Boas maneiras para quê?

“[…] você deve esperar encontrar [na corte] contatos sem amizade, inimigos sem ódio, honra sem virtude, aparências salvas e realidades sacrificadas, boas maneiras com comportamento ético ruim; e todos os vícios e virtudes tão disfarçados que quem quer que tenha refletido sobre um ou outro não conheceria nenhum deles quando os tivesse encontrado pela primeira vez na corte.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

 

Aprenda a bajular, porque somente os grandes sábios e santos são imunes à bajulação; mas quanto mais ao alto você for, mais delicada e indireta deve ser sua bajulação.

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

Uma “característica de um homem bem educado é a de conversar com quem lhe é inferior sem insolência, e conversar com quem lhe é superior com respeito e à vontade.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre algumas das iniciativas tomadas por Philippe d’Orléans (1674-1723) enquanto foi regente da França de 1715 a 1723, e usei o exemplo de sua vida para dar uma lição de moral, alegando que ele poderia ter feito muito mais pelo país e talvez tivesse contribuído para atenuar o desgaste da Monarquia francesa se tivesse vivido mais. E ele teria vivido mais se tivesse cultivado a virtude da temperança, isto é, se tivesse exercido um melhor controle sobre seus apetites. Afinal, a temperança é a sabedoria relativa à determinação do que é moderado e conveniente em relação aos prazeres do homem, o qual deve sopesar os efeitos benéficos e maléficos a curto e a longo prazo de dar vazão a seus apetites e tomar decisões com base na arte da medida do prazer e da dor que eles lhe causam.

    Nesta semana, meu foco não será na virtude, mas nas boas maneiras. Porque a verdade é que no ambiente cultural em que se vivia na Europa no século XVIII, com a proliferação de livre-pensadores e de libertinos que caçoavam da religião e das proibições que ela impunha, e se achavam muito inteligentes e criativos ao atacá-la enquanto instituição e enquanto prática, ficava difícil almejar a um comportamento cristão. Todos os preceitos das igrejas haviam perdido a credibilidade quando das repetidas guerras nos séculos XVI e XVII entre católicos e protestantes. Não era possível a homens do mundo, familiarizados com as descobertas científicas de Newton, com as mais recentes especulações filosóficas de Spinoza e Locke, serem criaturas morais que tomavam a Bíblia como a suprema autoridade para decidirem como se comportar. Na falta de rígidos padrões éticos, um homem de sensibilidade e inteligência inventou as boas maneiras e elaborou um manual dirigido a seu filho, como meio de educação do rebento, que ele esperava exercesse cargos no governo como Ministro ou diplomata.

    Este homem foi o 4º Conde de Chesterfield, Philip Dorner Stanhope, que foi membro da Câmara dos Lordes (1726), embaixador da Inglaterra na Holanda (1728) e governador-geral da Irlanda (1745-1746), onde criou escolas, estabeleceu indústrias, deu fim à perseguição aos católicos, acabou com a corrupção no governo e administrou com competência e imparcialidade. Apesar dessas realizações, seu principal legado ao mundo foram suas Cartas, publicadas depois de sua morte. Em que pese elas não terem atingido seu objetivo de formarem seu herdeiro para ser um membro da elite governante, já que o moço morreu antes do pai aos 36 anos, sem ter realizado nada digno de nota, as Cartas são uma coletânea de bons conselhos para quem quisesse ter sucesso em um mundo cujas instituições milenares, como a Igreja e a Monarquia, estavam sendo corroídas.

    Conforme o primeiro trecho que abre este artigo, o 4º Conde de Chesterfield tem uma visão equilibradas da Corte: não era nem um antro de homens degenerados e nem povoada por homens abnegados que tratavam da coisa pública com zelo e sacrifício pessoal. Não era preciso ter um comportamento moral ilibado e coerente, afinal o ideal do bom cristão tinha ficado para trás, mas era necessário sobretudo disfarçar seus vícios de modo que eles pudessem passar quase desapercebidos e que as aparências pudessem ser mantidas, para alívio de todos.

    O fato é que cada personagem na Corte tratava dos seus interesses da melhor maneira possível, o que muitas vezes significava moderação nas atitudes para conseguir ser bem-sucedido. Era preciso bajular as pessoas que tinham o poder para fazer nomeações, viabilizar contratos com o governo, mas não era de bom tom ser abertamente bajulador, porque isso poderia irritar o objeto dos elogios e torná-lo antipático aos desígnios do bajulador. Da mesma maneira, não era de bom tom tripudiar sobre aqueles que estavam abaixo na escala social, pois isso poderia nutrir o ressentimento e lembrar aos objetos do desprezo como a fortuna era arbitrária e injusta, o que poderia lhes inspirar a desígnios vingativos.

