Desobediência civil ou bárbara?

Juntamente com coisas como eleições livres e periódicas e um judiciário independente com poderes para interpretar a constituição (não necessariamente escrita), a desobediência civil utilizada com o devido comedimento e sensatez ajuda a manter e fortalecer instituições justas. Ao resistir à injustiça nos limites da fidelidade à lei, ela serve para coibir desvios da justiça e corrigi-los quando ocorrem. […]É mais provável que o senso de justiça de uma comunidade se revele no fato de que a maioria não consegue decidir-se a tomar as medidas necessárias para suprimir a minoria e a punir atos de desobediência civil como a lei permite.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Nós temos que saber ter tolerância. Se o governo e os democratas começarem a agir com uma retaliação generalizada, vamos ter uma radicalização, e aí isso fortalece o Bolsonaro”, afirmou Jobim em seminário virtual promovido nesta quinta-feira (19) pela Fundação FHC, ligada ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Trecho retirado do artigo “Retaliação generalizada após atos fortalece Bolsonaro, diz Nelson Jobim”, publicado no site UOL

    Prezados leitores, na semana passada eu lamentei a depredação generalizada ocorrida em Brasília no dia 8 de janeiro, principalmente com relação ao patrimônio cultural objeto da sanha raivosa dos participantes da balbúrdifa. Naquela ocasião eu me vali das lições de Edmund Burke para dizer que o melhor para a sociedade é que não haja rupturas bruscas com o que está atualmente em vigor e que o melhor caminho a longo prazo é que aprimoramentos sejam introduzidos gradualmente, incorporando-as ao que existe, de modo a haver uma transição tranquila entre o velho e o novo. Nesta semana, adicionarei uma nuance a essa apologia do bom comportamento, explicando-lhes o conceito de desobediência civil e sua utilidade para o aprimoramento da sociedade, à luz do que propõe John Rawls no livro mencionado acima. O objetivo é tirar uma lição dos acontecimentos daquele malfadado domingo em Brasília.

    A desobediência civil é o desrespeito consciente à lei, uma atitude deliberada que tem o objetivo de ter um impacto político, isto é, de mostrar aos membros da sociedade que há algo de errado no modo como ela está funcionando e que isso deve ser corrigido. Esse conceito implica que todos compartilham uma noção de justiça: se não houvesse um senso comum do que é justo e injusto, a desobediência civil perderia a razão de ser, porque a minoria desobediente nunca conseguiria convencer a maioria obediente. Sob esse aspecto é preciso que haja referências básicas, sobre as quais não haja discussão.

    Em assim ocorrendo, a violação à lei é um desafio ao sistema no sentido de fazê-lo realizar uma autocrítica, conforme o trecho que abre este artigo: com seus atos, os desobedientes chamam a atenção para as falhas, para o desvio em relação aos princípios de justiça acordados por todos na posição original, em que os indivíduos decidiram organizar-se em sociedade. Uma vez a minoria sensibilizando a maioria para a necessidade de ajustes e a maioria deixando-se convencer, a sociedade sai fortalecida, pois seus membros foram lembrados daquilo que os une, isto é, as liberdades fundamentais que eles se concederam mutuamente.

    Daí porque o grau de tolerância ou intolerância da maioria com a desobediência da minoria é um indicador da existência ou não de um senso comum de justiça. Quanto maior for o acordo sobre as questões fundamentais, maior será a flexibilidade da sociedade em aceitar em seu seio violações à lei como ato político. Quanto maior for a discordância sobre elas, mais dividida a sociedade e menos espaço ela terá para as violações. Nesse último caso, a desobediência civil não tem condições para ser viabilizada e tornar-se fonte de aprendizado mútuo e melhora da coesão social.

    Considerando tal visão da desobediência civil e do seu possível papel positivo na sociedade, como devemos interpretar as palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, citadas na abertura deste artigo? Será um convite a nós, brasileiros, que não participamos do vandalismo de 8 de janeiro, darmos chance aos desobedientes civis exporem suas reclamações, suas propostas e chegarmos a um acordo para que possamos caminhar juntos daqui por diante, livres das polarizações? Mas será que a destruição de móveis, equipamentos, quadros, esculturas e relógios é um ato político que pode ser considerado como desobediência civil ou simplesmente um ato de delinquência?

