De Tartufo à família Roy

Se nada mais do que o Céu atrapalha meus desejos, não custa nada para mim remover um tal obstáculo. É verdade que o Céu proíbe determinadas gratificações. Mas há uma maneira de resolver essas questões. É uma ciência esticar as cordas da consciência de acordo com as diferentes exigências do caso e retificar a imoralidade da ação pela pureza das nossas intenções.

Trecho retirado da peça Tartufo, escrita por Jean Baptiste Poquelin em 1664, conhecido como Molière (1622-1673)

[…] a preocupação precípua de Platão é mostrar como não há na poesia canônica, seja em Homero, em Hesíodo ou nos poetas trágicos, o discernimento entre o bem e o mal, justiça e injustiça, temperança e intemperança, na representação das ações de deuses e heróis. Como a “educação” grega (paidéia) se baseava eminentemente na poesia, isso teria uma consequência perniciosa do ponto de vista moral, pois é essa representação que serve de modelo de conduta moral para as ações particulares dos homens.

Trecho retirado do ensaio Platão e o Teatro, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de Górgias, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Habitando esse universo, cujo centro é Nova York (com escapadelas para cenários paradisíacos e exclusivos na Itália, na Noruega ou na Escócia), estão personagens polifacetados, que seguem a tendência de complexidade cuja inauguração muitos atribuem à série “Família Soprano”, que a partir de 1999 apresentou mafiosos carismáticos. De lá para cá, os (bons) dramas ganharam esse adjetivo por retratarem pessoas ambíguas, que extrapolam as descrições de “bom” e “mau”, como qualquer ser humano.

Trecho retirado do artigo “Segredo de uma Sucessão”, escrito por Talita Duvanel e publicado na edição de O Globo de 28 de maio, sobre a série Succession, cujo último episódio seria veiculado naquele dia e revelaria quem seria o sucessor do conglomerado de mídia Waystar, criado pelo personagem Logan Roy

    Prezados leitores, nesta semana meu objetivo é o de falar de arte e do poder maléfico ou benéfico que ela pode ter sobre as pessoas. Para tanto, vou tratar da peça de Molière, “Tartufo”, e da série televisiva “Succession”, que mal acabou e já foi aclamada como a grande série de TV do nosso tempo, à luz das lições de Platão sobre o papel da poesia na pólis grega.

    A citação que abre este meu humilde artigo flagra Tartufo, o personagem principal da peça de Molière, tentando convencer Elmira, a mulher de Orgon a ir para a cama com ele. Orgon recebera Tartufo em sua casa como um amigo, pela admiração que nutria por aquele homem que assistia à missa todos os dias, rezava com os olhos voltados para o céu, beijava a terra. Mas Tartufo era um rematado hipócrita, como mostra sua fala ao objeto do seu desejo sexual: para acabar com os escrúpulos de consciência da mulher que receava trair o marido, Tartufo vem com uma obra-prima de casuística, a arte de achar boas desculpas para acomodar as características da natureza humana: já que era inevitável ceder aos apetites, melhor seria elaborar um argumento que permitisse ao pecador dar vazão à sua natureza e ao mesmo tempo ofuscar a imoralidade do ato sob o conceito da intenção pura do agente. Se a intenção era boa, o ato era moralmente inatacável, mesmo que violasse claramente os preceitos éticos preconizados pela Igreja.

    Essa exibição nua e crua de um homem que segue os ritos da religião para manter uma fachada respeitável que acoberte suas ações egoístas cotidianas chocou a sociedade francesa do século XVII, de tal maneira que o vigário de São Bartolomeu, Pierre Roullé, denunciou Molière como o demônio em carne e osso, um homem que fez troça da Igreja e que deveria ser queimado na fogueira como prenúncio do fogo do inferno que o ímpio e libertino escritor sofreria pela eternidade. Depois de sua primeira exibição em 12 de maio de 1664, “Tartufo” foi proibida e só voltou a ser encenada em 1667, depois que o rei da França, Luís XIV, deu sua permissão. Após uma nova proibição de encenação pelo Arcebispo de Paris, o rei retirou de uma vez por todas o veto e Tartufo começou a ser exibida em 1669.

    Se considerarmos o que Platão tinha a dizer sobre a poesia, conforme o trecho que abre este artigo, entenderemos melhor a indignação dos membros da Igreja Católica no século XVII. Mostrar um personagem que pratica imoralidades e que o faz com verve, inteligência e às expensas das pessoas de boa-fé que com ele convivem é enfatizar os elementos irracionais do homem, os seus apetites, materializando-os nos atos praticados pelo personagem. Para Platão, a arte deveria edificar o homem, oferecendo-lhes exemplos de retidão moral, isto é, de pessoas que agiam racionalmente controlando suas paixões e vivendo de maneira reta.