    Nesse sentido, os objetivos materiais imediatos tinham predominância sobre ideais de vida e as relações humanas não deveriam ser muito pessoais, calcadas nas emoções, nos valores em comum, o que sempre ofusca o raciocínio: eram relações baseadas nos interesses mútuos e todas as tratativas deveriam relevar as preferências ou antipatias pessoais em prol da obtenção de um acordo sobre um mínimo que fosse conveniente para ambas as partes. Adotando esse comportamento equilibrado, os homens da Corte poderiam satisfazer seus interesses egoístas sendo polidos, discretos e cautelosos no falar e no agir. Evitando excessos de insolência, desrespeito e bajulação, eles poderiam manter relações cordiais tanto com quem estava acima deles quanto como quem estava abaixo deles, viabilizando a consecução dos seus objetivos e em assim fazendo contribuindo para a paz social.

    Em suma, boas maneiras eram fundamentais, a despeito das ilusões perdidas em relação ao modo de vida cristão. E tais boas maneiras implicavam também uma atitude serena em relação à religião. Para Chesterfield, criticar abertamente a religião como libertinos e livre-pensadores faziam, fazer troça das suas proposições cientificamente absurdas, era algo vulgar e desrespeitoso. Vulgar porque com a profusão de obras anticlericais e antireligiosas, qualquer indivíduo de pouca inteligência e cultura poderia achar argumentos para lançar diatribes contra a Igreja, a Bíblia e Jesus Cristo. Desrespeitoso porque a religião era, afinal de contas, a garantia da moral. Sem a religião a moral se enfraquecia bastante, tornava-se um ativo desvalorizado. Tanto assim, que já em 1752 Chesterfield, observando na França como as pessoas criticavam livremente o governo e a religião, vislumbrou uma possibilidade cada vez maior de que houvesse uma revolução no país, tamanho era o desprezo mostrado ao Rei e à Igreja Católica.

    Prezados leitores, mesmo que a virtude e as boas maneiras não sejam a mesma coisa, o fato é que a falta de uma e de outra leva ao mesmo resultado catastrófico, de erosão da credibilidade das instituições que são o esteio da sociedade. Da mesma maneira que ocorreu com Philippe d’Orléans, cujo curto período no governo foi insuficiente para deixar um legado duradouro de boa governança do Estado para os sucessores de Luís XIV, talvez se mais pessoas da elite tivessem aderido ao manual de boas maneiras do 4º Conde de Chesterfield, os excessos de vulgaridade, desrespeito e arrogância teriam sido evitados e o povo francês não teria se rebelado da maneira violenta que o fez em 1789. Os franceses poderiam ter mantido sua monarquia, domesticando-a por meio da prevalência do Parlamento como na Inglaterra. Se faltam virtudes aos homens, imperfeitos que são, a lição das Carta ao seu Filho é que as boas maneiras são um substituto que pode contribuir para manter a sociedade organizada.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , , , | Leave a comment

Virtude para quê?

 O erro moral se deve exclusivamente a um equívoco de apreciação racional na relação quantitativa de prazeres e dores desenvolvida em cada escolha numa perspectiva diacrônica: ao optar por um determinado curso de ação, sendo-lhe possível fazer a escolha contrária, o agente estima equivocadamente a quantidade e/ou intensidade de prazer que ele pode obter imediatamente – pois ele é enganado pelo “poder da aparência”, causado pela expectativa de obtenção imediata desse prazer – em comparação à quantidade e/ou intensidade de prazer e dor que decorrem futuramente; no final das contas, ele acaba por contrair mais dores do que prazeres, ao contrário de sua estimativa no momento mesmo da escolha. Não se trata, portanto, de uma deficiência do poder do conhecimento na determinação do curso das ações humanas, como aventado inicialmente pela maioria dos homens, mas de ignorância do agente, que é enganado por uma falsa estimativa de prazeres e dores quando considerados no longo prazo, diante da expectativa de se obter uma quantidade de prazer imediatamente.

Trecho do ensaio “O argumento hedonista: a refutação final” escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução à sua tradução do diálogo Protágoras, de Platão (427 a.C.- 347 a.C.)

É uma visão desoladora – um homem com uma mente brilhante, de ideias liberais, lutando para reparar os danos causados pela intolerância do Grande Rei, deixando que seus nobres propósitos se afogassem em bebedeiras sem sentido, e perdendo o amor em um redemoinho de devassidão.

