tekhne ou a falta dela

Isso eu chamo de adulação, e afirmo que coisa desse tipo é vergonhosa, Polo – e isto eu digo a ti – porque visa o prazer a despeito do supremo bem. Não afirmo que ela é arte, mas experiência, porque não possui nenhuma compreensão racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica, e, consequentemente, não tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles. Eu não denomino arte algo que seja irracional […]

Trecho de fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Polo em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Estimular o transporte individual automotivo é realmente um passo atrás. Não importa se é elétrico ou não. O transporte público de massa é que precisa de apoio (do governo) – diz Frischtak sobre o programa do governo que vai gastar R$ 1,5 bilhão para desonerar carros, caminhões e ônibus (que ficam com a menor fatia, R$ 300 milhões

Trecho retirado do artigo “Quase Parando”, publicado no jornal O Globo em 11 de junho sobre a carência de investimentos públicos para mobilidade

    Prezados leitores, na semana passada eu fiz um contraponto entre a razão pragmática de Cálicles, um dos interlocutores de Sócrates no diálogo Górgias, e a razão que denominei tartufiana. Esta, visando achar argumentos para justificar comportamentos moralmente condenáveis, aquela visando achar argumentos fazer o indivíduo engajar-se nas discussões políticas, permitindo-lhe tomar parte ativa nas decisões nas assembleias. Nesta semana, dando prosseguimento aos estudos socráticos realizados neste humilde espaço, pretendo explorar a dicotomia que Sócrates faz entre arte ou tekhne e a adulação, de modo a lançar luz sobre nossas práticas democráticas na ágora tupiniquim.

    Para melhor explicar a diferença entre as duas a seu interlocutor, Polo, Sócrates faz uma analogia com dois pares de atividades, a medicina e a culinária, e a ginástica e a indumentária. A medicina e a ginástica estariam no domínio da arte e a culinária e a indumentária estariam no domínio da adulação.  

    A medicina é arte porque ela visa um bem supremo, a saúde, e para tanto elabora um discurso (o logos) que explica as causas das doenças, as dietas apropriadas para ter uma vida saudável e os remédios para curar os males que afligem os indivíduos. Há, portanto, uma correspondência entre o objetivo nobre de descobrir como ter e manter a saúde e a busca da verdade sobre como as doenças se desenvolvem no nosso corpo.

    O antípoda da medicina é a culinária, que nada mais é do que uma adulação, conforme o trecho que abre este artigo. Seu objetivo não é o de promover a saúde, mas de proporcionar prazer ao consumidor da comida. O discurso produzido pelo cozinheiro sobre o modo de preparo dos alimentos não é logos no sentido filosófico do termo, pois não visa o entendimento dos fenômenos do mundo por meio da razão, procurando determinar-lhes a natureza e os mecanismos que os geram. A culinária é uma atividade prática, um hábito, uma experiência que pode ser transmitida de um cozinheiro a outro, mas que sempre se repete da mesma forma.

    Nesse diapasão, a ginástica é arte porque ela tem um objetivo nobre que é o de manter os corpos saudáveis e em funcionamento, e para tanto ela desenvolve modos de exercitar o corpo investigando como este pode ser movimentado de maneira que se torne mais forte e resiliente. Já a indumentária é mera adulação, pois ela com suas cores, figuras e vestes faz com que o corpo pareça algo que ele não é, embelezando-o de maneira artificial e por isso efêmera.

    Percebe-se por meios desses dois contrapontos feitos por Sócrates a distinção que o filósofo faz entre a arte, a tekhne de um lado, e a adulação ou experiência de outro. Na primeira estamos no domínio do bem, da racionalidade, do conhecimento adquirido pela aplicação do intelecto a serviço de um fim ético. Na segunda estamos no domínio do prazer, da irracionalidade, da falta de conhecimento, pois o que há é somente uma experiência sem fim ulterior e sem a sistematização proporcionada pelo estabelecimento de causas e efeitos.

    À luz dessas analogias, fica clara a distinção entre a justiça, que deve ser o supremo objetivo da prática política, e a retórica, que se dedica a adular os espectadores dos debates na assembleia ateniense de modo a convencê-los a votar a favor de determinado curso de ação. Dar a cada um o que é seu exige tekhne e não experiência, pois exige o conhecimento das causas dos problemas da sociedade, o porquê de alguns terem pouco e outros terem muito, o porquê de alguns terem mais oportunidades de desenvolver seus talentos do que outros.  A retórica, ao contrário, não exige conhecimento sobre o objeto do seu discurso, além daquele que seja necessário para angariar a simpatia dos ouvintes. Basta ao rétor parecer ter algum conhecimento que impressione os que têm menos conhecimento do que ele e agradar de qualquer forma possível, incluindo o apelo às emoções e o elogio da plateia.

