Mutatis mutandis

Uma vez sendo aceita uma moralidade de princípios, no entanto, as atitudes morais não são mais ligadas somente ao bem-estar e à aprovação de determinados indivíduos e grupos, mas são moldadas por uma concepção de direito escolhida independentemente dessas contingências. […] O desejo de agir justamente não é, assim, uma forma de obediência cega a princípios arbitrários não relacionados aos objetivos racionais.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Nem mesmo a presença do estado, com a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela no fim de 2011, foi capaz de frear a expansão do tráfico, como era o desejo de Joana da Paz. Hoje, a favela serve de base para bandidos do Morro Pavão-Pavãozinho, também em Copacabana, que têm planos de invadir o Morro Chapéu Mangueira, no Leme.

Trecho retirado do artigo intitulado “Cenário que não Muda”, sobre a ação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras em Copacabana, Rio de Janeiro, publicado no jornal O Globo em 26 de fevereiro

    Prezados leitores, na semana passada, ao tentar explicar o ideal racionalista de justiça de John Rawls, eu afirmei neste humilde espaço que no mundo de seres conscientes dos seus interesses, desejos e objetivos de vida, as regras morais acabam se integrando à personalidade da pessoa e se tornam um arcabouço no qual ela florescerá, relacionando-se com seus pares, procurando a aprovação deles, e reconhecendo-lhes suas conquistas e em assim fazendo, tornando-se digno de respeito e capaz de respeitar os outros. Nesta semana, abordarei um outro conceito explicado por Rawls, o de moralidade dos princípios, que é o pináculo dessa justiça construída pelo homem racional e livre para o seu próprio benefício material e espiritual. É o que o cientista político chama de moralidade dos princípios.

    Conforme o trecho que abre este artigo, a moralidade dos princípios é o terceiro estágio de desenvolvimento do senso moral. Ele não está mais ligado ao temor reverencial de uma autoridade, como acontece com as crianças; nem está ligado à obediência de regras de determinada sociedade para ser aceito e admirado pelos membros como parte do grupo. Nesse último estágio, os nossos sentimentos morais existem e se expressam por atitudes morais independentemente das contingências do momento, independentemente de haver modelos de conduta aos quais aspiramos, seja na figura de membros da família ou de membros de alguma associação à qual pertencemos, independentemente de haver punições aos que descumprem as leis, independentemente de haver um aparato estatal do qual possamos temer o poder.

    Dessa forma, livre dos acidentes do momento, o homem racional e livre escolhe manter-se fiel a princípios de justiça porque ele entrou em um círculo virtuoso em que obedecer permite a ele satisfazer suas necessidades de alimentação e saúde, mas também seus objetivos de vida, e tal florescimento do indivíduo o faz ter confiança nas instituições que lhe garantiram a liberdade e a igualdade de oportunidades necessárias para que seguir as leis fosse um bom negócio. Com confiança nas instituições, o homem racional e livre age no mundo para solidificá-las, consolidando assim o ambiente para a prosperidade de todos e a possibilidade de que possam concretizar as mais diversas metas. Essa é a sociedade bem ordenada de Rawls: a sociedade em que seguir as regras do jogo não é questão de imposição de uma autoridade arbitrária, mas um privilégio de membros da sociedade que descobriram a melhor maneira de atingir seus objetivos no longo prazo, por meio da cooperação social.

    É de se perguntar se alguma sociedade concreta colocou em prática esse ideal racional ou está perto de fazê-lo. No Brasil temos indícios claros em várias esferas de que estamos longe de chegarmos ao estágio da moralidade dos princípios. O caso do tráfico de drogas no Rio ilustra que estamos ainda patinando na moralidade da autoridade. Explico-me,  descrevendo o contexto do artigo citado acima, que menciona a morte em Salvador de Joana Zeferino da Paz, uma senhora de 97 anos que na década de 90 filmava da sua janela a movimentação dos bandidos na Ladeira dos Tabajaras em Copacabana.

    Suas filmagens serviram de prova para o Estado colocar na cadeia mais de 30 criminosos, incluindo policiais militares acusados de receberem propinas. A ação repressora teve continuidade em 2011, conforme o trecho que abre este artigo, quando foi implantada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), sinalizando a presença do Estado como a autoridade máxima do local, depois do aniquilamento dos traficantes, seja pelas mortes em confronto com as forças policiais, seja pela atuação do Poder Judiciário, condenando-os à prisão. Será que as UPPs ao menos criaram o temor reverencial dos habitantes da favela, incluindo os praticantes de atos ilícitos entre eles, estimulando-os a trilhar o caminho da lei? Será que foi criado um novo senso comunitário na favela, em que os moradores, livres da influência negativa dos traficantes, começaram a atuar para obter o respeito e a admiração dos seus pares de formas mutuamente benéficas?

