A sociedade privada dos robôs

Precisamos, neste momento, de regulação e governança, de um debate multilateral, para direcionar essas mudanças. Será preciso mesmo substituir tantos postos de trabalho por automação? – questiona Gustavo Macedo, professor de Relações Internacionais e que também leciona a disciplina Ética e Inteligência Artificial no IBMEC – São Paulo.

Trecho retirado do artigo Entre Perdas e Ganhos, publicado no jornal O GLOBO de 2 de abril, sobre a nova era da Inteligência Artificial (IA) generativa, cujo símbolo atualmente é a ferramenta ChatGPT

Os sistemas contemporâneos de IA estão se tornando agora concorrentes dos seres humanos em tarefas gerais, e devemos nos perguntar: deveríamos deixar as máquinas inundar nossos canais de informação com propaganda e mentiras? deveríamos automatizar todos os trabalhos, incluindo aqueles que são gratificantes? deveríamos desenvolver mentes não humanas que no final das contas poderão nos ultrapassar em quantidade e inteligência, tornando-nos obsoletos e nos substituindo? deveríamos arriscar a perda do controle da nossa civilização? Tais decisões não devem ser delegadas a líderes da indústria de tecnologia não eleitos.

Trecho da carta aberta publicada no site do Future of Life Institute e assinada, entre outros, por Elon Musk (SpaceX, Tesla e Twitter), Steve Wosniak (co-fundador da Apple) e Yuval Noah Harari (autor e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém), solicitando uma pausa de seis meses no treinamento de sistemas de IA mas poderosos do que o GPT-4

A sociedade privada não é mantida pela convicção pública de que seus arranjos básicos são justos e bons por eles mesmos, mas pelos cálculos de todos, ou de um número de seus membros suficiente para manter o esquema, que qualquer mudança factível reduziria o conjunto de meios pelos quais eles perseguem seus fins pessoais. […] Assim podemos dizer seguindo Humboldt que é por meio da união social fundada nas necessidades e potencialidades de seus membros que cada pessoa pode participar da soma total dos ativos naturais realizados dos outros. Somos levados ao conceito de comunidade dos seres humanos, cujos membros aproveitam as excelências e as individualidades uns dos outros obtidas das instituições livres, e eles reconhecem o bem de cada membro como um elemento na atividade completa cujo esquema geral é aprovado por todos e oferece benefícios a todos.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

 

    Prezados leitores, as humildes explicações que tenho dado neste espaço a respeito do conceito de justiça de John Rawls poderia levá-los a crer que a sociedade vislumbrada pelo filósofo americano é simplesmente fundada em um contrato a que cada indivíduo adere por constatar que é a melhor opção para ele no longo prazo para perseguir seus planos de vida e satisfazer seus interesses. Se meus escritos deixaram essa impressão peço desculpas e licença para esclarecer que o contratualismo de Rawls é mais que isso,  porque ele faz a distinção entre uma sociedade privada e uma união social.

    Conforme o trecho citado acima, a sociedade privada é um arranjo pelo qual seres racionais na posição original escolhem certos princípios de distribuição de direitos e deveres cuja aplicação na prática por todos os membros permitirá que cada um persiga sua felicidade livremente, sem ser prejudicado por outros membros da sociedade. No final das contas, temos uma organização social que é simplesmente um conjunto de seres atomizados que vivem e deixam viver porque todos escolhem colocar em prática os princípios de justiça escolhidos originalmente e assim atuarão de maneira leal uns com os outros, sem interferirem e sem sofrerem interferência nos respectivos planos.

    A união social é mais que a sociedade privada, porque ela não é o produto exato da soma dos esforços autônomos de cada indivíduo. Ela é muito mais do que a soma dos membros da sociedade no sentido de que ao reunirem-se pelo pacto original, os indivíduos não estão simplesmente zelando pelo interesse próprio, mas aderindo a um conjunto de valores comuns que se concretizam no estabelecimento de instituições justas, de oportunidades para todos e no final na geração de bens sociais que serão compartilhados por todos. Em última análise, os membros da união social usufruem das conquistas obtidas por cada indivíduo porque sabem reconhecer-lhe a qualidade e em assim fazendo criam um sentimento de boa vontade no outro que tem como efeito prático aumentar a motivação de todos em prol da perseguição de metas, sejam quais forem, comuns ou individuais.

