Materialismo para quê?

O materialismo mecânico é a teoria de que o mundo consiste inteiramente em objetos materiais e sólidos os quais, mesmo que sejam imperceptivelmente pequenos, são de outro modo coisas como as pedras. […]Esses objetos interagem da maneira que as pedras fazem: pelo impacto e possivelmente também pela atração gravitacional. A teoria nega que coisas imateriais ou aparentemente imateriais (tais como mentes) existam ou de outro modo as explicam como sendo coisas materiais ou movimentação de coisas materiais.

Trecho retirado do verbete sobre “Materialismo” da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

Darwin elaborou uma teoria da evolução com base nas mudanças aleatórias e na seleção natural … uma versão da evolução rigidamente materialista (e basicamente ateia).

Trecho retirado da palestra intitulada “A humanidade esqueceu-se de Deus? dada em Dallas, no Texas, em maio de 2023 por Stephen Meyer (1958-), doutor em filosofia da ciência americano e proponente da teoria do design inteligente, citando o paleontólogo e biólogo americano Stephen J. Gould (1941-2002)

 

Quero abordar hoje a falsa disputa entre design inteligente e as explicações da ciência biológica baseada na teoria da evolução”, afirma. […]O físico aponta que o principal argumento em defesa do design inteligente é que a complexidade dos seres vivos e de seus órgãos não poderia surgir do acaso, hipótese apresentada como complexidade irredutível: sem um “projetista” inteligente essas estruturas não poderiam existir. “A hipótese de que um criador ‘inteligente’ é responsável pelo surgimento da vida (e do próprio universo) não se presta a testes experimentais”, ressalta. “Portanto, não pode ser considerada científica.”

Trecho do artigo ”Design inteligente não é ciência e não deve ser ensinado nas escolas”, publicado no Jornal da USP de 12 de fevereiro de 2020, citando o professor do Departamento de Física Experimental da Universidade de São Paulo, Paulo Nussenzveig

 

Tanto em períodos pré-paradigmas quanto durante as crises que levam a mudanças de larga escala no paradigma, os cientistas normalmente elaboram muitas teorias especulativas e não articuladas que podem elas mesmas apontar o caminha para a descoberta. Frequentemente, no entanto, a descoberta não é exatamente aquela prevista pela hipótese especulativa e provisória. Somente à medida que os experimentos e a teoria provisória são articulados de modo a terem uma correspondência é que a descoberta emerge e a teoria torna-se um paradigma.

Trecho retirado do livro a “Estrutura das Revoluções Científicas” do físico e filósofo da ciência americano Thomas S. Kuhn (1922-1996)

 

    Prezados leitores, há algumas semanas tenho abordado a questão de como a religião começou a ser desafiada no Ocidente a partir da Reforma Protestante no século XVI e quanto esse desafio evoluiu ao longo dos séculos XVII e XVIII: deixou de ser um ataque meramente institucional à Igreja Católica e passou a ser um ataque intelectual e epistemológico. Intelectual porque a fé que acreditava em coisas inverossímeis, improváveis ou até impossíveis foi contraposta à razão que analisava o mundo natural. Epistemológico, porque a Bíblia deixou de ter a última palavra sobre assuntos como a origem do mundo e do homem, que podiam ter uma explicação baseada na premissa de que não era preciso recorrer a um Criador para que o ser humano entendesse como os fenômenos naturais se desenrolam de acordo com leis que descrevem os mecanismos de operação desses fenômenos.

    O resultado deste duplo ataque foi a ascensão do materialismo, isto é, a ideia, conforme explica o trecho que abre este artigo, que o mundo é composto unicamente por matéria que interage entre si. Conceitos como o Espírito Santo, a Santíssima Trindade e a Transubstanciação não tinham mais função explicativa, porque só objetos materiais poderiam ter efeito sobre outros objetos materiais. Não havia lugar para conceitos metafísicos que pudessem ser causa suficiente dos fenômenos observados no mundo fenomenológico. Sob essa perspectiva, a mente e a consciência não têm existência autônoma, como propõe o idealismo, a corrente filosófica que se opõe ao materialismo: elas são apenas manifestações de processos materiais que ocorrem no cérebro do homem e só atuam no mundo na medida em que tenham uma concretização material.

    Muitos foram os produtos deste materialismo filosófico triunfante. Neste meu humilde espaço já mencionei a física newtoniana, nesta semana meu objetivo será tratar da teoria da evolução do biólogo inglês Charles Darwin (1809-1882). A teoria da evolução foi a pá de cal na possibilidade de fé religiosa por parte dos intelectuais porque, conforme Stephen Mayer explica na palestra mencionada na abertura deste artigo, ela explica a vida não como uma dádiva divina, mas como um produto da evolução de seres mais simples aos mais complexos, por meio de mudanças biológicas graduais ao longo de longos períodos de tempo que permitem que os indivíduos se adaptem às condições ambientais e sobrevivam. Os neodarwinistas, entre os quais colocou-se Stephen Jay Gould, atualizaram a teoria de Darwin à luz das descobertas mais recentes sobre o DNA e as mutações dos genes, para esclarecer que essas mudanças graduais consistem em mutações genéticas que, se permitem uma melhor adaptação, serão preservadas para as próximas gerações porque permitirão aos seus portadores sobreviver e reproduzir-se; e se não facilitam a adaptação serão descartadas ou tornadas menos prováveis porque farão com que seus portadores ou morram ou não consigam reproduzir-se de maneira bem-sucedida, evitando a propagação dessa mutação genética maléfica.