    E o que dizer a respeito daqueles manifestantes que acamparam em frente aos quartéis do Exército? Podemos considerá-los como legítimos desobedientes civis, já que não depredaram o patrimônio público, mas apenas expuseram sua visão do que eles consideram como justo? Será então que Nelson Jobim está fazendo um convite à tolerância em relação a uma parcela dos manifestantes que ao menos articulou propostas políticas por meio de cartazes, ao invés de simplesmente quebrarem tudo o que vissem pela frente como sinal de protesto?

Prezados leitores, mais cedo ou mais tarde, nós brasileiros, teremos que tomar uma decisão a respeito do que será tolerável e do que não será tolerável em termos de protestos na nossa sociedade. Se não tomarmos essa decisão conjuntamente, nós o faremos separadamente, cada tribo encastelada na sua fortaleza. Oxalá que encontremos em nosso sistema político modos de desobediência civil que nos permitam aprimorar nossa democracia, ao invés de chafurdar na barbárie, como fizemos no dia 8 de janeiro.

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Patrimônio de quem?

A França tem muitos monumentos históricos, mas sua preservação excelente tem tanto a ver com o ‘vandalismo’ da Revolução quanto com os esforços da estrutura de conservação de monumentos históricos. […] As pessoas procuravam apagar as lembranças visuais do Antigo Regime, mas a atitude implacável em relação a monumentos culturalmente significativos, especialmente aqueles ligados ao feudalismo, não foi vista com bons olhos por todos. […] O abade Grégoire (1750-1831) uma figura proeminente na Revolução, defendeu os monumentos em 1794, descrevendo sua destruição como vandalisme.

Trecho retirado do artigo “How the Revolution gave France a head for heritage conservation” publicado no site The Connection

A História consiste, em sua grande parte, das misérias infligidas ao mundo pelo orgulho, pela ambição, pela avareza, pela vingança, pela luxúria, pela sedição, pela hipocrisia, pelo zelo incontrolado, além de toda a gama de apetites rebeldes que perturbam o público com o mesmo.   

Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês

Ao mesmo tempo preservar e reformar é outra coisa. Quando as partes úteis de um antigo estabelecimento são mantidas, e o que deve ser adicionado deve ser encaixado naquilo que é mantido, uma mente vigorosa, uma atenção perseverante e constante, vários poderes de comparação e de combinação e os recursos de um entendimento frutífero em expedientes devem ser colocados em prática…

Trecho retirado do livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Edmund Burke (1729-97), pensador político irlandês

Governo vai criar memorial com obras vandalizadas por extremistas

Manchete de artigo publicado no sítio da Agência Brasil sobre a decisão da Ministra da Cultura, Margareth Menezes de criar um memorial em defesa da democracia

    Prezados leitores, na semana passada eu citei Edmund Burke e suas previsões apocalípticas sobre os desdobramentos da Revolução Francesa, para ilustrar a existência de regularidades na História que podem ser detectadas independentemente da análise detalhada das sequências de fatos, cujo desenrolar depende muito de uma confluência imprevisível de fatores. Em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, Burke não se preocupa em elaborar uma narrativa de tudo o que havia acontecido desde 1789 com a queda da Bastilha e dos acontecimentos específicos que culminaram no evento de 14 de julho daquele ano. Seu foco é estabelecer lições sobre os males de uma revolução e porque toda revolução é necessariamente ruim.

    Um movimento político que pretenda recriar a sociedade e fazer tábula rasa de tudo o que havia antes é nefasto porque a concretização desse projeto se vale dos vícios humanos, conforme relacionados no trecho que abre este artigo. As pessoas apaixonadamente acreditavam que um novo homem e uma nova maneira de organizar as relações mútuas dos indivíduos eram possíveis e imbuídos dessa visão ingênua acabaram dando vazão às características mais reprováveis do ser humano. Acabar com o feudalismo significava acabar com os símbolos concretos dele consistentes nos castelos, fortes, igrejas, túmulos e palácios da nobreza e do clero.   Dessa maneira, as pessoas podiam destruir e pilhar os bens dos privilegiados, sob a santa justificativa de que estavam acabando com as injustiças sociais tirando de quem tinha muito para dar a quem não tinha nada ou simplesmente pondo abaixo tudo o que pertencia aos famigerados exploradores. Várias características humanas podiam ter expressão nesse processo de “distribuição de renda”: o desejo de vingança dos despossuídos, a cobiça dos que aproveitavam o tumulto para roubar esculturas, obras de arte e auferir lucro pela venda, a necessidade humana de racionalizar seus atos egoístas, dando-lhes uma aura de moralidade.