    Considerando tais distinções, o que pensar da medida mais ruidosa da política industrial lançada pelo governo federal, qual seja, a de conceder isenções de PIS e COFINS aos chamados carros populares, que atualmente no Brasil custam no mínimo 69.000 reais. Será que foi feito um cálculo se e em que medida a renúncia de receita será compensada pelo aumento de vendas e pela geração de empregos na indústria automobilística? Será que os técnicos do governo analisaram a experiência passada com subsídios dados à indústria automobilística e os resultados concretos que foram obtidos para a economia do país? Será que eles conseguem dar uma explicação plausível sobre a razão econômica para dar ajuda financeira a um setor e não a outro?

    De acordo com a Receita Federal, as montadoras deixaram de pagar 69 bilhões de dólares entre 2000 e 2021. A Ford encerrou suas atividades fabris no Brasil em 2021, depois de ter recebido incentivos do governo estadual para instalar uma fábrica em Camaçari, na Bahia e portanto, o dinheiro do povo brasileiro investido na companhia norte-americana não foi recuperado. De acordo com o artigo citado na abertura deste artigo, em 2022 foram investidos pelo Estado R$ 4,1 bilhões em mobilidade urbana, ao passo que no mesmo ano o setor automotivo já havia se beneficiado de isenções tributárias de R$ 8,8 bilhões. Há, portanto uma clara preferência pelo transporte individual em detrimento do transporte público e uma distribuição de benesses cujas contrapartidas são duvidosas.

    Qual a razão disso? Qual a arte por trás desses benefícios concedidos a um setor específico? Por acaso toda essa dinheirama ao longo dos anos rendeu frutos que amortizaram o investimento feito, na forma de bens econômicos, isto é, cadeias produtivas desenvolvidas, empregos, geração de renda? Será que a relação custo benefício foi favorável? Ou os subsídios à indústria automobilística tiveram o intuito de satisfazer determinados interesses que sabem se fazer representar nos corredores do poder por lobistas, por federações classistas? E o governo Lula agora, dando ainda mais vantagens? Será que o foco é parecer fazer alguma política industrial? É lançar medidas de impacto para agradar uma parte do eleitorado com a qual o presidente se identifica, os metalúrgicos?

    Prezados leitores, a tekhne e a falta dela são pertinentes para a democracia. Por mais que o ideal socrático/platônico de uma república governada pelos possuidores do conhecimento possa, na pior das hipóteses, ser uma utopia totalitária, é sempre bom termos um parâmetro de julgamento das imperfeições da prática política para que possamos criticar e melhorar. Esperemos que no futuro haja no regime político brasileiro mais tekhne e menos adulação.

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O semipresidencialismo no Brasil: de Cálicles a Tartufo

Isso coloca em xeque a visão otimista de Sócrates com relação à onipotência da razão, expressa pela máxima moral de que o conhecimento é suficiente para a virtude (referida pela crítica platônica como “paradoxo socrático”): bastaria, a princípio, a correção nas opiniões do interlocutor, uma vez contraditórias, para que ele passasse a agir bem, e seria essa a função positiva do elenchos, que justificaria os meios empregados por Sócrates para demonstrar ao interlocutor a sua ignorância e impeli-lo, assim, à investigação filosófica.

Trecho retirado do ensaio “A Tragicidade do Discurso Socrático”, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Ele detestava o excesso mesmo na virtude. Ele admirava o honnête home, o homem sensato do mundo, que seguia seu caminho na vida com moderação sã em meio aos absurdos que competiam entre si, ajustando a si mesmo sem estardalhaço às fraquezas do ser humano.

Trecho retirado do livro “A Era de Luís XIV”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) e de sua esposa Ariel Durant (1898-1981) sobre Jean Baptiste Poquelin, conhecido como Molière (1622-1673)

 

A bem da verdade, Lula não é o primeiro presidente a ter de se submeter aos humores e à voracidade de parlamentares oportunistas, que sentem o cheiro do sangue que governos fracos jorram na água. Mas poderia ser o último, se assim realmente quisesse. Não parece ser o caso.

Trecho retirado do editorial ‘Parlamentarismo sem freios’, publicado no jornal o Estado de São Paulo em 4 de junho, sobre a falência do semipresidencialismo que hoje vige no país

    Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da peça de Molière em que o pilantra Tartufo tenta persuadir a mulher do seu melhor amigo a ir para a cama com ele. Tartufo se tornou ao longo dos séculos um símbolo tão poderoso da hipocrisia, isto é, da diferença entre o que se prega e o que se faz, que a língua francesa tem um substantivo, “tartuferie” que denota a dissimulação, a duplicidade, a insinceridade própria dos hipócritas. Tartufo é tão perfeito na sua hipocrisia que ele se vale das suas faculdades mentais para encontrar razões verossimilhantes o suficiente para convencer a pessoa de chafurdar no vício pensando que está agindo corretamente.