    De um lado então, indivíduos isolados, perseguindo seus objetivos de vida em uma sociedade que lhes dá a liberdade de fazê-lo. De outro, indivíduos unidos que pela cooperação mútua permitem o sucesso de cada um e o sucesso do todo que acaba sendo muto maior do que as partes que lhe deram origem. Para Rawls, a aplicação da visão contratualista e kantiana pela concessão de liberdades aos indivíduos não leva à atomização da sociedade, mas à construção de uma sociedade robusta e enriquecida pelas trocas entre indivíduos que são livres para seguir suas aptidões naturais e concretizar suas potencialidades.

    Essa dicotomia entre sociedade privada e união social é pertinente para analisarmos a encruzilhada em que nos encontramos neste momento em relação à disrupção que causará a evolução da chamada Inteligência Artificial generativa, que está substituindo a Inteligência Artificial analítica. Se a IA analítica era capaz de classificar e avaliar textos, reconhecer faces e imagens, a IA generativa vai muito além: ela cria textos, respondendo perguntas usando linguagem e estrutura gramatical que não podem ser distinguidas daquelas que um ser humano usaria; ela cria imagens, gráficos e vídeos. Isso abre uma janela sinistra de oportunidades em termos de tirar o trabalho de profissionais como advogados, jornalistas, professores, tradutores, médicos.

    O que devemos fazer? Simplesmente aceitar o fato e aplaudir a recente frase de Bill Gates: “A era da inteligência artificial começou”? Ou tentar refletir sobre as repercussões econômicas, sociais e políticas para os seres humanos do uso da IA para substituir não só o trabalho braçal quanto o intelectual, como querem os signatários da carta aberta mencionada no início deste artigo? À luz das lições de John Rawls, quem considera a primeira opção como a melhor está sob o paradigma da sociedade privada: o desenvolvimento da IA é inevitável e não há nada que possa ser feito, considerando que há um punhado de indivíduos atuando no setor de tecnologia cujo objetivo na vida é inovar sempre. Coibir os esforços deles seria tolher-lhes a liberdade individual e levá-los a querer fazer um distrato do contrato social ao qual aderiram, já que o arranjo não está mais propício à satisfação dos seus interesses.

    Ao contrário, quem considera que é preciso dar um tempo no desenvolvimento da IA, até que se estabeleçam mecanismos de governança, está sob o paradigma da união social: o aumento exponencial da produtividade e o enriquecimento de alguns dos membro da sociedade não pode ser obtido ao custo de tornar a vida de bilhões de pessoas irrelevante e sem significado, porque perde-se aí a motivação para a cooperação mútua: a IA deve estar sempre a serviço de todos, e mesmo que ela obviamente vá  beneficiar os líderes da tecnologia mais diretamente, ela jamais poderá ser um instrumento para prejudicar a vida dos membros da sociedade que não têm as aptidões necessárias para serem desenvolvedores de IA.

    Prezados leitores, a carta aberta está disponível para assinaturas: quem sabe se um número grande de adesões não pode sensibilizar as autoridades do mundo a começar a pensar em maneiras de controlar a IA para o bem da humanidade e não apenas de uma pequena parcela de privilegiados, que se locupletarão à custa da grande maioria. Esperemos que a união social predomine sobre a sociedade privada dos robôs.

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Justiça objetiva ou o quê?

Os cidadãos conseguem reconhecer a boa-fé mútua e o desejo de justiça, mesmo que ocasionalmente não haja acordo sobre questões constitucionais e certamente sobre muitas questões de política. Mas a não ser que existisse uma perspectiva comum, cuja premissa diminuísse as diferenças de opinião, o raciocínio e a argumentação não teriam razão de ser e não teríamos fundamento racional para acreditar na robustez das nossas convicções.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

O Ministério Público é uma instituição do Estado. Sua primeira função é a defesa da ordem democrática, da Constituição. A gente não serve ao governador, nem ao procurador-geral. As polícias também. Eu não posso entender, qualquer que seja o presidente, seja Bolsonaro ou Lula, utilizarem, às vezes, a “minha” polícia. A polícia é do Estado. […] Agora, falar que a polícia inventou essa operação está ofendendo a mim e ao Ministério Público.

Trecho da entrevista do promotor Lincoln Gakiya, maior especialista no Primeiro Comando da Capital do país, ao jornal o Estado de São Paulo em 26 de março

 

    Prezados leitores, na semana passada eu argumentei, com base na leitura de Uma Teoria da Justiça, que em uma sociedade justa os homens devem ter direitos iguais porque todos nós temos a aptidão para ter um senso de justiça, de reconhecer o que é certo e o que é errado e de tentar colocar isso em prática, seja agindo corretamente em relação aos outros membros da sociedade, seja tendo seus direitos reconhecidos pelos outros. A garantia de direitos iguais torna o homem livre para perseguir seus objetivos de vida, na certeza de que não será sacrificado no altar das considerações utilitaristas.