    Em suma, mostrar o errado repetidas vezes, por meio de personagens dominados pela raiva, pelo desejo de vingança, pelo desejo de causar mal gratuito a outros, acabava, segundo o filósofo grego, tendo um efeito nefasto sobre os espectadores das tragédias, os leitores das poesias épicas, pelo fato de naturalizar algo que deveria ser coibido, reprimido. Longe de nos fazer simpatizar com um pilantra como Tartufo, que engana a todos e nos faz rir, o artista deveria nos levar a cultivar as virtudes morais, mostrando-nos heróis com qualidades a serem imitadas.

    Ora como sabemos, em pleno século XXI, depois de uma Reforma Protestante, do Iluminismo e da Revolução Industrial, os pruridos religiosos e morais no mundo ocidental estão bem diminuídos. Dessa maneira, a concepção platônica de que a arte deveria desempenhar um papel na construção de uma sociedade melhor, com indivíduos retos do ponto de vista ético, ficou para trás. Uma peça como Tartufo, que mostra que o sentimento religioso exteriorizado em rituais pode ser uma grande hipocrisia, é considerada um clássico porque mostra a realidade tal como ela é. E uma série como “Succession” é considerada de alta qualidade porque, conforme o trecho que abre este artigo, não divide as pessoas em boas e más, de maneira maniqueísta.

    A essa altura, devo revelar que eu mesma acompanhei a série americana pelas razões expostas no artigo de Talita Duvanel. As peripécias de Logan Roy, o patriarca e magnata de um império de mídia, e de seus quatro filhos, Connor, Kendall, Shiv e Roman, me fizeram assistir a todos os episódios porque mostravam a manipulação que há nas relações humanas, o exercício do poder, a psicopatia de pessoas sem empatia pelo sofrimento alheio e que usam os outros para seus fins egoístas. Tudo isso me tocou porque a essa altura da vida já tenho experiência suficiente para ter tido contato com esse lado negro dos seres humanos. Por outro lado, o final melancólico, em que os quatro filhos vendem sua participação na empresa por serem incapazes de chegarem a um acordo entre si, me fez lembrar a lição de Platão. A história teria sido mais edificante se algum deles tivesse aprendido a lidar com as fraquezas próprias e alheias e tivesse conseguido manter o negócio nas mãos da família, mantendo assim o legado do pai. Mas em plena era de pós-verdade, seria muito pedir que os artistas da nossa época queiram ou achem conveniente passar uma mensagem moral aos espectadores.

    Prezados leitores, o realismo nos mostra a vida como ela é, mas o idealismo de Platão nos mostra uma vida possível, que pode nos encher de esperança. Por isso, entre Tartufo e a família Roy, prefiro uma terceira via, a de Michael Corleone, que se rebelou contra a herança siciliana e acabou tornando-se o maior líder mafioso, enchendo de orgulho seu pai, Vito Corleone. Não é uma via perfeitamente platônica, porque Michael como capo di tutti capi era um assassino implacável, mas talvez seja o caminho heroico possível nessa era descrente em que vivemos.

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Dura lex sed lex

Todavia, Sócrates, por obediência a nós, os responsáveis pela sua criação, não dê aos filhos, à vida, ou a qualquer outra coisa maior valor do que ao justo, a fim de que, quando chegar ao Hades, você possa apresentar tudo isso em sua defesa perante os governantes de lá. Com efeito, é manifesto a você, ou a qualquer amigo seu, que esta eventual ação sua não é melhor aqui, nem mais justa, nem mais pia, tampouco será melhor lá quando chegar ao Hades. De fato, você irá embora daqui, caso vá, como vítima de uma injustiça, não por força das leis, que somos nós, mas por força dos homens; se você, no entanto, partir daqui de modo tão vergonhoso, retribuindo uma injustiça e um mal, transgredindo os consentimentos e os acordos que você mesmo estabeleceu conosco, e fazendo mal a quem menos devia – ou seja, a você mesmo, aos seus amigos, à pátria e a nós –, seremos severas com você enquanto estiver vivo; e lá as nossas irmãs, as leis do Hades, não irão recebê-lo com benevolência, uma vez informadas de que a nós você tentou arruinar, no que cabia a você.