    Por razões cuja complexidade é tamanha que não cabem neste humilde espaço, a resposta é um sonoro não. Conforme descreve o artigo “Cenário que não Muda”, males que a câmera de dona Joana da Paz flagrou há 30 anos estão ainda lá: crianças consumindo drogas, a ostentação de armas para mostrar controle, o consumo de drogas por mulheres nas escadarias, crimes praticados à luz do dia, com a cara à mostra. Instituições, na concepção racionalista de Rawls, não existem na Ladeira dos Tabajaras: há a força bruta, arbitrária dos traficantes que desrespeitam as leis flagrantemente e a força policial representada pelas UPPs que não conseguiu inculcar na população confiança suficiente no seu poder de oferecer oportunidades e igualdade para todos de maneira que as pessoas aderissem de bom grado à ordem oficial.

    O resultado dessa mixórdia é que os habitantes das favelas do Rio de Janeiro ficam submetidos às arbitrariedades dos traficantes de um lado e das milícias de outro, não se podendo esquecer que eles mesmos contribuem para que nada mude aderindo a pequenas ilicitudes como o Clube do Gato que descrevi aqui há duas semanas. No frigir dos ovos, os esforços do Estado brasileiro de se fazer presente na vida da população mais carente ainda não foram suficientes para a mudança de paradigmas: a obediência ocorre àqueles que mostram as armas, e o caminho encontrado pela maior parte da população é o de levar a vida seguindo o antigo adágio do manda quem pode obedece quem tem juízo. O juízo não dos cidadãos livres, iguais e prósperos, mas o dos indivíduos acovardados, sem perspectivas de melhoras significativas, vivendo em um meio hostil, que não dá margem a objetivos de vida e em que a única regra é ir levando para tentar sobreviver.

    Prezados leitores, mutatis mutandis, o microcosmo das favelas dominadas pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro mostra as tormentas que nós brasileiros devemos superar para chegarmos ao céu de brigadeiro da moralidade dos princípios. Oxalá uma sociedade bem ordenada esteja ao alcance da próxima geração.

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 A um nano segundo da irracionalidade

Caso os motivos para as injunções morais sejam esclarecidos em termos das demandas justas dos outros, essas restrições não nos fazem mal, mas são vistas como compatíveis com nosso próprio bem. […] A tradição racionalista apresenta um cenário mais feliz, já que ela sustenta que os princípios da razão e da justiça surgem da nossa natureza, não estando em conflito com nosso bem, ao passo que a outra versão da realidade não incluiria tal garantia.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

O Presidente russo, Vladimir Putin, fez um discurso de alerta nuclear ao Ocidente a respeito da Ucrânia, suspendendo o tratado bilateral de controle de armas nucleares, anunciando que novos sistemas estratégicos estão prontos para o combate e informando que Moscou pode retomar os testes nucleares.

 Notícia veiculada pela agência Reuters em 21 de fevereiro

    Prezados leitores, na semana passada eu abordei o princípio aristotélico, tal como definido por John Rawls, e expliquei como ele é usado pelo filósofo americano para fundar uma sociedade de liberdades e igualdade jurídica e de oportunidades para todos, pois ele permite criar uma sociedade bem ordenada na qual cada um tem a oportunidade de desenvolver seus talentos, ser reconhecido pelas suas realizações, e assim de estar disposto a reconhecer as realizações dos outros membros da sociedade, estabelecendo-se uma troca vantajosa entre os cidadãos que leva à cooperação e à construção de uma sociedade que funciona para todos. Hoje terei como foco a questão colocada por Rawls para que tal sociedade bem ordenada seja colocada em prática.

    Como inculcar em cada indivíduo um sentimento moral de forma que seja assegurada uma estrutura básica estável que permita que a justiça seja feita? Esse problema se coloca porque se cada um das pessoas que formam o corpo social não está disposta a agir em obediência às leis, não há como esse ciclo virtuoso de busca de autorrealização individual, de reconhecimento e de cooperação social se concretizar: se as pessoas não estão psicologicamente dispostas a agir de acordo com as regras e dar a cada um o que lhe cabe, elas não vão se importar com a opinião que os outros têm delas e por isso não vão se comprometer a dar o melhor de si em prol de todos. A falta de um senso interior de justiça nos aparta da sociedade, impedindo-nos de criar um vínculo com os outros atores sociais e de estabelecermos interesses e projetos comuns.