    Nesta semana, farei a tentativa de explorar mais as outras características que Rawls imputa ao homem para que este escolha, na posição original da visão contratualista, que todos tenham direitos iguais à busca da realização dos seus planos individuais. Minha meta é chegar ao conceito de objetividade e de como ele é importante no funcionamento da sociedade bem ordenada e mostrar-lhes a falta dele em terras tropicais.

    Como bom seguidor das ideias do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), John Rawls adota a premissa de que o ser humano é por natureza racional, livre e autônomo. No momento imediatamente anterior à elaboração do contrato original, esse ser autônomo escolhe determinados princípios de justiça sem levar em conta sua situação pessoal, o quanto de recursos materiais de que ele dispõe, quais são suas aptidões físicas e intelectuais. Em assim fazendo, ele se coloca deliberadamente em uma posição de igualdade com os outros membros da sociedade, escolhendo princípios de distribuição de direitos e obrigações que são convenientes para todos, porque lhes oferecem a melhor oportunidade a longo prazo de concretizar seus objetivos de vida.

    Livre para ignorar as diferenças individuais, sua história de vida e seus valores específicos em prol do valor maior que é a elaboração das bases de uma organização social em que ele possa dar e receber justiça, esse ser autônomo chega a um estágio em que o que é certo e o que é errado é determinado pelo acordo dos pares, que faz com que suas visões convirjam para princípios morais comuns. Cada um dos membros da sociedade consegue colocar-se no lugar do outro e ver as coisas sob uma perspectiva não marcada pelos interesses individuais, mas sim marcada pelo interesse em manter um grupo de seres livres e tratados com justiça.

    Essa é a objetividade de Rawls, que permite a convergência das opiniões, conforme ele explica no trecho que abre este artigo. Os seres livres decidem chegar a um consenso sobre certos princípios fundamentais da organização da sociedade, o que permite que haja um campo em comum. Nele, ideias podem ser trocadas e argumentos podem ser propostos que serão entendidos e não serão maliciosamente deturpados ou interpretados fora de contexto, pois todos nessa sociedade comportam-se de maneira leal em prol do objetivo de concretizar uma sociedade justa em que cada indivíduo reconheça os direitos dos outros na justa expectativa de que os outros irão lhe reconhecer seus próprios direitos.

    Portanto, na sociedade de homens autônomos e racionais de Rawls, há uma conjunção de senso de justiça compartilhado e boa-fé na concretização desse senso de justiça que faz com que em larga medida os homens atuem objetivamente, isto é, sob certa medida desprendendo-se da sua perspectiva individual e enfatizando o que há em comum em termos de princípios de justiça que permitam que cada um tenha uma porção equitativa dos bens sociais. Sob essa perspectiva, sem objetividade não há justiça possível, pois não haveria bases sólidas sobre as quais ancorar nossos julgamentos sobre o que dar e retirar de quem, sem que eles fossem denunciados como idiossincráticos e portanto, falsos.

    Essa falta de objetividade pode ser vista na repercussão sobre a descoberta de um plano do Primeiro Comando da Capital para sequestrar e assassinar autoridades, entre as quais o senador e ex-juiz Sérgio Moro. O primeiro indício desse plano foi detectado pelo promotor Lincoln Gakiya, membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de São Paulo em meados de 2022, ao interceptar conversas suspeitas. Diante de tal indício, o promotor alertou o procurador-geral de Justiça do Estado que iniciou uma operação no Ministério Público. No dia 30 de janeiro, a informação sobre o plano de assassinato foi dada a Moro e a sua família e o caso foi encaminhado à PF do Paraná, que em 45 dias conseguiu desvendar os detalhes do plano.

    A repercussão consistiu no comentário do presidente Lula de que essa operação de sequestro e assassinato de Sérgio Moro e de sua família seria uma armação de Moro. É sobre essa declaração que o promotor Lincoln Gakiya faz as observações que abrem este artigo. Considerar que é uma armação do senador recém-eleito pelo Paraná, tendo em vista que o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal do Paraná investigaram o plano do PCC, é partir do pressuposto de que nossas instituições são partidárias, um saco de gatos formado por grupos que apoiam tal ou tal visão política e fazem uso do local em que trabalham para fazer tal visão prevalecer. É uma falta de fé que espanta o promotor, que presume algo completamente diferente: que nossas instituições são do Estado, não de grupos ideológicos, e portanto, republicanas e objetivas.