    Assim, a teoria de Darwin parece ser a cereja do bolo dos materialistas, pois permite descartar Deus como agente causal de efeitos sobre o mundo material: bastam os objetos materiais eles mesmos, no caso os organismos vivos, para mudarem, evoluírem e propagar-se a depender do sucesso ou do fracasso da sua adaptação ao meio ambiente. E no entanto, eis que os próprios frutos científicos conquistados, notadamente o entendimento do papel do DNA na constituição dos organismos, abrem novas perspectivas neste século XXI, levando ao questionamento da teoria da evolução como suficiente para explicar a vida. Esse questionamento se materializa na teoria do desenho inteligente, que seus detratores como o físico Paulo Nussenzveig citado na abertura deste artigo, chamam de uma vertente do criacionismo, que vigorava antes de Darwin entrar em cena, sob a inspiração dos mitos bíblicos sobre a criação do mundo e do homem.

    Conforme Paulo Nussenzveig explica na conversa de rádio de 2020, reproduzida no Jornal da USP, os designers inteligentes propõem que a complexidade dos organismos vivos é muito grande para que sua constituição possa ser explicada por mutações aleatórias. É preciso haver uma mente brilhante que permite que os diferentes órgãos em uma célula, por exemplo, se organizem de forma que cada um desempenhe uma função e todos juntos em sintonia possam fazer com que a célula seja uma estrutura perfeita que existe como tal somente porque suas partes foram concatenadas em prol desse objetivo. Ora, para o físico da USP, propor a hipótese de um projetista que não pode ser testada devido à própria natureza etérea do projetista, é algo não científico.

    No entanto, há mais objeções que os proponentes da teoria do design inteligente, pessoas como Stephen Meyer e o químico orgânico americano James Tour (1959-) colocam à teoria da evolução. Darwin explicou como os organismos evoluem, mas não explicou como a vida surge. Até hoje ninguém nunca conseguiu criar vida em laboratório de maneira espontânea, sem a ajuda do pesquisador, e isso por uma razão fundamental: conforme Francis Crick e James Watson descobriram ao revelar a estrutura química do DNA, a vida requer instruções precisas: para que as proteínas que são os tijolos dos organismos vivos sejam produzidas, elas precisam ser codificadas, e tal codificação é feita pelo DNA, que é formado por letras químicas cuja ordem precisa determina o tipo de proteína que será produzido. Ora, se o DNA é uma instrução baseada em uma linguagem, não há como descartar uma mente que cria a linguagem e dá as instruções por meio dela.

    Assim, o ponto principal dos designers inteligentes é que, com base no nosso conhecimento atual sobre como a vida é possível, ela é baseada em informação química, e sem tal elemento mental, que dá as instruções para a síntese de proteínas, não é possível que a matéria inerte seja transformada de tal forma a ser considerada como tendo vida. Uma abordagem materialista que enfoca os impactos mútuos dos objetos materiais sem levar em conta a mente que atua sobre eles e lhes dá função e propósito não explica o aspecto mais fundamental da biologia, que por definição é a ciência que estuda a vida e os organismos vivos. Darwin pode ter explicado como os organismos vivos evoluem, mas sua teoria materialista e ateia não explica como a vida surge, pois a base da vida é a informação.

    Prezados leitores, pode ser que os designers inteligentes sejam derrotados pelos darwinistas e que no final das contas estes consigam chegar a uma explicação materialista satisfatória que dê conta da biologia como um todo. Ou conforme explica Thomas Kuhn em seu famoso livro, citado na abertura deste artigo, a tentativa incipiente de explicação alternativa proposta pelos ditos “criacionistas” leve a descobertas não vislumbradas por nenhuma das partes, mas robusta o suficiente para permitir a mudança do paradigma e a substituição da teoria darwinista por uma teoria que se adeque melhor ao que se sabe sobre a função do DNA como o código da vida. Aguardemos, com a mente aberta, sem pré-conceitos, se possível. Talvez o século XXI seja o momento em que a oposição dialética entre ciência e religião, entre materialismo e idealismo, seja superada por uma síntese revolucionária, quem sabe?

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Boas maneiras para quê?

“[…] você deve esperar encontrar [na corte] contatos sem amizade, inimigos sem ódio, honra sem virtude, aparências salvas e realidades sacrificadas, boas maneiras com comportamento ético ruim; e todos os vícios e virtudes tão disfarçados que quem quer que tenha refletido sobre um ou outro não conheceria nenhum deles quando os tivesse encontrado pela primeira vez na corte.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

 

Aprenda a bajular, porque somente os grandes sábios e santos são imunes à bajulação; mas quanto mais ao alto você for, mais delicada e indireta deve ser sua bajulação.