    Assim é que nesse processo de construção da ordem pós-feudal, os revolucionários deixaram um rastro de destruição, que o abade Gregóire identificou como vandalismo puro, conforme mostra o trecho que abre este artigo. A ação política movida pela “filosofia” como diz Burke, que hoje chamaríamos de ideologia, não deixa um legado porque a visão maniqueísta de que o passado é maligno e o futuro é maravilhoso impede os homens de praticarem aquilo que para o pai do conservadorismo é a base da prosperidade: a capacidade de reformar, que nada mais é do que adicionar elementos novos à tessitura social antiga, fazendo com que esta se renove, se adapte às novas condições, ao mesmo tempo em que sua estrutura é mantida pela robustez que ela mostrou no curso da História. O que é conservado e atualizado sem lhe alterar a natureza básica é intrinsicamente melhor do que aquilo que é construído do nada, pois essa tentativa de ignorar os pilares da sociedade só tornam o novo edifício – para usar a metáfora burkiana construída no segundo trecho citado no início deste artigo- fraco, construído no calor das paixões humanas, mas sem a reflexão necessária e a visão de conjunto que permitem combinar o velho com o novo e de perseverar no esforço de adaptação mútua de um e de outro para o bem da sociedade a longo prazo.

    Os franceses aprenderam a lição do preservar e reformar quanto aos seus monumentos históricos. À época da Revolução, uns poucos privilegiados tinham permissão de entrar nos edifícios e apreciar os tetos pintados, os afrescos, as esculturas, os móveis entalhados. Atualmente, aquilo que sobrou da sanha revolucionária faz parte do patrimônio público, sendo acessível por qualquer um, independentemente da classe social a que pertence. Assim, os símbolos da opressão feudal são mantidos pelos órgãos encarregados da conservação do patrimônio, mas a função que exercem segue os ideais do Iluminismo que foi proposto no século XVIII: são instrumentos de educação do povo, e não mais de ostentação do poder e do prestígio dos membros de uma casta em relação a seus pares. A Revolução Francesa, com todos os vícios que Burke apontou em seu livro, teve seu ápice no período do Terror (1792-1794), marcado pelas execuções diárias na guilhotina dos inimigos da Revolução”, mas ela acabou com o advento de Napoleão, a que Burke não conheceu, pois morreu antes da ascensão do corso ao poder, em 1799. Napoleão soube fazer a combinação e a comparação dos elementos novos e dos antigos que permitiram restaurar a ordem, terminar a violência e preservar o legado iluminista da Revolução em termos de liberdades civis e igualdade perante a lei.

    Prezados leitores, faço votos que o episódio da depredação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal ocorrido em 8 de janeiro em Brasília não seja o início de um período de acirramento das paixões no nosso país e de fúria revolucionária. Que a escultura simbolizando a justiça, o quadro “As mulatas” de Di Cavalcanti, o relógio de Balthazar Martinot do século XVIII sejam restaurados e se tornem patrimônio público, apreciado por todos no Memorial a ser criado pelo governo federal e deixem de ser símbolos de poderes repressores para uma parte da população. Nossa paz e prosperidade agradecem.

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Plus ça change, plus c’est la meme chose

A sociologia pressupõe a explicação que transcende o curso dos acontecimentos para buscar as regularidades macroscópicas, trazendo embutida uma opção teórica que se manifesta através da eficácia, real ou pretendida, de certos “fatores”, que as escolas sociológicas de Oitocentos e começos de Novecentos procuraram erigir em chaves de suas macroexplicações: o “fator” geográfico, o racial, o demográfico, o econômico etc.  Por sua vez, a causalidade histórica seria uma explicação imanente ao curso dos acontecimentos, devendo levar em conta a sucessão cronológica.

