Confortos e desconfortos aqui e acolá

Em relação a mim, eu admito que eu conheci apenas um Deus – o Deus de todo o mundo e da justiça… O homem no campo acrescenta a essa concepção… porque sua juventude, sua masculinidade e sua velhice devem ao padre seus pequenos momentos de felicidade… Deixe-o com suas ilusões. Ensine-o se quiser… mas não deixe que os pobres tenham medo de que possam perder a única coisa que os ligam à vida.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando George Jacques Danton (1759-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

O ateísmo é aristocrático. A ideia de um grande Ser que vela pela inocência e pune o crime triunfante é basicamente a ideia do povo […] Essa noção […] liga-se somente a ideia de um Poder incompreensível, do terror dos malfeitores, o esteio e conforto da virtude.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Maximilien de Robespierre (1758-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

De maneira mais abrangente, este relatório também descreve os impactos em cascata que levam a mortes indiretas, causados pelas operações militares de Israel em Gaza e na Cisjordânia. Ele examina o impacto sobre a saúde da população causado pela destruição da infraestrutura pública, das fontes de subsistência, pelo acesso reduzido a cuidados de saúde, à água e ao saneamento e pelos danos ambientais. Por exemplo, 96% da população de Gaza (2,15 milhões de pessoas) enfrenta níveis agudos de insegurança alimentar. De acordo com a carta de 2 de outubro de 2024 apresentada ao Presidente Biden por um grupo de médicos americanos, 62.413 pessoas em Gaza morreram de inanição.

Trecho retirado do Resumo do relatório intitulado “The Human Toll: Indirect Deaths from War in Gaza and the West Bank, October 7, 2023 Forward” publicado pelo Watson Institute for International & Public Affairs da Universidade Brown

    Prezados leitores, venho abordando a Revolução Francesa ao longo das últimas semanas. Na primeira semana de outubro, em “Pontos de inflexão – os paralelogramos de Gibbon”, falei sobre o conjunto de fatores que presentes concomitantemente criaram as condições suficientes para sua eclosão. Na semana passada, em “Onde estão os novos porteiros”, falei como a exploração de um veículo relativamente novo de comunicação, a imprensa escrita, foi responsável pela criação das narrativas que sustentaram o movimento revolucionário, a luta dos bons, o “povo”, contra os maus, representados basicamente pela nobreza e pelo clero, que gozavam de privilégios seculares. Nesta semana, retomarei essa dicotomia para explorar as visões de mundo que se digladiavam no século XVIII e lançar luz sobre nossas próprias dicotomias, em pleno século XXI.

    É verdade que havia diferentes grupos sociais que disputaram o poder na França desde 1789 até a tomada do poder por Napoleão em 1799, os quais tinham diferentes visões sobre como organizar as instituições econômicas e políticas. No entanto, ignorando as nuances das respectivas teorias, podemos com certeza dividir a sociedade francesa do final do século XVIII em dois campos ideológicos. Um deles, ligado às tradições, considerava que a fé religiosa era no final das contas o único apoio que o indivíduo tinha vivendo em um mundo ininteligível, sem significado e trágico. O outro, aberto à experimentação, considerava que a religião era uma superstição que atrapalhava o caminho rumo à razão e à liberdade.

    Assim, para os experimentalistas revolucionários, a combinação da razão e da liberdade permitiria tentar novos modos de organização da sociedade que estabeleceriam uma nova ética nas relações humanas, não fundada no medo das coisas invisíveis e na esperança vã de uma vida eterna melhor, mas na busca pela diminuição do sofrimento das pessoas e pelo aumento da felicidade. Uma moral racional, livre de preconceitos e de noções de superioridade e de inferioridade irredutíveis trariam a igualdade, a justiça e, portanto, melhoraria a vida da maioria das pessoas.

    Ora, esse caminho rumo ao paraíso na terra era ceifado de dificuldades, pois não havia escolhas fáceis. No campo econômico era preciso garantir a todos que pudessem comer e para isso que o preço dos alimentos fosse acessível para a população mais pobre. O que fazer? Estabelecer preços máximos para os produtos? Se assim fosse feito, os agricultores não teriam estímulo para produzir. Por outro lado, se os preços fossem liberados, os comerciantes poderiam auferir grandes lucros se retivessem as mercadorias para vendê-las no futuro a preços maiores, quando a demanda fosse maior. Num e noutro caso, a decisão a ser tomada para enfrentar o problema da oferta e da demanda e de como equilibrá-las implicava enfatizar um aspecto em detrimento do outro.

    Um governo de inclinação burguesa liberaria os preços para incentivar a produção e a criação de riquezas. Um governo de inclinação popular controlaria os preços para diminuir as desigualdades criadoras de ressentimentos. Seria possível destrinchar o problema apelando à razão? Haveria uma única razão, imparcial, objetiva, unívoca que viabilizasse uma resposta categórica? Ou haveria uma ponderação dos interesses em jogo e no final das contas uma decisão arbitrária sobre que interesses privilegiar com base na correlação de forças políticas?