    Esse uso adulador da razão foi denunciado por Sócrates nos diálogos escritos por Platão em que ele figura como personagem, conforme já expliquei em “Sócrates Reloaded”. Nesta semana meu objetivo será o de explorar os limites da busca do filósofo pela virtude por meio da razão, quando o interlocutor de Sócrates nega-se a interagir com ele. Perscrutando esses limites, tentarei investigar os limites da nossa própria democracia brasileira, curvada atualmente sob o peso desse semipresidencialismo em que o Congresso Nacional tem cada vez mais poderes e cada vez menos responsabilidades e o Executivo tem cada vez mais responsabilidades e cada vez menos poderes.

    Conforme o trecho que abre este artigo, Sócrates procurava, em seus diálogos, levar seus interlocutores pela via correta do bem pensar. Para isso ele se valia do processo do elenchos, ou refutação. No caso concreto do “Górgias”, Sócrates conversa com Cálicles, que propõe a ideia de que o aprazível e o bom são a mesma coisa. Para mostrar o absurdo de tal proposição, Sócrates convida o interlocutor a participar do seu jogo, qual seja: definir os termos de maneira precisa (o que é uma coisa boa?, o que é uma coisa aprazível?) e uma vez definidos os termos, estabelecem-se as premissas do argumento que será desenvolvido pelo filósofo.

    No entanto, para que esse caminho rumo à verdade, isto é, rumo às proposições sem contradições, seja percorrido, é preciso que Sócrates e Cálicles consintam com tais premissas. Sem tal consentimento a verdade não se completa, porque ela depende da percepção pelos participantes de que suas afirmações anteriores estavam eivadas de contradições internas, oriundas da má definição dos termos. Se o interlocutor se recusa a perceber isso, se ele não se deixa persuadir, o elenchos falha em atingir o objetivo de refutar as ideias erradas do interlocutor do filósofo e assim aquele persiste no vício, porque para Sócrates bastava que o homem se livrasse da sua ignorância utilizando sua razão para começar a agir de maneira ética.

    E é exatamente isso que ocorre no diálogo Górgias entre Sócrates e Cálicles: este se recusa a participar da investigação filosófica proposta por Sócrates, obstinando na opinião de que as coisas que dão prazer são boas. Será que faltava a Cálicles poderes mentais de perceber a necessidade lógica dos argumentos de Sócrates? Será que a mente dele não era brilhante o suficiente? Ou será que Cálicles mostrou-se impermeável aos argumentos de Sócrates porque não simpatizava com o filósofo, com sua recusa em participar do processo político de Atenas? A atitude respeitosa de Sócrates em relação a Cálicles ao longo do diálogo mostra que o filósofo não o via como um ser estúpido, mas simplesmente recalcitrante.

    Nesse ponto revelam-se os limites da busca racional de Sócrates pela virtude. Se Cálicles não se deixa persuadir por argumentos lógicos que mostram a contradição das suas afirmações, isso significa que sua razão não está sempre a serviço da busca da verdade, tal como concebida pelo filósofo. Tal como Tartufo fazia para lograr seus intentos libidinosos, Cálicles usa suas faculdades mentais para atingir objetivos que são muito diferentes daqueles ideais ético-racionais vislumbrados pelo filósofo. Cálicles quer usar seu intelecto para relacionar-se com seus concidadãos, para convencê-los a agir de determinada forma, não para fazê-los trilhar o caminho de um bem que é demasiadamente individual e apartado da vida da pólis.

    A visão mais pragmática de Cálicles, de usar a razão para atuar no mundo, em contraposição à visão idealista de Sócrates de depurar a razão para, imbuído do conhecimento, fazer o que é bom e justo, encaixa-se na visão do honnête homme de Molière, o criador de Tartufo, citada no trecho que abre este artigo. Essa insistência de Sócrates em buscar o ideal, ao custo de isolar-se das atividades cívicas para evitar a corrupção da razão pelas necessidades da persuasão, acaba sendo um absurdo e o melhor que o homem sensato tem a fazer é evitar os radicalismos: não procurar nem a virtude perfeita, que é impossível, e nem o excesso de vícios de um Tartufo, que com sua hipocrisia e busca do interesse próprio causa tanto mal ao seu redor.

    Considerando a necessidade do equilíbrio delicado para que a razão pragmática de Cálicles atuando na assembleia dos cidadãos de Atenas não descambe para a razão tartufiana atuando para dar vazão aos vícios do indivíduo, como podemos ver a atuação do presidente Lula nas relações do Executivo Federal com o Congresso Nacional? A MP que estrutura a máquina pública, aprovada na Câmara dos Deputados, retirou atribuições do Ministério do Meio Ambiente, como o Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas, tirando muito do poder de uma das ministras com mais credibilidade do governo, Marina Silva. Esse é um exemplo da voracidade dos deputados oportunistas a que se refere o editorial do Estado de São Paulo citado na abertura deste artigo. Os parlamentares não são responsáveis por elaborar e implantar uma política ambiental, mas fazem de tudo para atrapalhar quem queira fazê-lo, porque podem e o Executivo aceita porque não pode negar-se, sob o risco de não conseguir cumprir suas outras responsabilidades.