Trecho retirado do ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, do historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Melo (1936-

Uma coisa é terrível: malditos austríacos a cada passo! Ah, esses austríacos! A propósito, não sei se os senhores ouviram, no Danúbio deu-se uma batalha decisiva: trezentos oficiais turcos foram abatidos, Silistra foi tomada e a Sérvia já declarou independência. É verdade que o senhor, como patriota, deveria estar muito animado, não? Em mim mesmo, ferve o sangue eslavo! Entretanto, aconselho-lhe a ter mais cuidado, tenho certeza de que estão nos vigiando. A espionagem é terrível aqui! Ontem uma pessoa suspeita se aproximou de mim e perguntou se eu era russo. Eu lhe disse que era dinamarquês…

Trecho retirado do livro “A Véspera” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883), cuja trama é baseada em fatos reais

  Prezados leitores, o livro “Um imenso Portugal”, publicado em 2002, inclui vários ensaios sobre a historiografia, cujo objeto de reflexão é o modo como a História tem sido escrita ao longo do tempo. No ensaio “O Preconceito Sociológico em História”, Evaldo Cabral de Melo contrapõe dois tipos de conhecimento histórico: o generalizante e o individualizante. O objetivo deste humilde artigo é o de explicar as características de cada um dos dois, à luz das ideias do historiador pernambucano, e de posse desses conceitos, tentar aplicá-los a certos fatos históricos para dar-lhes uma interpretação.

    Para descrever um tipo e outro de conhecimento, Evaldo Cabral de Melo toma como base os conceitos de causalidade sociológica e de causalidade histórica. Conforme o trecho que abre este artigo, a causalidade sociológica é aquela que procura explicar o porquê de determinados resultados históricos ignorando a série de acontecimentos que se desenrolam ao longo do tempo. Para o defensor de tal abordagem sociológica, o foco nos fatos impede que o historiador veja as tendências gerais da sociedade, levando-o a se perder em detalhes que não têm importância. A única maneira de obter um conhecimento histórico que estabeleça a origem do estado atual da sociedade é escolher um fator-chave à luz do qual todos os acontecimentos podem ser vistos e enquadrados. Daí porque a causalidade sociológica ter natureza generalizante: ela estabelece uma explicação que é válida independentemente dos fatos históricos particulares, pois estes são subsidiários aos fatores-chave que desencadeiam o curso da história, seja porque são meros reflexos deles, ou porque não atrapalham a atuação desses fatores.

    Ao contrário, a causalidade histórica foge das abstrações que pretendem categorizar tudo. Seu foco é na cronologia de acontecimentos que conservam sua individualidade ao serem descritos em uma narrativa. Essa abordagem narrativa dá margem ao imponderável, ao inesperado, que deve ser explicado na riqueza dos seus detalhes, porque tais detalhes fazem toda a diferença na determinação de um resultado ou de outro. O individualismo da causalidade histórica reside justamente no fato de a história vivida pelos indivíduos, a história que eles acham que estão fazendo, ser mais importante do que a história que os homens fazem sem saber que estão fazendo, porque não a enquadraram em nenhuma categoria mental, como é o caso da causalidade sociológica.

    A conclusão a que chega Evaldo Cabral de Melo em seu ensaio é que o historiador deve combinar essas duas causalidades, pois são mutuamente complementares. Fazer história como Tucídides (460 a.C. – 400 a.C.) fez ao escrever a Guerra do Peloponeso, como um encadeamento factual, impede o leitor de vislumbrar uma moral da História, isto é, o motivo pelo qual a sequência de eventos narrada foi suficiente para desencadear a guerra. Por outro lado, Evaldo critica o Gilberto Freyre (1900-1987) de Casa Grande & Senzala pelo fato de usar o conceito de miscigenação, atribuindo-lhe um poder de harmonização e de criação de uma cultura mestiça, como uma explicação que cobre os três séculos do período colonial do Brasil sem levar em conta as muitas manifestações de conflito e distinções entre pretos e brancos.