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

Uma “característica de um homem bem educado é a de conversar com quem lhe é inferior sem insolência, e conversar com quem lhe é superior com respeito e à vontade.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre algumas das iniciativas tomadas por Philippe d’Orléans (1674-1723) enquanto foi regente da França de 1715 a 1723, e usei o exemplo de sua vida para dar uma lição de moral, alegando que ele poderia ter feito muito mais pelo país e talvez tivesse contribuído para atenuar o desgaste da Monarquia francesa se tivesse vivido mais. E ele teria vivido mais se tivesse cultivado a virtude da temperança, isto é, se tivesse exercido um melhor controle sobre seus apetites. Afinal, a temperança é a sabedoria relativa à determinação do que é moderado e conveniente em relação aos prazeres do homem, o qual deve sopesar os efeitos benéficos e maléficos a curto e a longo prazo de dar vazão a seus apetites e tomar decisões com base na arte da medida do prazer e da dor que eles lhe causam.

    Nesta semana, meu foco não será na virtude, mas nas boas maneiras. Porque a verdade é que no ambiente cultural em que se vivia na Europa no século XVIII, com a proliferação de livre-pensadores e de libertinos que caçoavam da religião e das proibições que ela impunha, e se achavam muito inteligentes e criativos ao atacá-la enquanto instituição e enquanto prática, ficava difícil almejar a um comportamento cristão. Todos os preceitos das igrejas haviam perdido a credibilidade quando das repetidas guerras nos séculos XVI e XVII entre católicos e protestantes. Não era possível a homens do mundo, familiarizados com as descobertas científicas de Newton, com as mais recentes especulações filosóficas de Spinoza e Locke, serem criaturas morais que tomavam a Bíblia como a suprema autoridade para decidirem como se comportar. Na falta de rígidos padrões éticos, um homem de sensibilidade e inteligência inventou as boas maneiras e elaborou um manual dirigido a seu filho, como meio de educação do rebento, que ele esperava exercesse cargos no governo como Ministro ou diplomata.

    Este homem foi o 4º Conde de Chesterfield, Philip Dorner Stanhope, que foi membro da Câmara dos Lordes (1726), embaixador da Inglaterra na Holanda (1728) e governador-geral da Irlanda (1745-1746), onde criou escolas, estabeleceu indústrias, deu fim à perseguição aos católicos, acabou com a corrupção no governo e administrou com competência e imparcialidade. Apesar dessas realizações, seu principal legado ao mundo foram suas Cartas, publicadas depois de sua morte. Em que pese elas não terem atingido seu objetivo de formarem seu herdeiro para ser um membro da elite governante, já que o moço morreu antes do pai aos 36 anos, sem ter realizado nada digno de nota, as Cartas são uma coletânea de bons conselhos para quem quisesse ter sucesso em um mundo cujas instituições milenares, como a Igreja e a Monarquia, estavam sendo corroídas.

    Conforme o primeiro trecho que abre este artigo, o 4º Conde de Chesterfield tem uma visão equilibradas da Corte: não era nem um antro de homens degenerados e nem povoada por homens abnegados que tratavam da coisa pública com zelo e sacrifício pessoal. Não era preciso ter um comportamento moral ilibado e coerente, afinal o ideal do bom cristão tinha ficado para trás, mas era necessário sobretudo disfarçar seus vícios de modo que eles pudessem passar quase desapercebidos e que as aparências pudessem ser mantidas, para alívio de todos.

    O fato é que cada personagem na Corte tratava dos seus interesses da melhor maneira possível, o que muitas vezes significava moderação nas atitudes para conseguir ser bem-sucedido. Era preciso bajular as pessoas que tinham o poder para fazer nomeações, viabilizar contratos com o governo, mas não era de bom tom ser abertamente bajulador, porque isso poderia irritar o objeto dos elogios e torná-lo antipático aos desígnios do bajulador. Da mesma maneira, não era de bom tom tripudiar sobre aqueles que estavam abaixo na escala social, pois isso poderia nutrir o ressentimento e lembrar aos objetos do desprezo como a fortuna era arbitrária e injusta, o que poderia lhes inspirar a desígnios vingativos.

    Nesse sentido, os objetivos materiais imediatos tinham predominância sobre ideais de vida e as relações humanas não deveriam ser muito pessoais, calcadas nas emoções, nos valores em comum, o que sempre ofusca o raciocínio: eram relações baseadas nos interesses mútuos e todas as tratativas deveriam relevar as preferências ou antipatias pessoais em prol da obtenção de um acordo sobre um mínimo que fosse conveniente para ambas as partes. Adotando esse comportamento equilibrado, os homens da Corte poderiam satisfazer seus interesses egoístas sendo polidos, discretos e cautelosos no falar e no agir. Evitando excessos de insolência, desrespeito e bajulação, eles poderiam manter relações cordiais tanto com quem estava acima deles quanto como quem estava abaixo deles, viabilizando a consecução dos seus objetivos e em assim fazendo contribuindo para a paz social.

