Yahoos

Nem a razão é entre eles um ponto problemático como é entre nós, em que os homens podem discutir de maneira plausível defendendo ambos os lados da questão; ao contrário, o indivíduo fica imbuído de uma convicção imediata; como necessariamente deve ocorrer quando a razão não é misturada, obscurecida ou desfigurada pela paixão e pelo interesse. […] De maneira que controvérsias, arengas, disputas e assertividade em relação a proposições falsas ou duvidosas são males desconhecidos entre os Houyhnhnms.

Trecho retirado do livro “As Viagens de Gulliver”, do escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), em que ele descreve o povo que habita o País dos Houyhnhnms

Todavia, redirecionar seus apetites e não lhes ceder, usando a persuasão e a força de modo a tornar melhores os cidadãos, nesse aspecto eles em nada se diferem dos outros, por assim dizer, e esse é o único feito de um bom político.

Trecho da fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Cálicles em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.) em que o filósofo compara os políticos de sua época com os antigos, como Péricles, Címon, Milcíades e Temístocles

Se traçarmos um panorama das maiores ações que foram realizadas no mundo … que são o estabelecimento de novos impérios pela conquista, o avanço e o progresso de novos esquemas filosóficos e a elaboração, assim como a propagação, de novas religiões, constataremos que os criadores de todos eles foram pessoas cuja razão natural permitiu grandes revoluções por conta da sua dieta, da sua educação, da prevalência de certo temperamento, juntamente com a influência de determinado clima e atmosfera… Porque o entendimento humano, alojado no cérebro, é perturbado e inundado por vapores que ascendem das faculdades baixas para irrigar a invenção e torná-la frutífera.

Trecho da obra “História de um Tonel” do escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), citado na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada eu explorei a questão se Vladimir Putin, o presidente da Rússia, é ou não é um tirano, no sentido dado à palavra por Cálicles, o interlocutor de Sócrates no diálogo Górgias, ou seja, o líder político que ascende ao poder e impõe suas próprias normas com coragem e inteligência, mantendo-se no topo e adquirindo fama e glória, aclamado pelas massas como grande homem porque soube mostrar força suficiente para derrotar seus inimigos. Não pretendi então dar respostas a essa pergunta, mesmo porque o desenrolar da guerra na Ucrânia está longe de um desenlace, e tal desenlace irá definir a sorte de Putin e sua continuidade no poder, de forma que ele pode sair-se vitorioso e conseguir permanecer como presidente do maior país do mundo por quanto tempo ainda ele considerar que esteja apto para trabalhar, ou pode ser derrotado e terminar como o rei Arquelau, citado naquele artigo.

    Nesta semana meu objetivo será o de explorar o porquê de nós termos uma atração por tiranos, em todas as épocas históricas e em todas as civilizações. Por que nós, seres humanos, vira e mexe colocamos em um panteão esses líderes que forçam seu caminho rumo ao topo pela vontade e pela simbiose com as massas? Para tanto, vou me valer não só das interações entre Cálicles e Sócrates, mas das reflexões de Jonathan Swift, escritor irlandês criador de sátiras, duas das quais citadas aqui.

    Nas “Viagens de Gulliver”, o narrador-viajante, um ser humano, acaba chegando a uma ilha habitada pelos Houyhnhnms, que mantém sob controle os Yahoos. A diferença entre uns e outros é simples: os Houyhnhnms são seres dotados da verdadeira razão, conforme explicado no trecho da obra citado na abertura deste artigo: eles utilizam seu cérebro para relatar fatos, para entender uns aos outros, para chegar à verdade óbvia a qualquer um, porque desprovida de qualquer viés ditado pelo temperamento, pela paixão, por predileções idiossincráticas; os Yahoos, ao contrário, assemelham-se aos seres humanos, porque têm capacidade de pensar, mas é um pensamento sempre distorcido pelos vieses, pelos “vapores”,  oriundos das emoções, dos instintos mais baixos, conforme Swift explica em “História de um Tonel”, sátira também citada acima, em que o autor fala das origens pouco nobres dos maiores empreendimentos humanos: os impérios, as filosofias e as religiões.