    Assim, o melhor é ter em mente que nenhum conceito tem o condão de explicar tudo e prever tudo, que os acontecimentos históricos são determinados por uma confluência de várias sequências cronológicas que calham de ocorrer em determinado momento, cujas interações são complexas e impossíveis de serem vistas de antemão. Ao mesmo tempo, é inegável que há certas regularidades e que, mesmo levando-se em conta o papel do acaso, há acontecimentos que têm mais importância do que outros, cujo impacto pode ser influenciado pelo imponderável, mas que não será totalmente determinado por ele. Um exemplo da existência dessas regularidades é o fato de o pensador político britânico Edmund Burke (1729-1797) ter previsto em 1790, em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, a ascensão de um líder autoritário como Napoleão, pois a destruição dos valores tradicionais da sociedade e a tentativa de reconstrução em bases totalmente novas levaria à violência e o caos por esta engendrado exigiria um restaurador da ordem.

    Tendo em mente o papel tanto das regularidades quanto do acaso, é possível ler o trecho retirado da obra de Turguêniev, citado na abertura deste artigo, sob uma perspectiva histórica. A ação se passa às vésperas da Guerra da Crimeia (1853-1856), em que a Rússia enfrentou a Inglaterra, a França e o Império Otomano. Entre outros motivos, a disputa deveu-se ao desejo da Rússia de exercer proteção sobre os povos de religião ortodoxa que estavam subordinados politicamente ao sultão otomano. Um desses povos é o búlgaro e é um homem búlgaro um dos heróis de “A Véspera”, Dimítri Insárov. Insárov é um nacionalista cujo sonho é voltar para a Bulgária para ajudar seus compatriotas na luta pela emancipação do país do jugo otomano. Para realizar seu sonho, ele vai a Veneza acompanhado de sua esposa russa, Elena Stákhova, e lá encontram Lupoiárov, um russo que lhes relata a experiência de ser espionado na Europa às vésperas de uma guerra na Crimeia.

    Prezados leitores, é óbvia a regularidade aqui detectada: a hostilidade entre a Rússia, cristã ortodoxa, e os países ocidentais, que se uniram aos turcos otomanos para lutar contra a Rússia, apesar da diferença de religião entre católicos, anglicanos e muçulmanos. Atualmente, na guerra da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os turcos não estão no campo de batalha, mas apenas tentam atuar como intermediários para negociações entre as partes conflitantes. De qualquer forma, permanece a desconfiança mútua que existia em 1853, conforme exemplificada na narrativa de Turguêniev.

    Em fevereiro de 1856, a Rússia foi obrigada a aceitar um tratado de paz por não ter conseguido atingir seus objetivos no campo militar, tendo abandonado Sevastopol, na Crimeia, em setembro de 1855. Qual será o desfecho nesta nova guerra em pleno século XXI, em que um dos objetos da disputa continua sendo a Crimeia? Aqui entra o acaso e temos que esperar o desenrolar dos acontecimentos, pois a despeito do constante choque de civilizações entre a Rússia e o Ocidente, não é possível ter certeza neste momento sobre quem está em ascensão e quem está em decadência. A história vivida é incerta, mas pode ser realizada por indivíduos que têm valores que querem colocar em prática, valores esses que permanecem ao longo do tempo. A história pensada pelos grandes teóricos é previsível porque ela dá um sentido às ações de indivíduos que, no calor da hora, tiveram que tomar decisões sem terem certeza se elas eram as melhores para que seus objetivos fossem atingidos.

Crimeia em 1853 e em 2023: plus ça change, plus c’est la meme chose?  Aguardemos.

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A civilidade democrática do Perdeu Mané

[…] nós submetemos nossa conduta à autoridade democrática somente na medida necessária para compartilhar de maneira equitativa as imperfeições inevitáveis de um sistema constitucional. A aceitação dessas dificuldades é o simples reconhecimento e a disposição de trabalhar nos limites impostos pelas circunstâncias da vida humana. Em vista disso, temos uma obrigação natural de civilidade de não invocar as falhas dos arranjos sociais como uma desculpa muito fácil para não os cumprir, ou para explorar as brechas inevitáveis nas regras de maneira a avançar nossos interesses. O dever de civilidade impõe a devida aceitação dos defeitos das instituições e um certo comedimento em tirar vantagem deles.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

No procedimento ideal a decisão tomada não é um compromisso, uma barganha feita pelas partes contrárias que tentam fazer valer seus interesses. A discussão legislativa deve ser concebida não como uma disputa entre interesses, mas como uma tentativa de encontrar a melhor política, conforme definida pelos princípios de justiça.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Perdeu, mané, não amola