    Em suma, boas maneiras eram fundamentais, a despeito das ilusões perdidas em relação ao modo de vida cristão. E tais boas maneiras implicavam também uma atitude serena em relação à religião. Para Chesterfield, criticar abertamente a religião como libertinos e livre-pensadores faziam, fazer troça das suas proposições cientificamente absurdas, era algo vulgar e desrespeitoso. Vulgar porque com a profusão de obras anticlericais e antireligiosas, qualquer indivíduo de pouca inteligência e cultura poderia achar argumentos para lançar diatribes contra a Igreja, a Bíblia e Jesus Cristo. Desrespeitoso porque a religião era, afinal de contas, a garantia da moral. Sem a religião a moral se enfraquecia bastante, tornava-se um ativo desvalorizado. Tanto assim, que já em 1752 Chesterfield, observando na França como as pessoas criticavam livremente o governo e a religião, vislumbrou uma possibilidade cada vez maior de que houvesse uma revolução no país, tamanho era o desprezo mostrado ao Rei e à Igreja Católica.

    Prezados leitores, mesmo que a virtude e as boas maneiras não sejam a mesma coisa, o fato é que a falta de uma e de outra leva ao mesmo resultado catastrófico, de erosão da credibilidade das instituições que são o esteio da sociedade. Da mesma maneira que ocorreu com Philippe d’Orléans, cujo curto período no governo foi insuficiente para deixar um legado duradouro de boa governança do Estado para os sucessores de Luís XIV, talvez se mais pessoas da elite tivessem aderido ao manual de boas maneiras do 4º Conde de Chesterfield, os excessos de vulgaridade, desrespeito e arrogância teriam sido evitados e o povo francês não teria se rebelado da maneira violenta que o fez em 1789. Os franceses poderiam ter mantido sua monarquia, domesticando-a por meio da prevalência do Parlamento como na Inglaterra. Se faltam virtudes aos homens, imperfeitos que são, a lição das Carta ao seu Filho é que as boas maneiras são um substituto que pode contribuir para manter a sociedade organizada.

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Virtude para quê?

 O erro moral se deve exclusivamente a um equívoco de apreciação racional na relação quantitativa de prazeres e dores desenvolvida em cada escolha numa perspectiva diacrônica: ao optar por um determinado curso de ação, sendo-lhe possível fazer a escolha contrária, o agente estima equivocadamente a quantidade e/ou intensidade de prazer que ele pode obter imediatamente – pois ele é enganado pelo “poder da aparência”, causado pela expectativa de obtenção imediata desse prazer – em comparação à quantidade e/ou intensidade de prazer e dor que decorrem futuramente; no final das contas, ele acaba por contrair mais dores do que prazeres, ao contrário de sua estimativa no momento mesmo da escolha. Não se trata, portanto, de uma deficiência do poder do conhecimento na determinação do curso das ações humanas, como aventado inicialmente pela maioria dos homens, mas de ignorância do agente, que é enganado por uma falsa estimativa de prazeres e dores quando considerados no longo prazo, diante da expectativa de se obter uma quantidade de prazer imediatamente.

Trecho do ensaio “O argumento hedonista: a refutação final” escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução à sua tradução do diálogo Protágoras, de Platão (427 a.C.- 347 a.C.)

É uma visão desoladora – um homem com uma mente brilhante, de ideias liberais, lutando para reparar os danos causados pela intolerância do Grande Rei, deixando que seus nobres propósitos se afogassem em bebedeiras sem sentido, e perdendo o amor em um redemoinho de devassidão.

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre Philippe d’Orléans (1674-1723) que foi regente da França de 1715 a 1723

    Prezados leitores, na semana passada eu tratei do desastre causado pelos anos de guerra que Luís XIV (1643-1715) impôs ao seu país. Na sua morte, considerando que o herdeiro direto do trono tinha 5 anos, o governo foi exercido interinamente por Philippe d’Orléans, sobrinho do rei-Sol. A herança era maldita: uma dívida de 2 bilhões e 400 milhões de livres, uma dívida flutuante de 590 milhões de livres, na forma de notas promissórias emitidas pelo Tesouro Real. Em 1715 as receitas líquidas do governo eram de 69 milhões de livres, as despesas eram de 147 milhões de livres, sendo que a maior parte das receitas de 1716 já tinham sido gastas. O que fazer? Nesta semana, meu objetivo é tratar de alguns dos aspectos da regência do duque de Orléans para descrever o que ele fez e o que ele poderia ter feito, se tivesse seguido as lições do personagem Sócrates expostas no diálogo Protágoras.

    Para debelar a crise financeira e econômica, o Regente nomeou como Ministro das Finanças o escocês John Law (1671-1729), que propôs lançar um sistema de incentivo à atividade econômica pelo estímulo ao crédito: o Estado emitiria papel moeda lastreado nas reservas de metais preciosos e terras do país e baixaria a taxa de juros e os impostos de modo que com mais capital disponível aos agentes privados, os empreendedores criassem negócios e gerassem empregos, fazendo girar a roda da economia. E assim foi feito. Em 1718 foi criado o Banque Royale, que ofereceu aos franceses que detinham títulos da dívida do governo trocá-los pelo valor de face por ações em uma Companhia das Índias cujo objetivo era a exploração da bacia da foz do rio Mississippi, onde foi fundada a cidade de Nova Orléans, em 1718, em homenagem ao regente. A chance de se livrar de títulos que valiam um terço do valor nominal fez com que houvesse uma corrida pela compra de ações na empresa e fomentou a especulação com essas ações.