    Tanto Danton, que foi ministro da Justiça e membro do Conselho Executivo de agosto de 1792 até 1793, quanto Robespierre, o principal nome do Comitê de Salvação Publica a partir de julho de 1793 até sua execução em julho de 1794 reconheciam que na prática o reino da prosperidade para todos que tornaria a religião inútil não era algo simples de ser conquistado. Daí as observações desses dois homens sobre a função da religião, citadas na abertura deste artigo. Se as desigualdades e as injustiças, o sofrimento, o trabalho duro, a doença não podem ser eliminados da face da Terra, é preciso crer que em outra dimensão um Ser com poderes absolutos punirá os maus e recompensará os bons. Do contrário, como ter motivação para viver se o indivíduo, por sua posição na escala social e econômica é vítima desses males constantemente? Não crer em Deus é um luxo dos privilegiados, que têm mais condições materiais de remediar os sofrimentos que os acometem e portanto não precisam recorrer a entidades sobrenaturais que façam o serviço de justiçamento que é impossível de ser concretizado no mundo real.

    É neste ponto que salto três séculos, dos sans-culottes que sofriam com a carestia na França do século XVIII, para os palestinos, que estão sendo lentamente dizimados, em pleno século XXI. O relatório cujo trecho é citado na abertura deste artigo descreve os detalhes da exterminação gradual e segura, causada pelo bloqueio de ajuda humanitária, pela destruição das redes de esgoto e de abastecimento de água, pela destruição dos hospitais, pela proliferação de doenças causadas pela sujeira e pelo enfraquecimento do sistema imunológico devido à falta de comida. No século XXI, os ideais iluministas da razão e da liberdade como veículos do progresso são veiculados pelo Direito Internacional. Afinal, é o Direito Internacional que estabelece regras de convivência entre os diferentes países para que um não tente impor sua vontade ao outro de maneira arbitrária, é o Direito Internacional que estabelece o modo como os países devem conduzir operações bélicas de maneira a minimizar danos a populações civis.

    Ora, o direito internacional até agora falhou redondamente na guerra entre Israel de um lado, e Hamas e Hezbollah, de outro, que se iniciou em 7 de outubro. Civis estão sendo trucidados em nome do combate ao terrorismo islâmico e seu direito à integridade física está sendo constantemente solapado pelos bombardeios israelenses incessantes, pela dificuldade de atuação das equipes da Organização das Nações Unidas na Palestina. E por que o direito internacional falhou? Por que não é possível elaborarmos coletivamente um argumento racional para diminuir o sofrimento das pessoas e aumentar a felicidade geral de todos os que habitam a região? Será porque o Oriente Médio é palco de disputas geopolíticas que só levam a uma ponderação de interesses sem que seja possível chegar a uma conclusão imparcial sobre o que fazer? Será porque a religião é utilizada por um e por outro lado para motivar as pessoas e dar uma pátina de moralidade às disputas de poder entre fundamentalistas islâmicos e judeus?

    Enquanto isso, prezados leitores, talvez diante da perspectiva de sofrimento infindável para os palestinos, seja melhor eles recorrerem ao conselho de Danton e se apegarem à única coisa que os liga à vida: a fé. Se a razão é inviável e não leva à justiça, à paz e à felicidade, é melhor que os palestinos, dormindo ao relento, passando fome e frio, morrendo lentamente sem cuidados médicos e fugindo das bombas sonhem com um Ser supremo que vingará os oprimidos.

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Onde estão os novos porteiros?

“Acho que há um desafio específico para as marcas tradicionais, como o New York Times e o Wall Street Journal,” disse Tucker, acrescentando “Há não muito tempo, como eu digo, nós controlávamos as notícias. Éramos os porteiros, e também basicamente controlávamos os fatos também. Se foi dito no Wall Street Journal, no New York Times, então é um fato,” ela continuou, acrescentando, “Hoje em dia, as pessoas podem recorrer a todo tipo de diferentes fontes de notícias e elas estão questionando mais o que estamos dizendo.”

Fala de Emma Tucker, editora-chefe do Wall Street Journal em um painel de discussões intitulado “Defending Truth” realizado no Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2024

“A velha aristocracia,” disse Napoleão, “teria sobrevivido se tivesses tido conhecimento suficiente para se tornar expert nos materiais impressos… O advento do canhão matou o sistema feudal; a tinta irá matar o sistema moderno.”

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

A deterioração do debate público, com o uso crescente da violência e das mentiras mais deslavadas por candidatos, apontam especialistas, é característica central tanto das eleições deste ano quanto do próprio estado das democracias liberais nos dois lados do Atlântico. E a denúncia e a condenação da barbárie, alertam, podem não ser suficientes para estancar a sangria.

Trecho retirado do artigo “A deterioração do debate”, publicado no jornal O Globo em 6 de outubro

    Prezados leitores, foram exatos 56.853 votos e o post de um laudo médico falso sobre um surto psicótico de Guilherme Boulos em virtude da suposta ingestão de drogas que nos separaram de Pablo Marçal para a disputa do segundo turno das eleições para a prefeitura de São Paulo. Sem eles, teríamos tido o homem dos cortes como candidato, corroborando aquilo que falei no artigo “No tempo dos ordálios e das cadeiradas”, que estávamos utilizando como critério para a escolha de dirigentes políticos a aprovação em provas irracionais, isto é, provas que prescindem do diálogo e da argumentação para decidir quem é melhor. Ufa! Dessa vez nos livramos do perigo, mas será que Marçal não utilizará sua habilidade no uso dos recursos das mídias sociais em outras eleições?

