O arbítrio é livre?

Reflita sobre o contexto em que sua próxima decisão será tomada. […] Você não escolheu seus pais, você não escolheu seus genes, você não escolheu as interações ou o efeito que eles tiveram sobre você, o efeito de todos os acontecimentos e conversas e exposições a ideias que você teve ao longo da vida.

Trecho da palestra sobre o livre-arbítrio proferida por Sam Harris (1967-) filósofo e neurocientista americano em 25 de março de 2012 na Califórnia

Somos livres na medida em que nos é permitido expressar nossa natureza ou nossos desejos sem obstáculos externos; não somos livres para escolher nossa própria natureza ou nossos desejos; nós somos os nossos desejos. “Não há em nenhuma mente a vontade absoluta ou o livre-arbítrio, mas a mente é determinada de forma a querer isso ou aquilo por uma causa que por sua vez é determinada por outra causa, e esta por sua vez por outra, e assim infinitamente.” ”Os homens consideram-se livres porque eles têm consciência das suas volições e desejos, mas ignoram as causas que os levam a querer e desejar”.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu apresentei a vocês Sam Harris, que faz parte do grupo dos Novos Ateístas, os quais procuram combater a religião, que consideram como uma ideologia nefasta, questionando os argumentos que a sustentam. Entre esses argumentos está o de que a religião é a única fonte sólida da moralidade humana, tratado em “Céu e inferno para quê?”. Nesta semana tratarei de outro argumento, o do livre-arbítrio, também abordado pelo filósofo e neurocientista americano. Mas em fazendo isso, aproximarei as ideias buriladas no século XXI, à luz das descobertas da neurociência, das ideias de um filósofo do século XVII, Baruch Spinoza, criadas no contexto das ferozes disputas entre católicos e protestantes, e das disputas mais gerais entre aqueles que viam a Bíblia como a palavra de Deus e aqueles que a respeitavam no máximo como uma fonte de ensinamento moral por meio das suas narrativas. Meu objetivo é o de revelar a semelhança entre a concepção de um e de outro.

    Um dos pressupostos fundamentais da religião cristã, explicado pelo mito de Adão e Eva, é que o homem é livre para escolher entre o bem e o mal, e se escolhe o mal comete pecado e deve ser punido como retribuição. Na palestra que Sam Harris proferiu há mais de 10 anos nos Estados Unidos, ele desconstrói o conceito de livre-arbítrio com base nas evidências das imagens de ressonância magnética do cérebro quando ele está em ação. Essas imagens revelam que quando tomamos consciência daquilo que decidimos fazer, a decisão já havia sido tomada antes na mente, o que é demonstrado pelo acionamento prévio do córtex cerebral. Nossa mente não para de funcionar, ela está a todo momento produzindo pensamentos, imagens e memórias sobre os quais não temos controle: não sabemos o que iremos pensar, imaginar ou lembrar daqui a pouco, a única coisa que nos é possível é observar esses processos se desenrolando como seres conscientes que somos.

    Ora, conforme o trecho que abre este artigo, Spinoza chegou a essa mesma conclusão não por ter acesso aos resultados de testes aplicados a pessoas submetidas a exames de mapeamento da atividade cerebral, mas por conceber o homem como um ser imerso na Natureza e, portanto, submetido às suas leis inexoráveis. A mente humana é um conjunto de desejos e volições que tem suas próprias causas, independentes da consciência humana: nós não escolhemos desejar algo, já que o objeto do nosso desejo depende da nossa natureza.

    Daí que tanto Spinoza quanto Harris consideram que o homem na verdade não escolhe nada, porque ele não escolhe sua própria natureza, não escolhe os tipos de pensamentos que ele normalmente tem, não escolhe as interações com o meio ambiente, o modo como as experiências moldam as emoções e as ideias. Harris fala dos genes, um conceito biológico que obviamente Spinoza não conhecia, mas que poderia ser colocado sob o guarda-chuva da natureza mencionada pelo filósofo holandês.

    Qual a repercussão da falta de livre-arbítrio para a moralidade? Será que se o mito da escolha entre o bem e o mal não se sustenta isso significa que não podemos agir eticamente e não podemos ser responsabilizados pelos danos que causamos às outras pessoas pelos nossos atos? Nem Spinoza nem Harris consideram a ética abolida por isso. Segundo explicam Will e Ariel Durant em “A Era de Luís XIV”, Spinoza observa que a exortação dos moralistas, o estigma da condenação pública, a punição das autoridades, tudo isso serve como experiência para o indivíduo e é mais um dos fatores que contribuem para moldar seus desejos e determinar sua vontade. Harris, por sua vez, procura extrair as consequências da constatação da inexistência do livre-arbítrio para a formulação de políticas públicas de combate à criminalidade.