    Dessa forma, os Yahoos só conseguem ter opiniões, que são pensamentos marcados por esses aspectos não racionais e portanto, duvidosos, sujeitos a eternas disputas com outros pensamentos, frutos de uma atividade intelectual contaminada pelas diferenças irredutíveis entre os diferentes membros do grupo. É por isso, que os Yahoos têm uma dupla característica, que é também uma característica dos seres humanos: são brutos e agem por instinto natural, mas ao mesmo tempo fazem coisas que estão além dos instintos porque, dotados de um cérebro, eles acabam o usando para enganar os outros, para satisfazer seus interesses de maneira sub-reptícia e eficaz, de uma forma que a mera satisfação de necessidades instintivas não conseguiria concretizar.

    Os Yahoos conseguem ser intrigantes, maledicentes, espertos para saciar seus apetites da melhor maneira possível, mas jamais chegarão ao nível dos Houyhnhnms que, dotados da verdadeira razão, convivem de maneira pacífica entre si, mostrando-se benevolentes uns com os outros por saberem que a ordem e a paz são o melhor caminho para todos no longo prazo, em que pese a satisfação dos apetites individuais possa ser atraente no curto prazo.

    De um lado então, os seres cujas ações são ditadas pelos apetites e pela racionalização dos apetites, que os torna ainda mais insidiosos, e outro os seres cujas ações são ditadas pelo exercício desapaixonado da razão em busca da verdade óbvia a todos. Ora, essa dicotomia não está presente na discussão entre Cálicles e Sócrates no “Górgias” sobre as práticas políticas na Atenas democrática? No ponto do diálogo cujo trecho abre este artigo, Sócrates propõe seu ideal de líder político, que é aquele que coíbe as paixões dos cidadãos, direcionando-os para o caminho do bem, da ética. O líder político ideal não cai nas graças do povo satisfazendo seus apetites, e sob essa perspectiva Péricles (495 a.C.-429 a.C.), estadista ateniense, ao construir prédios magníficos, muralhas, estaleiros, santuários não fez mais do que adular as massas, e assim falhou no critério estabelecido por Sócrates, pois não tornou seus concidadãos melhores. Ao contrário, eles permaneceram reféns das mesmas paixões que haviam sido satisfeitas no tempo em que Péricles era o líder inconteste de Atenas que a preparava para a fatal guerra contra Esparta expandindo-lhe a infraestrutura. Tanto assim que segundo Diodoro Sículo, Péricles foi acusado de apropriação indébita do erário público e condenado a pagar uma multa de oitenta talentos. Ou seja, o povo que o idolatrava era o mesmo que o acusou de ladrão e que depois o elegeu general.

    À luz das lições de Jonathan Swift e de Platão, parece que nossa natureza de Yahoos, seres dotados de apetites e de uma débil racionalidade que na maior parte das vezes está a serviço da satisfação deles, nos faz termos uma atração fatal pelos tiranos: eles nos adulam, falam aquilo que queremos ouvir, que somos fortes, que somos superiores aos outros, e assim satisfazem nossas necessidades momentâneas, às expensas muitas vezes da nossa sobrevivência e bem-estar a longo prazo. Prezados leitores, diante dessa constatação, só nos resta o conforto de ao menos sermos capazes de termos consciência das nossas fraquezas e de que, embora cientes de que jamais chegaremos a Houyhnhnms, alguns de nós são capazes de cultivar esse ideal inatingível.