    Afinal, a manipulação da comunicação de massa para fins políticos não é algo novo, como mostra o trecho que abre este artigo, em que Napoleão atribui a derrota da aristocracia na Revolução Francesa ao fato de que seus membros não souberam fazer uso da imprensa para defender seus pontos de vista. Se tivesse contratado jornalistas para escrever libelos atacando a burguesia e os sans-culottes, a aristocracia teria denegrido a imagem desses grupos sociais como a imagem dela foi denegrida pelo sem número de panfletos que foram escritos e canções que foram compostas contra o povo de sangue azul. Como resposta às acusações levianas de que o rei Luís XVI era um corno manso, a rainha era uma puta e o herdeiro do trono um bastardo, os jornalistas a serviço dos aristocratas poderiam ter levantado os podres dos líderes da Revolução, como Robespierre (1758-1794), Danton (1759-1794) e Marat (1743-1793) e se não tivessem encontrado nada de espetacular poderiam ter inventado, como fizeram os jornalistas a serviço do “povo”.

    Afinal, entre o começo da Revolução Francesa, em 1789, e a implantação do Terror em 1792, que durou até 1794, a liberdade de expressão era tamanha que as mentiras deslavadas eram publicadas lado a lado com as notícias sobre os últimos acontecimentos. Para Napoleão Bonaparte (1769-1821), os próceres do antigo regime não souberam usar as armas que seus inimigos usaram para influenciar a população em geral e fazê-la seguir suas ordens. Foram pintados como vilões, culpados de todas as mazelas da população, eleitos como bodes expiatórios e assim destruídos física, e economicamente em benefício dos patrocinadores dos panfletistas, a burguesia.

    Os excessos da orgia libertária acabaram sendo eliminados quando uma ordem genuinamente liberal se instalou na França e nos países da Europa Ocidental que se inspiraram nela para reformarem seus sistemas políticos. Como nos ensina John Rawls em “A Theory of Justice”, em um regime liberal todos têm direito de participar do debate público e de expor suas ideias, mas as desavenças só podem ser produtivas e levar à escolha das políticas que melhor atendem o bem comum sob a inspiração do conceito de oposição leal, mencionado na página 196 da edição revisada da obra: todos os participantes do jogo político aderem às regras e não abusam delas para tirar vantagem do sistema.

    Sob essa perspectiva, um candidato como Pablo Marçal, que se deixa ser entrevistado não para responder às perguntas dos jornalistas, mas para aparecer em um veículo da imprensa e usar a imagem em suas mídias sociais, viola as regras do jogo democrático porque ele não quer debater, mas “causar” e ataca a imprensa para lustrar suas credenciais de ser antissistema. Afinal, se a imprensa é um dos pilares da ordem liberal-democrática, por viabilizar o debate dentro de certos parâmetros de boa-fé, em que os participantes estão dispostos a ouvir, a rebater e a propor, utilizar a imprensa para desconstruí-la como “esquerdista” ou “tendenciosa” é uma maneira de mostrar-se um outsider, que não participa da suposta podridão reinante.

    Eis um novo ponto de inflexão no Ocidente: começando com a profusão de materiais impressos durante a Revolução Francesa, passamos pela sobriedade liberal dos órgãos de imprensa como instrumentos da disputa política nos limites da lealdade e da boa-fé. Em pleno século XXI, o avanço da internet como meio de comunicação permitiu que completássemos o ciclo e voltássemos ao começo anárquico. Como explica Emma Tucker no trecho que abre este artigo, hoje há uma infinidade de fontes de informação e os órgãos de imprensa tradicionais, que exerciam o monopólio sobre o que era o fato e o que era a notícia, estão cada vez mais questionados. Qual será o efeito dessa volta à profusão de meios de comunicação?

    Haverá a deterioração irremediável do debate público, como afirma o artigo do Globo, pela falta dos porteiros, representados por órgãos de imprensa que gozavam de credibilidade e que estabeleciam o que era objeto de discurso e o que não era objeto de discurso? Afinal, se não há os porteiros que dizem que fatos serão considerados como objeto de reflexão por parte daqueles que se propõe a apresentar propostas de políticas públicas, como fica a discussão? Vira um vale-tudo? Fica inviabilizada pelo fato de os participantes não se acordarem nem sobre quais são os fatos e as notícias sobre os fatos, não dispondo, portanto, de princípios comuns sobre os quais estruturar seus argumentos? Afinal como decidir sobre o que estamos falando se não sabemos o que é fato e o que é ficção? E como chegarmos a conclusões conjuntas, a consensos se não concordamos sobre os fundamentos da discussão e falamos sobre coisas diferentes?

    Prezados leitores, enquanto não encontrarmos novos parâmetros para lidarmos como as novas mídias sociais, ficaremos à mercê das cadeiradas, dos relatórios falsos e dos vídeos curtos descontextualizados. Para isso, precisamos encontrar novos porteiros que estabeleçam quem pode entrar e quem pode sair do debate público, pois os antigos porteiros perderam toda a credibilidade. Será o Poder Judiciário estabelecendo censura prévia? Será o povo livremente escolhendo o que consumir em termos de notícias na internet, separando por si só o joio do trigo, decidindo de maneira autônoma em quem confiar e de quem se afastar? Serão os empresários proprietários de veículos de mídia social, proibindo perfis anônimos? De qualquer forma, cabe a nós fazermos um exercício de imaginação coletiva para criá-los e presentificá-los. Do contrário, a ordem liberal-democrática sangrará até a morte.