    Além da criação desse sistema de crédito, Law diminuiu as tarifas aduaneiras que eram impostas no comércio interno, fez uma distribuição de terras de propriedade da Igreja e de corporações aos camponeses. Investiu na melhoria da infraestrutura do país, organizando a construção de pontes, rodovias e canais. Concretizou uma expansão industrial de 60% ao longo de 1719-1720, pela diminuição dos juros sobre os empréstimos.  Com mais dinheiro circulando na economia, devido não só ao frenesi causado pela negociação das ações da Companhia das Índias, mas pela diminuição do peso do Estado sobre os agentes privados, a agricultura, a indústria e o comércio floresceram.

    Por outro lado, a negociação das ações acabou tornando-se uma pirâmide financeira, e quando chegaram notícias das dificuldades enfrentadas pelos colonos na exploração da Luisiana todos quiseram ao mesmo tempo livrar-se das ações, garantidas pelas reservas nacionais. Os que chegaram primeiro e os bem conectados conseguiram trocar suas ações pelo ouro do Tesouro francês. Outros perderam muito dinheiro, já que as ações, que no seu auge valiam 12.000 livres, acabaram sendo negociadas ao final por 200 livres, e para diminuir os prejuízos o governo ofereceu em troca dos títulos podres direitos sobre as receitas governamentais mediante descontos do valor de face que variaram de 16 a 95%. Law, que também tinha investido todo seu dinheiro na Companhia, foi demitido pelo Regente em dezembro de 1720 e foi embora para Veneza, com sua mulher e filha, vivendo lá na pobreza e na obscuridade até sua morte.

    Dessa maneira, por mais que a expansão monetária criada pelo sistema de Law tenha causado depreciação da moeda, inflação e caos quando a bolha estourou, ela conseguiu fazer com que o Estado francês se livrasse da dívida herdada de Luís XIV, o que permite dizer que Philippe D’Orléans foi bem-sucedido em abordar o problema da falência em que se encontrava o Tesouro Público e houvesse uma recuperação econômica que superou a estagnação causada pelas guerras do rei-Sol e pela perseguição de grupos produtivos de pessoas, como os huguenotes. Isso é o que foi feito em termos financeiros e econômicos. Agora tratemos de falar sobre o que não foi feito.

    O Regente morreu de um ataque apoplético aos 49 anos, nos braços de uma amante, depois de Luís XV ter sido declarado maior aos 13 anos e ter manifestado seu desejo de que seu primo continuasse à frente dos negócios públicos. É de se supor que Philippe, que nos seus oito anos no poder sempre trabalhou para que a França não se envolvesse em guerras, tivesse tido uma influência benéfica sobre o reinado de Luís XV (1715-1774) que poderia ter evitado a participação da França na Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748) a qual, juntamente com a participação, já sob o reinado de Luís XVI (1774-1792), na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783) contribuíram para que o Estado se tornasse novamente endividado e falido, o que foi um dos fatores que desencadearam a Revolução Francesa, em 1789.

    E qual o motivo dessa morte prematura, que teve tantas repercussões inesperadas sobre a história do país? Conforme o trecho que abre este artigo, Philippe, apesar de ser um homem preparado intelectualmente para governar, pois estava mais em sintonia com os novos tempos de livre-pensamento do que seu tio, limitado por seus preconceitos religiosos, entregou-se sempre aos excessos da bebida e do sexo. Nunca deu ouvidos aos médicos que diziam que se ele continuasse com sua vida desregrada iria morrer logo. A maioria de nós diria que foi um homem vencido pelo prazer, a despeito da sua capacidade de pensar e de formular soluções para os problemas que encontrou quando esteve à frente do governo francês. Sócrates tinha uma opinião diferente, a que Daniel R. N. Lopes, o tradutor do Protágoras, dá o nome de intelectualismo socrático.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o conhecimento leva à virtude e mesmo que se adote a posição hedonista de que o prazer e o bem são a mesma coisa, o conhecimento permite ao homem evitar o erro de escolher o que é mal do ponto de vista ético por ser prazeroso porque o conhecimento nos dá a arte da medida: ele permite pesar os prós e os contras de uma determinada atitude, considerando o efeito que ela terá no curto e no longo prazo. Assim é que um beberrão inveterado e viciado em sexo como Philippe d’Orléans, estava sujeito, aos olhos de Sócrates, não ao domínio do prazer em detrimento da razão, mas ao domínio da ignorância que lhe impedia de chegar à verdade. Se ele soubesse dos efeitos acumulados do seu excesso de álcool, do seu excesso de doenças venéreas, do sofrimento físico que eles iriam lhe causar, do mal que sua morte precoce causaria em um menino de 13 anos que perdeu com ele o último membro da sua família, ele teria decidido que tais prazeres não eram prazeres autênticos, mas aparentes, que na verdade traziam dor no longo prazo, de forma que os malefícios eram maiores do que os benefícios. Sob essa perspectiva, mesmo um hedonista, regido pelo prazer, pode ter uma vida ética se ele tiver acesso ao conhecimento que lhe permite chegar à justa medida do que usufruir no presente e do que evitar no futuro e vice-versa.