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De Arquelau a Putin

[…] o homem que pretende ter uma vida correta deve permitir que seus próprios apetites dilatem ao máximo e não refreá-los, e, uma vez supradilatados, ser suficiente para servir-lhes com coragem e inteligência, e satisfazer o apetite sempre que lhe advier. Mas isso, julgo eu, é impossível à massa: ela, assim, vitupera tais homens por vergonha, para encobrir a sua própria impotência, e afirma que é vergonhosa a intemperança, como eu dizia antes, e escraviza os melhores homens por natureza; ela própria, incapaz de prover a satisfação de seus prazeres, louva a temperança e a justiça por falta de hombridade.

Trecho de fala do personagem Cálicles em seu diálogo com Sócrates em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Quem quer que prefira sua própria glória aos sentimentos de humanidade é um monstro de orgulho e não um homem; ele só conquistará vanglória, porque a verdadeira gloria é encontrada somente na moderação e na bondade… Os homens não devem pensar bem dele, já que ele os menosprezou tanto, derramando o sangue deles profusamente por uma vaidade brutal.

Trecho da obra As Aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses, do teólogo e escritor francês François de Fénelon (1651-1715), citado na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Eu atribuo a fake news de ”rebelião armada” às falhas de Putin. Ele deixou de tratar do conflito latente entre Prigozhin e os generais, apresentando aos soldados e ao país uma guerra sem fim que desmoralizou o povo russo. Se a Rússia não consegue derrotar a patética Ucrânia, como ela pode fazer frente ao Ocidente?

Trecho do artigo intitulado “Putin dá-se um tiro na cabeça”, do economista americano Paul Craig Roberts, sobre a rebelião do grupo Wagner, no último fim de semana, sob a liderança de Yevgeny Prigozhin, que ameaçou uma marcha até Moscou

    Prezados leitores, na semana passada eu citei aqui neste meu humilde espaço Arquelau, o tirano da Macedônia que Polo, o interlocutor de Sócrates, no diálogo Górgias, admirava por ser um sujeito que exerceu o poder do modo como bem entendeu durante 14 anos. O outro personagem que nutre admiração por líderes como Arquelau é Cálicles, com quem Sócrates interage posteriormente na obra. Nesta semana explorarei a caracterização positiva que Cálicles faz desse tipo de político, de modo a contrapô-la a uma caracterização negativa do tirano feita por François Fénelon. Meu objetivo é lançar luz sobre a rebelião armada ocorrida no sábado dia 24 de junho, na qual cerca de 4.000 soldados do grupo mercenário Wagner, responsável pelas operações militares russas na Ucrânia, decidiram rumar a Moscou para algum tipo de protesto que não sabemos o que foi. Terá sido uma contestação ao modo como Vladimir Putin, o presidente russo, tem conduzido a guerra iniciada em fevereiro de 2022 e que se arrasta há mais de ano sem sinal de conclusão à vista, como considera Paul Craig Roberts?

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Cálicles a vida a ser vivida por um verdadeiro homem é feita de coragem e inteligência. Coragem para dar vazão a seus apetites, a suas paixões da maneira mais intensa possível, e inteligência para saber fazê-lo no momento e na hora certos. A temperança, isto é, o autocontrole, não é uma virtude, pelo fato de ela advir da covardia e da incapacidade de atuar na sociedade, de agir de maneira destemida de modo a obter aquilo que se deseja.

    Nesse sentido, Cálicles faz uma distinção entre os líderes e as massas. Os líderes conseguem concretizar suas ambições por não terem medo e por saberem influenciar as pessoas, obtendo delas a satisfação dos seus interesses. As massas, ao contrário, covardes e incapazes por natureza, procuram impor limitações aos líderes por meio de leis que lhes coíbam a capacidade de atuar de acordo com sua própria natureza superior. Para Cálicles, os homens corajosos e inteligentes têm um direito natural a dominar e a obter mais posses do que os homens inferiores, que nasceram para se submeter ao líder, porque têm medo e são estúpidos. A verdadeira justiça, isto é, aquela que mais se adequa à natureza dos homens, é a justiça do mais forte.

