oferta e pela procura dos produtos, de forma que o que é produzido é dado àquele que pode pagar, independentemente da sua necessidade. No regime socialista, tais decisões são tomadas por uma autoridade central encarregada do planejamento econômico, que leva em conta a necessidade dos membros da sociedade como um todo e não sua capacidade individual de contribuição à produção e de pagamento pelos produtos. Em que pese podermos fazer essa distinção clara entre os dois regimes, há uma zona em que o individual e o coletivo se encontram tanto no capitalismo quanto no socialismo. Essa zona cinzenta é a dos bens públicos, mencionados no trecho que abre este artigo. Eles serão o foco nesta semana e a razão será explicada mais adiante.

    Conforme John Rawls explica, os bens públicos têm duas características: são indivisíveis e compartilhados por todos. Não é possível dividi-los de maneira que cada indivíduo possa comprar um pedaço de acordo com seus desejos e possibilidades. Para que tais bens possam ser usufruídos, eles têm que ser ofertados a todos os membros da sociedade ao mesmo tempo e cada um deles usufruirá da mesma quantidade. O bem público por excelência é a defesa do país contra ataques estrangeiros: a existência de um exército nacional beneficia todos os cidadãos que vivem naquele território, independentemente da condição social e econômica individual. Em um regime capitalista, em que a alocação dos recursos é ditada pelos preços, como financiar a produção de bens públicos indivisíveis e usufruídos por todos ao mesmo tempo?

    O modo de viabilizá-los é a tributação: todos os cidadãos pagando impostos gerarão os recursos necessários para produzir tais bens coletivos. Mas como garantir a adesão de cada indivíduo a esse consórcio? Porque se uma única pessoa não pagar os impostos ela mesmo assim usufruirá do bem público, da mesma maneira que aquela que os paga regularmente. A única forma é a atuação do Estado, impondo a obrigação tributária, sob pena de sanção: tendo a segurança de que os que querem apenas o bônus dos bens públicos, mas querem evitar o ônus do financiamento serão punidos, o indivíduo será estimulado a pagar os impostos porque ele pode confiar que todos o farão. E assim, a coerção estatal viabiliza a tributação e a geração dos recursos para que a sociedade possa ter acesso a bens públicos.

    Por outro lado, a coerção e a punição têm limites: a tributação não pode ser de tal monta que impeça que o indivíduo possa adquirir os bens privados que lhe dão conforto material. Não é possível financiar a produção de uma infinidade de bens públicos, há que se estabelecer uma prioridade. Tal prioridade é definida no processo político, quando a sociedade toma as decisões sobre quais bens públicos serão produzidos e qual o nível de tributação necessário para isso. É aqui que chegamos ao leitmotiv deste humilde artigo, qual seja as reservas indígenas no norte do Brasil, na região da Floresta Amazônica. Elas devem ser bens públicos e serem criadas com dinheiro público para que todos usufruam dos benefícios do meio ambiente preservado?

    A resposta de Marina Silva a esta pergunta, com base no trecho mencionado na abertura deste artigo, parece ser um retumbante sim. Criar reservas para que os índios possam viver de acordo com seu modo tradicional, que causa pouco impacto na floresta, é a maneira de blindá-la das atividades de madeireiros, mineradores e agricultores de soja. A foto que abre este artigo ilustra a dicotomia entre bem privado e bem público que respalda a visão ambientalista de Marina Silva: do lado esquerdo, amarelo (ou laranja agora e amarelo quando a soja crescer), a terra de propriedade privada, pronta para a prática da agricultura de exportação, cujo produto será vendido em dólares e trará lucros para o capitalista que a explora e divisas para o Brasil; do lado direito, verde, o bem público representado pela floresta preservada, o manto de clorofila cuja umidade cria os rios voadores que são responsáveis pelas chuvas no Sudeste do Brasil, e cujas folhas capturam CO2, permitindo que consigamos atingir as metas de redução de emissões de carbono na atmosfera.