    Prezados leitores, virtude para quê? O talento desperdiçado do Regente, que tanto fez falta depois na história do país, o que contribuiu para a queda da Monarquia e para a onda de violência e destruição que tomou conta do país por pelo menos 10 anos, até a ascensão de Napoleão em 1799, teria sido mais bem aproveitado se Philippe não tivesse se autodestruído em sua busca ignorante pela satisfação imediata. À luz das lições socráticas, a virtude serve para dar a correta medida do prazer, permitindo que aquele que dele desfruta tenha um efeito benéfico sobre si mesmo e sobre os que o rodeiam aqui e na eternidade.

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Glória para quê?

Boisguillebert foi um dos primeiros a rejeitar a ilusão mercantilista de que os metais preciosos constituíam riqueza por si sós, e que o propósito do comércio é o de acumular ouro. A riqueza, dizia ele, consiste na abundância de produtos e no poder de produzi-los. A riqueza essencial é a terra; o fazendeiro é a base da economia, e sua ruína implica a ruína de todos; em última análise, todas as classes estão unidas por uma comunhão de interesses.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando o plano econômico de Pierre Le Pesant, Senhor de Boisguillebert (1646-1714), para mitigar o caos e a miséria durante o reinado de Luís XIV (1643-1715) na França

 

É a camada mais baixa da população que, pelo seu trabalho e indústria, e suas contribuições ao tesouro real, enriquecem o soberano e seu reino; no entanto, “é essa classe que agora, pelas exigências da guerra e a tributação de suas economias, está reduzida a viver em trapos e em cabanas em ruínas, ao mesmo tempo que suas terras permanecem não cultivadas”, na ausência de seus filhos recrutados para a guerra.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), explicando as propostas de reforma econômica do engenheiro militar Sébastien Le Prestre, senhor de Vauban (1633-1707) para a França de Luís XIV (1638-1715)

As pessoas acostumadas à bajulação consideram ressentimento, amargura ou excesso aquilo que é simplesmente a pura verdade […] Vossa Majestade não ama Deus, Vossa Majestade somente O teme e com um enorme temor. […] Sua única religião consiste de superstições, de observâncias superficiais e insignificantes […] Vossa Majestade ama somente sua glória e seu ganho.

Trecho de uma carta anônima escrita por François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715), arcebispo de Cambrai, ao rei Luís XIV, citada na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

 

    Prezados leitores, na semana passada eu expliquei aqui neste humilde espaço o alerta que o filósofo e matemático Leibniz (1646-1716) fez sobre os voos da mente humana que, livre das absurdas proposições da religião a respeito da realidade objetiva, poderia acabar também deixando de lado os valores éticos ancorados nos mitos religiosos. Leibniz temia a desordem, a violência e a destruição que o homem, submetendo-se somente à sua própria vontade, e não mais à vontade divina, poderia ocasionar. Ele não viveu o suficiente para ver Napoleão empreender guerras na Europa por mais de 20 anos ininterruptamente, mas em sua época pode ver o rei da França, Luíz XIV, atuar da mesma maneira desimpedida, própria dessa nova era de liberdade.

    Luís XIV construiu Versalhes, protegeu artistas como Molière (1622-1673) e Racine (1639-1699), mas ao longo do seu longo reinado de 72 anos ele cultivou a guerra como meio de aumentar o território do país e garantir que a França tivesse fronteiras mais naturais e defensáveis. Em 1672 invadiu a Holanda, em 1688 invadiu a Alemanha, em 1701 apoderou-se de cidades que serviam de defesa para os Países Baixos Espanhóis (que atualmente correspondem mais ou menos à Bélgica). Para montar seus exércitos, foi implacável na tributação dos franceses, não de maneira justa claro, pois os pobres arcavam com a maior parte dos impostos. Além disso, as classes baixas contribuíam com o esforço de guerra pelo recrutamento forçado de soldados e pelo aprovisionamento de víveres para as tropas, e sofriam mais diretamente as consequências do ativismo bélico do rei-Sol. Afinal, a França invadia os países vizinhos, mas estes revidavam, invadindo-a, pilhando-a, matando como os soldados franceses faziam alhures.

    O resultado de anos e anos de campanhas militares foi devastador para o comércio, para a indústria e para a agricultura, pois todos os recursos do país eram canalizados para custear os sonhos gloriosos de Luís XIV de aumentar o território do país. A agricultura foi prejudicada pela falta de mão de obra, recrutada para as guerras, e pela destruição das plantações pelos exércitos invasores. O comércio sofreu com as sanções impostas pelo governo francês à importação de produtos estrangeiros, com a consequente retaliação dos países objeto das sanções, que pagavam na mesma moeda, impondo barreiras alfandegárias. A indústria, por sua vez, viu-se sufocada por regulações que acabavam tendo um efeito confiscatório de punição na forma de multas impostas sobre aqueles que não seguissem as regras, sem que fossem criados estímulos para as pessoas empreenderem livremente.