    Temos então, de acordo com a visão de Polo e de Cálicles, uma visão do tirano, exemplificado por Arquelau, como um homem realizado, porque conseguiu aquilo que almejava, dando vazão a todos os seus apetites, de poder, de glória, de riquezas. Ocorre que, conforme Platão conta no diálogo Alcibíades Segundo, o namorado de Arquelau assassinou-o para assumir o poder em seu lugar, e depois de três ou quatro dias como tirano, foi ele mesmo trucidado por outros homens que contra ele conspiraram. Dessa forma, a força que sempre se impusera, acabou sendo destruída por outra força igualmente arbitrária, que por sua vez foi suplantada por outra força, em um ciclo ininterrupto de violência.

    Considerando o final infeliz de Arquelau, apesar das previsões otimistas de um Cálicles ou um Polo sobre a vida bem-aventurada dos tiranos, é pertinente lembrarmo-nos das lições de um pensador francês do século XVII, François Fénelon, imbuído do espírito do cristianismo de que é melhor cultivar o amor do que a guerra. Conforme o trecho que abre este artigo, o rei que persegue a glória fazendo guerras e derramando o sangue dos seus súditos é um mal líder, pois a moderação e o controle das suas paixões são as verdadeiras virtudes. Agir de maneira voluntariosa perseguindo inimigos internos e externos é sintoma de uma vaidade condenável, uma falha no caráter do líder que deve ser condenada e coibida.

    É neste ponto que retomo a pergunta feita acima, considerando as diferentes concepções de liderança de Cálicles e de Fénelon. Será que esse episódio ocorrido no último fim de semana na Rússia é um sinal de fraqueza do presidente russo no sentido dado por Cálicles à fraqueza? Será que ele está sendo contestado por ter mostrado falta de capacidade na concretização de objetivos militares e políticos tangíveis para o povo russo? Afinal, não se vislumbra um fim à guerra e centenas de milhares de pessoas já morreram sem que a Ucrânia deixe de continuar lutando e sem que os Estados Unidos e seus aliados deixem de fornecer armas. A incorporação de Luhansk e Donetsk, na região de Donbass, ao território da Rússia, segue contestada internacionalmente, para não falar da península da Crimeia. Fraco e incompetente, talvez seja essa a visão de Yevgeny Prigozhin sobre Vladimir Putin: o sangue dos soldados do grupo Wagner foi derramado em vão até agora, porque a Ucrânia não capitulou e não dá sinais de que vá fazê-lo.

    Talvez o sr. Prigozhin queira que Putin seja mais voluntarioso e eficaz e use de todos os meios bélicos necessários para arrasar a Ucrânia de vez, de sorte que finalmente tenhamos uma liderança à altura dos desafios e que merece dominar as massas. Por outro lado, será que o povo russo, que tem laços linguísticos, históricos, culturais e de sangue com o povo ucraniano está satisfeito com essa matança sem fim à vista? A flor da juventude ucraniana será toda sacrificada em prol de uma eventual vitória russa? Isso não deixará um peso na consciência dos russos por um longo período?

    Prezados leitores, a depender da visão que se tem de um líder, se aquela esposada por Cálicles, ou aquela esposada por Fénelon, podemos avaliar as ações de Putin como não suficientemente vigorosas para a consecução do objetivo da vitória russa, ou demasiadamente cruéis e vãs, em busca de uma glória militar para um país que quase se desintegrou nos anos 90 e que ainda vive o rescaldo da perda do status de superpotência. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e esperemos que qualquer que seja o modelo de liderança que Putin almeje ele não termine como o rei Arquelau, porque uma guerra civil em um país com armas nucleares é um grande perigo para o mundo todo.