Fala das “Leis” na tradução de “Críton” feita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

No TSE, impossível não suspeitar de politização decisória no recente caso da cassação de Deltan Dalagnol, dada a opção por interpretação alargada, justamente contra o político que se tornou desafeto declarado de parte da cúpula do Judiciário (pois as arbitrariedades que praticava miravam também ministros do STF), de uma cláusula de inelegibilidade que merece interpretação restritiva.

Trecho retirado do artigo “Mesmo na emergência, deve haver Direito”, de autoria de Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP e publicado no jornal o Globo em 21 de maio, sobre a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol

    Prezados leitores, devo começar nesta semana por uma errata: a terceira citação que abre o meu artigo “Sócrates Reloaded” não foi retirada da “Apologia de Sócrates”, mas de Críton, outro diálogo escrito por Platão. Se na Apologia de Sócrates o filósofo defende-se das acusações de corrupção dos jovens e de não reconhecer os deuses da cidade de Atenas, e depois de ser condenado à morte, dirige-se aos jurados, em Críton Sócrates dialoga com um amigo e discípulo seu, Críton, que quer convencê-lo a evadir-se da prisão e refugiar-se em alguma outra cidade grega. Para demovê-lo da ideia, Sócrates cria uma personagem “As Leis”, que desenvolvem um argumento em favor da aceitação por Sócrates do seu veredito.

    Meu objetivo neste humilde artigo será o de explicar tal argumento, lançando luz sobre uma outra faceta de Sócrates, além daquela que já explorei anteriormente de antidemocrata, qual seja: a de cidadão que compreendia a natureza profunda das leis. Em assim fazendo poderei refletir sobre o episódio do ex-Lava Jatista Deltan Dallagnol e o que ele revela sobre a nossa própria concepção da lei.

    A fala das “Leis”, dirigida tanto a Sócrates, o homem que foi considerado culpado pelos jurados, quanto a Críton, seu amigo que o ama e que não quer perdê-lo, é a seguinte, conforme o trecho que abre este artigo: as regras de conduta e de governo vigentes em Atenas permitiram a Sócrates nascer na cidade, educar-se e constituir família, transformando-se em um homem com atuação destacada na vida da pólis. O filósofo as aceitou de bom grado, tanto que raramente saiu de Atenas e quando o fez foi para lutar pela pátria, na Guerra do Peloponeso (431 a.C. – 404 a.C.). Assim, ele concordou em submeter-se às leis atenienses porque considerava que elas proporcionavam uma estrutura adequada para o seu desenvolvimento individual.

    No entanto, essas mesmas leis, no momento do julgamento do filósofo, estão sendo invocadas pelos jurados para condená-lo à morte, sob a justificativa de que Sócrates as desrespeitara. Pode ser que a decisão da maioria dos jurados, os quais não foram persuadidos por Sócrates a optar pela absolvição, tenha sido equivocada e portanto, injusta. Sabemos já que no processo de decisão democrática não há necessariamente a busca pela verdade, mas pela persuasão, por qualquer meio possível, incluindo o apelo à emoção, que tenha o condão de convencer quem tem que tomar uma decisão.

    Mesmo que os jurados tenham sido levados por uma antipatia pelo filósofo, que se mostrou arrogante durante o julgamento, altivo na certeza de que a busca da verdade, longe dos debates da ágora, era o melhor caminho a seguir na vida, as Leis apontam para Sócrates e para Críton que evadir a execução da pena pela fuga é um desrespeito e uma afronta à entidade Lei que fará com que Sócrates e seus amigos, que porventura o ajudassem a sair da pátria e a exilar-se, quando morressem e descessem ao Hades, ao mundo subterrâneo dos mortos, seriam considerados culpados e submetidos à danação eterna, proporcional à violação do espírito das Leis. Estas são sagradas porque dão vida, isto é, permitem que as pessoas tenham uma família, que as famílias sejam mantidas e prosperem, engendrando por sua vez novas famílias, cujos membros constituirão os cidadãos da pólis.

    Ora, Sócrates não era afeito ao regime democrático, mas ele era leal às Leis, como bom cidadão de Atenas. De acordo com outro famoso ateniense, o orador Demóstenes (384 a.C. -322 a.C.) as leis eram dádivas dos deuses aos homens para que pudessem conviver entre si e para terem um mecanismo de correção dos erros tanto voluntários quanto involuntários. Era preciso cumprir as leis sempre, independentemente do custo pessoal que isso implicasse, porque sem elas não haveria sociedade e não haveria vida. E assim Sócrates o fez, sem pestanejar, mas como era do seu feitio, sem antes dialogar com seu amigo Críton para que juntos chegassem a uma definição do melhor curso a seguir depois da condenação. A aplicação das leis podia ser falha em um regime democrático, mas as leis em si, enquanto ideal que davam o suporte material e espiritual à organização social, não eram. Nesse sentido, a desobediência às Leis só semearia a discórdia entre os homens e o caos, inviabilizando a vida na pólis.