    Rawls explica que há duas vertentes clássicas de explicação de como o homem adquire o sentimento da moralidade, uma empirista derivada do filósofo escocês David Hume (1711-1776), e a outra racionalista, derivada do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).  Para os empiristas, os homens devem ser treinados para um comportamento moral porque tal comportamento é contrário às suas inclinações. Não temos motivos para agir de maneira correta se formos nos guiar por nossos instintos e desejos e para fazê-lo é preciso que nos sejam inculcados motivos na forma de recompensas e punições que nos levem a trilhar um caminho que naturalmente não escolheríamos. Assim, escolhemos obedecer por medo e para aplacar nossas ansiedades relacionadas a possíveis punições e desejos não satisfeitos.

    Para os racionalistas, vertente a que adere Rawls, o sentimento moral se coaduna com a natureza do homem, conforme explica o trecho que abre este artigo. Por um processo de maturação psicológica fundamentado na relação saudável com os pais, a criança obedece às regras que lhe são impostas principalmente porque ela se sente amada e acolhida por aqueles que cuidam dela, os quais sentem prazer em relacionar-se com ela e em tudo o que ela faz. Sentindo-se protegida e confiando nos adultos que cuidam dela, a criança acaba os vendo como modelos a serem seguidos, e não só aceita de bom grado as proibições e os comandos, como os torna fontes de desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e emotivas: é nessa estrutura, limitada pelas regras dos seus protetores, que a criança adquire a confiança para experimentar, para errar, para aprender e para atingir objetivos que serão apreciados pelos pais.

    Sob essa perspectiva, as regras morais não são uma superestrutura imposta de maneira coativa ao indivíduo por meio de estratagemas como castigos pelo mau comportamento e recompensas pelo bom comportamento que mal e mal escondem a natureza egoísta do ser humano. Ao contrário, as regras morais são uma camada a mais que se integra plenamente à personalidade da pessoa, permitindo-lhe florescer como indivíduo no seio da sociedade, relacionar-se com seus pares, ser respeitado e respeitar os outros.

    Em que pese Rawls adotar essa postura racionalista de que o ser humano é capaz de desenvolver seu senso moral porque ele percebe que isso garante o seu bem no longo prazo, dando-lhe a oportunidade de atingir seus objetivos de vida, ele também admite que o medo das punições desempenha um papel na psiquê humana. De sorte que temos uma situação em que o homem obedece porque é forçado a fazê-lo, mas também porque em fazendo gozará dos benefícios de uma sociedade em que as regras são seguidas e a justiça prevalece, isto é, gozará das liberdades e oportunidades que garantem a prosperidade de todos.

    Prezados leitores, essa explicação sobre o ideal racionalista de Rawls, herdeiro não só das ideias de Kant, mas do psicólogo suíço especialista no desenvolvimento infantil Jean Piaget (1896-1980), pode nos servir para entender o momento que estamos vivendo que, segundo o ex-diplomata soviético e conselheiro de Gorbatchev, Vladimir Fedorovski, é o momento mais dramático da história da humanidade, pois as duas maiores potências militares estão se enfrentando, tendo como palco a Ucrânia, e não estão dispostas a conversar.

    De fato, conforme o trecho que abre este artigo, Putin hoje anunciou a retirada da Rússia do último tratado de controle de armas que ainda vigia entre os dois países, ao mesmo tempo que em Kiev, o Presidente Joe Biden anunciou que os Estados Unidos jamais aceitarão uma vitória russa na Ucrânia. Os otimistas creem que a racionalidade prevalecerá e que, ante a perspectiva de um holocausto nuclear que destruirá todos, as partes decidirão conversar, estabelecer regras de respeito mútuo pela segurança de cada uma delas para acabar com a carnificina na Ucrânia e garantir a paz para todos. Os realistas pessimistas consideram que estamos a um nano segundo da irracionalidade e que, a falha do direito internacional em estabelecer uma instância supranacional e imparcial com poder de polícia permite que a força bruta acabe prevalecendo e haja agressões entre os países.

    Será que um dia chegaremos a concretizar o ideal kantiano do concerto das nações, que estabelece um pacto de convivência em prol do bem comum, da segurança e das relações cordiais entre os povos? Ou sempre estaremos sujeitos aos efeitos das lutas entre as superpotências? Oxalá, tenhamos tempo de refletir sobre essas questões antes do final deste ano.