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Justa pena

[…] deve-se trazer à luz o ato injusto, a fim de pagar a justa pena e se tornar saudável; deve-se constranger a si mesmo e aos demais a não se acovardarem, mas a se apresentarem, de olhos cerrados, correta e corajosamente como se fosse a um médico para algum corte ou cauterização […]

Trecho de fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Polo em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

 

“O estigma do ex-presidiário equivale a ter sua trajetória marcada na carne. É fácil identificar, pela linguagem corporal e verbal, pelas roupas, alguém que passou pelo cárcere”, explica Corrêa. “Quando consegue superar a primeira barreira e ser contratada, de modo geral surgem as queixas de que a pessoa não sabe se portar, nem lidar com os colegas, nem se adequar à disciplina que o ambiente de trabalho exige. Não é estranho? Afinal, pelo menos em tese, o sistema penal existe justamente para disciplinar.”

Trecho retirado do artigo “De Volta ao Erro”, escrito por Diego Viana e publicado na revista FAPESP de junho de 2023

    Prezados leitores, na semana passada, ao explicar a diferença entre tekhne e adulação feita pelo filósofo Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), na qualidade de personagem do diálogo Górgias, eu dei uma definição de justiça que se adequava ao contexto dessa oposição: ao falar que justiça é dar a cada um o que é seu isso é uma tekhne pelo fato de pressupor uma investigação das circunstâncias do caso concreto que requer uma solução de maneira equilibrada e sem paixões, isto é sem favoritismos derivados de predileções pessoais; ao contrário, a retórica não é justiça mas adulação, porque almejando conquistar a boa vontade da plateia, procura dizer aquilo que ela quer ouvir para convencê-la a seguir um curso de ação que não é necessariamente o mais sábio e mais justo, num toma lá dá cá em que trocam-se os elogios pelo poder de dirigir as decisões do demo, como Sócrates se referia ao povo.

    Nesta semana, explorarei um outro aspecto da concepção socrática de justiça que aparece no mesmo diálogo Górgias, em uma nova interação entre o filósofo e seu interlocutor, Polo. Para Polo, quem comete injustiça é feliz, contanto que não pague a justa pena. Para corroborar sua afirmação, ele cita o exemplo de Arquelau, filho de Perdicas, que governou a Macedônia de maneira tirânica de 413 a.C. a 399 a.C. Arquelau, segundo o testemunho de Polo, fazia na Macedônia o que lhe parecia, conforme sua própria opinião: matava, bania e vivia muito bem, porque seu poder lhe permitia permanecer impune. Para Sócrates, isso era uma mentira: aquele que cometia injustiça era o mais infeliz dos homens, mais infeliz do que a pessoa que havia sido injustiçada impunemente. E o que cometeu injustiça será menos infeliz se pagar a justa pena. Diante da perplexidade de Polo com essa proposição, Sócrates elabora seu argumento.

    Como mostra o trecho que abre este artigo, ele o faz traçando uma analogia entre a justiça e a medicina, ambas conceituadas por ele como tekhne, conforme explicado em “A tekhne ou a falta dela”. Ao cometer uma injustiça, o indivíduo mostra estar sofrendo de um desequilíbrio, de um vício que corrói a alma como uma infecção corrói o corpo. Assim como o homem doente se submete ao tratamento médico que pode lhe causar dor, mas ao final lhe traz saúde e bem-estar físico, o homem injusto, contrito, submete-se à punição pelo que ele fez, que pode significar açoite, prisão, exílio e até a pena de morte. Para Sócrates, ao se submeter voluntariamente ao castigo e cumprir a pena, o homem injusto sana sua alma doente pois adquire a temperança que o leva a autocontrolar-se, a não ceder às suas paixões.

    Portanto, ao invés de o homem que cometer um ato injusto defender-se no tribunal tentando convencer os jurados, por meio da retórica, a não o punir porque ele é inocente, ele acusa-se a si mesmo e obedece à lei da pólis. Tendo superado dessa maneira o caos causado pela injustiça, o homem que sofre a justa pena atinge o patamar da justiça, do bem e do belo: ele está em paz consigo mesmo e com seus concidadãos, tendo agido lealmente ao reconhecer seu erro e submeter-se ao castigo para poder participar de novo da vida em sociedade e desfrutar dos benefícios da civilização.