    Nesse ponto, coloco-lhes a pergunta: no século XXI, as Leis são colocadas no panteão das coisas sagradas com poderes de criação em que as colocavam Sócrates e seus conterrâneos? O episódio da cassação do mandato  do deputado recém-eleito Deltan Dallagnol é emblemático a esse respeito. Os juízes do Tribunal Superior Eleitoral fundamentaram sua decisão em uma aplicação da Lei da Ficha Limpa que determina a inelegibilidade de indivíduos condenados pela justiça ou demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo. De acordo com o TSE, Deltan era alvo de pelo menos 15 processos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público e eles interpretaram sua exoneração do Ministério Público Federal como uma tentativa de livrar-se das penas que lhe seriam impostas, incluindo a inelegibilidade, caso ele fosse considerado culpado nos processos.

    O professor Rafael Mafei, no artigo citado na abertura deste artigo, mostra as falhas desta decisão: violação da presunção da inocência, interpretação extensiva de uma cláusula que deveria ter interpretação restrita, pois sua aplicação implica imposição de pena. A má técnica jurídica dos juízes do TSE levanta a suspeita de uso das leis como instrumento de vingança política. A própria vítima da decisão diz que o relator Benedito Gonçalves entregou sua cabeça em troca de uma vaga no STF.

    Prezados leitores, será que o melhor, para o bem da preservação do espírito das leis brasileiras, seria que o ex-procurador da Lava-Jato imitasse o exemplo de Sócrates e respeitasse a decisão dos juízes sem fazer acusações de tendenciosidade e de corrupção? Ou será que ninguém mais no Brasil considera que o Poder Judiciário seja algo mais do que um saco de gatos que se engalfinham pelo poder? Será que em nosso Brasil do século XXI é ser inocente demais colocar fé nas Leis, como Sócrates colocou, pois o ideal já se foi há muito e o que ficou foi a instrumentalização da justiça como arma política? Será que só resta a cada um de nós puxar a sardinha para o nosso lado e que o bem da coletividade vá para o espaço?

    Eu prefiro acreditar que o adágio dura lex sed lex é o melhor caminho a ser seguido. Querido Dallagnol, não politize uma decisão que pode ter sido simplesmente falha, e que não deveria ser usada para desacreditar ainda mais nosso Judiciário.

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Julgamento de Sócrates Reloaded

Sócrates não defendia nem a oligarquia nem a democracia. Não se identificava com nenhum dos dois lados. Seu ideal, tal como é apresentado de diferentes maneiras em Xenofonte e em Platão, e refletido no pouco que conhecemos dos outros socráticos, não era o poder exercido nem pela minoria nem pela maioria e sim – segundo Xenofonte – por “aquele que sabe”.

Trecho retirado do livro o Julgamento de Sócrates, escrito pelo jornalista americano Isidor Feinstein Stone (1907-1989)

[…] nenhum homem há de manter-se são e salvo, caso se oponha de forma legítima a vocês ou a qualquer outra multidão, e impeça a realização de inúmeras ações injustas e ilícitas na cidade; pelo contrário, para quem realmente luta pelo justo é inevitável agir em privado, e não em público, caso pretenda se manter são e salvo por pouco tempo que seja.

Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

[…] sempre fui um indivíduo que não dá ouvidos a nenhuma outra coisa que me pertence senão àquele argumento que, submetido à reflexão, se manifesta a mim como o melhor.

Fala de Sócrates na tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

    Prezados leitores, na última vez em que estive neste meu humilde espaço, há quase um mês, eu proferi um julgamento a respeito do filósofo grego Sócrates (470-399 a.C.) qualificando-o de antidemocrático. Pretendo neste artigo esmiuçar a razão pela qual o homem condenado a beber cicuta em Atenas não morria de amores pelas discussões políticas na assembleia dos cidadãos que eram o cerne da prática democrática.