    Se o homem não escolhe seus genes, seus pais, o ambiente em que ele foi criado, conforme Harris fala no trecho da palestra que abre este artigo, ter ou não desvios comportamentais é uma questão de sorte ou falta dela, e a pessoa não pode ser castigada a título de retribuição, já que em última análise ela não tem culpa de ser o que é, de desejar o que deseja, de imaginar o que imagina, de querer o que quer, de pensar o que pensa. Colocar um indivíduo na cadeia por matar alguém não deve ser ato de vingança, mas uma tentativa de mitigação de danos: se a pessoa encarcerada não praticar mais atos homicidas a sociedade ficará melhor. Nesse sentido, saber que o ser humano segue sua própria natureza deve ser fonte de empatia dos mais afortunados, que não sofrem de psicopatias, de compulsões, de vícios, pelos menos afortunados, que fazem coisas imorais porque está na sua natureza fazê-lo. Em suma, não escolhemos escolher o que escolhemos: na medida em que escolhemos o mal devemos ser punidos para o bem da sociedade, mas na medida em que não escolhemos escolher o mal não devemos ser objeto de ódio e vingança, mas de entendimento e remediação.

    Prezados leitores, Sam Harris coloca-se como um ateu, Spinoza não se via como ateu, mas foi descrito como um ateu intoxicado por Deus, porque ele considerava que Deus era a natureza como um todo e sua ordem imutável. Não sei se Harris leu Spinoza e se eu estivesse presente a uma palestra dele eu certamente leria as palavras do filósofo holandês para perguntar-lhe se ele reconhecia suas ideias sobre a inexistência de livre-arbítrio. De qualquer forma, a conclusão a que chegaram é mais um argumento que solapa as concepções religiosas tradicionais. Será que ter uma consciência apenas espectadora, mas não produtora dos processos mentais, diminui a nossa dignidade humana? Deixo a pergunta para a reflexão de vocês.  A mensagem final

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Céu e inferno, para quê?

[…] a virtude consiste em uma hexis, em uma espécie de disposição que se adquire no processo de formação intelectual e moral do indivíduo. […] difícil é adquirir a virtude, mas, uma vez em posse dela, é fácil conservá-la , pois se trata de uma condição interna estável conquistada com esforço pelo indivíduo. […] o desenvolvimento da filosofia moral internaliza a concepção de areté (virtude), em oposição a uma visão arcaica, segundo a qual acidentes externos incidem diretamente sobre a condição de um agente enquanto um indivíduo “bom” ou “mau”.

Trecho do ensaio “A incursão de Sócrates na makrologia”, escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Ele considerava abjeto e covarde ser virtuoso por causa da esperança do paraíso ou do medo do inferno; a virtude é real somente se praticada por ela mesma.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo inglês Anthony Ashley Cooper, o terceiro Conde de Shaftesbury (1671-1713)

Se Deus não existe, por que achar que temos obrigações morais uns com os outros, quem ou o que nos impõem obrigações morais?

Trecho falado por William Lane Craig (1949-) teólogo americano em um debate com Sam Harris (1967-) filósofo e neurocientista americano

[…] as boas maneiras e a moral exigiam o apoio público à igreja Cristã. Se a filosofia poderia retirar das pessoas a fé na justiça divina por trás das injustiças e dos sofrimentos aparentes da vida, o que ela poderia oferecer para sustentar as esperanças e a coragem dos homens?

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o filósofo inglês John Locke (1632-1704)

    Prezados leitores, na semana passada citei Anthony Collins que, no final do século XVII e início do século XVIII, propôs o livre-pensamento para analisar qualquer coisa, inclusive a religião. Essa interferência da razão abriu uma fresta que se transformou em um grande pórtico por onde entraram questionamentos aos dogmas religiosos que acabaram por minar a credibilidade intelectual da fé cristã. Nesta semana, tratarei de um dos pontos da disputa entre crentes e não crentes que é a questão da moralidade. Como explicar a origem da moralidade e como impô-la para o bem da convivência social? Meu objetivo será o de explorar a pertinência das preocupações éticas para a justificação da necessidade ou não da religião.