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Philippe d’Orléans (1674-1723) que foi regente da França de 1715 a 1723

    Prezados leitores, na semana passada eu tratei do desastre causado pelos anos de guerra que Luís XIV (1643-1715) impôs ao seu país. Na sua morte, considerando que o herdeiro direto do trono tinha 5 anos, o governo foi exercido interinamente por Philippe d’Orléans, sobrinho do rei-Sol. A herança era maldita: uma dívida de 2 bilhões e 400 milhões de livres, uma dívida flutuante de 590 milhões de livres, na forma de notas promissórias emitidas pelo Tesouro Real. Em 1715 as receitas líquidas do governo eram de 69 milhões de livres, as despesas eram de 147 milhões de livres, sendo que a maior parte das receitas de 1716 já tinham sido gastas. O que fazer? Nesta semana, meu objetivo é tratar de alguns dos aspectos da regência do duque de Orléans para descrever o que ele fez e o que ele poderia ter feito, se tivesse seguido as lições do personagem Sócrates expostas no diálogo Protágoras.

    Para debelar a crise financeira e econômica, o Regente nomeou como Ministro das Finanças o escocês John Law (1671-1729), que propôs lançar um sistema de incentivo à atividade econômica pelo estímulo ao crédito: o Estado emitiria papel moeda lastreado nas reservas de metais preciosos e terras do país e baixaria a taxa de juros e os impostos de modo que com mais capital disponível aos agentes privados, os empreendedores criassem negócios e gerassem empregos, fazendo girar a roda da economia. E assim foi feito. Em 1718 foi criado o Banque Royale, que ofereceu aos franceses que detinham títulos da dívida do governo trocá-los pelo valor de face por ações em uma Companhia das Índias cujo objetivo era a exploração da bacia da foz do rio Mississippi, onde foi fundada a cidade de Nova Orléans, em 1718, em homenagem ao regente. A chance de se livrar de títulos que valiam um terço do valor nominal fez com que houvesse uma corrida pela compra de ações na empresa e fomentou a especulação com essas ações.

    Além da criação desse sistema de crédito, Law diminuiu as tarifas aduaneiras que eram impostas no comércio interno, fez uma distribuição de terras de propriedade da Igreja e de corporações aos camponeses. Investiu na melhoria da infraestrutura do país, organizando a construção de pontes, rodovias e canais. Concretizou uma expansão industrial de 60% ao longo de 1719-1720, pela diminuição dos juros sobre os empréstimos.  Com mais dinheiro circulando na economia, devido não só ao frenesi causado pela negociação das ações da Companhia das Índias, mas pela diminuição do peso do Estado sobre os agentes privados, a agricultura, a indústria e o comércio floresceram.

    Por outro lado, a negociação das ações acabou tornando-se uma pirâmide financeira, e quando chegaram notícias das dificuldades enfrentadas pelos colonos na exploração da Luisiana todos quiseram ao mesmo tempo livrar-se das ações, garantidas pelas reservas nacionais. Os que chegaram primeiro e os bem conectados conseguiram trocar suas ações pelo ouro do Tesouro francês. Outros perderam muito dinheiro, já que as ações, que no seu auge valiam 12.000 livres, acabaram sendo negociadas ao final por 200 livres, e para diminuir os prejuízos o governo ofereceu em troca dos títulos podres direitos sobre as receitas governamentais mediante descontos do valor de face que variaram de 16 a 95%. Law, que também tinha investido todo seu dinheiro na Companhia, foi demitido pelo Regente em dezembro de 1720 e foi embora para Veneza, com sua mulher e filha, vivendo lá na pobreza e na obscuridade até sua morte.

    Dessa maneira, por mais que a expansão monetária criada pelo sistema de Law tenha causado depreciação da moeda, inflação e caos quando a bolha estourou, ela conseguiu fazer com que o Estado francês se livrasse da dívida herdada de Luís XIV, o que permite dizer que Philippe D’Orléans foi bem-sucedido em abordar o problema da falência em que se encontrava o Tesouro Público e houvesse uma recuperação econômica que superou a estagnação causada pelas guerras do rei-Sol e pela perseguição de grupos produtivos de pessoas, como os huguenotes. Isso é o que foi feito em termos financeiros e econômicos. Agora tratemos de falar sobre o que não foi feito.

    O Regente morreu de um ataque apoplético aos 49 anos, nos braços de uma amante, depois de Luís XV ter sido declarado maior aos 13 anos e ter manifestado seu desejo de que seu primo continuasse à frente dos negócios públicos. É de se supor que Philippe, que nos seus oito anos no poder sempre trabalhou para que a França não se envolvesse em guerras, tivesse tido uma influência benéfica sobre o reinado de Luís XV (1715-1774) que poderia ter evitado a participação da França na Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748) a qual, juntamente com a participação, já sob o reinado de Luís XVI (1774-1792), na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783) contribuíram para que o Estado se tornasse novamente endividado e falido, o que foi um dos fatores que desencadearam a Revolução Francesa, em 1789.