    Em tais discussões, o objetivo do orador era convencer os cidadãos a tomar uma decisão política, seja declarar guerra a uma outra cidade-Estado, seja condenar alguém ao ostracismo ou exílio ou mesmo à morte se tivesse cometido ato atentatório à existência da pólis enquanto entidade soberana. Para tal convencimento, poderia o orador adular seus ouvintes para que tivessem boa vontade com o que ele tinha a dizer, implorar que o escutassem para suscitar a pena deles e até mesmo chorar para mostrar seu sofrimento e o quanto os ouvintes podiam ajudá-lo simpatizando com sua causa. No final das contas, o orador poderia sair-se vitorioso porque tinha sabido apelar às emoções dos cidadãos, independentemente da adequação da sua proposta aos fatos.

    Ora, a proposta filosófica de Sócrates era totalmente diferente. Ele não estava em busca de persuadir ninguém a respeito de algo que poderia ser verdadeiro ou falso, mas que certamente repercutia na psiquê dos membros da assembleia. O fundamental para Sócrates não era buscar o que parecia verdadeiro, mas a verdade mesma, aquelas definições perfeitas, porque abrangentes e invariáveis, que eliminavam toda a inconsistência entre os fatos e reuniam as características comuns entre eles. Se tal busca chegasse a um beco sem saída, na aporia consistente na incapacidade de uma conclusão a respeito da identidade da coisa, isso não importava: era melhor admitir que não sabia, para manter-se fiel ao ideal de busca da verdade a qualquer preço, do que pretender que sabia para convencer as pessoas a seguir um determinado curso de ação.

    Daí por que o método socrático, que jamais se comprometia a chegar a uma solução de qualquer jeito, não tinha vez na prática democrática: caso os cidadãos, reunidos em assembleia, fossem criticar toda e qualquer proposta de ação à maneira filosófica, sempre achariam uma desconformidade entre o que se propunha como vantajoso para a cidade e benéfico aos cidadãos e a realidade fática. Afinal, era sempre possível questionar: benéfico para quem particularmente? que benefícios eram vislumbrados especificamente?

    Conforme o segundo trecho que abre este artigo, o próprio Sócrates reconhece que sua atuação como eterno questionador só poderia ocorrer na esfera privada. Afinal, nenhum político que discursasse na ágora ateniense e que aprendia as artes da retórica com os sofistas poderia apresentar uma definição satisfatória do que era justo e do que era injusto, já que o foco da sua atividade intelectual estava em manipular as massas para que ela concordasse com o curso de ação que o líder queria seguir para satisfazer seus interesses e seu apetite pela honra, pela glória e pelo poder. Ao passo que os diálogos empreendidos pelo filósofo com seus seguidores, em que ele colocava em xeque tudo aquilo que pensavam saber, apontando as contradições e inconsistências, eram o caminho possível para chegar às definições que para Sócrates identificavam a natureza das coisas e eram objeto do conhecimento por excelência.

    Considerando que a arte da persuasão, que epitomiza a prática democrática, era considerada um esforço intelectual inútil e desprezado por Sócrates, interessado na busca da verdade, não admira que em seu livro I. F. Stone condene o filósofo como um antidemocrático: para o jornalista americano, ao rejeitar o governo da maioria, cujas propostas não atendem aos critérios rigorosos da verdade tal como concebida por Sócrates, este põe-se ao lado dos que defendem a ação voluntariosa e individual daquele que se opõe às maiorias persuadidas pelos oradores e que sabe porque busca as formas, isto é, a realidade imutável e absoluta além das contradições inerentes ao mundo real. Nesse sentido, o filósofo é culpado de atentar contra a democracia, pois para os seus conterrâneos tal defesa de um percurso intelectual unilateral e sem concessões trilhado por aquele que supostamente detinha o saber era um convite ao governo de um rei ou de um tirano.

    Para Stone, a fim de livrar-se da condenação à morte, Sócrates deveria ter defendido não sua virtude como filósofo que buscava o que era o justo, mas seu direito à liberdade absoluta de expressão, mesmo que isso implicasse a liberdade de criticar a democracia, como ele fazia. Mas não foi isso que o filósofo fez: ele desafiou seus acusadores, acusou-os de praticar uma injustiça por quererem interromper o exame crítico por meio dos diálogos que Sócrates tinha com seus discípulos. Em assim fazendo, ele acabou sendo condenado.

    Prezados leitores, à luz das falas de Sócrates na Apologia e da interpretação adotada por I. F. Stone, qual a definição perfeita de Sócrates: mártir da democracia ou algoz da democracia? Ou tais definições apresentam tantas complexidades que qualquer praticante do método socrático poderá lhes apontar as inconsistências? De qualquer forma, uma coisa é certa: o julgamento de Sócrates no século IV a.C. – suas razões e o motivo da sua condenação – dão margem para a reflexão sobre nossa prática democrática em pleno século XXI. Afinal, como não considerar relevantes as críticas de Sócrates à paixão das massas quando vemos o mesmo povo brasileiro elegendo Jair Bolsonaro para livrar-se de Lula e depois elegendo Lula para livra-se de Bolsonaro? Dialoguemos e reflitamos, como propunha o filósofo.