    Será que Lula vai tentar pragmaticamente negociar com os próceres do Legislativo, como Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, David Alcolumbre, presidente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça para atingir certos objetivos inegociáveis que seus eleitores esperam ver atingidos? Ou ele vai resvalar para o comportamento dos Tartufos da vida e agirá unicamente para viabilizar a manutenção do PT no poder, deixando que a agenda nacional seja ditada exclusivamente pelo Congresso, à base das emendas de relator, dos toma-lá-dá-cá sem nenhum compromisso com a governança do país? Em suma, Lula vai fincar o pé e tentar restaurar a iniciativa do Executivo ou vai deixar rolar o semiparlamentarismo ou semipresidencialismo, a depender do ponto de vista, para não se desgastar e levar tudo em banho-maria até as próximas eleições? Aguardemos os rumos da democracia tupiniquim, flutuando nas águas turvas entre Cálicles e Tartufo.

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De Tartufo à família Roy

Se nada mais do que o Céu atrapalha meus desejos, não custa nada para mim remover um tal obstáculo. É verdade que o Céu proíbe determinadas gratificações. Mas há uma maneira de resolver essas questões. É uma ciência esticar as cordas da consciência de acordo com as diferentes exigências do caso e retificar a imoralidade da ação pela pureza das nossas intenções.

Trecho retirado da peça Tartufo, escrita por Jean Baptiste Poquelin em 1664, conhecido como Molière (1622-1673)

[…] a preocupação precípua de Platão é mostrar como não há na poesia canônica, seja em Homero, em Hesíodo ou nos poetas trágicos, o discernimento entre o bem e o mal, justiça e injustiça, temperança e intemperança, na representação das ações de deuses e heróis. Como a “educação” grega (paidéia) se baseava eminentemente na poesia, isso teria uma consequência perniciosa do ponto de vista moral, pois é essa representação que serve de modelo de conduta moral para as ações particulares dos homens.

Trecho retirado do ensaio Platão e o Teatro, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de Górgias, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Habitando esse universo, cujo centro é Nova York (com escapadelas para cenários paradisíacos e exclusivos na Itália, na Noruega ou na Escócia), estão personagens polifacetados, que seguem a tendência de complexidade cuja inauguração muitos atribuem à série “Família Soprano”, que a partir de 1999 apresentou mafiosos carismáticos. De lá para cá, os (bons) dramas ganharam esse adjetivo por retratarem pessoas ambíguas, que extrapolam as descrições de “bom” e “mau”, como qualquer ser humano.

Trecho retirado do artigo “Segredo de uma Sucessão”, escrito por Talita Duvanel e publicado na edição de O Globo de 28 de maio, sobre a série Succession, cujo último episódio seria veiculado naquele dia e revelaria quem seria o sucessor do conglomerado de mídia Waystar, criado pelo personagem Logan Roy

    Prezados leitores, nesta semana meu objetivo é o de falar de arte e do poder maléfico ou benéfico que ela pode ter sobre as pessoas. Para tanto, vou tratar da peça de Molière, “Tartufo”, e da série televisiva “Succession”, que mal acabou e já foi aclamada como a grande série de TV do nosso tempo, à luz das lições de Platão sobre o papel da poesia na pólis grega.

    A citação que abre este meu humilde artigo flagra Tartufo, o personagem principal da peça de Molière, tentando convencer Elmira, a mulher de Orgon a ir para a cama com ele. Orgon recebera Tartufo em sua casa como um amigo, pela admiração que nutria por aquele homem que assistia à missa todos os dias, rezava com os olhos voltados para o céu, beijava a terra. Mas Tartufo era um rematado hipócrita, como mostra sua fala ao objeto do seu desejo sexual: para acabar com os escrúpulos de consciência da mulher que receava trair o marido, Tartufo vem com uma obra-prima de casuística, a arte de achar boas desculpas para acomodar as características da natureza humana: já que era inevitável ceder aos apetites, melhor seria elaborar um argumento que permitisse ao pecador dar vazão à sua natureza e ao mesmo tempo ofuscar a imoralidade do ato sob o conceito da intenção pura do agente. Se a intenção era boa, o ato era moralmente inatacável, mesmo que violasse claramente os preceitos éticos preconizados pela Igreja.