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O Clube do Gato

[…] em que pese ser verdade que a não ser que as nossas iniciativas sejam apreciadas pelos nossos parceiros, é impossível para nós mantermos a convicção de que elas valem a pena, também é verdade que os outros tendem a valorizá-las somente se o que fazemos inspira neles admiração ou lhes dá prazer. […] as condições para pessoas que respeitam a si mesmas e umas às outras parecem exigir que os planos comuns sejam racionais e complementares: eles se valem das habilidades adquiridas pela educação e despertam em cada um um senso de domínio, e eles se encaixam mutuamente em um único esquema de atividades que todos podem apreciar e aproveitar.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

 

Um morador do Complexo da Mangueirinha, em Duque de Caxias, usuário de “gato” há dois anos, diz saber que o furto de energia acaba onerando quem paga conta de luz, mas resolveu ficar do outro lado para aliviar o bolso. “ou você paga a conta por causa do gato dos outros ou adere para não sofrer também.

Trecho retirado do artigo “A conta do crime – furto de energia em áreas violentas afeta finanças de distribuidoras no Rio, publicado no jornal O Globo em 12 de fevereiro

“Todos os homens que diferem entre si para pior, no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal, são naturalmente escravos, e para eles nada melhor do que estarem sujeitos à autoridade de um senhor.”

Trecho retirado do livro “História da Riqueza no Brasil”, de Jorge Caldeira, citando trecho da “Política”, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

    Fazer do meu jeito, fazer do nosso jeito. Este foi o título do meu humilde artigo na semana passada para referir-me à racionalidade deliberativa de John Rawls, isto é, à capacidade de um homem que participa de uma sociedade justa de estabelecer seus objetivos de vida e de traçar seus planos de acordo com as circunstâncias que o rodeiam para conseguir atingi-los da melhor forma possível, nem que isso signifique fazê-lo de maneira parcial. O que importa é a liberdade tanto de poder colocar em prática seus valores, quanto de ter a oportunidade de executar os planos. Nesta semana, abordarei o princípio aristotélico, nome dado por Rawls a um princípio por ele formulado com base nas ideias do filósofo grego. Meu objetivo é utilizá-lo para iluminar um aspecto da nossa sociedade tropical.

    Como mostra o trecho tirado do livro de Jorge Caldeira, Aristóteles acreditava na desigualdade intrínseca e irredutível dos seres humanos: alguns nasceram para comandar, outros para ser comandados. Essa máxima serviu para justificar, desde a Antiguidade até o Antigo Regime na Europa, o estabelecimento de leis diferentes para os diferentes estamentos sociais: se os homens eram desiguais e com diferentes níveis de capacidade, era preciso refletir na ordem jurídica tal desigualdade e o ideal de justiça era tratar os indivíduos desigualmente, segundo sua qualidade.

    Essa qualidade tinha um duplo sentido: era tanto a característica do indivíduo, seu pertencimento a uma certa classe social, a uma certa profissão, a uma certa família e a uma certa religião e era também a característica do indivíduo em termos de ter certas habilidades que lhe permitiam realizar algo bom. É deste segundo sentido que John Rawls se vale para formular seu princípio aristotélico, conforme o trecho que abre este artigo. Princípio este que ele não utiliza para fundamentar a justiça da desigualdade jurídica, mas a contrário a justiça da igualdade e liberdade.

    Se há homens que nascem com determinados recursos físicos e intelectuais, isso lhes permitem, uma vez tais recursos sendo cultivados pela educação e pelo treinamento, atingir um nível de excelência naquilo que fazem no ramo de atividade que escolheram. Quanto maior for a dificuldade do empreendimento, mais satisfação o indivíduo dotado obterá dele: as sutilezas e complexidades envolvidas o motivarão a perseguir o objetivo, não só porque ele tem a capacidade de chegar lá, mas porque em lá chegando ele poderá mostrar os frutos do seu trabalho aos seus pares, que apreciarão a qualidade do que foi feito, usufruirão dessa qualidade e reconhecerão o autor da obra.

    Em uma sociedade livre, que dá oportunidades aos cidadãos, cada indivíduo, dotado de suas capacidades específicas, conseguirá colocar seus planos de vida em prática e realizará algo, que será apreciado, se não por todos os membros da sociedade, ao menos por uma parcela deles que se identificam com o realizador porque compartilham valores semelhantes e assim conseguem apreciar a qualidade do que ele fez. Tudo correndo bem, cria-se um círculo virtuoso: uma sociedade constituída de indivíduos que têm a chance de desenvolver suas habilidades inatas e que se complementam mutuamente, beneficiando-se das criações dos seus pares, estimulando-as pela apreciação e reconhecimento dos seus respectivos criadores.