    E qual o motivo dessa morte prematura, que teve tantas repercussões inesperadas sobre a história do país? Conforme o trecho que abre este artigo, Philippe, apesar de ser um homem preparado intelectualmente para governar, pois estava mais em sintonia com os novos tempos de livre-pensamento do que seu tio, limitado por seus preconceitos religiosos, entregou-se sempre aos excessos da bebida e do sexo. Nunca deu ouvidos aos médicos que diziam que se ele continuasse com sua vida desregrada iria morrer logo. A maioria de nós diria que foi um homem vencido pelo prazer, a despeito da sua capacidade de pensar e de formular soluções para os problemas que encontrou quando esteve à frente do governo francês. Sócrates tinha uma opinião diferente, a que Daniel R. N. Lopes, o tradutor do Protágoras, dá o nome de intelectualismo socrático.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o conhecimento leva à virtude e mesmo que se adote a posição hedonista de que o prazer e o bem são a mesma coisa, o conhecimento permite ao homem evitar o erro de escolher o que é mal do ponto de vista ético por ser prazeroso porque o conhecimento nos dá a arte da medida: ele permite pesar os prós e os contras de uma determinada atitude, considerando o efeito que ela terá no curto e no longo prazo. Assim é que um beberrão inveterado e viciado em sexo como Philippe d’Orléans, estava sujeito, aos olhos de Sócrates, não ao domínio do prazer em detrimento da razão, mas ao domínio da ignorância que lhe impedia de chegar à verdade. Se ele soubesse dos efeitos acumulados do seu excesso de álcool, do seu excesso de doenças venéreas, do sofrimento físico que eles iriam lhe causar, do mal que sua morte precoce causaria em um menino de 13 anos que perdeu com ele o último membro da sua família, ele teria decidido que tais prazeres não eram prazeres autênticos, mas aparentes, que na verdade traziam dor no longo prazo, de forma que os malefícios eram maiores do que os benefícios. Sob essa perspectiva, mesmo um hedonista, regido pelo prazer, pode ter uma vida ética se ele tiver acesso ao conhecimento que lhe permite chegar à justa medida do que usufruir no presente e do que evitar no futuro e vice-versa.

    Prezados leitores, virtude para quê? O talento desperdiçado do Regente, que tanto fez falta depois na história do país, o que contribuiu para a queda da Monarquia e para a onda de violência e destruição que tomou conta do país por pelo menos 10 anos, até a ascensão de Napoleão em 1799, teria sido mais bem aproveitado se Philippe não tivesse se autodestruído em sua busca ignorante pela satisfação imediata. À luz das lições socráticas, a virtude serve para dar a correta medida do prazer, permitindo que aquele que dele desfruta tenha um efeito benéfico sobre si mesmo e sobre os que o rodeiam aqui e na eternidade.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , , , , , | Leave a comment

Glória para quê?

Boisguillebert foi um dos primeiros a rejeitar a ilusão mercantilista de que os metais preciosos constituíam riqueza por si sós, e que o propósito do comércio é o de acumular ouro. A riqueza, dizia ele, consiste na abundância de produtos e no poder de produzi-los. A riqueza essencial é a terra; o fazendeiro é a base da economia, e sua ruína implica a ruína de todos; em última análise, todas as classes estão unidas por uma comunhão de interesses.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando o plano econômico de Pierre Le Pesant, Senhor de Boisguillebert (1646-1714), para mitigar o caos e a miséria durante o reinado de Luís XIV (1643-1715) na França

 

É a camada mais baixa da população que, pelo seu trabalho e indústria, e suas contribuições ao tesouro real, enriquecem o soberano e seu reino; no entanto, “é essa classe que agora, pelas exigências da guerra e a tributação de suas economias, está reduzida a viver em trapos e em cabanas em ruínas, ao mesmo tempo que suas terras permanecem não cultivadas”, na ausência de seus filhos recrutados para a guerra.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando as propostas de reforma econômica do engenheiro militar Sébastien Le Prestre, senhor de Vauban (1633-1707) para a França de Luís XIV (1638-1715)

As pessoas acostumadas à bajulação consideram ressentimento, amargura ou excesso aquilo que é simplesmente a pura verdade […] Vossa Majestade não ama Deus, Vossa Majestade somente O teme e com um enorme temor. […] Sua única religião consiste de superstições, de observâncias superficiais e insignificantes […] Vossa Majestade ama somente sua glória e seu ganho.

Trecho de uma carta anônima escrita por François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715), arcebispo de Cambrai, ao rei Luís XIV, citada na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu expliquei aqui neste humilde espaço o alerta que o filósofo e matemático Leibniz (1646-1716) fez sobre os voos da mente humana que, livre das absurdas proposições da religião a respeito da realidade objetiva, poderia acabar também deixando de lado os valores éticos ancorados nos mitos religiosos. Leibniz temia a desordem, a violência e a destruição que o homem, submetendo-se somente à sua própria vontade, e não mais à vontade divina, poderia ocasionar. Ele não viveu o suficiente para ver Napoleão empreender guerras na Europa por mais de 20 anos ininterruptamente, mas em sua época pode ver o rei da França, Luíz XIV, atuar da mesma maneira desimpedida, própria dessa nova era de liberdade.