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Um julgamento de Sócrates: antidemocrático e irrealista

[…] dois aspectos complementares do exercício filosófico de Sócrates junto às demais pessoas: o aspecto negativo, do exame crítico de colocar à prova as convicções de seus interlocutores a fim de verificar sua consistência interna, da refutação e da subsequente censura daqueles que se mostrarem falíveis; e o aspecto positivo, da exortação a uma vida submetida continuamente ao exame crítico, à valorização daquilo que de fato é benéfico aos homens (inteligência, virtude), e não dos bens aparentes (dinheiro, reputação, honra)

Trecho da introdução à tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

[…] um modo de vida socrático é aquele em que um indivíduo é autossuficiente ao máximo, com o controle de sua própria vida, e que usa a razão como o instrumento para satisfazer as condições da felicidade

Trecho retirado da obra Cambridge History of Hellenistic Philosophy, citada no livro mencionado acima

    Prezados leitores, há algumas semanas, no texto “Gênios Compreendidos” eu mencionei a rede de escolas Acton Academy, que adota um método socrático de ensino pelo qual são feitas perguntas aos alunos sem que os professores deem as respostas. Nesta semana meu objetivo será o de explicar com mais detalhes tal método, no contexto do julgamento a que foi submetido Sócrates (470 a.C.˗399 a.C.) sob a acusação de impiedade e de corrupção dos jovens. A defesa que o filósofo faz de si mesmo durante o processo judicial, tal como retratada por Platão na “Apologia de Sócrates”, acaba sendo a proposição de um modo de vida filosófico.

     A impiedade de que é acusado Sócrates consiste na alegação de que ele não respeitava os deuses da cidade de Atenas e mesmo que ele era ateu. O filósofo irá argumentar perante seus julgadores que na verdade ele era o mais pio dos homens, aquele que cultivava Apolo da maneira mais pura, justamente pelo seu modo de vida. A religião não era simplesmente seguir rituais de sacrifícios e ofertas aos deuses para ter as súplicas acolhidas. Era muito mais ter um comportamento moral, tentar ser justo na medida do seu conhecimento da justiça e buscar sempre o conhecimento para saber exatamente como agir de maneira correta nas mais diferentes situações. Servir aos deuses era praticar a justiça, a integridade moral por meio do aperfeiçoamento individual contínuo, porque em assim fazendo o homem contribuiria para o bem comum, satisfazendo assim o desejo dos deuses de harmonia e paz.

    E esse aperfeiçoamento individual só seria obtido se o homem se dispusesse a examinar criticamente aos outros e a si mesmo, conforme explica o trecho que abre este artigo: isso significa checar as premissas dos argumentos e definições, verificar se elas se coadunam com os fatos e, se elas apresentam inconsistências por se aplicarem a alguns fatos e não se aplicarem a outros, o único caminho a tomar é descartá-las por não terem a universalidade necessária para fundamentar generalizações a partir de casos concretos com a mesma natureza. Se as premissas e as definições não podem ser extrapoladas de maneira segura, isso significa que são inúteis e prejudiciais na busca do homem pela verdade.

    E a verdade para Sócrates é um valor fundamental, associado à moralidade e à justiça. Para o filósofo, o ser humano é injusto e mau involuntariamente, isto é, por falta de conhecimento, daí porque, conforme o segundo trecho que abre este artigo, Sócrates estabelece a razão como instrumento da felicidade: examinar-se a si mesmo, descobrir suas fraquezas, sua ignorância sobre determinado assunto é o melhor caminho para o homem atingir a felicidade, que é viver bem e sem cometer injustiças.

    É essa incessante autocrítica, em busca da verdade moral e espiritual que os acusadores de Sócrates denunciam como corruptora dos jovens, na medida em que leva os filhos a desrespeitar os pais, os alunos a questionar os mestres, os cidadãos a questionar as autoridades. Nesse sentido, sob a ótica do senso comum em vigor em sua cidade natal, Sócrates subverte as regras da democracia em Atenas por não dar importância à vida pública e às discussões dos cidadãos a respeito dos rumos a serem tomados pela cidade.