Frase dita em 15 de novembro pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, ao ser abordado por uma pessoa em Nova York que o questionou sobre o código-fonte das urnas eletrônicas

 

    Prezados leitores, proponho-me nesta semana um desafio: dar um sentido positivo à frase curta e grossa que Luís Roberto Barroso soltou no calor da hora contra o bolsonarista que veio a ele com perguntas que implicitamente colocavam a lisura das eleições presidenciais de 2022 em cheque. Não sem razão aqueles que votaram no candidato perdedor viram na caracterização dos bolsonaristas como manés mais uma evidência da imparcialidade, do preconceito e do despreparo dos ministros da nossa mais alta corte de justiça, que desprezam uma parte do eleitorado brasileiro e mostram isso dando-lhes apelidos chulos.

    Sem dúvida Luís Roberto Barroso ganha suficientemente bem para lidar com os ossos do ofício de tomar decisões que acabam tendo implicações políticas, como ocorre em uma corte encarregada da última palavra sobre o que quer dizer nossa Constituição. Nesse sentido, ele deveria ter uma casca mais grossa e lidar melhor com as críticas dos insatisfeitos com o conteúdo jurídico produzido pelo STF. Por outro lado, a frase de Barroso resume uma das características essenciais do regime democrático, de acordo com a lição de John Rawls mencionada acima, parte do capítulo sobre a regra da maioria. É esse elemento-chave que tentarei explicar neste humilde artigo.

    A regra da maioria não é um princípio escolhido pelos membros da sociedade na posição original de elaboração do contrato social, e por uma razão óbvia: nessa situação os indivíduos não sabem que posição ocuparão na sociedade, que valores e metas terão. Assim, não sabem se pertencerão à minoria ou à maioria. O que eles escolhem são os princípios de justiça: liberdades fundamentais, igualdade de oportunidades, a ordem de que qualquer medida que favoreça os mais afortunados deve também trazer alguma vantagem aos menos afortunados. Tais princípios permitem que, independentemente das vantagens ou desvantagens materiais de que desfrutem ou sofram na prática, todos os membros da sociedade terão uma chance razoável de atingir suas metas e concretizar seus valores em virtude da estrutura institucional que tais princípios viabilizam.

    A regra da maioria é uma regra procedimental, introduzida já depois que os princípios de justiça são estabelecidos e ela só pode ser seguida no âmbito das liberdades garantidas por tais princípios, jamais em oposição a elas. O objetivo da regra é oferecer um critério para a tomada de decisões legislativas. Num mundo ideal, os legisladores se reuniriam e decidiriam sobre as políticas públicas de acordo com os princípios de justiça que embasam o sistema. A prática nem sempre é assim.

    De fato, os representantes eleitos pelo povo têm um conhecimento parcial sobre os assuntos que são objeto de deliberação, e conforme explica o trecho que abre este artigo, eles têm seus interesses particulares. Daí que muitas vezes chegam a decisões pela barganha em torno das suas respectivas prioridades. Um cede de cá, outro cede de lá e chega-se a um consenso forjado não pelo diálogo entre pessoas que procuram enriquecer sua experiência e seus argumentos pela troca de ideias em nome da justiça, mas pelo choque de poderes que chegam a uma acomodação.

     Para Rawls, o fato de muitas vezes não serem tomadas as decisões mais justas ou mais acertadas não é motivo para que os membros da sociedade se rebelem e comecem a desrespeitar as regras do jogo porque o resultado não lhes está agradando. É claro que deve haver um limite a tal tolerância do erro e da injustiça. O ônus de um e de outro deve ser repartido de maneira equânime pelos indivíduos de maneira que nenhum grupo específico de pessoas seja sobrecarregado com as consequências negativas da decisão da maioria formada no legislativo. No entanto, o importante para que o sistema funcione é que as decisões, por mais obtusas que pareçam e por mais que não concordemos com elas, sejam respeitadas. Essa é a marca da civilidade democrática: aceitar a decisão da maioria porque essa é a regra do jogo, um jogo que garante as liberdades de expressão, de livre associação e de religião a todos, ganhadores e perdedores.