    Mas será que todos os brasileiros realmente consideram que as reservas indígenas sejam bens públicos dos quais todos nós usufruímos? Será que os pobres que vivem nas favelas das cidades do Norte do Brasil não preferem serem empregados de madeireiras e mineradoras do que deixarem vastas áreas de floresta disponíveis somente para os índios e seus descendentes de maneira permanente? Será que os plantadores de soja não preferem que tais terras fiquem disponíveis para serem apropriadas privadamente e serem objeto de atividade agrícola? Será que a necessidade de divisas internacionais para pagarmos por nossas importações será mais premente do que a necessidade de garantir a qualidade de vida das futuras gerações de brasileiros? Será que considerando todos os interesses envolvidos, o Congresso Nacional, que tem a palavra final sobre o orçamento elaborado pelo Poder Executivo, colocará como prioridade o financiamento da criação de reservas indígenas aumentando a verba alocada ao Ministério do Meio Ambiente?

    Prezados leitores, veremos quais serão as reais intenções da sociedade brasileira e os bens públicos que ela escolherá a partir de 1º de janeiro de 2023.

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Convivendo com o inimigo

O Brasil vai enfrentar grandes desafios, seja quem for o vencedor das eleições presidenciais. O país está muito dividido, as instituições estão em frangalhos, e estamos perdendo dia após dia a capacidade de conviver. Além disso, a natureza desta eleição, meio plebiscito, meio competição de rejeição, vai eleger um presidente sem um programa. Estamos votando por medo, dando um cheque em branco para quem vencer, com a vã esperança de que podemos espantar o fantasma do inimigo.

Trecho retirado do artigo “Futuro Desafiador”, de Pablo Ortellado, publicado no jornal O Globo de 30 de outubro

Ele não era neutro no duelo pela França, mas “meu interesse não me fez esquecer nem as qualidades louváveis dos nossos adversários nem as características lamentáveis daqueles a quem dei apoio.” […] Montaigne era o francês mais civilizado naquela era selvagem.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre o escritor francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)

    Prezados leitores, na semana passada, na tentativa de explicar a necessidade de tolerar aqueles que não aceitam nossas ideias em prol da liberdade de todos, eu falei da dificuldade histórica de colocar isso em prática. Um dos que tentaram uma trégua entre as facções inimigas no auge das disputas entre católicos e protestantes na Europa foi o rei da França Henrique IV (1553-1610), que por sua tolerância foi considerado inimigo da verdadeira fé e assassinado por um fanático católico. Um dos admiradores de Henrique de Navarra foi o inventor do gênero ensaio na literatura mundial, Michel de Montaigne, que em sua obra justificou a necessidade da tolerância mútua. É tal justificativa que tentarei explicar neste artigo.

    Em sua obra “Ensaios” em três volumes, Montaigne reconhece os limites da razão humana para a obtenção do conhecimento. Ela se baseia na percepção dos nossos sentidos, que é falha e limitada, de forma que a razão não pode ser uma guia infalível. E, no entanto, somos presunçosos: criamos dezenas e dezenas de deuses, formulamos as mais diversas e absurdas hipóteses para explicar o universo e prever o destino do homem depois da morte. Pior, quanto menos sabemos sobre algo, mais acreditamos piamente na teoria filosófica ou religiosa que explica tudo. O fato é que a existência, tanto de nós enquanto seres, como dos objetos que nos rodeiam, está em constante mudança, decadência e morte. Assim, nada pode ser estabelecido com certeza e não temos acesso ao ser enquanto categoria ontológica.

    Daí Montaigne dizer que o pró e o contra são ambos possíveis, que algo pode ser ou não ser e que seu método de pensamento seguia as seguintes regras: “Não estabeleço nada, não compreendo as coisas, evito julgar, eu examino.” Diante das falhas inerentes à razão humana, o melhor era proceder com cautela e adotar uma atitude cética: era forçoso sempre considerar que há um outro ponto de vista que pode ser adotado sobre qualquer assunto, afinal há uma variedade de crenças, leis e códigos morais no mundo. Qual a ciência, filosofia ou religião verdadeira? O que é considerado certo agora, daqui a alguns anos será contestado por uma outra opinião.