    Enfatizando o percurso individual de questionamento ininterrupto e de busca da verdade de maneira autônoma, Sócrates dá pouca importância aos debates democráticos realizadas para a tomada de decisões políticas. Afinal, as ideias vencedoras ali não eram necessariamente as verdadeiras ou mais próximas da verdade, mas as mais persuasivas, que faziam apelo à emoção dos homens, ao seu desejo de glória e poder, e não de cuidado com sua alma pela busca da verdade. Para Sócrates, a salvação não está nas discussões públicas, mas no exame individual da consciência por indivíduos dispostos a a agir de maneira racional.

    No final das contas, Sócrates foi condenado à morte por ser ímpio, traidor da pátria por solapar a democracia e corruptor dos jovens por incentivá-los a desobedecer. Será que o seu viés antidemocrático inviabiliza a aplicação do seu método para a educação de cidadãos que atuarão em um sistema democrático? Será que em uma democracia, em que os cidadãos, ou melhor, seus representantes eleitos, precisam estabelecer prioridades na aplicação das verbas públicas, questionar e criticar tudo em nome da perfeição é producente? Será que não é mais viável contentar-se não com a verdade, mas com um consenso mínimo que permita tomar decisões sobre o que fazer na prática? Será que os embates de personalidades que cativavam o povo na ágora ateniense não eram, em última análise, o melhor meio de chegar ao que era factível, pelo choque de ideias diferentes? Será que o ideal de homem racional e autossuficiente de Sócrates que persegue sua própria verdade uma concepção por demais elitista dos seres humanos? Será que é factível esperar que todos os homens persigam o bom e o justo para o bem da sua alma?

    Prezados leitores, a condenação por crime político mais famosa da história merece ela mesma um exame crítico que revele a complexidade do objeto da condenação, Sócrates, um filósofo que não morria de amores pela democracia, talvez justamente por ela ser o melhor sistema para lidar com as imperfeições dos homens, ele que considerava que todos os homens podiam ser racionais e abnegados como ele, desde que quisessem renunciar às suas paixões.  Meu humilde julgamento do Sócrates platônico é que ele era um indivíduo antidemocrático e irrealista, apesar de todas as suas qualidades morais e intelectuais.

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Singelas utopias

Mas uma vez as condições sociais exigidas e o nível de satisfação das carências e das necessidades materiais seja atingido, como ele o é em uma sociedade bem organizada sob condições favoráveis, os interesses de grau mais alto passam a regular tudo. […] Mas em uma sociedade bem organizada a necessidade de status é atendida pelo reconhecimento público de instituições justas, juntamente com a vida interna diversa e plena das muitas comunidades de interesses livres permitidas pelas liberdades iguais. A base do respeito próprio em uma sociedade justa não é então a fatia da renda, mas a distribuição afirmada publicamente dos direitos e liberdades fundamentais.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é. A utopia brasileira é singela: comida, casa, escola e remédio. O orgulho como povo. O espírito nacional, a criatividade e a alegria, isso já foi feito.

Fala de Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, ensaísta e político brasileiro (1922-1997)

    Prezados leitores, a fala que abre este humilde artigo eu a recolhi na exposição Utopia Brasileira: Darcy Ribeiro 100 anos, em cartaz no SESC da rua 24 de Maio, no centro de São Paulo. Ela resume bem aquilo que deveríamos ter conseguido no Brasil – e de resto na América Latina – e falhamos em obter ao longo de cinco séculos: prover às necessidades materiais e espirituais do povo para que ele florescesse e o nosso país deixasse de ser um moedor de gente, como Darcy definia o Brasil, em que a elite deixava o povo de lado. Para o criador dos CIEPs e do Sambódromo no Rio de Janeiro, nosso atraso não se devia à colonização ibérica, ao clima demasiado quente, à herança genética negra e indígena, e nem mesmo à exploração colonial europeia, a qual foi realizada em outros países, como a China, citada por Darcy como exemplo de país que soube superar o legado do imperialismo a que foi submetido.

    Ao contrário, nós não conseguimos prover às necessidades básicas de alimentação, saúde e educação porque fomos incapazes até agora de nos indignarmos com a miséria e a desigualdade e de nos reinventarmos e organizarmos para mudar esse estado de coisas. Para Darcy, um eterno otimista, bastava que tomássemos a iniciativa política de mudar as coisas, de concretizar no aqui e no agora a singela utopia de tratar o povo com respeito e dar-lhe dignidade com comida, casa, escola e remédio.