    A esse respeito, há a princípio duas posições possíveis. De um lado, pessoas como William Lane Craig que, conforme o trecho que abre este artigo, consideram que o homem consegue ser um ser ético porque ele foi criado à imagem e semelhança de Deus, que lhe impôs o que é certo e o que é errado. Sem tal imposição de uma autoridade exterior, o homem não saberia o que é bom e o que é mal e não teria motivo para agir de maneira ética com seus pares porque ninguém o obrigaria a sacrificar seus interesses individuais em prol do coletivo. De outro lado, há filósofos como Anthony Ashley Cooper, que era considerado neoplatonista, pois considerava que o homem tem um senso moral natural. Nesse sentido, a única verdadeira virtude não é aquela imposta pelo medo das punições eternas do inferno ou pela esperança no gozo das benesses do paraíso. É aquela que é interna ao homem, e por ser assim é muito mais perene do que qualquer ordem imposta por um Deus juiz.

    Considerando as ideias de Sócrates sobre a virtude expostas no diálogo Protágoras, fica claro porque o terceiro Conde de Shaftesbury foi considerado como um partidário da reafirmação das concepções platônicas. Conforme o trecho que abre este artigo, para Sócrates o que fazia um homem bom ou mal não eram acontecimentos externos, que determinavam o sucesso ou insucesso das suas ações. A virtude era um hábito adquirido pela experiência acumulada e pelo esforço do homem que aprendia a praticar atos bons e uma vez introjetada essa prática cotidiana, o homem acabava internalizando a virtude depois de ter chegado ao conhecimento sobre como agir de maneira virtuosa.

    Sob essa perspectiva, o que determinava a moralidade de um ato não era o quanto ele trazia de prosperidade material, de conquista de poder, de glórias, do apoio das pessoas, mas o quanto ele revelava em si o conhecimento do verdadeiro bem. Para Sócrates, nem tudo o que é bem-sucedido no mundo é o certo e o sucesso no mundo material não é indicativo da moralidade do ato.

    Se a verdadeira virtude é internalizada como hábito humano, para quê externalizá-la em figuras míticas punitivas, em narrativas sobre o céu e o inferno que recompensa os justos e pune os injustos? Essa noção de ética intrínseca ao homem, como ser que busca o que é verdadeiro e o que é bom será ressignificada por cientistas como Sam Harris, que debateu com William Lane Craig, à luz da teoria da evolução. O ser humano é um primata que se desenvolveu ao longo de milhares de anos e uma das chaves da sua sobrevivência, apesar das suas limitações físicas comparativamente a outros animais com o quais conviveu e competiu por comida, foi justamente sua capacidade de organizar-se em sociedade para juntar esforços contra os inimigos comuns. E a organização social exigiu regras de convivência sobre o que fazer e o que não fazer de modo que ficar juntos fosse benéfico para todos, isto é, garantisse a possibilidade de sobrevivência e da reprodução ao menos da maioria dos membros do grupo.

    Assim, para pensadores como Sam Harris, não é preciso recorrermos à religião para explicarmos a moralidade humana, basta analisarmos o efeito das pressões da seleção natural sobre o cérebro humano. O homo sapiens é capaz de ser virtuoso não porque Deus manda, mas porque tal característica revelou-se uma vantagem comparativa na luta por um lugar ao Sol no planeta Terra. Nenhuma explicação sobrenatural é necessária, basta o cotejamento das evidências e a aplicação da razão a elas, como ensinava Anthony Collins quase 400 anos antes de Harris e dos seus pares ateus, como o biólogo Richard Dawkins (1941-) e o jornalista já morto Christopher Hitchens (1949-2011).

    E no entanto, é preciso reconhecermos que há uma terceira via possível, entre os que defendem a religião, como fundamento da vida do homem, e os que a rejeitam como desnecessária e absurda do ponto de vista racional. Conforme o trecho que abre este artigo, o filósofo John Locke tinha suas dúvidas filosóficas sobre as proposições da Bíblia, muitas das quais não se sustentavam em face da aplicação das regras do livre-pensamento. Mas, mesmo assim, por razões pragmáticas, John Locke considerava que a religião deveria ser o esteio da vida social, porque a narrativa moral da punição dos injustos e da recompensa aos justos no dia do Juízo Final redimia as injustiças e os sofrimentos aos olhos daqueles que eram suas vítimas principais, isto é, os pobres. A religião era necessária para dar conforto espiritual àqueles que mesmo que agissem virtuosamente seriam malsucedidos na maior parte das vezes porque estavam no ponto mais baixo da escala social. Sem tal conforto, os pobres se revoltariam com sua falta de bens materiais, de poder e de glória. Para o sensato John Locke, a religião poderia não fazer sentido como conjunto de afirmações sobre o mundo exterior objeto das nossas percepções, mas era necessária para a manutenção da coesão e a viabilização da vida em sociedade.