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Pontos de inflexão: os paralelogramos de Gibbon

Ele não via desígnio nenhum na história; os acontecimentos são o resultado de causas não direcionadas; são o paralelogramo de forças de diferentes origens que geram um resultado multifacetado. Em todo esse caleidoscópio de acontecimentos a natureza humana parece permanecer inalterada. A crueldade, o sofrimento e a injustiça sempre afetaram a humanidade, e sempre afetarão, porque eles estão gravados na natureza humana. “O homem tem muito mais a temer das paixões dos seus pares do que das convulsões dos elementos naturais.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794)

De fundamental importância foi o crescimento das classes médias em número, educação, ambição, riqueza e poder econômico; sua reivindicação de status político e social compatível com sua contribuição à vida da nação e às finanças do estado; e sua ansiedade ante a possibilidade de o tesouro tornar os títulos públicos sem valor ao declarar falência. Subsidiariamente e utilizados por elas como ajuda e ameaça, eram a pobreza de milhões de camponeses implorando por alívio em relação às taxas, impostos e contribuições […] os crescentes padrões de administração esperados por cidadãos cujo intelecto havia sido afiado mais do que o de qualquer outro povo daquela época por escolas e salões, pela ciência, pela filosofia e pelo Iluminismo.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito das origens da Revolução Francesa

    Prezados leitores, estamos passando por momentos interessantes na cena internacional. Interessantes porque parecem estar abalando estruturas, lançando novos paradigmas geopolíticos. À parte a guerra na Ucrânia, que já dura desde 2022, agora temos a guerra no Oriente Médio, que se intensificou nas últimas semana. Será que as partes beligerantes, no caso Israel, a Palestina, o Líbano e o Irã vão bombardear-se mutuamente, vão lançar mísseis uns contra os outros por algum tempo e depois irão se aquietar? Será que as potências mundiais – Estados Unidos, China e Rússia – chegarão a um acordo de cavalheiros e irão exercer pressão em seus respectivos aliados para que não haja uma escalada de hostilidades que afete a economia e a paz mundiais? Será que as partes avaliarão os custos e benefícios do confronto, ponderarão seus respectivos pontos fortes e fracos e tomarão decisões com base em tais análises?  Ou será que irão agir motivados por seus valores éticos e religiosos fundamentais que os impelem a confrontar seus inimigos, custe o que custar? Será que haverá pressão das populações muçulmanas de países como Turquia, Jordânia e Egito para que seus respectivos governos tenham uma atuação mais forte em defesa dos Palestinos de Gaza?

    Ninguém sabe, nem os atores envolvidos nesse conflito sabem. E a razão da impossibilidade de prevermos o curso da história foi determinada pelo historiador inglês Edward Gibbon, autor do Declínio e Queda do Império Romano, conforme o trecho que abre este artigo. Os acontecimentos históricos são fruto de uma resultante de forças que atuam de maneira aleatória, sem que haja uma força invisível ou entidade sobrenatural que acione um ou outro fator conforme a finalidade última que essa força ou entidade tenha em mente. Assim, a história é uma caixa de surpresas, porque não é possível saber de antemão que força terá mais ou menos influência e se determinado fator desempenhará ou não algum papel no desenrolar dos acontecimentos. Como regra geral, Gibbon considerava que podemos apostar que as paixões e fraquezas humanas sempre desempenharão um papel, cuja intensidade se revelará no momento da ação. Esse conceito de paralelogramo pode ser aplicado com grande utilidade para entendermos a Revolução Francesa.

    Como mostram os Durant em seu capítulo intitulado “Anatomia da Revolução”, a força principal que impulsionou a deposição da monarquia, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, o Código Civil que estabeleceu a defesa da propriedade e a igualdade perante a lei, foi a classe média, conforme o trecho que abre este artigo. A classe social que abarcava advogados, médicos, banqueiros, comerciantes, industriais, administradores, cientistas, professores, artistas, autores e jornalistas considerava que ela era a principal responsável pela riqueza produzida na França e que eram suas economias que permitiam sustentar um Estado perdulário.

    Para a classe média, a nobreza recebia muito mais do que contribuía: gozava de pensões concedidas pelo rei e dos mais altos cargos na administração pública e militar; cobrava dos camponeses obrigações impostas no feudalismo e vigentes ainda no século XVIII; e conseguia de livrar da maior parte da carga tributária imposta pelo Estado por meio de subterfúgios. A contribuição da nobreza resumia-se às suas funções militares, pois há muito ela deixara de exercer suas funções tradicionais no campo, como a aplicação da justiça, a gestão agrícola, a criação de escolas, hospitais e instituições de caridade e a vigilância da população, funções cada vez mais exercidas pelo Estado. Sobre o clero, a opinião da classe média versada na literatura filosófica do Iluminismo não era melhor: seus membros eram os propagadores de uma teologia medieval e infantil.