    É sob essa perspectiva que Rawls dá uma interpretação democrática à ênfase aristotélica na excelência das realizações humanas e na importância de o ser humano ser reconhecido pelos seus méritos para que ele tenha a motivação de se esforçar e de perseguir o melhor que ele pode fazer nos limites das suas capacidades. A sociedade de Rawls é justa porque ela contempla as diferentes necessidades dos seus membros, dando-lhes a oportunidade de autorrealização e de autorrespeito, independentemente de serem ricos ou pobres, da sua origem étnica ou social. Os homens são diferentes, mas a diferença humana não é motivo para colocar no indivíduo uma etiqueta jurídica de escravo ou senhor que lhe condene a permanecer na mesma posição social sua vida inteira. Ela é uma oportunidade para que todos, criando coisas, cada qual no seu quadrado contribua para o total das realizações da sociedade.

    Todo esse introito sobre como a busca da excelência pode existir num ambiente de liberdades fundamentais para todos e contribuir para reforçar tais liberdades pelo estímulo à dignidade humana, serve para eu explorar um tópico que ilustra o contrário desse círculo virtuoso descrito por Rawls, qual seja a busca sistemática que fazemos no Brasil em certas áreas pelo quanto pior melhor. Refiro-me especificamente ao problema das ligações clandestinas de eletricidade, problema descrito no jornal O Globo, conforme o trecho que abre este artigo.

    Para citar alguns números: a média de perdas por furto de energia é de 14,8% nas distribuidoras do país. Em 31 cidades do Estado do Rio de Janeiro ela é de 54%. A indústria do gato está consolidada por lá: há os técnicos que prestam o serviço de ligação clandestina e lucram, há os consumidores que querem estar do lado dos espertos e não pagar pela luz, há as milícias que cobram uma taxa dos consumidores, menor que as da Light e da ENEL, as empresas atuantes no mercado fluminense. Aparentemente todos saem ganhando com o gato generalizado porque as normas regulatórias permitem às distribuidoras repassar as perdas às tarifas. Os únicos perdedores são os otários dos que continuam a contribuir para a viabilidade da concessão pagando suas contas em dia.

    Mas um dia o castelo de areia vai se desmilinguir. Há um limite de 40% das perdas que as empresas podem repassar. Segundo o artigo no Globo, a Light não está gerando caixa suficiente para manter a sustentabilidade das suas operações. E as metas regulatórias de qualidade de serviços, de preços de tarifas, de fornecimento ininterrupto de energia estão se inviabilizando para empresas impotentes ante a legião dos usuários de gatos como o morador de Duque de Caxias que quer aliviar seu bolso à custa do bolso alheio.

    E quando o castelo desmilinguir haverá a encampação dos serviços públicos de energia. As empresas terão fracassado em cumprir suas obrigações de concessionárias e o Estado terá que cobrir o rastro de prejuízo deixado. No final das contas, mesmo os espertos que terão dado calote por muitos anos perderão, porque por mais lisos que sejam eles pagam impostos e arcam com as despesas estatais. E com infraestrutura precária em termos de energia não há muito incentivo para que empreendedores abram negócios, gerem empregos e deem assim oportunidades a que os usuários de gato reincidentes mostrem seu valor em uma atividade produtiva. Eles economizam um pouco no curto prazo e perdem rios de dinheiro em termos de perdas de chances econômicas no logo prazo. É o círculo vicioso da corrida para o fundo do poço: sem infraestrutura, sem empresas, sem emprego, sem receitas tributárias, sem investimentos públicos, sem educação, sem oportunidades, sem consecução de objetivos pessoais.

    Prezados leitores, oxalá um dia no Brasil, ao invés de insistirmos em ser parte do Clube do Gato do furto de energia tenhamos a motivação e a racionalidade para sermos parte do clube dos seguidores do princípio aristotélico do quanto mais bem feito por um melhor para cada um e para todos.

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I did it my way, We did it our way

Apesar do plano de relançar a marca do Minha Casa, Minha Vida (MCMV) em fevereiro, o governo levará mais tempo para, de fato, engrenar o programa habitacional em seu novo modelo. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o Executivo não planeja usar as regras do Casa Verde e Amarela (CVA) para contratar novas moradias enquanto o desenho do MCMV é estruturado. A expectativa, por sua vez, é de que a definição de todo arcabouço do novo programa demore meses.