    Luís XIV construiu Versalhes, protegeu artistas como Molière (1622-1673) e Racine (1639-1699), mas ao longo do seu longo reinado de 72 anos ele cultivou a guerra como meio de aumentar o território do país e garantir que a França tivesse fronteiras mais naturais e defensáveis. Em 1672 invadiu a Holanda, em 1688 invadiu a Alemanha, em 1701 apoderou-se de cidades que serviam de defesa para os Países Baixos Espanhóis (que atualmente correspondem mais ou menos à Bélgica). Para montar seus exércitos, foi implacável na tributação dos franceses, não de maneira justa claro, pois os pobres arcavam com a maior parte dos impostos. Além disso, as classes baixas contribuíam com o esforço de guerra pelo recrutamento forçado de soldados e pelo aprovisionamento de víveres para as tropas, e sofriam mais diretamente as consequências do ativismo bélico do rei-Sol. Afinal, a França invadia os países vizinhos, mas estes revidavam, invadindo-a, pilhando-a, matando como os soldados franceses faziam alhures.

    O resultado de anos e anos de campanhas militares foi devastador para o comércio, para a indústria e para a agricultura, pois todos os recursos do país eram canalizados para custear os sonhos gloriosos de Luís XIV de aumentar o território do país. A agricultura foi prejudicada pela falta de mão de obra, recrutada para as guerras, e pela destruição das plantações pelos exércitos invasores. O comércio sofreu com as sanções impostas pelo governo francês à importação de produtos estrangeiros, com a consequente retaliação dos países objeto das sanções, que pagavam na mesma moeda, impondo barreiras alfandegárias. A indústria, por sua vez, viu-se sufocada por regulações que acabavam tendo um efeito confiscatório de punição na forma de multas impostas sobre aqueles que não seguissem as regras, sem que fossem criados estímulos para as pessoas empreenderem livremente.

    Não é de se admirar que a população tivesse diminuído de 23 milhões de pessoas em 1670 para 19 milhões em 1700 devido à obsessão com guerras que causavam fome, pobreza e doenças. E que o Estado estivesse falido: em 1697 a receita total do Tesouro francês foi de 81 milhões de livres e as despesas foram de 219 milhões. Por outro lado, como o livre-pensamento andava solto, para o bem e para o mal, surgiram vários críticos do modo de governar do rei-Sol e propostas para tirar a França da ruína material em que se encontrava no final do século XVII e começo do século XVIII. Como mostram os trechos que abrem este artigo, a receita da redenção do reinado de Luís XIV seria que o rei cuidasse das pessoas e não da conquista de territórios.

    O Marquês de Vauban defendia, com base em números cuidadosamente compilados, que era preciso diminuir a carga de impostos sobre aqueles que carregavam o país nas costas, isto é, os que trabalhavam na agricultura e na indústria. Diminuindo os impostos, haveria um florescimento da atividade econômica que criaria empregos, geraria renda e faria nascer consumidores, estabelecendo um ciclo virtuoso de produção e consumo, que se complementariam. Como o Senhor de Boisguillebert afirmava, não era o acúmulo de metais preciosos que fazia a riqueza de um país, pois se não houvesse produtos agrícolas e manufaturados à disposição, o valor relativo dos metais seria diminuído pela escassez da produção. A economia real, isto é, aquela que gerava riqueza sustentável, era a economia dos produtores e não dos acumuladores de dinheiro.

    Luís XIV acabou não seguindo o conselho de nenhum desses estudiosos que procuraram, à luz da observação do que acontecia no país em termos de destituição do povo, formular soluções que fizessem a França renascer das cinzas de anos a fio em que a organização das atividades girava em torno da guerra. Como afirmou Fénelon em sua carta anônima, o rei era rodeado de bajuladores e, cioso do seu próprio valor, considerava qualquer crítica atentado de lesa-majestade contra sua dignidade. Acrescentando-se à vaidade do rei sua falta de um verdadeiro espírito religioso, de humildade perante uma autoridade maior que a sua, e estava consolidado seu caminho de perseguição da glória a qualquer custo, o que significou principalmente o sangue do povo francês.

    Em seu leito de morte, o rei-Sol deu um conselho ao seu bisneto, o futuro Luís XV: “não me imite no gosto que tive pelas grandes obras e pela guerra”. Mas a nós, que temos o privilégio da visão retrospectiva, fica claro que os sonhos de grandeza do rei, que amava a si mesmo mais do que tudo, lançaram os germes da Revolução Francesa, que causaria ainda mais morte e destruição.  Prezados leitores, fica para nós, no século XXI, uma pergunta: glória para quê? Para a satisfação dos anseios narcisísticos de um tirano, como o rei-Sol, ou para a consecução de algo transcendente ao indivíduo como Leibniz e Fénelon propunham? O que é possível ou provável atualmente? Observem os líderes políticos atuais e julguem vocês mesmos.