    Prezados leitores, será que a fartura material inédita de que gozamos em pleno século XXI torna a religião cada vez mais irrelevante? Ou ela é cada vez mais relevante em um mundo disperso que carece de grandes narrativas que deem significado à existência? Céu e inferno para quê atualmente? Cada um que ache uma resposta.

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Aloha

[…] a “verdade” não se coloca como um fim nesse tipo de exercício intelectual, justamente porque não é possível inquirir o próprio poeta sobre o que ele quis dizer com tal ou tal verso; por conseguinte, “parte deles afirma que o poeta pensa tal coisa, enquanto outra parte, que ele pensa coisa diferente. Ao instituir uma cisão indelével entre “verdade” e enunciado poético, a exegese poética é confinada no âmbito da opinião, da verossimilhança, admitindo, consequentemente, a coexistência de diferentes versões sobre um mesmo poema.

Trecho do ensaio “A incursão de Sócrates na makrologia”, escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Ele definia o livre-pensamento como o “uso do entendimento na tentativa de encontrar o significado de qualquer proposição, considerando a natureza das evidências contra ela e a favor dela, e no julgamento da proposição de acordo com a aparente força ou fraqueza das evidências… Não há outra maneira de descobrir a verdade. A diversidade de crenças e as interpretações contraditórias de passagens da Bíblia nos levam a aceitar o julgamento da razão; a qual outro tribunal poderíamos recorrer, a não ser que fosse ao arbítrio da força?

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o deísta inglês Anthony Collins (1676-1729), autor do livro “Discurso sobre o Livre-Pensamento” (1713)

Podemos debater de maneira apaixonada, podemos ter discussões acaloradas, defender de maneira corajosa aquilo com o quê nos importamos, mas faça isso com aloha, faça isso com respeito, compaixão e amor.

Trecho da mensagem no dia de ação de graças, em 24 de novembro de 2022, gravada por Tulsi Gabbard (1981-), ex-membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos e ex-candidata à presidência do país em 2020

Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não, você vai cair naquela história do produtor rural que começa a dar tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. As que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma.

Trecho da entrevista dada pelo governador de Minas Gerias, Romeu Zema ao jornal O Estado de São Paulo em 6 de agosto

    Prezados leitores, na semana passada expus neste meu humilde espaço o conceito de philia desenvolvido no diálogo Protágoras e dei um exemplo de sua aplicação prática no século XVII, quando Isaac Newton (1642-1727) propôs sua teoria da gravitação universal no livro Philosophiae Naturalis Principia Matematica e ao sofrer críticas dos seus colegas da Royal Society publicou uma segunda edição do livro esclarecendo alguns pontos, especialmente o que ele propunha a respeito do conceito de gravitação e o que ele não se atrevia a dizer sobre ela. Nesta semana, a philia dá lugar a aloha, que quer dizer amor, afeição e delicadeza na língua dos havaianos. Pode ser que em certos tipos de discussão não seja possível chegar a um consenso em torno de uma verdade aceita por todos os participantes, mas mesmo que não haja acordo, é preciso cultivarmos a virtude da aloha para concordarmos em discordar e assim podermos futuramente discutir novamente.

    No diálogo Protágoras há um exemplo de discussão em que o máximo a que se pode almejar é a verossimilhança, mas jamais à verdade compartilhada pelos amigos. Conforme o trecho que abre este artigo, esse é o caso da exegese poética, isto é, da interpretação de poemas, o que fazia parte da educação dos gregos, que liam Hesíodo (O Trabalho e os Dias) e Homero (A Ilíada e A Odisseia), para citar alguns dos mais famosos. A verossimilhança aqui era a regra pelo fato de ser impossível pedir ao poeta que esclarecesse o que ele queria dizer em determinado trecho, então não havia um ponto de apoio firme para sustentar uma proposição. Era possível basear-se em uma ou outra palavra do texto, fazer associações entre um trecho e outro, mas no final das contas, uma interpretação era tão válida quanto a outra porque, na falta de uma instância superior julgadora que apontasse o significado autêntico, as diferentes versões sobre o sentido do poema eram irredutíveis a um denominador comum.