    Por outro lado, o ceticismo de Montaigne não o levou nem ao agnosticismo nem ao ateísmo. O agnosticismo para ele era um dogmatismo, pois afinal como podemos ter certeza de que nunca saberemos? Já o ateísmo era monstruoso porque se a constatação socrática de que só sei que nada sei é uma consequência lógica do pensamento cético, Montaigne sabe que enfocar demasiadamente nossas hesitações, dúvidas e contradições filosóficas pode nos levar a trilhar um labirinto intelectual no qual a única certeza será a morte. Depois da revolta ante a constatação de que não é possível chegar a uma verdade absoluta e reverenciar a religião da maneira inocente das almas simples, o intelectual, para seu próprio bem-estar espiritual, deve chegar ao significado profundo das coisas divinas e adotar a fé do seu tempo e lugar. A religião pode encobrir nossa ignorância com mitos reconfortantes, mas devemos fazer as pazes com ela para permanecermos no caminho da civilização.

    Sob essa perspectiva, na guerra fratricida entre as seitas religiosas cujos membros se matavam na França, Montaigne, consciente da relatividade das coisas, adotou o princípio da tolerância, conforme descrito no trecho que abre este artigo. Embora fosse fielmente católico, pelas razões acima expostas, ele não deixava de ver defeitos nos membros da sua tribo e qualidades nos membros da tribo inimiga, afinal ele podia perceber que as diferenças filosóficas e morais entre as duas correntes eram fruto de um desenvolvimento histórico que levaram à criação de costumes e de regras específicas. Daí sua admiração pelo homem responsável pelo Édito de Nantes, que tentou estabelecer a tolerância religiosa no ordenamento jurídico francês do século XVI.

    Prezados leitores, imbuída do espírito do grande ensaísta francês, proporei um exercício intelectual ao qual os convido para apaziguarmos os ânimos tão acirrados depois das eleições presidenciais de 30 de outubro, conforme corretamente previu o jornalista Pablo Orellano no artigo mencionado na abertura deste artigo. Que tal se os bolsonaristas reconhecerem que o voto em Lula não é necessariamente fruto de fraude nas urnas eletrônicas, mas devido ao carisma do ex-presidente e agora futuro presidente, a sua trajetória pessoal de superação, com a qual muitos brasileiros se identificam por causa da própria formação histórica do país?  Que tal se os lulistas reconhecerem que o voto em Bolsonaro não é necessariamente um voto de extremistas contra a democracia, mas um voto de protesto contra a politização exagerada do Judiciário, contra suas decisões erráticas que levam os cidadãos a desconfiar da motivação delas? E que tal se o ministro do STF Alexandre de Moraes não querer controlar até o sentido que as pessoas dão à palavra culpado?

    Talvez seja um exercício em vão e nosso destino é nos digladiarmos com nossos parentes e amigos, tal como os franceses fizeram à época em que Montaigne viveu. No entanto, fica a lição do primeiro ensaísta: conviver com o inimigo, saber que ele tem as mesmas falhas de julgamento que você, mas ao mesmo tempo tem valores e aspirações espirituais como você tem é o melhor remédio para este Futuro Desafiador.

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Tolerando os intolerantes

Na refrega ocorrida na Europa entre a Reforma (1517) e a Paz de Vestfália (1648), essa competição coletiva usou a religião como uma roupagem e uma arma para fins econômicos e políticos. Quando, depois de um século de lutas, os combatentes depuseram as armas, a cristandade mal sobreviveu entre as ruínas.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), que abre o capítulo sobre as Guerras de Religião que se desenrolaram na França entre 1562-1598

Há uma divisão do país que não é regional, mas por outras categorias. Antes de tudo econômica […]. Desde 2018 surgiram outras duas divisões importantes: a religiosa e a por sexo. […] Na religião, a posição de Lula entre católicos e a de Bolsonaro entre evangélicos se invertem na preferência.

Trecho da entrevista dada pelo professor da UNICAMP Marcos Nobre ao jornal O Estado de São Paulo em 23 de outubro

 

A conclusão, então, é que em que pese o intolerante não ter direito de reclamar de intolerância, sua liberdade pode ser restrita somente quando o tolerante sinceramente e com razão acredita que sua própria segurança e a segurança das instituições da liberdade estão em perigo.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, em “Uma Teoria da Justiça” John Rawls elabora uma estrutura teórica para explicar que tipo de justiça será escolhida por indivíduos na posição original de partes que celebrarão um contrato social, mas que não têm nenhum conhecimento sobre a posição mais ou menos privilegiada que ocuparão na sociedade. Um dos itens do rol de liberdades escolhido por esse cidadão motivado pelo interesse próprio, que deseja estabelecer leis que lhe deem a oportunidade de perseguir seus objetivos de vida, é a liberdade de consciência e seu corolário, a liberdade de religião.