    Essa exibição nua e crua de um homem que segue os ritos da religião para manter uma fachada respeitável que acoberte suas ações egoístas cotidianas chocou a sociedade francesa do século XVII, de tal maneira que o vigário de São Bartolomeu, Pierre Roullé, denunciou Molière como o demônio em carne e osso, um homem que fez troça da Igreja e que deveria ser queimado na fogueira como prenúncio do fogo do inferno que o ímpio e libertino escritor sofreria pela eternidade. Depois de sua primeira exibição em 12 de maio de 1664, “Tartufo” foi proibida e só voltou a ser encenada em 1667, depois que o rei da França, Luís XIV, deu sua permissão. Após uma nova proibição de encenação pelo Arcebispo de Paris, o rei retirou de uma vez por todas o veto e Tartufo começou a ser exibida em 1669.

    Se considerarmos o que Platão tinha a dizer sobre a poesia, conforme o trecho que abre este artigo, entenderemos melhor a indignação dos membros da Igreja Católica no século XVII. Mostrar um personagem que pratica imoralidades e que o faz com verve, inteligência e às expensas das pessoas de boa-fé que com ele convivem é enfatizar os elementos irracionais do homem, os seus apetites, materializando-os nos atos praticados pelo personagem. Para Platão, a arte deveria edificar o homem, oferecendo-lhes exemplos de retidão moral, isto é, de pessoas que agiam racionalmente controlando suas paixões e vivendo de maneira reta.

    Em suma, mostrar o errado repetidas vezes, por meio de personagens dominados pela raiva, pelo desejo de vingança, pelo desejo de causar mal gratuito a outros, acabava, segundo o filósofo grego, tendo um efeito nefasto sobre os espectadores das tragédias, os leitores das poesias épicas, pelo fato de naturalizar algo que deveria ser coibido, reprimido. Longe de nos fazer simpatizar com um pilantra como Tartufo, que engana a todos e nos faz rir, o artista deveria nos levar a cultivar as virtudes morais, mostrando-nos heróis com qualidades a serem imitadas.

    Ora como sabemos, em pleno século XXI, depois de uma Reforma Protestante, do Iluminismo e da Revolução Industrial, os pruridos religiosos e morais no mundo ocidental estão bem diminuídos. Dessa maneira, a concepção platônica de que a arte deveria desempenhar um papel na construção de uma sociedade melhor, com indivíduos retos do ponto de vista ético, ficou para trás. Uma peça como Tartufo, que mostra que o sentimento religioso exteriorizado em rituais pode ser uma grande hipocrisia, é considerada um clássico porque mostra a realidade tal como ela é. E uma série como “Succession” é considerada de alta qualidade porque, conforme o trecho que abre este artigo, não divide as pessoas em boas e más, de maneira maniqueísta.

    A essa altura, devo revelar que eu mesma acompanhei a série americana pelas razões expostas no artigo de Talita Duvanel. As peripécias de Logan Roy, o patriarca e magnata de um império de mídia, e de seus quatro filhos, Connor, Kendall, Shiv e Roman, me fizeram assistir a todos os episódios porque mostravam a manipulação que há nas relações humanas, o exercício do poder, a psicopatia de pessoas sem empatia pelo sofrimento alheio e que usam os outros para seus fins egoístas. Tudo isso me tocou porque a essa altura da vida já tenho experiência suficiente para ter tido contato com esse lado negro dos seres humanos. Por outro lado, o final melancólico, em que os quatro filhos vendem sua participação na empresa por serem incapazes de chegarem a um acordo entre si, me fez lembrar a lição de Platão. A história teria sido mais edificante se algum deles tivesse aprendido a lidar com as fraquezas próprias e alheias e tivesse conseguido manter o negócio nas mãos da família, mantendo assim o legado do pai. Mas em plena era de pós-verdade, seria muito pedir que os artistas da nossa época queiram ou achem conveniente passar uma mensagem moral aos espectadores.

    Prezados leitores, o realismo nos mostra a vida como ela é, mas o idealismo de Platão nos mostra uma vida possível, que pode nos encher de esperança. Por isso, entre Tartufo e a família Roy, prefiro uma terceira via, a de Michael Corleone, que se rebelou contra a herança siciliana e acabou tornando-se o maior líder mafioso, enchendo de orgulho seu pai, Vito Corleone. Não é uma via perfeitamente platônica, porque Michael como capo di tutti capi era um assassino implacável, mas talvez seja o caminho heroico possível nessa era descrente em que vivemos.

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Dura lex sed lex

Todavia, Sócrates, por obediência a nós, os responsáveis pela sua criação, não dê aos filhos, à vida, ou a qualquer outra coisa maior valor do que ao justo, a fim de que, quando chegar ao Hades, você possa apresentar tudo isso em sua defesa perante os governantes de lá. Com efeito, é manifesto a você, ou a qualquer amigo seu, que esta eventual ação sua não é melhor aqui, nem mais justa, nem mais pia, tampouco será melhor lá quando chegar ao Hades. De fato, você irá embora daqui, caso vá, como vítima de uma injustiça, não por força das leis, que somos nós, mas por força dos homens; se você, no entanto, partir daqui de modo tão vergonhoso, retribuindo uma injustiça e um mal, transgredindo os consentimentos e os acordos que você mesmo estabeleceu conosco, e fazendo mal a quem menos devia – ou seja, a você mesmo, aos seus amigos, à pátria e a nós –, seremos severas com você enquanto estiver vivo; e lá as nossas irmãs, as leis do Hades, não irão recebê-lo com benevolência, uma vez informadas de que a nós você tentou arruinar, no que cabia a você.