    A essa mesma conclusão chegaram os partidários do deísmo, doutrina que considera a razão como a única via capaz de assegurar a existência de Deus. No caso dos deístas, seus esforços exegéticos concentraram-se na Bíblia. De novo não havia a quem recorrer para o esclarecimento das contradições dos textos bíblicos, do sentido literal ou metafórico de suas passagens. O que fazer? Agir como os fanáticos religiosos fizeram durante as guerras de religião que abalaram a Europa desde o advento da reforma protestante no século XV e alegar que a Bíblia era a palavra de Deus e que eles estavam inspirados por Deus para interpretá-la e divulgá-la aos crentes? Como resolver as disputas entre exegetas dos textos bíblicos que propunham interpretações totalmente antagônicas? Quem era o intérprete autêntico?

    Conforme o trecho citado acima, o filósofo deísta Anthony Collins propôs uma solução a que ele chamou de livre-pensamento, que nada mais era do que valer-se das evidências, ponderá-las, cotejá-las e aplicando a razão, chegar a uma conclusão que podia não ser infalível, mas era verossímil, pois fundada na boa-fé daquele que se propôs a investigar o assunto. A verdadeira natureza das coisas divinas não poderia ser estabelecida com a certeza dos dogmas, mas poderia ser objeto de uma tentativa bem-intencionada do sujeito racional.

    Em última análise, a boa-fé e as boas intenções são o que importam quando se sabe que sempre haverá discordância sobre determinadas proposições e que cada uma das partes terá sua própria opinião. Sem essas duas virtudes, não só não é possível chegar à verdade como também é impossível às partes concordarem em discordarem, o que torna qualquer troca de ideias uma experiência amarga, pois cada um dos participantes se sentirá desrespeitado e mal interpretado pelo outro. Sob essa perspectiva, a aloha de que fala Tulsi Gabbard no trecho que abre este artigo resume a boa-fé e as boas intenções. Podemos defender nosso ponto de vista, nossos valores de maneira apaixonada e não arredar pé da nossa opinião, mas ao mesmo tempo precisamos ouvir o outro, perceber as diferenças entre nosso lado e o lado oposto, identificar a origem delas, e em assim fazendo entender a opinião divergente mesmo que não concordemos com ela.

    Essa prática da aloha está muito difícil nos tempos atuais, em que as trocas de ideia se dão nas plataformas digitais. A repercussão das palavras do governador Romeu Zema, que falou sobre a formação de um Consórcio Sul-Sudeste para defender os interesses da região no Congresso Nacional, é emblemática nesse sentido. O Ministro da Justiça, Flávio Dino, o acusou de ser traidor da Constituição, por estabelecer diferenças entre brasileiros, e portanto, traidor da pátria. Marília Arraes o acusou de ser fascista. Será que esses dois políticos da esquerda tinham boas intenções ao criticar a opinião de Zema, ou estavam apenas explorando politicamente uma questão espinhosa no Brasil para ganhar pontos com suas bases eleitorais?

    Afinal, pode-se discordar da proposição do governador de Minas Gerais de que os Estados dos Sul e Sudeste devam se unir para conseguir aprovar pautas que lhes beneficiem em Brasília. E pode-se afirmar que a metáfora das vaquinhas produtivas e não produtivas foi uma escolha infeliz, pelas conotações da palavra vaca na língua portuguesa. Mas acusá-lo de estabelecer diferenças entre os brasileiros é uma distorção de má-fé, pois as diferenças existem, independentemente da vontade do senhor Zema. Conforme ele citou na entrevista, a região concentra 70% do PIB e 56% da população, mas recebe de volta um valor menor daquele que arrecada. Flávio Dino e Marília Arraes podem considerar que a distribuição da arrecadação tributária deve continuar discriminando contra os Estados do Sul e do Sudeste e eles têm todo o direito de ter sua opinião, mas estigmatizar aqueles que se opõem a esse regime é distorcer os argumentos da parte contrária para fins politiqueiros, em mais um round do eterno Fla-Flu em que a política brasileira vive.

    Nem Dino nem Arraes se deram ao trabalho de propor argumentos em prol da distribuição desigual da arrecadação tributária para a solução das disparidades regionais. Na entrevista, Zema sustentou que há pobreza também nos Estados do Sul e Sudeste, que justificam investimentos públicos. Dino e Arraes poderiam ter exposto seus próprios argumentos e assim enriqueceriam o debate, impelindo o governador a contra-argumentar em prol da inconveniência de mandar mais e mais do que se arrecada nas regiões mais ricas do Brasil para as regiões mais pobres. Preferiram fazer ataques pessoais, sob o manto da indignação moral com a “ultra-direita fascista”.

    Prezados leitores, se a philia é reduto de cientistas do nível de Leibniz e de Newton em sua busca pela verdade, que ao menos possamos cultivar a aloha em nossas trocas de opinião na arena política.

