Foto de uma área na Amazônia tirada pela autora em uma exposição sobre o Parque Nacional do Xingu
Um sistema econômico regula quais coisas são produzidas e por que meios, quem as recebe e recebe como recompensa de quais contribuições, e que fração dos recursos sociais é alocada à poupança e ao fornecimento de bens públicos. Idealmente todas essas questões devem ser resolvidas de maneira a satisfazer os dois princípios de justiça.
Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” do professor de filosofia política americano John Rawls (1921-2002)
Por exemplo: a questão da destinação das áreas florestadas na ordem de 57 milhões de hectares para Terras Indígenas, Unidades de Conservação de Proteção Integral ou de Uso Sustentável. Essa é uma ferramenta muito poderosa para se fazer uma muralha verde de proteção da Amazônia. Temos também a política voltada para a questão de uma nova economia na Amazônia, com investimento nessa nova economia, na bioeconomia. É uma mudança de paradigma.
Trecho da entrevista dada ao site UOL por Marina Silva, cotada para ser Ministra do Meio Ambiente no futuro governo Lula e eleita deputada federal por São Paulo
Prezados leitores, no capítulo cinco de “Uma Teoria da Justiça” John Rawls estabelece uma relação entre a economia política e os princípios de justiça por ele defendidos em sua obra e em fazendo isso surgem dois tipos de desafios. Primeiramente, como organizar a forma de produção e de distribuição dos bens, a forma de remuneração das pessoas de maneira que sejam garantidas as liberdades básicas, isto é, a liberdade de consciência, de associação, de crença, de voto, de acesso a qualquer profissão ou cargo público? E como fazê-lo de maneira que as desigualdades sociais e econômicas que possam existir sejam de sorte que todos se beneficiem dos arranjos institucionais, que tais desigualdades sejam devidas apenas a diferenças de ocupações que qualquer um na sociedade pode exercer, independentemente de sua origem, e que não sejam devidas a impedimentos intransponíveis, já que há igualdade de oportunidades?
Há um modo capitalista e um modo socialista de colocar os princípios da justiça em prática nas condições materiais da sociedade. No regime capitalista, as decisões sobre o que produzir, que investimentos fazer e como alocar os produtos serão tomadas no mercado, com base nos preços decididos pelos agentes econômicos individuais em suas transações, reguladas pela oferta e pela procura dos produtos, de forma que o que é produzido é dado àquele que pode pagar, independentemente da sua necessidade. No regime socialista, tais decisões são tomadas por uma autoridade central encarregada do planejamento econômico, que leva em conta a necessidade dos membros da sociedade como um todo e não sua capacidade individual de contribuição à produção e de pagamento pelos produtos. Em que pese podermos fazer essa distinção clara entre os dois regimes, há uma zona em que o individual e o coletivo se encontram tanto no capitalismo quanto no socialismo. Essa zona cinzenta é a dos bens públicos, mencionados no trecho que abre este artigo. Eles serão o foco nesta semana e a razão será explicada mais adiante.
Conforme John Rawls explica, os bens públicos têm duas características: são indivisíveis e compartilhados por todos. Não é possível dividi-los de maneira que cada indivíduo possa comprar um pedaço de acordo com seus desejos e possibilidades. Para que tais bens possam ser usufruídos, eles têm que ser ofertados a todos os membros da sociedade ao mesmo tempo e cada um deles usufruirá da mesma quantidade. O bem público por excelência é a defesa do país contra ataques estrangeiros: a existência de um exército nacional beneficia todos os cidadãos que vivem naquele território, independentemente da condição social e econômica individual. Em um regime capitalista, em que a alocação dos recursos é ditada pelos preços, como financiar a produção de bens públicos indivisíveis e usufruídos por todos ao mesmo tempo?
O modo de viabilizá-los é a tributação: todos os cidadãos pagando impostos gerarão os recursos necessários para produzir tais bens coletivos. Mas como garantir a adesão de cada indivíduo a esse consórcio? Porque se uma única pessoa não pagar os impostos ela mesmo assim usufruirá do bem público, da mesma maneira que aquela que os paga regularmente. A única forma é a atuação do Estado, impondo a obrigação tributária, sob pena de sanção: tendo a segurança de que os que querem apenas o bônus dos bens públicos, mas querem evitar o ônus do financiamento serão punidos, o indivíduo será estimulado a pagar os impostos porque ele pode confiar que todos o farão. E assim, a coerção estatal viabiliza a tributação e a geração dos recursos para que a sociedade possa ter acesso a bens públicos.
Por outro lado, a coerção e a punição têm limites: a tributação não pode ser de tal monta que impeça que o indivíduo possa adquirir os bens privados que lhe dão conforto material. Não é possível financiar a produção de uma infinidade de bens públicos, há que se estabelecer uma prioridade. Tal prioridade é definida no processo político, quando a sociedade toma as decisões sobre quais bens públicos serão produzidos e qual o nível de tributação necessário para isso. É aqui que chegamos ao leitmotiv deste humilde artigo, qual seja as reservas indígenas no norte do Brasil, na região da Floresta Amazônica. Elas devem ser bens públicos e serem criadas com dinheiro público para que todos usufruam dos benefícios do meio ambiente preservado?
A resposta de Marina Silva a esta pergunta, com base no trecho mencionado na abertura deste artigo, parece ser um retumbante sim. Criar reservas para que os índios possam viver de acordo com seu modo tradicional, que causa pouco impacto na floresta, é a maneira de blindá-la das atividades de madeireiros, mineradores e agricultores de soja. A foto que abre este artigo ilustra a dicotomia entre bem privado e bem público que respalda a visão ambientalista de Marina Silva: do lado esquerdo, amarelo (ou laranja agora e amarelo quando a soja crescer), a terra de propriedade privada, pronta para a prática da agricultura de exportação, cujo produto será vendido em dólares e trará lucros para o capitalista que a explora e divisas para o Brasil; do lado direito, verde, o bem público representado pela floresta preservada, o manto de clorofila cuja umidade cria os rios voadores que são responsáveis pelas chuvas no Sudeste do Brasil, e cujas folhas capturam CO2, permitindo que consigamos atingir as metas de redução de emissões de carbono na atmosfera.
Mas será que todos os brasileiros realmente consideram que as reservas indígenas sejam bens públicos dos quais todos nós usufruímos? Será que os pobres que vivem nas favelas das cidades do Norte do Brasil não preferem serem empregados de madeireiras e mineradoras do que deixarem vastas áreas de floresta disponíveis somente para os índios e seus descendentes de maneira permanente? Será que os plantadores de soja não preferem que tais terras fiquem disponíveis para serem apropriadas privadamente e serem objeto de atividade agrícola? Será que a necessidade de divisas internacionais para pagarmos por nossas importações será mais premente do que a necessidade de garantir a qualidade de vida das futuras gerações de brasileiros? Será que considerando todos os interesses envolvidos, o Congresso Nacional, que tem a palavra final sobre o orçamento elaborado pelo Poder Executivo, colocará como prioridade o financiamento da criação de reservas indígenas aumentando a verba alocada ao Ministério do Meio Ambiente?
Prezados leitores, veremos quais serão as reais intenções da sociedade brasileira e os bens públicos que ela escolherá a partir de 1º de janeiro de 2023.