    Não é de se admirar que a população tivesse diminuído de 23 milhões de pessoas em 1670 para 19 milhões em 1700 devido à obsessão com guerras que causavam fome, pobreza e doenças. E que o Estado estivesse falido: em 1697 a receita total do Tesouro francês foi de 81 milhões de livres e as despesas foram de 219 milhões. Por outro lado, como o livre-pensamento andava solto, para o bem e para o mal, surgiram vários críticos do modo de governar do rei-Sol e propostas para tirar a França da ruína material em que se encontrava no final do século XVII e começo do século XVIII. Como mostram os trechos que abrem este artigo, a receita da redenção do reinado de Luís XIV seria que o rei cuidasse das pessoas e não da conquista de territórios.

    O Marquês de Vauban defendia, com base em números cuidadosamente compilados, que era preciso diminuir a carga de impostos sobre aqueles que carregavam o país nas costas, isto é, os que trabalhavam na agricultura e na indústria. Diminuindo os impostos, haveria um florescimento da atividade econômica que criaria empregos, geraria renda e faria nascer consumidores, estabelecendo um ciclo virtuoso de produção e consumo, que se complementariam. Como o Senhor de Boisguillebert afirmava, não era o acúmulo de metais preciosos que fazia a riqueza de um país, pois se não houvesse produtos agrícolas e manufaturados à disposição, o valor relativo dos metais seria diminuído pela escassez da produção. A economia real, isto é, aquela que gerava riqueza sustentável, era a economia dos produtores e não dos acumuladores de dinheiro.

    Luís XIV acabou não seguindo o conselho de nenhum desses estudiosos que procuraram, à luz da observação do que acontecia no país em termos de destituição do povo, formular soluções que fizessem a França renascer das cinzas de anos a fio em que a organização das atividades girava em torno da guerra. Como afirmou Fénelon em sua carta anônima, o rei era rodeado de bajuladores e, cioso do seu próprio valor, considerava qualquer crítica atentado de lesa-majestade contra sua dignidade. Acrescentando-se à vaidade do rei sua falta de um verdadeiro espírito religioso, de humildade perante uma autoridade maior que a sua, e estava consolidado seu caminho de perseguição da glória a qualquer custo, o que significou principalmente o sangue do povo francês.

    Em seu leito de morte, o rei-Sol deu um conselho ao seu bisneto, o futuro Luís XV: “não me imite no gosto que tive pelas grandes obras e pela guerra”. Mas a nós, que temos o privilégio da visão retrospectiva, fica claro que os sonhos de grandeza do rei, que amava a si mesmo mais do que tudo, lançaram os germes da Revolução Francesa, que causaria ainda mais morte e destruição.  Prezados leitores, fica para nós, no século XXI, uma pergunta: glória para quê? Para a satisfação dos anseios narcisísticos de um tirano, como o rei-Sol, ou para a consecução de algo transcendente ao indivíduo como Leibniz e Fénelon propunham? O que é possível ou provável atualmente? Observem os líderes políticos atuais e julguem vocês mesmos.

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Conhecimento para quê?

Pode ser dito que Epicuro e Spinoza, por exemplo, levaram uma vida absolutamente exemplar. Mas essas razões cessam de existir frequentemente nos seus discípulos ou imitadores, os quais, acreditando-se liberados do medo inconveniente de uma Providência que vê tudo e de um futuro ameaçador, dão rédea solta às suas paixões selvagens e voltam sua mente à sedução e à corrupção de outros[…]

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

“Eu sempre começo como um filósofo,” ele disse, “mas sempre acabo como um teólogo” – isto é, ele achava que a filosofia deixava de cumprir seu objetivo se não levasse à virtude e à piedade.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), comentando sobre o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716)

 

A opinião da maioria sobre o conhecimento é mais ou menos a seguinte: que ele não é forte, nem hegemônico, nem soberano. Tampouco ela pensa que é a mesma coisa que comanda o homem, mas que, frequentemente, mesmo em posse do conhecimento, não é o conhecimento quem o comanda, mas alguma outra coisa, ora a ira, ora o prazer, ora a dor, às vezes o amor, muitas vezes o medo. Ela praticamente considera o conhecimento como se fosse um escravo, arrastado por aí por tudo o mais. Porventura, a sua opinião se coaduna com essa, ou b, você crê que o conhecimento é belo e capaz de comandar o homem, e que, se alguém souber o que é bom e o que é mau, não será dominado por nenhuma outra coisa a ponto de praticar algo diferente do que o conhecimento prescrever, sendo a inteligência suficiente para socorrer o homem?