    É à luz dessa concepção terapêutica da pena que me volto à realidade brasileira da taxa de reincidência criminal no país, conforme mostrada no artigo da revista FAPESP citado acima. Ninguém sabe ao certo qual é o número exato daqueles que voltam a cometer crimes depois de terem sido condenados e cumprido a pena. Estudos realizados em alguns Estados do Brasil colocam a taxa de reincidência na faixa entre 24% e 51%, o que é um número menor do que os 70% colocado no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito realizada em 2008 sobre o sistema carcerário brasileiro.  De qualquer forma, seria bom que esse cometimento renovado  de crimes fosse diminuído cada vez menos. Que políticas públicas deveriam ser seguidas no Brasil afora para que a reabilitação de condenados pela justiça ocorra? Como dar à pena imposta aos presidiários brasileiros o efeito terapêutico descrito por Sócrates, de maneira que ela, seguindo a analogia com a medicina, inocule o indivíduo contra o cometimento de novos crimes quando sai da prisão?

    “A volta ao erro” relaciona os problemas do sistema prisional no Brasil. A superlotação das prisões favorece o ingresso do sentenciado na “carreira do crime”: ao conviver com outros presos, ele aprimora suas técnicas de uso de armas, de decisão sobre quando ir em frente ao decidir a empreitada, de como lidar com a pessoa que reage ou foge, de escolha do lugar ideal para assaltar. Uma vez entrando no mundo do crime, o indivíduo é estigmatizado pela família, que muitas vezes o renega e o evita, e pela sociedade, que lhe fecha as portas do mercado formal de trabalho. O trabalho nas prisões para remição da pena é uma exceção, pois o Estado dá baixa prioridade a tais atividades e o orçamento é sempre insuficiente.

    Portanto, depois de cumprir sua pena, o sentenciado e agora ex-presidiário não terá sido disciplinado e “cauterizado” para repetir a analogia médica presente no Górgias. Ele trará em sua alma a infelicidade sentida por tipos como o rei Arquelau da Macedônia, que ficaria infeliz se fosse pego cometendo injustiça e tem como objeto de vida ser feliz fazendo o que quer e não assumindo responsabilidade por seus atos injustos. Tanto que, de acordo com o relatório do Depen, o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, o reincidente, ao cometer um novo crime, o faz logo após a soltura, sendo que dois terços dos delitos de reincidentes ocorrem no primeiro ano de liberdade, o que mostra que a pena não serviu para fazê-lo arrepender-se dos seus atos e fazê-lo transformar-se em um homem justo. Conforme o trecho que abre este artigo, o egresso dos cárceres brasileiros é facilmente identificável pelos gestos, pelo modo de falar e pela falta de adaptação à vida na sociedade normal, em que as pessoas agem mais ou menos de maneira correta com as outras.

    Prezados leitores, pode ser que o ideal da purgação da alma que a punição pelo ato injusto, tal como preconizado por Sócrates, seja uma quimera, e o máximo que possamos esperar dos egressos do sistema prisional é que eles não voltem a cometer novos crimes por terem medo de voltar ao inferno da cadeia. Por outro lado, a ressocialização na prisão como uma terapia que melhore o comportamento do preso quando volta à sociedade deveria ser um princípio a ser concretizado. A justa pena pode não criar o homem justo e bom vislumbrado por Sócrates, mas deveria criar um homem disciplinado o suficiente para não ser eterna fonte de problemas.