Categories: Politica | Tags: , , , , , , , , , , | Leave a comment

Conhecimento para quê?

Pode ser dito que Epicuro e Spinoza, por exemplo, levaram uma vida absolutamente exemplar. Mas essas razões cessam de existir frequentemente nos seus discípulos ou imitadores, os quais, acreditando-se liberados do medo inconveniente de uma Providência que vê tudo e de um futuro ameaçador, dão rédea solta às suas paixões selvagens e voltam sua mente à sedução e à corrupção de outros[…]

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

“Eu sempre começo como um filósofo,” ele disse, “mas sempre acabo como um teólogo” – isto é, ele achava que a filosofia deixava de cumprir seu objetivo se não levasse à virtude e à piedade.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), comentando sobre o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

 

A opinião da maioria sobre o conhecimento é mais ou menos a seguinte: que ele não é forte, nem hegemônico, nem soberano. Tampouco ela pensa que é a mesma coisa que comanda o homem, mas que, frequentemente, mesmo em posse do conhecimento, não é o conhecimento quem o comanda, mas alguma outra coisa, ora a ira, ora o prazer, ora a dor, às vezes o amor, muitas vezes o medo. Ela praticamente considera o conhecimento como se fosse um escravo, arrastado por aí por tudo o mais. Porventura, a sua opinião se coaduna com essa, ou b, você crê que o conhecimento é belo e capaz de comandar o homem, e que, se alguém souber o que é bom e o que é mau, não será dominado por nenhuma outra coisa a ponto de praticar algo diferente do que o conhecimento prescrever, sendo a inteligência suficiente para socorrer o homem?

Trecho da tradução de Daniel R. N. Lopes do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.) em que o personagem Sócrates fala

 

    Prezados leitores, eu venho aqui explicando uma parte das ideias de filósofos e pensadores como Anthony Collins (1676-1729), Baruch Spinoza (1632-1677), Anthony Ashley Cooper, o terceiro Conde de Shaftesbury (1671-1713) e o ainda vivo Sam Harris (1967-, todos deliberada ou inadvertidamente minando as bases da religião no Ocidente. A Bíblia não pode ser vista como fonte de conhecimentos factuais, no máximo como um conjunto de histórias míticas com algum valor moral, para quem está inserido na cultura judaico-cristã. O homem não tem livre arbítrio pelo fato de a consciência ser um dos processos que se desenrolam na mente do homem e portanto, nossas escolhas morais não dependem exclusivamente de nós e da nossa relação especial com Deus, mas do contexto em que atuamos como indivíduos. Os conceitos de bem e mal não são impostos por uma divindade que dita o que deve e o que não deve ser feito, mas são fruto da experiência do homem tentando sobreviver na Terra e organizando-se em grupos sociais para melhor enfrentar os concorrentes na luta por recursos escassos. Todas essas ideias saíram da cabeça dos pensadores que no século XVII começaram a pensar livres das amarras da religião cristã e continuam agindo da mesma forma no século XXI. Nesta semana, meu objetivo será estabelecer um contraponto a esse livre-pensar triunfante, nas figuras de Leibniz e de Sócrates (470 a.C.- 399 d.C).

    Não que Leibniz fosse avesso ao exercício da reflexão. Ao contrário, o homem era um polímata e o rei da Prússia, Frederico o Grande, definiu-o como uma academia nele mesmo. Inventou o cálculo infinitesimal na mesma época que Isaac Newton, mas publicou seus achados antes e ficou com os louros da criação, mesmo porque sua notação era melhor. Deu conselhos infrutíferos ao rei da França Luís XIV que lançasse expedições militares para conquistar o Egito e não invadisse os principados alemães. Talvez se o rei-Sol tivesse escutado a França não teria ido à falência por suas guerras europeias, e teria se transformado na potência imperial em que se transformou a Inglaterra. O que é importante para os fins deste humilde artigo é que ele refletiu sobre o conflito entre a religião e a racionalidade que explodia na Europa com a física newtoniana e com a concepção abstrata de Spinoza de um Deus indiferente que estava presente em tudo como a própria substância das leis que regiam o funcionamento da Natureza.