Trecho retirado do artigo “Minha Casa, Minha Vida: contratações devem ocorrer apenas no segundo semestre”, publicado em 5 de fevereiro no jornal o Estado de São Paulo

Mas eu vou supor que enquanto os princípios racionais podem dar foco aos nossos julgamentos e estabelecer diretrizes para reflexão, no final das contas devemos escolher nós mesmos no sentido de que a escolha sempre depende do nosso autoconhecimento direto não somente das coisas que queremos, mas também do quanto nós as queremos. […] Ele caracteriza o futuro bem da pessoa como um todo como aquilo que ela desejaria e procuraria agora se as consequências de todos os modos de conduta disponíveis para ela, no presente momento no tempo, fossem previstas precisamente pela pessoa e vislumbradas adequadamente na imaginação.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

    Prezados leitores, em meu último artigo eu tratei do conceito de bom plano de vida do filósofo John Rawls, ilustrando-o com a descrição da vida de Maria Graham que, em pleno século XIX, conseguiu fazer determinadas escolhas de rumos que lhe permitiram seguir suas tendências naturais: ela viajou, casou, conheceu várias partes do mundo, teve contato com diferentes culturas e civilizações e isso lhe serviu de conteúdo para ela se expressar por meio da escrita e da pintura. Nesta semana, meu objetivo é explorar a ideia de racionalidade deliberativa descrita por Rawls para aplicá-la não a um indivíduo isolado, mas a um país.

    O indivíduo racional de John Rawls é racional não porque ele seja objetivo e imparcial e tome sempre a decisão correta. Conforme o trecho que abre este artigo, ele é racional porque tem conhecimento de si mesmo e das circunstâncias que o rodeiam tanto no espaço, quanto no tempo. Conhecendo-se a si mesmo, ele sabe aquilo que ele deseja atingir na vida, sabe das suas paixões e dos seus desejos e sabe o que é mais importante para ele, de maneira que ele possa estabelecer uma ordem de prioridades sobre em que despender seus recursos físicos, intelectuais, morais e econômicos. Conhecendo seu entorno, o homem racional tem consciência das possibilidades maiores ou menores de concretizar seus objetivos de acordo com as limitações e oportunidades que se lhe apresentam.

    Sob essa perspectiva, a racionalidade deliberativa do homem é a capacidade que ele tem de tomar decisões que o levem da maneira mais segura possível ao destino a que ele se propôs, seguindo um plano de ação elaborado com base na ponderação de todos os fatores que desempenham um papel no desenrolar dos acontecimentos. É claro que a tal racionalidade se concretiza dentro de uma certa estrutura: uma vez inserido nela, nem sempre é possível ao homem racional vislumbrar no presente os desdobramentos dos acontecimentos no futuro, porque ele nunca tem todas as informações ao seu dispor para traçar cenários e tomar a decisão de descartar aquilo que no longo prazo será maléfico e cultivar o que será benéfico.

    O importante nesse percurso de deliberações é que, mesmo que não seja possível que o homem racional atinja as metas estabelecidas no início, ele não se sentirá frustrado e não criticará a si mesmo. Isso porque, consciente do que ele mais quer e tendo a liberdade de usar os meios disponíveis para obtê-lo, ele terá o sentimento da autorrealização advindo do fato de ter feito a coisa do seu jeito, como Frank Sinatra (1915-1998) cantou na música My Way: I did it my way…

    Todo esse introito a respeito do homem livre que escolhe seu caminho ponderando os prós e os contras das alternativas disponíveis e tomando decisões, serve para a colocação de uma pergunta: será que a racionalidade deliberativa pode existir coletivamente, no conjunto dos membros da sociedade que estabelecem suas metas e tentam achar a maneira de atingi-las?

    Parece que a eleição para cargos majoritários no país oferece essa oportunidade de fazer as escolhas fundamentais sobre o que queremos para depois traçarmos um plano de como podemos obter o objeto do nosso desejo coletivo. Ao escolhermos Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2022, a sociedade brasileira fez uma opção por certo conjunto de valores: justiça social, priorização dos mais vulneráveis e dos direitos das minorias. Um exemplo disso é a retomada do projeto Minha Casa Minha Vida, conforme o trecho que abre este artigo. O novo governo vai colocar de lado totalmente o Casa Verde e Amarela de Bolsonaro porque ele não concedia subsídios para a compra da casa própria para famílias com renda de até R$ 1.800,00, que é o grupo prioritário para o governo do PT.

    Uma vez escolhida a meta de conceder acesso à moradia a pessoas da classe E, cabe ao novo governo achar os meios de concretizá-la. O processo é longo: é preciso fazer um levantamento dos conjuntos habitacionais com obras paradas, definir o quanto de dinheiro estará de fato disponível no orçamento público, definir que tipo de habitações serão construídas com base na verba alocada para esse fim. O Minha Casa Minha Vida será relançado em 14 de fevereiro na Bahia, mas na prática só no segundo semestre de 2023 haverá um plano mais concreto, já que para o governo de Lula a política habitacional de Bolsonaro é inaceitável, como fora para Bolsonaro a política habitacional dos governos do PT.