    Como na posição original o indivíduo não sabe a que religião ele estará afiliado, se é que estará, e se essa religião será a da maioria ou a da minoria da população, ele irá escolher regras que façam com que o Estado não favoreça uma crença específica e nem puna quem pertence a uma certa filiação religiosa ou que escolha não pertencer a religião nenhuma. O objetivo será que cada indivíduo tenha a possibilidade de concretizar seus valores espirituais e eventualmente cumprir as obrigações que sua religião lhe impõe no âmbito de um cenário em que outros de religião diferente ou sem religião possam fazer o mesmo.

    Nesse sentido, a liberdade religiosa proposta nessa ordem liberal não é a liberdade de reivindicar mais liberdade para si porque você deve realizar os desígnios de Deus, ou a liberdade de impor sua visão moral e filosófica a outros porque você a considera a única verdadeira. Afinal, não há como escolher uma entidade imparcial que desempenhe o papel de árbitro para decidir qual religião é verdadeira e qual é falsa e por isso nenhuma crença pode arrogar-se uma posição privilegiada em relação a outra. O fundamento da liberdade religiosa reside não em nenhuma teoria filosófica, mas nos princípios escolhidos por cada membro da sociedade na posição original com base no bom senso compartilhado de cidadãos que querem ter a oportunidade de prosperar em uma sociedade e para isso celebram de boa fé um acordo com regras que regulam o comportamento de todos de forma que cada um posso dar vazão a sua individualidade.

    Se, no esquema de Rawls, o fundamento da liberdade de consciência e de religião é simplesmente o interesse próprio de indivíduos que desejam estabelecer condições sustentáveis no longo prazo para sua felicidade, coloca-se o problema se faz sentido tolerar no seio dessa sociedade que garante liberdades iguais para todos os intolerantes, isto é, aqueles que consideram que sua visão de mundo, seus valores morais e filosóficos são os únicos verdadeiros e dignos de serem perseguidos e apoiados. Conforme explica o filósofo americano no trecho que abre este artigo, a resposta é que tal tolerância é possível até certo limite.

    De fato, enquanto os intolerantes estiverem de boa fé e dispostos a aceitar que aqueles que se opõem a suas ideias usufruam da mesma liberdade a eles garantida para expor as deles, seu dogmatismo pode florescer nessa sociedade organizada sob o princípio da liberdade. No entanto, nas circunstâncias em que o comportamento dos intolerantes ameace ou coloque em risco a liberdade dos outros membros da sociedade, para que os princípios escolhidos na posição original possam continuar a embasar a ordem social será preciso colocar limites à liberdade conferida aos intolerantes de denunciar quem não pensa como eles.

    Estabelecer esse critério na prática é o desafio enfrentado ao longo da História. As Guerras de Religião, descritas por Will Durant no livro citado acima, é um exemplo típico da dificuldade de estabelecer regras de convivência e tolerância entre grupos que se odeiam mutuamente, como era o caso dos católicos e dos protestantes na França do século XVI, que eram chamados de huguenotes. Para os católicos, os protestantes não tinham nem direito de existir e para os protestantes, o culto católico era uma idolatria pagã que nada tinha a ver com a Bíblia. Depois de idas e vindas em termos de batalhas vencidas por um grupo ou outro, depois do massacre de São Bartolomeu ocorrido em Paris em 24 de agosto de 1572, e seus desdobramentos em várias cidades da França  nos dias seguintes, em que entre 5.000 a 30.000  huguenotes foram mortos por suas convicções religiosas, o rei da França Henrique IV (1553-1610) decretou o Édito de Nantes em 13 de abril de 1598, conferindo liberdade de culto e de acesso a cargos públicos e a instituições de ensino aos protestantes em 787 das 800 cidades  francesas. No entanto, essa tolerância mútua de grupos que tinham discordâncias profundas sobre Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria e os santos durou menos de um século: o neto de Henrique IV, Luís XIV (1638-1715), revogou o Édito em 18 de outubro de 1685, retirando dos huguenotes todas as liberdades civis e religiosas. Em suma, na França do século XVII não foi possível estabelecer limitações mútuas que permitissem que católicos e protestantes perseguissem seus valores morais e espirituais livremente: a liberdade concedida a um grupo minoritário representava uma ameaça à unidade do Estado, cujos princípios de organização eram fundados na fé católica.