    Conforme os trechos que abrem este artigo, Leibniz preocupava-se com as consequências das seguidas derrotas que a religião sofria para a ciência, que descobria a ordem do Universo sem que fosse necessário pressupor a existência de nenhuma entidade metafísica. O livre-pensar, caso se tornasse prática corriqueira, trazia sérios riscos à ordem e à paz social. Uma coisa era que seres íntegros como Epicuro e Spinoza, seres dotados de grande capacidade intelectual, mas aliada a uma alta consciência moral, filosofassem fora de uma estrutura teológica. Eles não causariam mal nenhum, porque neles o conhecimento era um meio de chegar à verdade, mas também à virtude: conhecer para ser um ser humano melhor, adaptado à vida em sociedade e capaz de contribuir para ela.

    Outra coisa muito diferente era que indivíduos que não cultivavam a virtude, mas imitavam os livre-pensadores e assim se desfaziam das restrições comportamentais impostas pela religião, fizessem uso da sua liberdade recém-conquistada para atuar de acordo com suas paixões e ambições: afinal, se não era mais crível que os maus iriam para o inferno e os bons para o céu, para que preocupar-se em agir moralmente se tal agir me prejudicaria individualmente? Nesse sentido, Leibniz via com maus olhos as disputas ideológicas entre católicos e protestantes: elas não levavam ao bem nem à piedade, ao contrário tiravam credibilidade da religião, fomentavam a discórdia entre as pessoas e por isso minavam a sociedade, incitando à violência.

    Em suma, para Leibniz filosofar era saudável se os voos da mente humana não levassem o indivíduo para longe demais da virtude e do senso do divino, de uma autoridade transcendente ao qual todos deveriam se submeter. Esse enfoque em colocar o conhecimento dentro de limites éticos já era uma preocupação do Sócrates retratado por Platão no diálogo Protágoras. O conhecimento deve ser o senhor do homem, deve ser a fundação na qual seus atos são praticados, ele não pode vir a reboque das paixões humanas, ser um mero espectador passivo delas ou lhes servir de disfarce, como tantas vezes acontecia nos debates públicos em Atenas, quando os argumentos eram elaborados não em busca da verdade, mas do convencimento da plateia.

    Prezados leitores, em seu capítulo dedicado a Leibniz, Will e Ariel Durant apontam como ele exemplificou uma sapiência em relação aos limites e os perigos da razão e da liberdade, em contraposição à idolatria da razão que foi a pedra de toque do Iluminismo no século XVIII, em seu afã de destruir todas as bases da religião, para que o homem, livre das falsas superstições, dos rituais anacrônicos, se dedicasse a entender os mecanismos do universo e assim obtivesse o conhecimento para tornar a vida de todos melhor. No final das contas, a pergunta que Leibniz se colocou, continua válida, considerando que o mesmo conhecimento que nos deu o progresso material e que tornou a vida de qualquer humilde gari no século XXI mais confortável e mais segura do que a vida do rei Luís XIV ou do próprio Leibniz no século XVII, também nos deu as armas nucleares que pesam sobre o nosso futuro. Conhecimento para quê? Para levar uma vida virtuosa ou para concretizar nossas ambições? A resposta pode ser pensada livremente.

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment

O arbítrio é livre?

Reflita sobre o contexto em que sua próxima decisão será tomada. […] Você não escolheu seus pais, você não escolheu seus genes, você não escolheu as interações ou o efeito que eles tiveram sobre você, o efeito de todos os acontecimentos e conversas e exposições a ideias que você teve ao longo da vida.

Trecho da palestra sobre o livre-arbítrio proferida por Sam Harris (1967-) filósofo e neurocientista americano em 25 de março de 2012 na Califórnia

Somos livres na medida em que nos é permitido expressar nossa natureza ou nossos desejos sem obstáculos externos; não somos livres para escolher nossa própria natureza ou nossos desejos; nós somos os nossos desejos. “Não há em nenhuma mente a vontade absoluta ou o livre-arbítrio, mas a mente é determinada de forma a querer isso ou aquilo por uma causa que por sua vez é determinada por outra causa, e esta por sua vez por outra, e assim infinitamente.” ”Os homens consideram-se livres porque eles têm consciência das suas volições e desejos, mas ignoram as causas que os levam a querer e desejar”.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu apresentei a vocês Sam Harris, que faz parte do grupo dos Novos Ateístas, os quais procuram combater a religião, que consideram como uma ideologia nefasta, questionando os argumentos que a sustentam. Entre esses argumentos está o de que a religião é a única fonte sólida da moralidade humana, tratado em “Céu e inferno para quê?”. Nesta semana tratarei de outro argumento, o do livre-arbítrio, também abordado pelo filósofo e neurocientista americano. Mas em fazendo isso, aproximarei as ideias buriladas no século XXI, à luz das descobertas da neurociência, das ideias de um filósofo do século XVII, Baruch Spinoza, criadas no contexto das ferozes disputas entre católicos e protestantes, e das disputas mais gerais entre aqueles que viam a Bíblia como a palavra de Deus e aqueles que a respeitavam no máximo como uma fonte de ensinamento moral por meio das suas narrativas. Meu objetivo é o de revelar a semelhança entre a concepção de um e de outro.