    Assim, será preciso reelaborar toda a política pública do zero porque a escolha fundamental feita pelo povo brasileiro em 2022 foi diferente da feita em 2018. Mas mesmo que nossas metas sociais tenham mudado bastante, será producente jogar tudo o que foi feito no governo anterior no lixo e gastar tempo e dinheiro para reinventar a roda do financiamento habitacional? Será que, considerando as limitações orçamentárias, o mandato relativamente curto de quatro anos, não seria mais eficiente aproveitar alguma coisa do que foi feito antes, mesmo porque dinheiro público foi gasto para isso? E se em quatro anos elegermos um governo de direita? Colocaremos o programa Minha Casa Minha Vida abaixo?

    Prezados leitores, John Rawls também dizia que o homem racional respeita tanto os interesses e valores do seu ser presente quanto o do seu ser futuro, assim como os interesses dos outros, porque só assim ele se veria como um indivíduo perene, solidamente inserido em uma rede de relações com o passado, o presente e o futuro e com as pessoas do seu entorno. Oxalá um dia nós, no Brasil, transformemo-nos em uma sociedade com racionalidade deliberativa: que nós não somente sejamos capazes de fazer escolhas sobre o que queremos, mas que as façamos levando em consideração o objetivo maior que é o de nos mantermos ao longo do tempo como um conjunto de pessoas unidas por laços em comum que trabalham todas para construir um futuro em que cada um tenha a liberdade e a oportunidade de perseguir seus objetivos individuais. Quem sabe possamos um dia dizer I did it my way e We did it our way com orgulho por aquilo que conseguimos?

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Vidas paralelas

Em primeiro lugar, o plano de vida de uma pessoa é racional se, e somente se, (1) é um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando estes aplicam-se a todas as características relevantes da situação, e (2) é aquele entre os planos que atendem essa condição que seria escolhido por ele com plena racionalidade deliberativa, isto é, com plena consciência dos fatos relevantes e depois de uma consideração cuidadosa das consequências.

 Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Maria Graham era uma mulher peculiar. Era uma aventureira e uma intelectual. Além de livros a respeito da Índia, onde conhecera seu falecido marido e casara-se com ele, escreveria outros, inclusive biografias. Estudou botânica e traduziu obras para a educação de crianças. Até mesmo produziu um relato de um grande terremoto que vivenciou no Chile em 1822. Esse depoimento seria usado em Londres para provar a teoria de que as montanhas se originavam de tais fenômenos e a colocaria como pivô de uma briga científica, na qual Charles Darwin se alinharia a seu lado.

Trecho retirado do livro “D. Leopoldina, a história não contada” de Paulo Rezzutti, sobre Maria Graham (1785-1842), escritora e ilustradora britânica, que foi preceptora de Maria da Glória, filha de D. Pedro e D. Leopoldina, de 5 de setembro a 10 de outubro de 1824

A governanta era uma espécie de pólipo, um ser intermediário entre o homem e a planta, ou seja, entre os patrões e os criados. A família a trataria com um ar de condescendência revoltante e os domésticos só a obedeceriam se fosse a upper nurse, essa rainha absoluta em seus domínios, intimidante em sua majestade e tendo educado pelo menos duas gerações na casa. A infeliz criatura passaria os dias com seus alunos na sala de estudos.

Trecho retirado do livro ”A Viajante Inglesa – O Senhor dos Mares e o Imperador na Independência do Brasil”, de Mary Del Priore

    Prezados leitores, para elaborar sua teoria da justiça, fundada em princípios a serem escolhidos livremente pelos indivíduos em um momento hipotético anterior à existência da sociedade, John Rawls faz uma identificação entre o bem, a justiça e a racionalidade. A justiça é um bem, e o bem é algo racional. Para explicar o que é o bem ou o que é bom, Rawls vale-se de uma definição geral: bom é aquilo que tem as propriedades necessárias para que cumpra seus objetivos. Na prática, o que é bom e o que é ruim depende do contexto particular: um objeto como um relógio, por exemplo, é bom se ele mostra a hora de maneira precisa e ele o faz porque tem um mecanismo eficaz que cumpre o objetivo para o qual o objeto foi criado. Assim, haverá critérios específicos para avaliar a qualidade de determinado objeto, a depender dos seus objetivos. Os critérios mudarão quando estivermos falando dos seres humanos e dos seus planos de vida, conforme mostra o trecho que abre este artigo.