    Diante disso, era preciso dar um choque de competência e dinamismo ao Estado que, em 1789, às vésperas da queda da Bastilha, tinha um déficit de 150 milhões de livres (o que equivaleria ao redor de 1 bilhão e 200 milhões de dólares americanos de hoje). Para isso, era preciso recrutar pessoas de talento, independentemente da origem social, de forma que o mérito fosse premiado e não o fato de a pessoa ter ou não determinado ancestral ilustre. Se o Estado francês continuasse a gastar muito mais do que arrecadava, ele poderia dar o calote naqueles que eram os seus grandes financiadores, a classe média que poupava e investia em títulos públicos.

    No entanto, paralelamente a essa grande força motriz da classe média descontente com o status quo, querendo mostrar seus talentos e ganhar prestígio social ascendendo aos altos cargos do governo restritos à nobreza, havia outro fator: o descontentamento do próprio povo isto é, dos artesãos, dos vendedores de rua, dos camponeses que em 1789 sofriam de insegurança alimentar devido a uma grande seca que afetou as plantações e a uma tempestade de granizo que arrasou terras em 1788, ao inverno de 1788-1789, o pior em 80 anos, e finalmente a enchentes torrenciais na primavera de 1789. O preço dos alimentos básicos disparou, o que causou fome, raiva, e motins, devidamente explorados pela classe média para derrubar o governo.

    Governo esse capitaneado por um rei, Luís XVI (1754-1793), que tinha boas intenções, queria ajudar o povo, mas não tinha nenhum talento para liderança. Sua vocação era ter sido chaveiro, mas a loteria genética o colocara no posto de herdeiro do trono do francês. Faltava-lhe autoconfiança, o que tornava difícil para ele tomar decisões e o levada a se deixar influenciar por sua esposa, Maria Antonieta (1755-1793), que gastava dinheiro em vestidos, em penteados de cabelo, em jogos de azar e em recompensar amigos por sua fidelidade.

    Descontentamento da classe média e do povo, desastres climáticos, rei indeciso, rainha exercendo influência nefasta sobre o rei que o tornava pior do que já era, abalando a credibilidade da monarquia: pronto, já temos um paralelogramo de forças! Atuando ao mesmo tempo, com intensidades diferentes, elas desencadearam a sucessão de eventos que levou à queda da monarquia, à execução do Rei e da Rainha, ao período do Terror, em que a guilhotina reinou soberana, matando a torto e direito quem se opusesse ao governo de Robespierre (1758-1794), ao período do Consulado e a ascensão de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

    Prezados leitores, em todo ponto de inflexão histórica, a lição de Edward Gibbon permanece válida: a história não tem uma moral, porque ninguém sabe para onde os acontecimentos caminham e portanto não é possível perceber nenhuma finalidade. Só sabemos de uma coisa: nunca haverá um único responsável pelos eventos, e assim, nunca haverá um único culpado e um único inocente. No século XVIII tínhamos Luís XVI, Maria Antonieta, Mirabeau (1749-1791), Lafayette (1757-1834), Robespierre, Danton (1759-1794), Napoleão. Hoje temos Benjamin Netanyahu, Vladimir Putin, Joe Biden, Xi Jinping, os líderes do Hamas e do Hezbollah, os israelenses que querem que os reféns feitos no dia 7 de outubro sejam resgatados e os muçulmanos do mundo todo que querem ver os palestinos pararem de sofrer.  Aguardemos o novo paralelogramo se formar e veremos qual será a força resultante. Ela poderá levar a uma nova ordem geopolítica mundial ou a um conflito nuclear que nos destruirá.

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A polícia secreta e outros meios alternativos

Os filósofos tinham reconhecido que, tendo rejeitado os fundamentos teológicos da moralidade, eles estavam obrigados a achar outro fundamento, outro sistema de crenças que levaria os homens a se comportarem de maneira decente como cidadãos, maridos, esposas, pais e filhos. Mas eles não estavam de todo confiantes que o bicho homem poderia ser controlado sem um código moral sancionado de maneira sobrenatural. […] a indiferença em relação a assuntos religiosos, por mais inofensiva que pudesse ser em indivíduos esclarecidos e racionais, é fatal para a moral das massas.

Trecho retirado do livro “Rousseau and Revolution”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Quão consolador para o filósofo – que lamenta os erros, os crimes, as injustiças que ainda poluem a Terra, e dos quais ele é frequentemente a vítima – é essa visão da raça humana, livre dos seus grilhões …. avançando com passo firme e seguro pelo caminho da verdade, da virtude e da felicidade! É a contemplação desse cenário que o recompensa por seus esforços em ajudar o progresso da razão e a defesa da liberdade.  

Trecho retirado do livro “Esquisse d’um tableau historique des progrés de l’esprit humain”, escrito pelo filósofo, matemático e economista francês Marie Jean Antoine Caritat, o Marquês de Condorcet (1743-1794)

A saúde mental de Huw Edwards pode ter sido um fator determinante que o livrou da prisão, disseram advogados ao Daily Mail online hoje. […] O homem de 63 anos foi condenado a seis meses de prisão com suspensão da pena por dois anos, depois de declarar-se culpado de três crimes consistentes na criação de fotografias indecentes.