    Prezados leitores, dentre os quais incluo os ‘manés’ rechaçados por Luís Roberto Barroso, faço-lhes uma conclamação, à luz das ideias de John Rawls. Não fiquem querendo mudar o resultado das eleições alegando a função de garantia dos poderes constitucionais e da defesa da Pátria concedida às Forças Armadas pelo artigo 142 da Constituição Federal. Se querem mudar o modo como o Supremo Tribunal Federal toma decisões, se querem algum controle externo do Judiciário, se querem um maior equilíbrio entre os poderes, se querem o voto impresso, se querem auditoria externa das urnas eletrônicas, não direi a vocês “não amola”, como disse Barroso de maneira infeliz. Direi que pressionem os deputados e senadores, mandando-lhes e-mails, e-mails estes que podem ser consultados no site do Congresso Nacional, façam abaixo-assinados em defesa de projetos de lei. Pode ser que a mobilização seja infrutífera agora, mas poderá dar resultados daqui a algum tempo. ‘Manés’ do Brasil, tracem suas estratégias para jogar dentro das quatro linhas do campo democrático, pensando no longo prazo. Vocês perderam hoje, mas se melhorarem seu modus operandi dentro do sistema, o que inclui informarem-se melhor sobre aquilo que os candidatos da sua preferência fizeram e o que pretendem fazer, poderão ganhar no futuro.

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A excelência e a igualdade

A melhor forma de democracia é aquela dominada por pequenos proprietários de terra; e a pior forma de democracia é aquela dominada pela turba urbana formada por artesãos e comerciantes. […] Mas o governo requer habilidades especiais e conhecimento, sendo impossível para alguém que leva a vida de um mecânico ou servo chegar à excelência” – isto é, chegar a ter bom caráter, treinamento e tirocínio. Todos os homens são criados de maneira desigual; “a igualdade é justa, mas apenas entre iguais”; e as classes altas irão imediatamente rebelar-se se uma igualdade artificial for imposta, da mesma maneira que as classes baixas se rebelarão quando a desigualdade for artificialmente extrema. Quando uma democracia é dominada pelas classes mais baixas os ricos são tributados para que haja recursos para os pobres. Os pobres recebem-nos e querem de novo a mesma quantidade, sendo que dar dinheiro assim é como despejar água por uma peneira.”  

Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981), sobre o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

Enquanto a justiça como equidade permite que em uma sociedade bem organizada os valores da excelência sejam reconhecidos, as perfeições humanas devem ser buscadas nos limites estabelecidos pelo princípio da livre associação. As pessoas reúnem-se para perseguir seus interesses culturais e artísticos da mesma maneira que elas formam comunidades religiosas. Elas não utilizam o aparelho coercitivo do Estado para garantir para si próprias uma maior liberdade ou uma maior fatia da renda distribuída sob a alegação de que suas atividades tem um maior valor intrínseco.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça”, do filósofo político americano John Rawls (1921-2002)

    Prezados leitores, na semana passada eu abordei um diálogo entre Sócrates e Alcibíades, tal como criado por Platão (427 a.C. – 347 a.C.) para discutir como a ideia de conhecimento estava ligada à ideia do Bem: para Sócrates, só o conhecimento leva à virtude, pois permite àquele que o adquire saber fazer as coisas na prática, o que implica saber fazê-las na hora certa, pelo tempo certo e para as pessoas certas, trazendo benefícios e felicidade. Nesta semana, abordarei algumas implicações políticas dessa dimensão ética do conhecimento que podem ser detectadas no pensamento de Aristóteles em termos da visão que ele tinha da democracia e da justiça. Meu objetivo será então comparar tal visão com aquela de John Rawls, explicitada no livro mencionado na abertura deste artigo.