    Prezados leitores, essas declarações infelizes de Lula conjugadas àquelas sobre o fato de na prisão ele só pensar em vingar-se de Moro, levam à seguinte pergunta: será que Lula candidatou-se a presidente só para marcar pontos com Moro, para mostrar ao seu inimigo que ele não havia sido derrotado? Será que a versão 3.0 de Lula no Palácio do Planalto não tem nada a propor de construtivo para o país a não ser um acerto de contas mais ou menos sutil com seus algozes da Lava-Jato? Aguardemos as próximas picuinhas e no entrementes sonhemos com a justiça objetiva de Rawls concretizada por homens autônomos e racionais.

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Gênios compreendidos

Estamos mais dispostos a enfatizar nossa boa sorte agora que essas diferenças são trabalhadas de modo a serem vantajosas para nós, ao invés de ficarmos desmotivados pensando em quão melhor condição estaríamos se tivéssemos chances iguais às de outros, se todas as barreiras sociais tivessem sido removidas. É mais provável que a concepção de justiça, se ela for realmente eficaz e publicamente reconhecida como tal, terá mais probabilidade do que suas concorrentes de transformar nossa perspectiva sobre o mundo social e nos reconciliar com as disposições da ordem natural e as condições da vida humana.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

“Nós acreditamos que cada pessoa que entra em nosso estabelecimento é um gênio que merece encontrar uma vocação que mudará o mundo. Se você não acredita nisso, você não tem direito de estar dentro de uma Acton Academy,” Sandefer disse. “E isso significa cada pai ou mãe, cada guia … [e] cada estudante. Sandefer logo observa que sua definição de gênio implica mais do que a inteligência de uma pessoa. “Uma das grandes lições a respeito da Acton Academy é que o QI importa … mas a perseverança, a coragem e a gentileza importam mais,” ele disse.

Trecho retirado do site www.phylantropyroundtable.org a respeito de Jeff Sanderfer, o cofundador de uma rede de escolas inovadoras para alunos da pré-escola ao ensino médio, a Acton Academy, que estimula os alunos a serem estudantes curiosos e independentes para a vida toda.

    Prezados leitores, na semana passada eu abordei parte das razões que John Rawls dá para considerar que sua concepção de justiça é superior à concepção utilitarista, porque ela facilita o comprometimento de todos os indivíduos com a ordem social, fazendo com que obedeçam mais facilmente e por mais tempo as regras porque sabem que o modo como a sociedade está organizada permite que eles obtenham  a satisfação dos seus interesses, os quais não serão sacrificados em prol de um bem maior. Sob os princípios da justiça como equidade, todos têm direitos iguais, independentemente das suas habilidades naturais e adquiridas. Nesta semana, meu objetivo é explorar a resposta que John Rawls dá à pergunta: por que dar direitos iguais a todos? O que há na natureza humana que fundamenta a igualdade de direitos? A resposta a essa pergunta tornará mais clara a contraposição da justiça como equidade à justiça como balanço geral do bem gerado para a sociedade. Com isso poderei ilustrar como essa concepção se concretiza nos Estados Unidos, a terra de John Rawls, no campo educacional.

    Para Rawls, os homens devem ter direitos iguais porque todos têm uma personalidade moral, que se distingue por duas características: a primeira é a capacidade de ter uma concepção do que é bom para si mesmo e de elaborar um plano racional para conseguir atingir esse bem; a segunda característica, mais ou menos desenvolvida, é um senso de justiça, isto é, uma capacidade e um desejo de aplicar os princípios de justiça, que foram estabelecidos na posição original, momento em que os indivíduos se reuniram para estabelecer as regras de distribuição dos bens e dos ônus do convívio em sociedade. No esquema de Rawls, imbuído dessa personalidade moral, o individuo estabelecerá como um dos princípios da justiça, conforme já mencionado anteriormente, o princípio da diferença, que garante que a melhora da situação de um membro da sociedade não vai piorar a situação de outro membro da sociedade, o qual também terá algum benefício dessa mudança nas circunstâncias.