    Um bom plano de vida embute a noção de racionalidade como um bom relógio o faz: ele é aquele escolhido pelo indivíduo que analisa as circunstâncias que o cercam e pondera as consequências das várias alternativas que pode escolher, de acordo com os objetivos que ele coloca para sua vida. Sob essa perspectiva, o plano bom é o que escolhe o método mais eficaz para o indivíduo atingir suas metas, metas essas que ele escolhe livremente de acordo com seus interesses e valores. Meu objetivo nesta semana é ilustrar esse tipo de plano de vida bom e racional, com as escolhas feitas por Maria Graham, escritora e ilustradora britânica.

    Filha de um oficial da Marinha Britânica, aos 23 anos Maria acompanhou o pai à Índia, onde ele trabalharia para a Companhia das Índias Orientais. Durante a viagem conheceu Thomas Graham, também oficial da Marinha Britânica e lá se casaram em 1809. Em 1821, Maria veio com o marido ao Brasil a bordo da fragata Doris por ele comandada. Estiveram em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e depois zarparam de novo, mas Thomas faleceu no Chile em 1822. Viúva e vivendo da pensão do marido militar, Maria fica um ano no Chile, mas volta ao Brasil em 1823. Em carta endereçada a José Bonifácio, ela pede uma audiência a d. Leopoldina, então imperatriz do Brasil. É ideia de José Bonifácio fazer dela a preceptora da filha mais velha do casal imperial, considerando a cultura e a experiência de vida da então viúva de 38 anos, como mostra o trecho que abre este artigo. Não foi difícil para Maria estabelecer uma relação amistosa com Leopoldina, uma intelectual como ela, isolada em meio a pessoas que não tinham um décimo da sua cultura e educação e que não lhe davam o devido valor, a começar pelo seu mal-educado e priápico esposo.

    Maria aceitou o cargo de governanta sabendo do status ambíguo de que ela gozava no século XIX, como descreve Mary Del Priore em seu livro: tinha mais educação que os empregados domésticos, mas ao mesmo tempo não estava no nível da família, mesmo porque precisava do emprego para sustentar-se. No capítulo que Paulo Rezutti dedica à governanta em seu livro sobre Leopoldina, o historiador lista as razões pelas quais Maria acabou pedindo demissão do cargo: o boicote dos portugueses membros da Corte que não aturavam uma britânica metida que achava que era missão dela levar as luzes da civilização das Ilhas aos confins do mundo; as intrigas feitas contra ela ao Imperador; o fato de ela ser do partido de Leopoldina, que àquela altura, dois anos antes de morrer, já não tinha nenhuma influência sobre seu marido, apaixonado irremediavelmente pela Marquesa de Santos.

    Assim como de início viu no cargo de governanta uma oportunidade de ganhar a vida, frequentar pessoas de fino trato como Leopoldina e ser testemunha ocular dos acontecimentos políticos, Maria logo percebeu que era muito intelectual para envolver-se em fofocas e intrigas de áulicos do poder. Sua vocação não era essa. E em 1825, um ano depois de ter saído do Palácio de São Cristóvão, voltou para a Europa e em Londres instalou-se em Notting Hill Gate, um vilarejo de artistas, onde conheceu seu futuro esposo, o pintor Augustus Calcott, com quem se casou em 1827. Lá eles recebiam pintores, poetas, historiadores e editores, e Maria podia falar das suas viagens, dos seus encontros e de suas relações com cabeças coroadas.  De fato, apesar da pouca convivência com a Imperatriz do Brasil, elas sempre se correspondiam e há uma carta de Leopoldina datada de 22 de outubro de 1826, menos de dois meses antes do seu falecimento, agradecendo-lhe a balança mineralógica e os livros que Maria lhe tinha enviado.

    Maria continuou até o fim da vida fazendo aquilo que sempre quis: viajando, pintando, estudando, escrevendo. Imbuída dos seus valores e das suas metas, humildemente ela tomou as decisões certas para que ela pudesse seguir seu destino peculiar de mulher intelectual. Quanto a Leopoldina, ela nunca pôde fazer essas escolhas que uma pessoa livre como Maria podia e queria, apesar de ter a mesma disposição de espírito: filha e esposa de imperadores, Leopoldina viveu para cumprir suas obrigações e morreu exaurida de tantos partos necessários para dar à luz a um herdeiro varão, o futuro imperador do Brasil, Pedro II.

    Prezados leitores, o bom plano de vida de John Rawls, feito de escolhas ponderadas pelo indivíduo racional que escolhe as melhores rotas para chegar a sua meta, é bom para seres livres como Maria Graham, não para seres presos em uma gaiola dourada, como Leopoldina. Que o exemplo dessas vidas paralelas que um dia se cruzaram para nunca mais se encontrar sirva para nos mostrar o que é a liberdade, com seus ônus e bônus.

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