    Prezados leitores, será que essas eleições presidenciais revelam que vivemos nossa versão tupiniquim das Guerras de Religião? Conforme explica Marcos Nobre na entrevista que abre este artigo, há uma divisão profunda entre bolsonaristas e petistas em termos de religião: uns são evangélicos e os outros são católicos. Essa divisão vai além da polarização, porque revela um fosso entre os dois grupos, que vivem em mundos diferentes e tem visões radicalmente opostas. Para o cientista político, a única maneira de sustentar a democracia a longo prazo é que a direita bolsonarista seja isolada pela ação concertada da esquerda e da direita democráticas.

    À luz da experiência histórica explicada acima o que nos aguarda? Uma tolerância precária dos opostos por algumas décadas como ocorreu na França sob o Édito de Nantes? Ou a escolha de um lado e a interrupção da tolerância ao grupo oponente, como ocorreu naquele país, que assistiu ao êxodo dos huguenotes? Ou será que depois de tantas disputas teológicas, chegaremos exaustos à conclusão, conforme Durant explica no trecho que abre este artigo, que as verdades irrefutáveis sobre a religião são ilusões e não iremos crer mais em nada? Aguardemos e no entrementes tentemos tolerar os intolerantes para bem das nossas liberdades.

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Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

A história sorri ante todas as tentativas de forçar seu fluxo em padrões teóricos ou em compartimentos lógicos; ela destrói nossas generalizações, viola nossas regras. A história é barroca.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

Estas são as eleições mias importantes para a política externa brasileira desde o início da Nova República. Estão em jogo duas concepções radicalmente distintas de como o Brasil deve se conduzir internacionalmente. E o sistema internacional está em seu momento mais inseguro: há uma mistura perigosíssima e sem precedentes de competição entre as grandes potências que têm armas nucleares.

Trecho retirado da entrevista dada pelo pesquisador da FGV-SP Matias Spektor, especialista em Relações Internacionais, ao jornal O Globo em 16 de outubro

Hegel eleva este método ao status de princípio de explicação histórica. Ocorre que a progressão dialética a partir de duas demandas antagônicas rumo a uma solução de compromisso é suficientemente útil. No entanto, Hegel continua a desenvolver a ideia, para mostrar como a história tinha que passar por todos esses estágios com base nesse princípio. Nem é preciso dizer que isso somente é possível distorcendo os fatos. Uma coisa é reconhecer um padrão nos acontecimentos históricos, outra muito diferente é deduzir a história de tal princípio.

Trecho retirado do livro “The Wisdom of the West” do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) sobre o método dialético do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831)

    Prezados leitores, na semana passada eu tomei o caso da história recente da Venezuela para mostrar como uma concepção utilitarista de justiça pode acabar minando os nobres objetivos de um governante como Hugo Chávez, que quis acabar com a pobreza no país colocando o grupo dos privilegiados contra os não privilegiados, de forma a fazer do primeiro um instrumento para a resolução dos problemas do segundo grupo. Essa receita acabou sendo insustentável no longo prazo e prejudicando o país como um todo. A razão pela qual falei da Venezuela é que o Presidente Bolsonaro sempre se vale do exemplo do desastre econômico no país vizinho para ilustrar sua ideia de que se Lula for eleito viveremos o mesmo drama aqui, como se o candidato do PT fosse repetir a receita de distribuição de renda na marra que Chávez implantou no início do século XXI.

    Meu objetivo nesta semana é mostrar como essas polarizações que se fazem no discurso sobre os acontecimentos históricos se relacionam muito mais à propaganda do que a uma visão equilibrada dos fatos. Para tanto vou me valer da explicação que Bertrand Russell dá do método dialético, tal como reelaborado pelo filósofo alemão Hegel para explicar os movimentos históricos. Para Hegel, a dialética é uma força que move a história e determina o desdobramento dos fenômenos particulares, que pela sua própria dinâmica trazem em si o germe da mudança, de forma que novas características surgem, contradizendo as antigas. A peculiaridade do esquema explicativo de Hegel é que ele tem uma concepção metafísica dessa força-matriz, porque a vê como um processo espiritual e não material. É aí que mora o perigo, segundo Russell, conforme o trecho que abre este artigo.