Trecho de um artigo sobre o apresentador da BBC, Huw Edwards, publicado na versão online do jornal britânico Daily Mail em 16 de setembro

 

    Prezados leitores, vocês já ouviram falar de Huw Edwards? Ele é um jornalista e apresentador de TV que até abril de 2024 trabalhou na rede pública de televisão do Reino Unido, a BBC e comandava o principal jornal de notícias do canal britânico, o Jornal das 10 Horas. Nascido no País de Gales, foi Huw Edwards quem anunciou a morte da Rainha Elizabeth II, em setembro de 2022, por causa da credibilidade de que gozava, afinal o homem tinha um doutorado, obtido na Universidade do País de Gales, como resultado do seu estudo da história das capelas galesas no século XVIII. Enfim, um homem bem-sucedido, pai de cinco filhos com a mesma esposa, culto. E no entanto…

    Conforme o trecho que abre este artigo, em setembro ele foi condenado por receber fotos de crianças na internet, trocá-las pelo WhatsApp e fazer o download delas. São ofensas graves, por poderem ter efeitos de longo prazo sobre as crianças que são o objeto das imagens divulgadas amplamente nos canais virtuais por “apreciadores”. No entanto, Edwards teve a pena suspensa porque o juiz considerou que a saúde mental do William Bonner do Reino Unido pode ter afetado a sua tomada de decisões no momento em que o crime foi cometido. Em sua defesa, o galês alegou que sofre de depressão desde 2002 e em 2023 chegou a ser internado em hospital para tratar da doença. É verdade que os problemas mentais de Edwards nunca o impediram de ter uma carreira bem-sucedida na TV, de escrever sua tese de doutorado, de aprender a tocar órgão e tocar em uma igreja presbiteriana em Londres. Mas o juiz achou que eles eram graves o suficiente para servirem de atenuante dos crimes.

    Certa ou errada a decisão do juiz? Será que a conduta de Edwards não é totalmente culpável porque ele é vítima de doença mental? Se os juízes forem aceitar o argumento de que criminosos são vítimas à sua maneira como condenar alguém por algum crime? Não pretendo dar uma resposta final a essas perguntas, mesmo porque trata-se de escolhas legislativas e judiciárias a serem feitas em cada país, isto é, trata-se de elaborar códigos penais que estabeleçam determinadas circunstâncias atenuantes e de aplicar a lei penal da forma menos gravosa possível às vítimas de doenças. O que pretendo neste meu humilde espaço é retomar as discussões que foram travadas na Europa do século XVIII sobre os fundamentos da moral, discussões essas que têm repercussões até hoje, inclusive na atuação dos juízes ocidentais.

    Conforme o trecho que abre este artigo, os filósofos do Iluminismo, como Voltaire (1694-1778), haviam se insurgido contra a Igreja e o monopólio que ela tinha sobre as regras da boa conduta. Deixar que a Igreja decidisse o que era o bem e o mal era desastroso, porque ela fundamentava sua ética na religião e assim não dava margem a nenhuma discussão sobre se tais normas eram justas ou não, ou se elas contribuíam para a paz e a ordem na sociedade. Deus havia estabelecido as regras que a Igreja impunha aos cristãos e quem as desobedecesse teria castigo exemplar, sendo mandado ao Inferno, onde sofreria torturas constantes por seus pecados.

    Mesmo que tais regras fossem arbitrárias e muitas vezes baseadas em superstições negadas pelos fatos, a ética fundamentada na teologia apresentava uma grande vantagem: ela fazia de Deus a polícia secreta do Estado. Afinal, se o indivíduo temia a ira divina e as agruras sofridas pelos pecadores no lugar especialmente reservado a eles, ele mesmo faria um exame de consciência e deixaria de praticar o mal, ou já o tendo feito, se arrependeria e procuraria se emendar para se livrar da condenação às penas infernais.

    Daí que Voltaire admitia a necessidade da religião para as massas, pois a Polícia Secreta divina seria a melhor e talvez a única forma de controlar o comportamento da maioria das pessoas, cujo intelecto não era muito desenvolvido, o que as levava a serem naturalmente propensas a se deixarem levar por suas paixões e instintos. Para a minoria de homens que tinham a capacidade para o exercício da razão, as narrativas religiosas eram desnecessárias e contraproducentes, pois tolhiam sua liberdade de pensar e de atuar no mundo com base nas suas reflexões.

    Não admira que filósofos Iluministas otimistas como Condorcet vislumbrassem um futuro brilhante para ao menos parte da humanidade que podia livrar-se dos grilhões da religião. Conforme o trecho que abre este artigo, se a raça humana escolhesse exercitar sua razão para aumentar seu conhecimento, os homens seriam mais virtuosos e mais felizes: a injustiça, a opressão, a corrupção seriam eliminados, porque os maus atos são sempre fruto da ignorância e não de uma suposta condição de pecador do ser humano herdada de Adão e de Eva.

    À luz dessas explicações podemos ver que o fundamento da moral passou por uma revolução na Europa: ele deixou de ser a religião e passou a ser a razão. O homem não prestava mais contas a Deus e à Polícia Secreta consistente na sua consciência culpada de pecador. No máximo, ele prestava contas ao Estado, que elaborava e aplicava leis que idealmente eram elaboradas sobre princípios racionais, de modo a garantir o bem-estar da sociedade como um todo e seu desenvolvimento a longo prazo.