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Good philia

[…] a finalidade do diálogo não seria simplesmente levar o adversário a se contradizer, deixando-o em situação embaraçosa diante de seu próprio público, mas buscar esclarecer o problema em questão, em vista do conhecimento, ainda que o resultado não fosse plenamente satisfatório. […]Segundo Pródico, quando a relação entre os interlocutores é mediada pelo sentimento de philia, uma discórdia entre eles sobre algum ponto na discussão, não implica que um almeja derrotar o outro; pelo contrário, a discórdia é natural e está na base de qualquer investigação comum que vise a um consenso. […]No caso de uma relação de inimizade entre os interlocutores, todavia, a discórdia se converte, de pronto, em disputa, cujo fim é antes derrotar o adversário, sem qualquer motivação benevolente de um para com o outro.

Trechos retirados do ensaio “A Crise do diálogo e a inversão dos papéis” escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Nós temos certeza que as formas e as qualidades das coisas podem ser mais bem explicadas pelos princípios da mecânica, e que todos os efeitos da Natureza são produzidos pelo movimento, pela figura, pela textura e pelas várias combinações deles; e que não há necessidade de recorrer a formas inexplicáveis e a qualidades ocultas, como um refúgio contra a ignorância.

Trecho da carta do secretário da Royal Society, Henry Oldenburg (1615-1677) ao filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), sobre os objetivos da academia de ciências da Inglaterra criada em 15 de julho de 1662

    Prezados leitores, é meu objetivo neste humilde espaço utilizar o pouco que sei da sabedoria acumulada ao longo da história para entender os problemas que enfrentamos hoje e propor soluções. Na semana passada, recorri ao filósofo inglês John Locke (1632-1704) para falar sobre a importância de cultivar hábitos saudáveis que nos permitam criar uma reserva cognitiva e assim enfrentarmos melhor o fantasma da demência que nos rondará cada vez mais quanto mais vivermos. Nesta semana, tentarei estabelecer a trilha do diálogo saudável, isto é, aquele que não descamba para a troca de insultos e de ofensas pessoais, mas busca o consenso para chegar a uma aproximação da verdade. Para isso, recorrerei novamente às lições dos diálogos platônicos nos quais o filósofo Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) aparece como personagem e procurarei um exemplo histórico da concretização desse ideal de discussão frutífera de ideias, que passa ao largo das disputas ideológicas que infelizmente hoje são a norma nas plataformas digitais.

    No diálogo “Protágoras”, conforme o trecho que abre este artigo incluído em um capítulo que serve de comentário ao conteúdo da obra, é feita uma distinção entre o diálogo de orientação filosófica e o diálogo de orientação agonística. No primeiro, a relação entre os interlocutores é cordial, pois predomina o sentimento de amizade (em grego philia) entre pessoas que têm um objetivo comum: chegar à solução de um problema colocado como objeto da investigação intelectual, seja a definição de um conceito (por exemplo, o que é a virtude?), seja a verificação se uma proposição é verdadeira ou não (por exemplo, as virtudes são todas uma só ou cada uma delas tem sua própria característica?). Para atingir tal meta, os interlocutores, bem dispostos um ao outro, concordam em chegar a um consenso sobre determinadas premissas que servirão como ponto de partida para a discussão. Não há certeza de que o problema posto no início será resolvido e chegar-se-á a uma resposta, mas de qualquer forma o caminho percorrido de mãos dadas pelos participantes do diálogo lhes permitirá perceber suas próprias falhas e aprimorar suas ideias, pois cada um deles ouve o outro e está disposto a aprender com o outro e a ensinar ao outro.

    Ao contrário, no diálogo de orientação agonística, não há o sentimento de philia permeando a troca de ideias, mas a inimizade entre os interlocutores, a qual interfere na discussão, transformando-a em um agon logon, uma contenda verbal. Ausente a boa vontade recíproca, nenhum dos interlocutores está disposto a conceder algo ao outro e a admitir rever suas ideias pela confrontação com ideias alheias. Sendo o interlocutor o inimigo, o objetivo é vencê-lo na disputa, mostrar à plateia que os assiste, em um banquete na casa de alguém ou na ágora, que ele está errado, que ele é ignorante e estúpido. Para isso qualquer arma vale: correções da gramática e do estilo do discurso do outro, ataques à sua conduta na vida pública e privada. O resultado de um agon logon passa ao largo do esclarecimento de algum problema filosófico, concentrando-se na destruição da reputação na sociedade do inimigo que foi incapaz de responder aos argumentos propostos pela parte contrária. No diálogo agonístico há a tese vencedora e a tese perdedora, o que não quer dizer que necessariamente tenha havido um aumento do conhecimento das partes envolvidas.