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tekhne ou a falta dela

Isso eu chamo de adulação, e afirmo que coisa desse tipo é vergonhosa, Polo – e isto eu digo a ti – porque visa o prazer a despeito do supremo bem. Não afirmo que ela é arte, mas experiência, porque não possui nenhuma compreensão racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica, e, consequentemente, não tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles. Eu não denomino arte algo que seja irracional […]

Trecho de fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Polo em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Estimular o transporte individual automotivo é realmente um passo atrás. Não importa se é elétrico ou não. O transporte público de massa é que precisa de apoio (do governo) – diz Frischtak sobre o programa do governo que vai gastar R$ 1,5 bilhão para desonerar carros, caminhões e ônibus (que ficam com a menor fatia, R$ 300 milhões

Trecho retirado do artigo “Quase Parando”, publicado no jornal O Globo em 11 de junho sobre a carência de investimentos públicos para mobilidade

    Prezados leitores, na semana passada eu fiz um contraponto entre a razão pragmática de Cálicles, um dos interlocutores de Sócrates no diálogo Górgias, e a razão que denominei tartufiana. Esta, visando achar argumentos para justificar comportamentos moralmente condenáveis, aquela visando achar argumentos fazer o indivíduo engajar-se nas discussões políticas, permitindo-lhe tomar parte ativa nas decisões nas assembleias. Nesta semana, dando prosseguimento aos estudos socráticos realizados neste humilde espaço, pretendo explorar a dicotomia que Sócrates faz entre arte ou tekhne e a adulação, de modo a lançar luz sobre nossas práticas democráticas na ágora tupiniquim.

    Para melhor explicar a diferença entre as duas a seu interlocutor, Polo, Sócrates faz uma analogia com dois pares de atividades, a medicina e a culinária, e a ginástica e a indumentária. A medicina e a ginástica estariam no domínio da arte e a culinária e a indumentária estariam no domínio da adulação.  

    A medicina é arte porque ela visa um bem supremo, a saúde, e para tanto elabora um discurso (o logos) que explica as causas das doenças, as dietas apropriadas para ter uma vida saudável e os remédios para curar os males que afligem os indivíduos. Há, portanto, uma correspondência entre o objetivo nobre de descobrir como ter e manter a saúde e a busca da verdade sobre como as doenças se desenvolvem no nosso corpo.

    O antípoda da medicina é a culinária, que nada mais é do que uma adulação, conforme o trecho que abre este artigo. Seu objetivo não é o de promover a saúde, mas de proporcionar prazer ao consumidor da comida. O discurso produzido pelo cozinheiro sobre o modo de preparo dos alimentos não é logos no sentido filosófico do termo, pois não visa o entendimento dos fenômenos do mundo por meio da razão, procurando determinar-lhes a natureza e os mecanismos que os geram. A culinária é uma atividade prática, um hábito, uma experiência que pode ser transmitida de um cozinheiro a outro, mas que sempre se repete da mesma forma.

    Nesse diapasão, a ginástica é arte porque ela tem um objetivo nobre que é o de manter os corpos saudáveis e em funcionamento, e para tanto ela desenvolve modos de exercitar o corpo investigando como este pode ser movimentado de maneira que se torne mais forte e resiliente. Já a indumentária é mera adulação, pois ela com suas cores, figuras e vestes faz com que o corpo pareça algo que ele não é, embelezando-o de maneira artificial e por isso efêmera.

    Percebe-se por meios desses dois contrapontos feitos por Sócrates a distinção que o filósofo faz entre a arte, a tekhne de um lado, e a adulação ou experiência de outro. Na primeira estamos no domínio do bem, da racionalidade, do conhecimento adquirido pela aplicação do intelecto a serviço de um fim ético. Na segunda estamos no domínio do prazer, da irracionalidade, da falta de conhecimento, pois o que há é somente uma experiência sem fim ulterior e sem a sistematização proporcionada pelo estabelecimento de causas e efeitos.

    À luz dessas analogias, fica clara a distinção entre a justiça, que deve ser o supremo objetivo da prática política, e a retórica, que se dedica a adular os espectadores dos debates na assembleia ateniense de modo a convencê-los a votar a favor de determinado curso de ação. Dar a cada um o que é seu exige tekhne e não experiência, pois exige o conhecimento das causas dos problemas da sociedade, o porquê de alguns terem pouco e outros terem muito, o porquê de alguns terem mais oportunidades de desenvolver seus talentos do que outros.  A retórica, ao contrário, não exige conhecimento sobre o objeto do seu discurso, além daquele que seja necessário para angariar a simpatia dos ouvintes. Basta ao rétor parecer ter algum conhecimento que impressione os que têm menos conhecimento do que ele e agradar de qualquer forma possível, incluindo o apelo às emoções e o elogio da plateia.