    Somos os herdeiros dessa tradição Iluminista, lançada no Ocidente por homens como Condorcet. Um homem que sente atração sexual por crianças e tem prazer em ver fotos delas como Huw Edwards não é mais punido por ser um pecador, um homem mal, como a religião nos ensinava. Ele é punido por ter causado dano a outras pessoas e perturbado a ordem social da qual todos dependem para atuar com liberdade rumo à prosperidade material e espiritual.

    Por outro lado, o que Voltaire diria de Huw Edwards? Ele pertenceria às massas que precisam da Policia Secreta divina ou da elite que pode valer-se do seu  juízo racional para optar pelo bom comportamento? Por que um homem educado como ele não agiu racionalmente, harmonizando seu intelecto com seu comportamento? Terá sido a depressão tão avassaladora que prejudicou seu tirocínio, justificando a decisão do juiz de suspender a pena? A partir de que ponto devemos considerar que uma doença mental impede o homem de controlar seus instintos e portanto, de concretizar o projeto racional de “verdade, virtude e felicidade” proposto por Condorcet em sua obra-prima, a última que escreveu? Se qualquer grau de doença mental afeta nossa capacidade cognitiva e de decisão, quão resiliente e digna de confiança é a razão tão cantada pelos philosophes do século XVIII?

    Prezados leitores, para quem não sabe, o otimista Condorcet, perseguido durante a Revolução Francesa por ser aristocrata, foi preso e acabou matando-se na prisão. Seu medo dos excessos que estavam sendo cometidos foi mais forte do que sua fé nas maravilhas que a liberdade e a razão poderiam operar. A Polícia Secreta se foi, ficou a Polícia do Estado e a nossa mente, com diferentes graus de sanidade. Que esta última possa seguir a trilha vislumbrada por Condorcet. Mesmo que não cheguemos ao destino final da felicidade pura no Elísio criado pela razão, que ao menos ela seja mais eficaz que a Polícia Secreta para fundamentar nosso comportamento ético.

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No tempo dos ordálios e das cadeiradas

A prova irracional era constituída pelos ordálios (do alemão Urteil, sentença) ou juízos de Deus. O ordálio tinha um caráter mágico e não investigativo: era a prova pela qual se invocava a divina providência para intervir. […] o acusado submetia-se à prova e passar pela prova equivalia a uma declaração de inocência. Eram dessa natureza a prova do ferro em brasa, da água fervendo, água fria (ou do afundamento), do cadáver (conseguir cortá-lo sem fazê-lo sangrar). Eram aquilo que se chama passar pela prova de fogo.

Trecho retirado do livro O Direito na História, de José Reinaldo de Lima Lopes

A liberdade é uma comida substanciosa, mas ela necessita de uma digestão robusta… Eu rio desses povos aviltados que se revoltam por causa de uma palavra de um intrigante; que ousam falar de liberdade sendo totalmente ignorantes sobre o que ela significa; e que… imaginam que, para ser livre, é suficiente ser um rebelde. Liberdade sagrada e de alma elevada! Se pelo menos esses pobres homens pudessem conhecer você; se eles ao menos pudessem aprender o preço pelo qual você é conquistada e mantida; se ao menos pudesse ser ensinado a eles o quão mais rígidas são suas leis do que o jugo do tirano!

Trecho retirado do livro Considerações sobre o governo da Polônia (1772), escrito por Jean Jacques Rousseau (1712-1778) escritor e filósofo nascido em Genebra, na Suíça

José Luiz Datena: Eu te perdoei, agora não perdoo mais.

Pablo Marçal: O Datena não sabe nem o que ele fala aqui. Todos têm marqueteiros e gastam milhões e eles ficam inventando conversa todas as vezes. Mas o Brasil quer saber, São Paulo quer saber, que hora que você vai parar. Você não respondeu à pergunta. A gente quer saber, você é um arregão. Você atravessou o debate esses dias para me dar um tapa e falou que você queria ter feito. Você não é homem nem pra fazer isso. Não é homem…

José Luiz Datena: Seu filho da puta!

Diálogo entre os candidatos à prefeitura de São Paulo em 15 de setembro, um pouco antes de José Luiz Datena dar uma cadeirada em Pablo Marçal

    Prezados leitores, estava eu tranquilamente lendo na noite de domingo quando,ao checar o aplicativo do WhatsApp, vi que havia uma mensagem de um morador do meu prédio na qual ele postava o vídeo da famosa cadeirada que José Luiz Datena deu em Pablo Marçal. A princípio não acreditei naquilo, achei que fosse uma montagem, mas imediatamente confirmei no site de notícias UOL que era a pura verdade. Datena, perdendo as estribeiras, partiu para cima de Marçal. É uma ótima cena para rir, para virar memes, para gerar piadas a serem compartilhadas nas mídias sociais. Por outro lado, independentemente de saber quem estava errado e quem estava certo na contenda, há algo de sinistro nesse comportamento que nos leva a colocar várias questões. Será que nossa democracia está chegando à exaustão? Será que estamos completando um ciclo em que gozamos de certas liberdades que ficarão para trás? Que mundo novo nos aguarda, se esse ciclo se encerrar de fato? Tentarei responder a essas perguntas à luz das lições de filosofia política de Jean Jacques Rousseau e da história do Direito que aprendi nos bancos da faculdade.