    De fato, se o ciclo de choque entre entes opostos, tese e antítese, e sua combinação em uma síntese, é um princípio teórico a ser aplicado sempre, o que acaba ocorrendo é que as circunstâncias materiais acabam sendo encaixadas nessas categorias de qualquer forma, independentemente das nuances da situação concreta. A filosofia da história de Hegel é que há uma luta entre duas forças e ao final surgirá a síntese no último estágio, o Absoluto que para ele era a Prússia do século XVIII. Russell aponta assim a grande falha no princípio dialético de Hegel, que é o de servir para a propaganda nacionalista.

    Uma certa filosofia da história como arma de propaganda pode ser detectada na visão maniqueísta peculiar do presidente Jair Bolsonaro, que  cria sua própria narrativa de ciclo histórico, o qual deve caminhar rumo ao progresso. A esquerda no poder, com suas medidas de justiça social, causa atraso e pobreza, devendo ser superada por um governo como o dele, que será o da liberdade e o da prosperidade. Mas será que a história contemporânea se encaixa nesse esquema proposto de superação da herança esquerdista na América Latina?

    Para Matias Spektor, a resposta é um retumbante não, conforme ele explica na entrevista mencionada na abertura deste artigo. A concepção de relações internacionais e de política externa de Bolsonaro nos levará ao isolamento em dois níveis: no nível regional sul-americano, pelo fato de a retórica do nosso presidente afastar países em que atualmente há governos de esquerda, como Chile, Argentina, Colômbia e Bolívia; e no nível internacional a narrativa bolsonarista de denunciar os ambientalistas levará o Brasil a sofrer sanções econômicas se não nos comprometermos a de fato diminuir nossas emissões de gás carbônico, algo que o presidente não parece disposto a fazer, por considerar isso uma imposição descabida à soberania do país.

    Por outro lado, Spektor parece adotar uma visão respaldada no materialismo dialético de Karl Marx, que tomou a concepção hegeliana de dialética e tornou-a um processo não espiritual, fundado nas condições materiais existentes na realidade e não em categorias metafísicas. Se Spektor critica Bolsonaro, ele tampouco poupa Lula, que em seus dois mandatos como presidente da República tentou minar a hegemonia americana investindo em relações com países em desenvolvimento, como a África do Sul, a Rússia e a China, com o objetivo de aumentar a multipolaridade. Para Spektor, a situação agora é outra e esse velho esquema de que Lula usou e abusou no começo do século XXI não vai funcionar mais, porque as grandes potências, China, Estados Unidos e Rússia, estão se engalfinhando como nunca antes, e elas acabarão exigindo dos países mais fracos, como o Brasil, assumir uma posição. Assim, Lula, se for novamente presidente, não poderá flertar impunemente com os inimigos dos Estados Unidos, sem que os americanos nos punam por isso. O cenário geopolítico mudou e tanto o isolacionismo de Bolsonaro como o multilateralismo de Lula não fazem mais sentido em um mundo que está abandonando a livre troca de produtos e a livre circulação de pessoas e está se organizando em torno de grupos de países liderados pelos gigantes que estão disputando quem vai ditar as regras da nova ordem mundial.

    Prezados leitores, se a Síntese histórica não será o Absoluto hegeliano ou bolsonarista ou mesmo lulista, mas o fruto das mudanças na ordem globalizada que vigorou até agora, como explica Matias Spektor, que rumo o Brasil deve tomar? Será que devemos escolher um lado ou independentemente do lado que escolhermos estaremos em uma situação infeliz, pelas próprias restrições que passarão a viger no mundo em termos do intercâmbio entre os países? Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come e como disse Will Durant, a história é barroca, feita de luzes e sombras, imprevisível, sempre refratária aos nossos esquemas mentais. Aguardemos que as contradições da situação atual sejam trazidas à luz e revelem o novo caminho.