    Feita a distinção entre um e outro, cabe agora cavoucar na história um exemplo de diálogo filosófico na prática. Ele pode ser encontrado no século XVII sob os auspícios da Royal Society que, conforme o trecho que abre este artigo, tinha como objetivo dar explicações sobre o funcionamento do mundo que fossem livres de superstições, de agentes invisíveis e inexplicáveis, mas que tivessem como foco as relações de causa e efeito ancoradas na percepção e descrição dos fenômenos naturais. E assim os membros da Royal Society fizeram, utilizando como veículo uma publicação própria, The Philosophical Transactions of the Royal Society, iniciada em 1665, que recebia e solicitava contribuições de filósofos e cientistas. Além de promover discussões por meio da sua revista, a Royal Society atuava como editora, publicando obras científicas. Entre elas, está a Philosophiae Naturalis Principia Matematica, de Isaac Newton (1642-1727), em que o físico e matemático inglês expôs sua teoria da gravitação universal e a demonstrou matematicamente. A polêmica em torno da Principia mostra o diálogo filosófico em ação, para o bem da ciência.

    Houve muitas críticas dirigidas à física newtoniana e destacarei aqui aquela feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), um dos pais do cálculo integral, juntamente com Newton. Para o matemático alemão, a não ser que Newton pudesse explicar o mecanismo de atuação da gravitação no espaço vazio sobre objetos a milhões de quilômetros de distância, a gravitação não poderia ser aceita como nada melhor do que uma palavra, pois ela parecia mais com as forças sobrenaturais tão ao gosto da religião que a Royal Society tinha por objetivo suplantar com suas explicações mecânicas e naturalísticas.

    Como resposta às críticas, na segunda edição de sua obra Newton fez alguns esclarecimentos. Ele admitia não saber a natureza da gravitação, se era uma força que atuava no espaço vazio, se era um agente material ou imaterial, mas defendeu seu sistema com a famosa frase “Non fingo hypotheses” (Eu não invento hipóteses). O que quer que fosse a gravitação, ele descreveu seu comportamento e formulou as leis de acordo com as quais ela atuava, tudo com base na observação dos fenômenos e na aplicação da matemática a tais observações. O resultado era uma teoria que explicava o movimento de todos os objetos no universo e tinha a capacidade de prever a trajetória dos planetas e dos demais corpos celestes. As ressalvas de Leibniz não destruíram a reputação de Newton, nem sua contribuição à física, mas o levaram a esclarecer seu método dedutivo, o que contribuiu para o desenvolvimento da ciência até o século XX.

    Prezados leitores, esperemos que o espírito dos membros da Royal Society, cheio de philia e de vontade de buscar a verdade pela cooperação mútua, seja um dia a regra nas praças digitais do século XXI. Se isso ocorrer, não só contribuiremos para o progresso da civilização pelo aumento do conhecimento, mas evitaremos o holocausto nuclear.

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Bons hábitos

[…] “hábitos trabalham de maneira mais constante e com maior facilidade do que a razão, a qual, quando mais precisamos dela, raramente é consultada de maneira adequada e ainda mais raramente obedecida.”

A questão da educação não é fazer os jovens perfeitos em nenhuma das ciências, mas abrir a mente deles e torná-la apta da melhor maneira para fazer com que ela seja capaz de dedicar-se a alguma ciência, quando os jovens a ela se dedicarem.

Nada faz isso melhor do que a matemática, que dessa maneira penso que deva ser ensinada a todos aqueles que têm o tempo e a oportunidade, não tanto para fazê-los matemáticos como para fazê-los criaturas racionais.

Trechos do livro do filósofo inglês John Locke (1632-1704) retiradas do seu livro “Algumas Reflexões sobre a Educação” de 1693, citados na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Estudos realizados no Brasil e no exterior sugerem que o letramento e outras atividades apreendidas na escola promovem alteração anatômica e funcional do cérebro. Elas estimulariam a formação de conexões entre neurônios e aumentariam a densidade das fibras que transferem informações entre as regiões cerebrais. O neurocientista Yakov Stern, da Universidade Columbia nos Estados Unidos, chamou essa conectividade incrementada do cérebro de reserva cognitiva.