    Como mostra o trecho que abre este artigo, a ideia de que só o conhecimento leva à excelência, o legado de Sócrates para a filosofia grega, levou Aristóteles a ver um lado negativo no governo pelo povo: quem tomava as decisões sobre guerra, paz, destinação de verbas públicas, punições, não eram os indivíduos preparados especificamente para exercer tais funções, mas cidadãos comuns cujo conhecimento limitava-se ao ofício que exerciam. No final das contas, essa falha levava a que os cidadãos que participavam das assembleias na ágora de Atenas decidissem levados por suas paixões, por seus interesses particulares, sem terem uma visão do conjunto ou do longo prazo. Se a sociedade tivesse uma maioria de pessoas pobres, elas iriam votar para tomar dinheiro dos ricos, o que poderia levar estes a se revoltarem e tentar trucidar a maioria miserável. Se a sociedade tivesse uma maioria de pessoas ricas, elas iriam votar para dar-se mais privilégios, o que tornaria a situação dos pobres insustentável. O ideal, dadas as deficiências intrínsecas da democracia, é que a sociedade tivesse um grande contingente de pessoas na classe média, de modo que as paixões e a cobiça tanto dos ricos quanto dos pobres fossem controladas de maneira suficiente a garantir a estabilidade do governo.

    Sob essa perspectiva, a democracia era um regime instável, justamente devido à desigualdade intrínseca entre os homens: sempre haverá diferenças entre as pessoas, porque elas nascem desiguais, sempre haverá ricos e pobres e, portanto, as quedas de braço entre uns e outros serão inevitáveis. Daí Aristóteles não ver problema algum em haver escravos em uma democracia. Os escravos só tinham força física, e não inteligência, e sua liberdade deveria ser restrita para que seu trabalho braçal possibilitasse que os homens de talento pudessem adquirir conhecimento e chegar à perfeição a que sua natureza os inclinava. Assim, era justo sacrificar os direitos de uns em prol da excelência que alguns poderiam atingir, de forma que para Aristóteles o princípio da excelência era um princípio de justiça, pois servia de critério de distribuição de direitos e liberdades.

    O mesmo não ocorre na filosofia política de John Rawls, conforme mostra o trecho que abre este artigo. A excelência, a perfeição só podem ser buscadas no âmbito das liberdades fundamentais garantidas a todos os cidadãos, independentemente da sua beleza, da sua inteligência, do seu bom ou mau caráter. A razão disso está no fato de o pressuposto da teoria da justiça de Rawls é que os homens tomam a decisão de entrar em um contrato social e o fazem em uma posição original em que eles não sabem de antemão que posição ocuparão na sociedade, que qualidades e defeitos terão, que valores perseguirão. Tal ignorância primeva os leva a adotar princípios de justiça que estabeleçam certos direitos mínimos, entre os quais a liberdade de consciência e de associação. Se um grupo de pessoas quiser reunir esforços para perseguir uma excelência em determinado ofício ou área do conhecimento, elas terão plena liberdade para fazê-lo, assim como serão livres para escolher não atingir perfeição nenhuma.

    Dessa forma, para John Rawls, o princípio da perfeição não é necessariamente um valor coletivo para cuja concretização recursos da sociedade sempre deverão ser alocados. Pode até ocorrer de os cidadãos decidirem reservar certa porcentagem dos impostos pagos por todos para incentivar uma determinada arte, um determinado conhecimento. Mas se tais subsídios alocados a atividades de excelência tornarem a vida dos menos abastados pior, eles devem ser rechaçados, porque os princípios da justiça escolhidos pelos indivíduos na posição original incluem o princípio da diferença:  nenhuma vantagem pode ser concedida a nenhum grupo a não ser que ela beneficie aqueles que têm menos recursos.

    Em suma, se Aristóteles estava disposto a sacrificar a liberdade de uns em prol do valor eterno da excelência porque não dava grande valor à igualdade nem à democracia, um teórico político como John Rawls, formado no seio da democracia americana, cuja Declaração de Independência fala que “todos os homens são criados iguais”, sempre priorizará a igualdade de acesso às liberdades e direitos, mesmo que isso implique a criação de uma sociedade menos recheada de grandes homens, homens que fazem do conhecimento uma virtude e a colocam em prática em suas ações.

    Prezados leitores, ficam duas perguntas: em que medida a busca da excelência é um defeito ou uma virtude? Em que medida a busca da igualdade de oportunidades é um defeito ou uma virtude? Qual busca leva a resultados mais concretos ou a resultados mais duradouros? A resposta depende dos valores de cada um e em última análise a priorização da excelência ou da igualdade é uma escolha política, a ser feita, em pleno século XXI, não na ágora de Atenas, mas no Congresso Nacional.

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