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Justiça para todos

Arranjando as desigualdades para que haja vantagens recíprocas e abstendo-se da exploração das contingências da natureza e das circunstâncias sociais em uma estrutura de liberdades iguais, as pessoas expressam seu respeito umas às outras na própria constituição da sociedade. Deste modo, elas garantem seu autorrespeito, já que é racional fazer isso.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)

 

O populismo envolve a divisão da cena social em dois campos. Essa divisão pressupõe a presença de alguns significantes privilegiados que condensam em si mesmos a significação de todo um campo antagônico (o ”regime”, a “oligarquia”, os “grupos dominantes” etc., para o inimigo; a “nação”, a “maioria silenciosa”, e assim por diante, para o oprimido desvalido – esses significantes adquirem esse papel articulador, de acordo, obviamente, com uma história contextual).

 Trecho retirado do verbete da Wikipedia sobre a Revolução Bolivariana empreendida pelo presidente da Venezuela Hugo Chavez de 1999 até 2013

    Prezados leitores, nesta semana abordo pela terceira vez neste meu humilde espaço a concepção de justiça que John Rawls desenvolve ao longo da obra acima mencionada. O foco será o contraponto entre uma visão utilitarista e uma visão equitativa do modo pelo qual seres racionais decidem organizar-se em sociedade e distribuir os ônus e os bônus. O objetivo deste contraponto é tentar aplicá-lo à experiência histórica recente da Venezuela, país tantas vezes mencionado na campanha presidencial brasileira pelo candidato Jair Bolsonaro.

    John Rawls parte do pressuposto de que ser racional é defender seus interesses, tentar concretizar seu projeto de vida de acordo com as condições da sociedade e não ter inveja de seus pares que por acaso possam ter mais vantagens naturais ou econômicas, inveja esta que faria o mais desafortunado querer prejudicar seu vizinho, mesmo que tal prejuízo não trouxesse nenhum benefício a ele. Portanto, o ser racional tem como foco único perseguir suas metas, sem preocupar-se com sua posição relativa.

    Tal premissa sobre o tipo de membro da sociedade permite a Rawls estabelecer um caminho de busca da satisfação do interesse próprio de maneira ética. O ser racional, ao ser convidado, em um momento hipotético, a participar de uma sociedade pergunta-se: que regras escolher que permitam que eu tenha condições de concretizar meus objetivos e que eu possa aderir a essas regras de maneira permanente, isto é, que regras escolher para distribuir os bens da sociedade que não sejam rígidas demais que me seja impossível obedecer a elas sempre? Ser ético, portanto, é celebrar de boa fé um contrato com outros membros da sociedade de modo que cada uma das pessoas esteja sempre pronta a colocar em prática as regras impostas a todos os que vivem no presente e os que viverão no futuro e possa nutrir expectativa razoável de que os outros farão o mesmo.

    Entre as várias alternativas possíveis, há a concepção utilitária, pela qual o melhor a escolher é aquilo que proporciona o maior ganho total para a sociedade como um todo. Para o homem racional de John Rawls, essa via utilitarista é cheia de perigos. Se o ganho total é um saldo líquido que beneficiará a entidade coletiva, a análise desse saldo revelará que haverá indivíduos que serão prejudicados em prol das vantagens criadas para outros grupos. Pedir que uns se sacrifiquem para que outros floresçam requer que sejam cultivadas na psiquê de cada ser humano a empatia e a benevolência, o que não é uma certeza.

    Afinal, na posição hipotética de Rawls, antes da celebração do contrato social, o indivíduo ignora as condições de que vai desfrutar na sociedade, os talentos de que ele disporá para colocar em prática seu plano de vida, a quantidade de bens materiais de que disporá quando a sociedade estiver em pleno funcionamento. E se ele tiver uma posição subalterna? Não é temerário comprometer-se de antemão com uma justiça utilitarista pela qual o foco está no ganho líquido final? O sacrifício de uns será compensado pelo benefício total obtido com a implementação das políticas utilitaristas, mas estar na posição dos sacrificados definitivamente não é reconfortante.

    Daí que para o ser racional que está disposto a vincular-se a um contrato social sem saber que posição ocupará na sociedade a opção utilitarista não é a melhor. A via mais sensata é adotar o princípio da igualdade em termos de liberdades e oportunidades e o princípio da diferença, pelo qual nenhum privilégio será concedido aos mais afortunados se isso prejudicar os mais desafortunados. A aplicação simultânea desses dois princípios permite ao ser racional garantir para si um mínimo de bens sociais, independentemente de sua sorte na vida, e permite que a sociedade funcione de maneira mais cooperativa e mais eficiente, pois cada indivíduo dotado de certas liberdades e oportunidades básicas terá respeito por si próprio e não se verá como um azarado que acabou ficando na posição social errada e cujo bem-estar será sacrificado em prol do bem comum.