    Daí que o homem que é capaz de dar justiça, isto é, de reconhecer o direito dos outros, tem ele mesmo o direito de receber justiça, isto é, de ver seus direitos reconhecidos. Não porque esse homem tenha um valor que foi reconhecido por seus pares em termos de capacidade intelectual ou física, que faz com que ele seja capaz de gerar benefícios para a sociedade. Mas simplesmente porque ele tem a capacidade de aderir às regras de funcionamento da sociedade. E de acordo com o trecho que abre este artigo, ele o faz mesmo quando ele não teve todas as oportunidades de melhoria da sua situação e mesmo quando ele não é dotado de todas as qualidades que lhe permitiriam ter sucesso na vida. Pelo fato de o princípio da diferença vigorar, ele tem mais disposição de aceitar as diferenças de resultados, o fato de que alguns serão mais talentosos do que ele e mais bem-sucedidos do que ele, inclusive porque alguns nascerão em famílias que lhes proporcionarão mais condições de concretizar seus objetivos.

    Essas diferenças não importam tanto em uma sociedade regida pelo princípio da justiça como equidade quanto importariam em uma sociedade regida pelo princípio utilitarista, pois os menos dotados material e intelectualmente terão seu lugar ao sol, terão a liberdade de perseguir seus objetivos de vida, independentemente de um cálculo do quanto de benefício estão gerando para a sociedade. Mesmo porque, de qualquer forma, o exercício da liberdade de escolher seu destino e de aderir às regras da sociedade é em si um bem tanto para o indivíduo que o faz quanto para a sociedade, cuja organização fica mais estável assim, por facilitar a adesão de todos, como tentei humildemente mostrar no artigo “Utilidades domésticas – e justas”, ao contrapor a abnegação de alguns, necessária na concepção utilitarista, à satisfação do interesse próprio sob a concepção contratualista de Rawls.

    E como essa visão de que todos têm direitos iguais a perseguir seus objetivos de vida se concretiza no campo educacional? Não é por meio da imposição da meta de igualdade de resultados para todos, independentemente das suas diferenças. Uma educação que siga os princípios da justiça fundada na liberdade e nos direitos iguais reconhece as diferenças entre os indivíduos, mas faz delas fonte de riqueza e diálogo e não fonte de expiação de culpas e vinganças por privilégios naturais ou adquiridos.

    Assim ocorre na rede de escolas fundada pelo empreendedor americano Jeff Sanderfer, a Acton Academy, conforme mostra o trecho que abre este artigo: os alunos são tratados como gênios não porque realmente tenham alto QI, mas porque acredita-se que cada um deles, na medida das suas possibilidades e vocações, possa dar sua contribuição se lhes for dada a liberdade de construírem seu próprio conhecimento. E para isso os professores da Acton Academy seguem o método socrático de fazerem perguntas aos alunos, sem que jamais eles deem a resposta: o objetivo não é que o estudante descubra a verdade possuída pela autoridade educacional, mas que ele, por meio das interações com seus colegas e do seu esforço individual, chegue a uma conclusão fazendo coisas, resolvendo problemas práticos, tomando decisões sobre casos em que há diferentes interesses em jogo.

    Prezados leitores, eu jamais visitei uma escola da Acton Academy e o que eu sei a respeito dela baseia-se em um podcast de seu fundador. Pode ser que os ideais preconizados por ele não sejam colocados em prática sempre. De qualquer forma, é reconfortante saber que sob a inspiração da justiça fundada na liberdade e no respeito às diferenças, a escola possa ser o abrigo dos gênios compreendidos na sua especificidade, na contribuição única que possam dar e não apenas um lugar de obediência às autoridades e de cumprimento de formalidades burocráticas como notas e provas. Vida longa ao projeto libertário de Jeff Sanderfer!

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Utilidades domésticas – e justas

Assim, a concepção mais estável de justiça presumivelmente é aquela que é inteligível à razão, congruente com nosso bem e alicerçada não na abnegação, mas na afirmação do eu. […] Assim, os vínculos gerados em uma sociedade bem ordenada regulada pelo critério da utilidade provavelmente varia de um setor a outro da sociedade. Alguns grupos podem adquirir pouco ou nenhum desejo de agir de maneira justa (agora de acordo com a definição dada pelo princípio utilitário) com uma perda correspondente na estabilidade.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

– Tenho máquina de lavar roupa, interruptores digitais e aquele robô aspirador, que anda sozinho. Quando passei a morar sozinho, percebi o valor do trabalho invisível que essas pessoas desempenham em casa – diz o engenheiro, que vê uma relação mais funcional com as profissionais agora.