    Jean-Jacques Rousseau foi fonte de inspiração para Robespierre (1758-1794), líder dos jacobinos na Revolução Francesa, porque Rousseau havia se insurgido contra os reis e defendido a soberania do povo, cuja vontade geral deveria sempre prevalecer. Afinal, o homem nasce livre e se ele está acorrentado em todos os lugares, como disse Rousseau no Contrato Social, ele tem direito de buscar a liberdade para escolher organizar a sociedade por meio da decisão da maioria e abolir assim os privilégios de uma minoria de aristocratas que controlava as instituições e as usava para tolher a atuação livre das pessoas.

    No entanto, à medida que Rousseau foi ficando mais velho e mais sábio, ele passou a acrescentar nuances ao seu pensamento, como mostra o trecho que abre este artigo, retirado de um livro publicado seis anos antes de o filósofo morrer. A liberdade é uma graça a ser desfrutada, mas requer autodisciplina, formação moral e inteligência para ser exercida, do contrário ela não trará benefícios aos seus usuários. Se toda pessoa se sentir no direito de rebelar-se contra o status quo porque está descontente com a vida ou deixou-se levar pelas palavras incendiárias de alguém que faz críticas com muita facilidade, o resultado pode ser o caos, a violência e a perda da liberdade.

    Daí que a liberdade deve ser cultivada como quem cultiva uma frágil planta que a todo tempo corre o risco de morrer, vítima de geada, de seca, de pragas. O exercício da liberdade deve se basear na ação virtuosa e sensata de homens que não farão uso da sua razão para defender seus desejos, por mais corruptos que sejam, mas terão uma bússola moral dentro de si mesmos que os levarão a atuar de maneira ética na sociedade, para não prejudicar nem oprimir ninguém. Nesse sentido, ser livre é mais trabalhoso, porque exige que cada indivíduo assuma a responsabilidade por suas escolhas morais e pelo efeito que elas têm nos outros, ao contrário do escravo, que simplesmente obedece e não pode ser culpado de nada.

    As palavras do pensador genebrino fazem sentido quando assistimos ao vale-tudo que se instaurou na campanha para a prefeitura de São Paulo. Os debates organizados pelos órgãos de imprensa são uma oportunidade de exercício da liberdade de expressão, do poder de raciocinar, de elaborar argumentos, de apresentá-los aos jornalistas e aos outros candidatos e de tentar convencê-los ou ao menos fazê-los reformular suas próprias ideais à luz das contribuições dadas pelos adversários. O que se vê na prática é a liberdade sendo exercida sem inteligência e sem virtude: no lugar de argumentos sobre políticas, frases de efeito como aquela de Marçal sobre Jesus Cristo que citei neste meu humilde espaço há duas semanas; no lugar de um verdadeiro diálogo de boa fé em que os interlocutores procuram juntos chegar a uma conclusão, uma troca de ofensas pessoais com o uso de um vocabulário que não poderia estar presente naquele recinto de pessoas com ensino superior que deveriam dar um exemplo aos telespectadores e eleitores em geral. O “arregão” de Marçal e o “filho da puta” de Datena mostram que aquele antigo ideal de debates em torno das melhores propostas para administrar a cidade ficou para trás. O que ficou em seu lugar? A cadeirada?

    Se a cadeirada se tornar o modus operandi predominante de políticos, isso será sinal da violência engendrada quando a liberdade é exercida sem pejos, como alertou Jean-Jacques Rousseau. Mais que isso, ela pode ser sinal de que voltamos a um modo de dizer o que é certo e o que é errado com base nas provas irracionais descritas por José Reinaldo de Lima Lopes em sua história do Direito, que tinham o nome de ordálios. Como mostra o trecho que abre este artigo, os ordálios eram provas físicas aplicadas para decidir sobre a inocência ou a culpabilidade de um acusado. Não importava ao juiz tentar averiguar o que ocorrera, ouvir a versão do acusador e do acusado e formar assim seu convencimento ponderando as afirmações de uns e de outros. Bastava submeter o acusado a uma prova de fogo e se ele se saísse bem era considerado inocente, independentemente do que de fato fizera.

    Assim, jogar uma cadeira em um candidato concorrente pode ser uma maneira disponível a nós eleitores de exercermos nosso direito de voto e escolhermos o melhor. Já que não há diálogo, não há busca de esclarecimento e convencimento, a única maneira de decidir a questão é apelar aos ordálios do século XXI. Se o indivíduo que recebeu a cadeirada não se machucar isso significa que ele é o melhor, porque Deus interveio e o impediu de sofrer danos físicos, ou como diria Pablo Marçal ele é HOMEM, ao contrário de José Luiz Datena. Caso Pablo Marçal tenha votos suficientes para participar do segundo turno das eleições isso significa que na prática os paulistanos já estão adotando as provas irracionais para decidir quem será um bom prefeito. Um novo ciclo pode estar se abrindo para nós: o ciclo dos ordálios ou será que é o ciclo da tirania, advinda quando o povo abusa da liberdade?

    Prezados leitores, não nos esqueçamos que o preço da liberdade é a eterna vigilância e que participar de corrida do mau gosto em prol da liberdade de podermos dar boas risadas dos arregões e dos filhos da puta pode nos custar caro no longo prazo, apesar de ser divertido no curto prazo.

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