Fala das “Leis” na tradução de “Críton” feita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

No TSE, impossível não suspeitar de politização decisória no recente caso da cassação de Deltan Dalagnol, dada a opção por interpretação alargada, justamente contra o político que se tornou desafeto declarado de parte da cúpula do Judiciário (pois as arbitrariedades que praticava miravam também ministros do STF), de uma cláusula de inelegibilidade que merece interpretação restritiva.

Trecho retirado do artigo “Mesmo na emergência, deve haver Direito”, de autoria de Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP e publicado no jornal o Globo em 21 de maio, sobre a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol

    Prezados leitores, devo começar nesta semana por uma errata: a terceira citação que abre o meu artigo “Sócrates Reloaded” não foi retirada da “Apologia de Sócrates”, mas de Críton, outro diálogo escrito por Platão. Se na Apologia de Sócrates o filósofo defende-se das acusações de corrupção dos jovens e de não reconhecer os deuses da cidade de Atenas, e depois de ser condenado à morte, dirige-se aos jurados, em Críton Sócrates dialoga com um amigo e discípulo seu, Críton, que quer convencê-lo a evadir-se da prisão e refugiar-se em alguma outra cidade grega. Para demovê-lo da ideia, Sócrates cria uma personagem “As Leis”, que desenvolvem um argumento em favor da aceitação por Sócrates do seu veredito.

    Meu objetivo neste humilde artigo será o de explicar tal argumento, lançando luz sobre uma outra faceta de Sócrates, além daquela que já explorei anteriormente de antidemocrata, qual seja: a de cidadão que compreendia a natureza profunda das leis. Em assim fazendo poderei refletir sobre o episódio do ex-Lava Jatista Deltan Dallagnol e o que ele revela sobre a nossa própria concepção da lei.

    A fala das “Leis”, dirigida tanto a Sócrates, o homem que foi considerado culpado pelos jurados, quanto a Críton, seu amigo que o ama e que não quer perdê-lo, é a seguinte, conforme o trecho que abre este artigo: as regras de conduta e de governo vigentes em Atenas permitiram a Sócrates nascer na cidade, educar-se e constituir família, transformando-se em um homem com atuação destacada na vida da pólis. O filósofo as aceitou de bom grado, tanto que raramente saiu de Atenas e quando o fez foi para lutar pela pátria, na Guerra do Peloponeso (431 a.C. – 404 a.C.). Assim, ele concordou em submeter-se às leis atenienses porque considerava que elas proporcionavam uma estrutura adequada para o seu desenvolvimento individual.

    No entanto, essas mesmas leis, no momento do julgamento do filósofo, estão sendo invocadas pelos jurados para condená-lo à morte, sob a justificativa de que Sócrates as desrespeitara. Pode ser que a decisão da maioria dos jurados, os quais não foram persuadidos por Sócrates a optar pela absolvição, tenha sido equivocada e portanto, injusta. Sabemos já que no processo de decisão democrática não há necessariamente a busca pela verdade, mas pela persuasão, por qualquer meio possível, incluindo o apelo à emoção, que tenha o condão de convencer quem tem que tomar uma decisão.

    Mesmo que os jurados tenham sido levados por uma antipatia pelo filósofo, que se mostrou arrogante durante o julgamento, altivo na certeza de que a busca da verdade, longe dos debates da ágora, era o melhor caminho a seguir na vida, as Leis apontam para Sócrates e para Críton que evadir a execução da pena pela fuga é um desrespeito e uma afronta à entidade Lei que fará com que Sócrates e seus amigos, que porventura o ajudassem a sair da pátria e a exilar-se, quando morressem e descessem ao Hades, ao mundo subterrâneo dos mortos, seriam considerados culpados e submetidos à danação eterna, proporcional à violação do espírito das Leis. Estas são sagradas porque dão vida, isto é, permitem que as pessoas tenham uma família, que as famílias sejam mantidas e prosperem, engendrando por sua vez novas famílias, cujos membros constituirão os cidadãos da pólis.