    Em tal esquema, cada indivíduo da sociedade tem interesse em que sociedade funcione, porque tanto os mais privilegiados quanto os menos privilegiados conseguem uma fatia do bolo. Daí a justiça de Rawls, conforme explicada no trecho que abre este artigo, ser a justiça da equidade, isto é, a justiça de dar a cada um sua justa parte como resultado do esforço conjunto de cada um dos indivíduos, livres para perseguir suas metas individuais e leais ao compromisso firmado originalmente de seguir as regras impostas a todos.

    Tendo explicado a diferença entre as duas visões de justiça, é útil utilizá-la para iluminar a revolução bolivariana empreendida por Hugo Chávez, cujo objetivo era erradicar a pobreza e estabelecer o socialismo do século XXI na Venezuela. Será que os preceitos do bolivarianismo se enquadram numa concepção utilitarista ou equitativa de justiça, tal como vislumbrou John Rawls?

    O presidente da Venezuela de 1999 até sua morte, em 2013, tentou concretizar o objetivo revolucionário por meio de várias políticas econômicas e sociais. Nacionalizou empresas de energia, bancos e telecomunicações. Pelo Plano Bolivar 2000, tentou vacinar a população em massa e distribuir alimentos. A Missão Barrio Adentro tinha como meta proporcionar assistência de saúde integral às comunidades pobres, incluindo cuidados médicos e odontológicos e treinamento esportivo. A Missão Habitat objetivava dar moradia aos pobres. A Missão Mercal instalou mercados que forneciam alimentos e produtos básicos a preços subsidiados. A Missão Robinson era formada por voluntários que ensinavam os venezuelanos analfabetos a ler, escrever e contar.

    Isso tudo era financiado com dinheiro público obtido da venda do petróleo, mas a nacionalização das empresas não fez aumentar a produção, ao contrário a diminuiu, levando o país a sofrer hiperinflação, desabastecimento e contração da economia.  Em 2018 a inflação chegou a 130.000% e segundo a Anistia Internacional de 2015 a 2021 6 milhões de venezuelanos deixaram o país.

    Esse breve panorama do que foi feito por Hugo Chávez enquanto esteve no comando do país parece apontar que, ao dividir a Venezuela entre a oligarquia e a maioria silenciosa, conforme o trecho que abre este artigo, Chávez quis erradicar a pobreza sacrificando a minoria privilegiada em prol da maioria destituída, praticando, portanto, uma visão utilitarista. No entanto, em assim fazendo, ele privou muitos de liberdade e de oportunidades, pois solapou as forças produtivas com suas nacionalizações forçadas.

    De fato, a emigração em massa do país mostra que os grupos sacrificados em prol do ganho da maioria que elegia Chávez perderam o interesse em fazer parte de um contrato social que os estigmatizava e não lhes dava chance de prosperar e emigraram, levando consigo seus talentos, sua capacidade de criar riquezas e mergulhando o país em um círculo vicioso de estagflação e miséria. A distribuição de renda empreendida por Hugo Chávez a toque de caixa acabou sendo um tiro pela culatra, porque minou a cooperação social fundamental para que todos os indivíduos conseguissem ter sua fatia na distribuição dos bens sociais. No final, todos empobreceram sob a égide da política antagonista do nós contra eles do socialismo bolivariano.

    Prezados leitores, a aplicação dos conceitos de John Rawls a uma situação concreta como a história infeliz da Venezuela nas duas primeiras décadas do século XX permite-nos ver que a justiça equitativa é a melhor justiça possível, pois é a justiça de cada um dos membros da sociedade: é a justiça para todos, dos mais ricos aos mais pobres, dos mais talentosos aos menos talentosos, dos mais privilegiados aos mais desafortunados. Ela é a única sustentável a longo prazo, porque garante um mínimo a cada um, sempre. Lembremos sempre disso quando estivermos diante de populistas cheios de boas intenções.

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