Trecho retirado do artigo “Direitos no papel, carteira em branco – Dez anos após PEC das Domésticas, registradas dão lugar a diaristas”, publicado no jornal O Globo em 12 de março

    Prezados leitores, há várias semanas tenho utilizado este meu humilde espaço para explicar-lhes a concepção de justiça de John Rawls e ilustrar os conceitos descritos por ele por meio de referências a acontecimentos cotidianos, na maioria das vezes, ou históricos, como fiz ao referir-me à vida de Maria Graham (1785-1842) e de Dona Maria I, Rainha de Portugal (1734-1816). Nesta semana, o objeto será a comparação que o filósofo político americano faz da sua justiça como equidade com a concepção utilitarista de justiça, para mostrar que a sua ideia de justiça, fundada na tradição filosófica e política contratualista, é melhor porque revela-se mais estável a longo prazo.

    Como vimos ao longo desse tempo dedicado a destrinchar o livro de John Rawls, a concepção de justiça como equidade é fundada nos direitos fundamentais garantidos para todos, na proibição de que melhorias para um grupo sejam obtidas às custas de outro grupo social e na exigência de que as melhorias para um grupo devem também implicar melhorias para outro grupo, mesmo que a intensidade das respectivas melhorias sejam diferentes. Ora, a concepção utilitarista não faz nenhuma ressalva para garantir as liberdades e oportunidades para todos.

    Isso porque o foco dela é atingir um balanço geral de benefícios maior do que aquele que seria obtido sem que houvesse a aplicação do conceito de utilidade para nortear as decisões sobre quais direitos e obrigações serão patrocinados na sociedade. Nesse caminho rumo ao saldo positivo de coisas úteis feitas para o bem comum pode haver o sacrifício das liberdades e oportunidades de certos indivíduos e grupos, de maneira que estes saiam perdendo. A justificativa para a tolerância a que alguns membros da sociedade piorem de situação é que comparativamente ao que a sociedade possuía em termos de bens materiais e imateriais antes do advento da sociedade fundada no utilitarismo, a situação atual é melhor no geral, isto é o que foi criado de bom compensou o custo dessa criação.

    Essa explicação nos permite ver a instabilidade inerente à concepção utilitarista, conforme o trecho que abre este artigo: aqueles cuja situação piora não adquirirão o sentimento de justiça da mesma maneira que o fariam sob um regime contratualista: não tendo os perdedores nada a ganhar desse arranjo, seu comprometimento em aderir a regras de conduta fundadas em bases utilitaristas só pode basear-se em uma abnegação que permita que eles aceitem não gozar nem da chance nem da oportunidade de perseguir seus objetivos pessoais em prol do bem-estar social. No entanto, a abnegação não é um sentimento que brota frequentemente no ser humano. Tomá-lo como pilar da organização de toda uma sociedade é temerário pelo fato de que a maior parte dos seus membros não terá a predisposição necessária para que esse arranjo funcione.

    Mais seguro, segundo explica John Rawls, é utilizar outro meio de sustentação, qual seja, um sentimento mais comum no ser humano: o desejo de satisfazer seus próprios interesses. Em uma sociedade que concede liberdades fundamentais para todos, as reivindicações dos indivíduos não serão descartadas a priori, em prol de um bem maior, justamente porque o bem maior nessa sociedade é a possibilidade de que cada indivíduo possa perseguir seus objetivos de vida, de maneira desimpedida, sim, considerando as limitações fáticas, mas nunca em detrimento dos direitos próprios e daqueles que o rodeiam.

    Nesse sentido, a concepção da justiça como equidade funda-se na reciprocidade entre os indivíduos: há um respeito mútuo pelos interesses e valores de cada um, pois cada um deles sabe que o seu mínimo de liberdades e oportunidades será garantido em quaisquer circunstâncias, independentemente de qualquer avaliação sobre se esse pacote básico criará ou não bens sociais. Pode ser que criem e o saldo ao final seja positivo, e mesmo que não criem o importante é que a dignidade e o respeito próprio de cada um serão mantidos, porque cada membro sabe que ele não é mero instrumento de algo que o ultrapassa e que é mais importante que ele, mas tem valor em si mesmo.