    Ora, Sócrates não era afeito ao regime democrático, mas ele era leal às Leis, como bom cidadão de Atenas. De acordo com outro famoso ateniense, o orador Demóstenes (384 a.C. -322 a.C.) as leis eram dádivas dos deuses aos homens para que pudessem conviver entre si e para terem um mecanismo de correção dos erros tanto voluntários quanto involuntários. Era preciso cumprir as leis sempre, independentemente do custo pessoal que isso implicasse, porque sem elas não haveria sociedade e não haveria vida. E assim Sócrates o fez, sem pestanejar, mas como era do seu feitio, sem antes dialogar com seu amigo Críton para que juntos chegassem a uma definição do melhor curso a seguir depois da condenação. A aplicação das leis podia ser falha em um regime democrático, mas as leis em si, enquanto ideal que davam o suporte material e espiritual à organização social, não eram. Nesse sentido, a desobediência às Leis só semearia a discórdia entre os homens e o caos, inviabilizando a vida na pólis.

    Nesse ponto, coloco-lhes a pergunta: no século XXI, as Leis são colocadas no panteão das coisas sagradas com poderes de criação em que as colocavam Sócrates e seus conterrâneos? O episódio da cassação do mandato  do deputado recém-eleito Deltan Dallagnol é emblemático a esse respeito. Os juízes do Tribunal Superior Eleitoral fundamentaram sua decisão em uma aplicação da Lei da Ficha Limpa que determina a inelegibilidade de indivíduos condenados pela justiça ou demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo. De acordo com o TSE, Deltan era alvo de pelo menos 15 processos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público e eles interpretaram sua exoneração do Ministério Público Federal como uma tentativa de livrar-se das penas que lhe seriam impostas, incluindo a inelegibilidade, caso ele fosse considerado culpado nos processos.

    O professor Rafael Mafei, no artigo citado na abertura deste artigo, mostra as falhas desta decisão: violação da presunção da inocência, interpretação extensiva de uma cláusula que deveria ter interpretação restrita, pois sua aplicação implica imposição de pena. A má técnica jurídica dos juízes do TSE levanta a suspeita de uso das leis como instrumento de vingança política. A própria vítima da decisão diz que o relator Benedito Gonçalves entregou sua cabeça em troca de uma vaga no STF.

    Prezados leitores, será que o melhor, para o bem da preservação do espírito das leis brasileiras, seria que o ex-procurador da Lava-Jato imitasse o exemplo de Sócrates e respeitasse a decisão dos juízes sem fazer acusações de tendenciosidade e de corrupção? Ou será que ninguém mais no Brasil considera que o Poder Judiciário seja algo mais do que um saco de gatos que se engalfinham pelo poder? Será que em nosso Brasil do século XXI é ser inocente demais colocar fé nas Leis, como Sócrates colocou, pois o ideal já se foi há muito e o que ficou foi a instrumentalização da justiça como arma política? Será que só resta a cada um de nós puxar a sardinha para o nosso lado e que o bem da coletividade vá para o espaço?

    Eu prefiro acreditar que o adágio dura lex sed lex é o melhor caminho a ser seguido. Querido Dallagnol, não politize uma decisão que pode ter sido simplesmente falha, e que não deveria ser usada para desacreditar ainda mais nosso Judiciário.

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Julgamento de Sócrates Reloaded

Sócrates não defendia nem a oligarquia nem a democracia. Não se identificava com nenhum dos dois lados. Seu ideal, tal como é apresentado de diferentes maneiras em Xenofonte e em Platão, e refletido no pouco que conhecemos dos outros socráticos, não era o poder exercido nem pela minoria nem pela maioria e sim – segundo Xenofonte – por “aquele que sabe”.

Trecho retirado do livro o Julgamento de Sócrates, escrito pelo jornalista americano Isidor Feinstein Stone (1907-1989)

[…] nenhum homem há de manter-se são e salvo, caso se oponha de forma legítima a vocês ou a qualquer outra multidão, e impeça a realização de inúmeras ações injustas e ilícitas na cidade; pelo contrário, para quem realmente luta pelo justo é inevitável agir em privado, e não em público, caso pretenda se manter são e salvo por pouco tempo que seja.

Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

[…] sempre fui um indivíduo que não dá ouvidos a nenhuma outra coisa que me pertence senão àquele argumento que, submetido à reflexão, se manifesta a mim como o melhor.

Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

    Prezados leitores, na última vez em que estive neste meu humilde espaço, há quase um mês, eu proferi um julgamento a respeito do filósofo grego Sócrates (470-399 a.C.) qualificando-o de antidemocrático. Pretendo neste artigo esmiuçar a razão pela qual o homem condenado a beber cicuta em Atenas não morria de amores pelas discussões políticas na assembleia dos cidadãos que eram o cerne da prática democrática.