    Pode-se concordar ou discordar com o diagnóstico e com a solução dados pelo autor de Maíra às mazelas brasileiras, mas não se pode negar a pertinência das suas reflexões para os dias atuais. Darcy previa que se a América Latina não conseguisse resgatar o povo da miséria material e espiritual haveria conflitos étnicos por aqui, entre os diferentes povos que compõem nossa diversidade. Ele fracassou em concretizar a utopia brasileira, mas o consolo dele, de acordo com suas próprias palavras, é que ele estava ao lado dos perdedores, e não dos vencedores.

    Diferente é a utopia que John Rawls propõe em seu livro “Uma Teoria da Justiça”, mais sofisticada do que a de comida no prato, criança na escola e a família toda no posto de saúde. Mais sofisticada, porque ela vai além da singela utopia brasileira, partindo do pressuposto de que a alimentação, a educação e a saúde seriam providenciadas de maneira satisfatória na sociedade de homens livres vislumbrada pelo filósofo político americano. Rawls considera que na posição original, em que os homens escolhem os princípios de justiça, eles privilegiarão a garantia das liberdades em detrimento das vantagens econômicas, pois desta forma eles conseguirão organizar a sociedade de maneira que cada indivíduo terá a oportunidade de cultivar suas potencialidades naturais e vê-las florescer e no conjunto a sociedade, unida em torno do respeito mútuo existente entre seres igualmente livres, será maior do que a soma dos seus membros.

    Sob esse aspecto, na utopia de Rawls, a liberdade tem primazia porque ela permite que a sociedade chegue a um estágio de estabilidade que garante seu funcionamento no longo prazo. De fato, se de um lado a liberdade leva à desigualdade entre os membros da sociedade, pois as diferenças de talentos poderão ser expressas sem restrições, fazendo com que uns tenham mais bens materiais do que outros, de outro essa mesma liberdade, garantida a todos, faz com que os indivíduos não se preocupem com a sua posição relativa na sociedade. Conforme o trecho que abre este artigo, gozando do direito de associar-se a quem quiser, de concretizar seu plano de vida específico, adaptado às suas características, o indivíduo livre adquire respeito próprio por constatar que suas especificidades, incluindo suas crenças religiosas e políticas são respeitadas, independentemente da sua posição na hierarquia econômica. Haverá pessoas com mais renda do que ele, mas a todos são garantidas instituições justas que não permitem que o benefício de uns seja conseguido à custa do prejuízo dos outros, de forma que as desigualdades de renda possam ser toleradas como um tributo a ser pago em prol da prosperidade geral, concretizada em liberdades e oportunidades para todos.

    Considerando essas explicações, quão diferente a utopia brasileira de Darcy Ribeiro da utopia americana de Rawls? Para Rawls, seguindo John Stuart Mill, à medida que o homem tem suas necessidades básicas satisfeitas, ele dará importância cada vez maior à liberdade. A pergunta que se coloca é se é possível em uma sociedade extremamente desigual como a nossa dar primazia à liberdade na organização das instituições, sem que se prejudique o objetivo de combate à miséria material. Rawls, viveu em um país materialmente próspero como os Estados Unidos, em que todos conseguiam melhorar de vida, mesmo que alguns melhorassem muito mais do que outros. Darcy Ribeiro viveu em um país em que uma parcela da população esteve permanentemente alijada dos bens materiais mais básicos, como comida e moradia. Os desafios, portanto, foram outros. No caso do professor de Harvard, era garantir que a prosperidade material levasse à estabilidade das instituições e ao pleno desenvolvimento moral e intelectual dos indivíduos pelo exercício da liberdade em uma estrutura justa. No caso do fundador da Universidade de Brasília, o desafio era garantir que o povo não fosse jogado na caçamba como material utilizável e descartável depois de não mais servir como objeto de exploração. A liberdade para Darcy Ribeiro nunca foi um foco de preocupação, não porque ele fosse comunista, mas porque como grande humanista, ele via as veias abertas da América Latina, que mostravam o destino de milhões de pessoas que nunca tiveram acesso ao mínimo para terem uma chance de participar da sociedade de maneira produtiva para si e para os outros.

    Singelas utopias de um lado, sofisticadas utopias de outro. Talvez um dia as Américas se encontrem na concretização de uma única utopia. Por enquanto, para nós latino-americanos, ricos e pobres, não nos esqueçamos da utopia brasileira de Darcy Ribeiro. Concretizá-la é o primeiro passo a ser tomado se quisermos parar de sermos povos fracassados e assim adquirirmos o respeito próprio que um dia nos permitirá escolher a liberdade preconizada por Rawls.

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