    Daí porque a sociedade fundada em uma concepção de justiça como equidade ser mais estável do que uma sociedade fundada em uma concepção de justiça utilitarista. A reciprocidade estimula a confiança mútua, a confiança mútua estimula cada membro a fazer o certo porque ele se beneficia desse esquema e esse esquema beneficia aqueles nos quais ele tem confiança, pois eles o respeitam. Cria-se um círculo virtuoso em que todos os interesses próprios reunidos conspiram em favor de uma organização social em que a cada um é dada a chance de concretizar seu plano de vida, independentemente de uma avaliação prévia da sua utilidade para a sociedade.

    O ser humano como sujeito de direitos inalienáveis, não como instrumento de quem quer e do que quer que seja. Será que os desafios por que passam as empregadas domésticas no Brasil não ilustram esse conflito entre uma visão utilitarista e uma visão contratualista? Conforme explica o  artigo “Direitos no papel, carteira em branco”, em abril de 2013, por meio da chamada PEC das Domésticas, os congressistas brasileiros garantiram direitos trabalhistas às empregadas domésticas, incluindo previdência, auxílio-doença, licença-maternidade, férias, décimo terceiro, jornada de oito horas, seguro-desemprego, FGTS e indenização em caso de demissão sem justa causa.

    Na prática, assim como o engenheiro entrevistado pelo jornal para a reportagem, cuja fala é citada na abertura deste artigo, muitos de nós brasileiros vemos nossas “assistentes” como instrumentos do nosso bem-estar doméstico, instrumentos estes que podem ser substituíveis por seus congêneres eletrônicos. Imbuídos dessa visão instrumentalista, fazemos malabarismos para satisfazer nossos interesses em detrimentos dos das domésticas. Não as registramos em carteira, contratamos no máximo duas vezes por semana para não correr riscos e sempre temos a desculpa na ponta da língua que não temos dinheiro para arcar com os custos dos direitos trabalhistas.

    É verdade que no cômputo geral há muitos benefícios agregados: a classe média economiza dinheiro, as empregadas podem obter um salário maior em dinheiro, de posse de dinheiro as empregadas podem consumir, fazendo a roda da economia girar. Mas em termos do respeito mútuo entre os diferentes grupos sociais tudo fica muito a desejar: nós conseguimos reconhecer a importância para nós a longo prazo de trabalhar com carteira assinada, mas quanto a nós reconhecermos a imprescindibilidade do registro para nossos valiosos instrumentos domésticos, estamos muito longe disso: o nosso interesse próprio não pode ser sacrificado em prol das nossas domésticas. E assim as mantemos no limbo eterno das diaristas autônomas.

    Prezados leitores, que um dia nossas utilidades domésticas sejam justas como preconizou Rawls, e não simplesmente úteis. Só assim teremos nos livrado de mais um ranço do nosso passado de escravidão.

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Nossa humanidade

Pode-se dizer então que a pessoa a quem falta um senso de justiça e que jamais agiria conforme manda a justiça, a não ser por interesse próprio e conveniência, não somente não estabelece laços de amizade, afeição e confiança mútua, mas é incapaz de experimentar ressentimento e indignação. A ela faltam determinadas atitudes naturais e sentimentos morais de um tipo especialmente elementar. Colocado de outra forma, aquele a quem falta o senso de justiça carece de determinadas atitudes e capacidades fundamentais incluídas na noção de humanidade.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Historiadores informam que, desde esse acontecimento, a figura do pai se tornou insuportável para Maria. Se, por um lado, seu adultério e sua desumanidade a horrorizavam, por outro, Maria lhe devia lealdade de filha e de soberana sucessora.

Trecho retirado do livro “D. Maria I, As perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca””, da historiadora Mary del Priore

Contar histórias é a melhor pedagogia. A combinação de uma narrativa racional com uma outra, paralela e emocional, torna o aprendizado mais profundo e duradouro.

Trecho retirado do artigo “O casamento da razão com a emoção”, escrito por Cláudio de Moura Castro e publicado no jornal O Estado de São Paulo em 5 de março

    3 de setembro de 1758. Em pleno período de luto oficial pela morte de Maria Bárbara, rainha da Espanha (1711-1758), o rei de Portugal, D. José I (1714-1777), sai na calada da noite para encontrar-se com sua amante, Teresa de Távora e Lorena. Ao voltar para o palácio, o rei sofre um atentado, sendo ferido no ombro e no braço direito. Com raiva e influenciado pelo seu ministro mais importante, Sebastião José de Carvalho e Melo, que em 1770 receberia o título de Marquês de Pombal, o rei faz prender todos os membros da família dos marqueses de Távora, que viam com maus olhos os amores clandestinos da irmã mais nova do marquês com D. José. Depois de sofrerem torturas e serem coagidos a confessar a tentativa de regicídio, foram condenados à morte supliciante: braços e pernas partidos, o tórax esmagado na roda e por fim o estrangulamento. Ao todo, 18 pessoas foram mortas em um único dia para aplacar a sanha do rei, cujo orgulho havia sido ferido e cujo relacionamento com a bela Teresa teve que ser interrompido em virtude do escândalo, e a do seu primeiro-ministro, que viu nesse episódio a oportunidade de livrar-se de alguns membros da velha aristocracia e assim continuar a perseguir seu objetivo de modernizar Portugal.