    Um dos pressupostos fundamentais da religião cristã, explicado pelo mito de Adão e Eva, é que o homem é livre para escolher entre o bem e o mal, e se escolhe o mal comete pecado e deve ser punido como retribuição. Na palestra que Sam Harris proferiu há mais de 10 anos nos Estados Unidos, ele desconstrói o conceito de livre-arbítrio com base nas evidências das imagens de ressonância magnética do cérebro quando ele está em ação. Essas imagens revelam que quando tomamos consciência daquilo que decidimos fazer, a decisão já havia sido tomada antes na mente, o que é demonstrado pelo acionamento prévio do córtex cerebral. Nossa mente não para de funcionar, ela está a todo momento produzindo pensamentos, imagens e memórias sobre os quais não temos controle: não sabemos o que iremos pensar, imaginar ou lembrar daqui a pouco, a única coisa que nos é possível é observar esses processos se desenrolando como seres conscientes que somos.

    Ora, conforme o trecho que abre este artigo, Spinoza chegou a essa mesma conclusão não por ter acesso aos resultados de testes aplicados a pessoas submetidas a exames de mapeamento da atividade cerebral, mas por conceber o homem como um ser imerso na Natureza e, portanto, submetido às suas leis inexoráveis. A mente humana é um conjunto de desejos e volições que tem suas próprias causas, independentes da consciência humana: nós não escolhemos desejar algo, já que o objeto do nosso desejo depende da nossa natureza.

    Daí que tanto Spinoza quanto Harris consideram que o homem na verdade não escolhe nada, porque ele não escolhe sua própria natureza, não escolhe os tipos de pensamentos que ele normalmente tem, não escolhe as interações com o meio ambiente, o modo como as experiências moldam as emoções e as ideias. Harris fala dos genes, um conceito biológico que obviamente Spinoza não conhecia, mas que poderia ser colocado sob o guarda-chuva da natureza mencionada pelo filósofo holandês.

    Qual a repercussão da falta de livre-arbítrio para a moralidade? Será que se o mito da escolha entre o bem e o mal não se sustenta isso significa que não podemos agir eticamente e não podemos ser responsabilizados pelos danos que causamos às outras pessoas pelos nossos atos? Nem Spinoza nem Harris consideram a ética abolida por isso. Segundo explicam Will e Ariel Durant em “A Era de Luís XIV”, Spinoza observa que a exortação dos moralistas, o estigma da condenação pública, a punição das autoridades, tudo isso serve como experiência para o indivíduo e é mais um dos fatores que contribuem para moldar seus desejos e determinar sua vontade. Harris, por sua vez, procura extrair as consequências da constatação da inexistência do livre-arbítrio para a formulação de políticas públicas de combate à criminalidade.

    Se o homem não escolhe seus genes, seus pais, o ambiente em que ele foi criado, conforme Harris fala no trecho da palestra que abre este artigo, ter ou não desvios comportamentais é uma questão de sorte ou falta dela, e a pessoa não pode ser castigada a título de retribuição, já que em última análise ela não tem culpa de ser o que é, de desejar o que deseja, de imaginar o que imagina, de querer o que quer, de pensar o que pensa. Colocar um indivíduo na cadeia por matar alguém não deve ser ato de vingança, mas uma tentativa de mitigação de danos: se a pessoa encarcerada não praticar mais atos homicidas a sociedade ficará melhor. Nesse sentido, saber que o ser humano segue sua própria natureza deve ser fonte de empatia dos mais afortunados, que não sofrem de psicopatias, de compulsões, de vícios, pelos menos afortunados, que fazem coisas imorais porque está na sua natureza fazê-lo. Em suma, não escolhemos escolher o que escolhemos: na medida em que escolhemos o mal devemos ser punidos para o bem da sociedade, mas na medida em que não escolhemos escolher o mal não devemos ser objeto de ódio e vingança, mas de entendimento e remediação.

    Prezados leitores, Sam Harris coloca-se como um ateu, Spinoza não se via como ateu, mas foi descrito como um ateu intoxicado por Deus, porque ele considerava que Deus era a natureza como um todo e sua ordem imutável. Não sei se Harris leu Spinoza e se eu estivesse presente a uma palestra dele eu certamente leria as palavras do filósofo holandês para perguntar-lhe se ele reconhecia suas ideias sobre a inexistência de livre-arbítrio. De qualquer forma, a conclusão a que chegaram é mais um argumento que solapa as concepções religiosas tradicionais. Será que ter uma consciência apenas espectadora, mas não produtora dos processos mentais, diminui a nossa dignidade humana? Deixo a pergunta para a reflexão de vocês.  A mensagem final

Categories: O espírito da época | Tags: , , , , , , , , | Leave a comment