Trecho da tradução de Daniel R. N. Lopes do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.) em que o personagem Sócrates fala

 

    Prezados leitores, eu venho aqui explicando uma parte das ideias de filósofos e pensadores como Anthony Collins (1676-1729), Baruch Spinoza (1632-1677), Anthony Ashley Cooper, o terceiro Conde de Shaftesbury (1671-1713) e o ainda vivo Sam Harris (1967-, todos deliberada ou inadvertidamente minando as bases da religião no Ocidente. A Bíblia não pode ser vista como fonte de conhecimentos factuais, no máximo como um conjunto de histórias míticas com algum valor moral, para quem está inserido na cultura judaico-cristã. O homem não tem livre arbítrio pelo fato de a consciência ser um dos processos que se desenrolam na mente do homem e portanto, nossas escolhas morais não dependem exclusivamente de nós e da nossa relação especial com Deus, mas do contexto em que atuamos como indivíduos. Os conceitos de bem e mal não são impostos por uma divindade que dita o que deve e o que não deve ser feito, mas são fruto da experiência do homem tentando sobreviver na Terra e organizando-se em grupos sociais para melhor enfrentar os concorrentes na luta por recursos escassos. Todas essas ideias saíram da cabeça dos pensadores que no século XVII começaram a pensar livres das amarras da religião cristã e continuam agindo da mesma forma no século XXI. Nesta semana, meu objetivo será estabelecer um contraponto a esse livre-pensar triunfante, nas figuras de Leibniz e de Sócrates (470 a.C.- 399 d.C).

    Não que Leibniz fosse avesso ao exercício da reflexão. Ao contrário, o homem era um polímata e o rei da Prússia, Frederico o Grande, definiu-o como uma academia nele mesmo. Inventou o cálculo infinitesimal na mesma época que Isaac Newton, mas publicou seus achados antes e ficou com os louros da criação, mesmo porque sua notação era melhor. Deu conselhos infrutíferos ao rei da França Luís XIV que lançasse expedições militares para conquistar o Egito e não invadisse os principados alemães. Talvez se o rei-Sol tivesse escutado a França não teria ido à falência por suas guerras europeias, e teria se transformado na potência imperial em que se transformou a Inglaterra. O que é importante para os fins deste humilde artigo é que ele refletiu sobre o conflito entre a religião e a racionalidade que explodia na Europa com a física newtoniana e com a concepção abstrata de Spinoza de um Deus indiferente que estava presente em tudo como a própria substância das leis que regiam o funcionamento da Natureza.

    Conforme os trechos que abrem este artigo, Leibniz preocupava-se com as consequências das seguidas derrotas que a religião sofria para a ciência, que descobria a ordem do Universo sem que fosse necessário pressupor a existência de nenhuma entidade metafísica. O livre-pensar, caso se tornasse prática corriqueira, trazia sérios riscos à ordem e à paz social. Uma coisa era que seres íntegros como Epicuro e Spinoza, seres dotados de grande capacidade intelectual, mas aliada a uma alta consciência moral, filosofassem fora de uma estrutura teológica. Eles não causariam mal nenhum, porque neles o conhecimento era um meio de chegar à verdade, mas também à virtude: conhecer para ser um ser humano melhor, adaptado à vida em sociedade e capaz de contribuir para ela.

    Outra coisa muito diferente era que indivíduos que não cultivavam a virtude, mas imitavam os livre-pensadores e assim se desfaziam das restrições comportamentais impostas pela religião, fizessem uso da sua liberdade recém-conquistada para atuar de acordo com suas paixões e ambições: afinal, se não era mais crível que os maus iriam para o inferno e os bons para o céu, para que preocupar-se em agir moralmente se tal agir me prejudicaria individualmente? Nesse sentido, Leibniz via com maus olhos as disputas ideológicas entre católicos e protestantes: elas não levavam ao bem nem à piedade, ao contrário tiravam credibilidade da religião, fomentavam a discórdia entre as pessoas e por isso minavam a sociedade, incitando à violência.

    Em suma, para Leibniz filosofar era saudável se os voos da mente humana não levassem o indivíduo para longe demais da virtude e do senso do divino, de uma autoridade transcendente ao qual todos deveriam se submeter. Esse enfoque em colocar o conhecimento dentro de limites éticos já era uma preocupação do Sócrates retratado por Platão no diálogo Protágoras. O conhecimento deve ser o senhor do homem, deve ser a fundação na qual seus atos são praticados, ele não pode vir a reboque das paixões humanas, ser um mero espectador passivo delas ou lhes servir de disfarce, como tantas vezes acontecia nos debates públicos em Atenas, quando os argumentos eram elaborados não em busca da verdade, mas do convencimento da plateia.

    Prezados leitores, em seu capítulo dedicado a Leibniz, Will e Ariel Durant apontam como ele exemplificou uma sapiência em relação aos limites e os perigos da razão e da liberdade, em contraposição à idolatria da razão que foi a pedra de toque do Iluminismo no século XVIII, em seu afã de destruir todas as bases da religião, para que o homem, livre das falsas superstições, dos rituais anacrônicos, se dedicasse a entender os mecanismos do universo e assim obtivesse o conhecimento para tornar a vida de todos melhor. No final das contas, a pergunta que Leibniz se colocou, continua válida, considerando que o mesmo conhecimento que nos deu o progresso material e que tornou a vida de qualquer humilde gari no século XXI mais confortável e mais segura do que a vida do rei Luís XIV ou do próprio Leibniz no século XVII, também nos deu as armas nucleares que pesam sobre o nosso futuro. Conhecimento para quê? Para levar uma vida virtuosa ou para concretizar nossas ambições? A resposta pode ser pensada livremente.

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