    Prezados leitores, nesta semana resolvi seguir o conselho de Cláudio de Moura Castro e começar meu humilde artigo contando uma história que desperta a curiosidade com o objetivo de explicar-lhes algo da maneira mais propícia a que a mensagem perdure no cérebro, atrelando-a à emoção positiva criada pela história. No caso, a lição a ser tirada dessa combinação de um enredo com um conceito é aquela que a própria filha de D. José, o rei louco de paixão por Teresa, tirou, conforme descreve Mary del Priore no trecho citado acima: a de que seu pai, a despeito de seguir todos os rituais da Igreja Católica, a despeito de professar seu cristianismo aos quatro ventos, era um monstro que aniquilou toda uma família, os Távora, por raiva e mesquinhez valendo-se do seu poder de soberano para usar a justiça como instrumento de vingança contra aqueles que atrapalharam sua felicidade amorosa. O conceito por trás dessa percepção de Maria (1734-1816), a futura rainha de Portugal, acerca da verdadeira natureza do seu pai, quem dá é John Rawls, que fala sobre os sentimentos morais em seu livro “Uma Teoria da Justiça”.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o senso de justiça está atrelado a determinados sentimentos morais. Para Rawls, as pessoas agem de acordo com os ditames da justiça porque, por meio dos relacionamentos estabelecidos ao longo da vida, elas se afeiçoam a outras pessoas, passam a confiar nelas, as admiram, procuram satisfazer as expectativas delas e procuram ser reconhecidas por elas. Em fazendo isso, adquirem naturalmente um senso daquilo que devem fazer de certo para atingir os padrões de excelência que esses relacionamentos impõem. E tendo um sentimento interior do que é o certo e o que é o errado e a vontade sincera de não decepcionar aqueles que amam, sentem vergonha quando falham em fazer aquilo que seus pais e amigos esperam delas e também se indignam quando são afetados negativamente pelo comportamento egoísta desses mesmos pais e amigos de quem elas esperavam um comportamento leal.

    À luz dessa explicação de Rawls sobre como os sentimento morais são desenvolvidos no ser humano e nos fazem adquirir a noção do que é justo e do que é injusto, podemos entender o impacto sobre a psiquê de Maria da revelação da monstruosidade do pai: os Távora eram amigos de Maria e da mãe, frequentavam o Paço da Ribeira, local da residência dos reis de Portugal antes do terremoto que devastou Lisboa em 1755. Se o rei agiu dessa maneira cruel com pessoas que eram próximas do seu círculo familiar mais íntimo, isso significa que ele não tinha a mínima consideração sobre a opinião que a mulher e a filha teriam das arbitrariedades que ele perpetrou contra pessoas que foram acusadas imediatamente e julgadas sumariamente. E ele não tinha a mínima consideração sobre a opinião delas porque não tinha verdadeiros laços de amor e confiança suficientes para se sentir culpado perante a rainha consorte e a futura rainha. Quem sabe esse episódio que revelou a Maria a face sinistra do pai foi o gérmen da loucura que se abateria sobre aquela que foi apodada de “a Viradeira”?

    Prezados leitores, como bom racionalista que é, John Rawls nos diz que ser humano é ter uma predisposição natural a ter um senso de justiça. Quem não o tem é bárbaro, porque não passou pelo percurso psicológico que o cientista político descreve como necessário para a aquisição desse senso de justiça, a saber os relacionamentos com os pais, com os amigos e com os membros da sociedade como um todo. Maria, a Louca, naquele ano de 1758 vislumbrou que o que parece real é ilusório e que nossa humanidade pode ter bases muito frágeis. Que a epifania da primeira rainha de Portugal, vista sob a ótica dos sentimentos morais descritos por John Rawls, sirva para mostrar a nós mesmos a necessidade de cultivarmos nossa humanidade para que ela não seja tragada pela raiva, pela vingança e pela contrariedade.

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