    Em tais discussões, o objetivo do orador era convencer os cidadãos a tomar uma decisão política, seja declarar guerra a uma outra cidade-Estado, seja condenar alguém ao ostracismo ou exílio ou mesmo à morte se tivesse cometido ato atentatório à existência da pólis enquanto entidade soberana. Para tal convencimento, poderia o orador adular seus ouvintes para que tivessem boa vontade com o que ele tinha a dizer, implorar que o escutassem para suscitar a pena deles e até mesmo chorar para mostrar seu sofrimento e o quanto os ouvintes podiam ajudá-lo simpatizando com sua causa. No final das contas, o orador poderia sair-se vitorioso porque tinha sabido apelar às emoções dos cidadãos, independentemente da adequação da sua proposta aos fatos.

    Ora, a proposta filosófica de Sócrates era totalmente diferente. Ele não estava em busca de persuadir ninguém a respeito de algo que poderia ser verdadeiro ou falso, mas que certamente repercutia na psiquê dos membros da assembleia. O fundamental para Sócrates não era buscar o que parecia verdadeiro, mas a verdade mesma, aquelas definições perfeitas, porque abrangentes e invariáveis, que eliminavam toda a inconsistência entre os fatos e reuniam as características comuns entre eles. Se tal busca chegasse a um beco sem saída, na aporia consistente na incapacidade de uma conclusão a respeito da identidade da coisa, isso não importava: era melhor admitir que não sabia, para manter-se fiel ao ideal de busca da verdade a qualquer preço, do que pretender que sabia para convencer as pessoas a seguir um determinado curso de ação.

    Daí por que o método socrático, que jamais se comprometia a chegar a uma solução de qualquer jeito, não tinha vez na prática democrática: caso os cidadãos, reunidos em assembleia, fossem criticar toda e qualquer proposta de ação à maneira filosófica, sempre achariam uma desconformidade entre o que se propunha como vantajoso para a cidade e benéfico aos cidadãos e a realidade fática. Afinal, era sempre possível questionar: benéfico para quem particularmente? que benefícios eram vislumbrados especificamente?

    Conforme o segundo trecho que abre este artigo, o próprio Sócrates reconhece que sua atuação como eterno questionador só poderia ocorrer na esfera privada. Afinal, nenhum político que discursasse na ágora ateniense e que aprendia as artes da retórica com os sofistas poderia apresentar uma definição satisfatória do que era justo e do que era injusto, já que o foco da sua atividade intelectual estava em manipular as massas para que ela concordasse com o curso de ação que o líder queria seguir para satisfazer seus interesses e seu apetite pela honra, pela glória e pelo poder. Ao passo que os diálogos empreendidos pelo filósofo com seus seguidores, em que ele colocava em xeque tudo aquilo que pensavam saber, apontando as contradições e inconsistências, eram o caminho possível para chegar às definições que para Sócrates identificavam a natureza das coisas e eram objeto do conhecimento por excelência.

    Considerando que a arte da persuasão, que epitomiza a prática democrática, era considerada um esforço intelectual inútil e desprezado por Sócrates, interessado na busca da verdade, não admira que em seu livro I. F. Stone condene o filósofo como um antidemocrático: para o jornalista americano, ao rejeitar o governo da maioria, cujas propostas não atendem aos critérios rigorosos da verdade tal como concebida por Sócrates, este põe-se ao lado dos que defendem a ação voluntariosa e individual daquele que se opõe às maiorias persuadidas pelos oradores e que sabe porque busca as formas, isto é, a realidade imutável e absoluta além das contradições inerentes ao mundo real. Nesse sentido, o filósofo é culpado de atentar contra a democracia, pois para os seus conterrâneos tal defesa de um percurso intelectual unilateral e sem concessões trilhado por aquele que supostamente detinha o saber era um convite ao governo de um rei ou de um tirano.

    Para Stone, a fim de livrar-se da condenação à morte, Sócrates deveria ter defendido não sua virtude como filósofo que buscava o que era o justo, mas seu direito à liberdade absoluta de expressão, mesmo que isso implicasse a liberdade de criticar a democracia, como ele fazia. Mas não foi isso que o filósofo fez: ele desafiou seus acusadores, acusou-os de praticar uma injustiça por quererem interromper o exame crítico por meio dos diálogos que Sócrates tinha com seus discípulos. Em assim fazendo, ele acabou sendo condenado.

    Prezados leitores, à luz das falas de Sócrates na Apologia e da interpretação adotada por I. F. Stone, qual a definição perfeita de Sócrates: mártir da democracia ou algoz da democracia? Ou tais definições apresentam tantas complexidades que qualquer praticante do método socrático poderá lhes apontar as inconsistências? De qualquer forma, uma coisa é certa: o julgamento de Sócrates no século IV a.C. – suas razões e o motivo da sua condenação – dão margem para a reflexão sobre nossa prática democrática em pleno século XXI. Afinal, como não considerar relevantes as críticas de Sócrates à paixão das massas quando vemos o mesmo povo brasileiro elegendo Jair Bolsonaro para livrar-se de Lula e depois elegendo Lula para livra-se de Bolsonaro? Dialoguemos e reflitamos, como propunha o filósofo.

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