Trecho retirado do artigo “O Peso da Demência”, publicado na revista Pesquisa da FAPESP de julho de 2023

Há um certo fatalismo de que a perda da janela demográfica vai levar à redução de geração de renda. É uma visão dos anos 1980. Isso mudou completamente com a tecnologia, a geração de renda em intangíveis, e novas formas de gerar riqueza.

Trecho de entrevista do economista Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, ao jornal O Globo em 23 de julho

    Prezados leitores, na semana passada abordei a educação sofística, cujo objetivo era preparar os cidadãos para a vida política na Atenas democrática. Falei de Protágoras, de seu pragmatismo e de seu relativismo, contrapondo-o a Sócrates, que fugia das discussões nas assembleias por considerá-las pouco propícias à busca da verdade. Nesta semana, tratarei da educação para o enfrentamento de um problema do século XXI, que adquirirá contornos dramáticos no Brasil, o envelhecimento acelerado da população. Para tanto, vou me valer das contribuições pedagógicas do filósofo John Locke, que de acordo com “A Era de Luís XIV”, tiveram grande influência na Inglaterra e nos Estados Unidos.

    Para Locke, a educação, compreendendo as esferas física, mental e moral, deveria consistir em uma disciplina em prol da virtude. Era preciso cultivar a virtude por meio do controle dos desejos, e a predominância da razão sobre a emoção só se tornaria uma realidade pela repetição de ações virtuosas que inculcassem hábitos no indivíduo que lhe moldassem o caráter. De fato, conforme o trecho que abre este artigo, criar hábitos é muito mais eficaz para garantir que certas coisas sejam feitas do que recorrer ao comando esporádico da razão, que não é digna de confiança quando confrontada às nossas paixões e no mais das vezes rende-se a ela.

   Considerando as três dimensões da educação, hábitos físicos consistiriam em exercícios ao ar livre, abstinência de bebidas alcoólicas, sono suficiente, uma vida frugal que fizessem com que o corpo mantivesse o vigor e a disposição. Hábitos mentais consistiriam na prática do raciocínio matemático de maneira que o indivíduo aprendesse a pensar e assim tivesse condições de continuar aprendendo sempre, independentemente do campo de estudos a que se dedicasse. Finalmente hábitos morais consistiriam na prática do autocontrole que permitisse ao indivíduo enfrentar as vicissitudes da vida sem se desesperar.

   Em suma, a receita de John Locke era o comedimento no comer e beber, a movimentação do corpo, o uso da mente para raciocinar sempre e assim conseguir ter uma mente sã em um corpo são, livres dos excessos daqueles que não cultivam os bons hábitos. É nesse ponto que a lição de Locke pode ser transplantada 430 anos no futuro para podermos responder à pergunta crucial para um país como o Brasil que, de acordo com informações dadas pelo neurologista Paulo Caramelli da Universidade Federal de Minas Gerais à revista da FAPESP, em pouco mais de 20 anos terá dobrado a população de idosos, algo que um país como a França demorou 150 anos para atingir. Diante desse envelhecimento galopante do povo brasileiro, como será possível que o Brasil tenha alguma esperança de conseguir atingir crescimento sustentável e assim melhorar o nível de vida da população? Como envelhecer bem, isto é, sem doenças graves e permanecendo produtivo, isto é, continuando a contribuir para a economia do país?

    A resposta está na pedagogia liberal de John Locke. Afinal, os bons hábitos do filósofo inglês não têm como produto necessário a reserva cognitiva de que fala o neurocientista Yakov Stern, que nada mais é do que uma rede bem conectada de neurônios criada pelo uso constante da mente e por hábitos saudáveis que evitam males como a hipertensão, a obesidade e o diabetes, os quais prejudicam a vascularização cerebral? A chave no Brasil é impedir que o idoso se transforme em um demente e para isso é preciso criar essa reserva cognitiva que permite que o cérebro se torne mais resiliente face às intempéries da idade provecta. Só assim a perda do nosso bônus demográfico, quando o Brasil tinha uma maioria relativa da população em idade para trabalhar, não se transformará em uma tragédia, condenando uma parcela do povo a ser doente, dependente e improdutiva.

    Prezados leitores, seguindo a velha receita do século XVII em prol da nossa poupança mental, vejamos o envelhecimento da população sob a ótica positiva de Ricardo Henriques, citado na abertura deste artigo:  ele poderá ser uma oportunidade de mudarmos os paradigmas econômicos, se conseguirmos estender a vida produtiva das pessoas, permitindo a elas se reinventarem continuamente ao longo da maratona de 5.000 metros em que se transformou a vida dos seres humanos no século XXI.

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