    Considerando tais distinções, o que pensar da medida mais ruidosa da política industrial lançada pelo governo federal, qual seja, a de conceder isenções de PIS e COFINS aos chamados carros populares, que atualmente no Brasil custam no mínimo 69.000 reais. Será que foi feito um cálculo se e em que medida a renúncia de receita será compensada pelo aumento de vendas e pela geração de empregos na indústria automobilística? Será que os técnicos do governo analisaram a experiência passada com subsídios dados à indústria automobilística e os resultados concretos que foram obtidos para a economia do país? Será que eles conseguem dar uma explicação plausível sobre a razão econômica para dar ajuda financeira a um setor e não a outro?

    De acordo com a Receita Federal, as montadoras deixaram de pagar 69 bilhões de dólares entre 2000 e 2021. A Ford encerrou suas atividades fabris no Brasil em 2021, depois de ter recebido incentivos do governo estadual para instalar uma fábrica em Camaçari, na Bahia e portanto, o dinheiro do povo brasileiro investido na companhia norte-americana não foi recuperado. De acordo com o artigo citado na abertura deste artigo, em 2022 foram investidos pelo Estado R$ 4,1 bilhões em mobilidade urbana, ao passo que no mesmo ano o setor automotivo já havia se beneficiado de isenções tributárias de R$ 8,8 bilhões. Há, portanto uma clara preferência pelo transporte individual em detrimento do transporte público e uma distribuição de benesses cujas contrapartidas são duvidosas.

    Qual a razão disso? Qual a arte por trás desses benefícios concedidos a um setor específico? Por acaso toda essa dinheirama ao longo dos anos rendeu frutos que amortizaram o investimento feito, na forma de bens econômicos, isto é, cadeias produtivas desenvolvidas, empregos, geração de renda? Será que a relação custo benefício foi favorável? Ou os subsídios à indústria automobilística tiveram o intuito de satisfazer determinados interesses que sabem se fazer representar nos corredores do poder por lobistas, por federações classistas? E o governo Lula agora, dando ainda mais vantagens? Será que o foco é parecer fazer alguma política industrial? É lançar medidas de impacto para agradar uma parte do eleitorado com a qual o presidente se identifica, os metalúrgicos?

    Prezados leitores, a tekhne e a falta dela são pertinentes para a democracia. Por mais que o ideal socrático/platônico de uma república governada pelos possuidores do conhecimento possa, na pior das hipóteses, ser uma utopia totalitária, é sempre bom termos um parâmetro de julgamento das imperfeições da prática política para que possamos criticar e melhorar. Esperemos que no futuro haja no regime político brasileiro mais tekhne e menos adulação.

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O semipresidencialismo no Brasil: de Cálicles a Tartufo

Isso coloca em xeque a visão otimista de Sócrates com relação à onipotência da razão, expressa pela máxima moral de que o conhecimento é suficiente para a virtude (referida pela crítica platônica como “paradoxo socrático”): bastaria, a princípio, a correção nas opiniões do interlocutor, uma vez contraditórias, para que ele passasse a agir bem, e seria essa a função positiva do elenchos, que justificaria os meios empregados por Sócrates para demonstrar ao interlocutor a sua ignorância e impeli-lo, assim, à investigação filosófica.

Trecho retirado do ensaio “A Tragicidade do Discurso Socrático”, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Ele detestava o excesso mesmo na virtude. Ele admirava o honnête home, o homem sensato do mundo, que seguia seu caminho na vida com moderação sã em meio aos absurdos que competiam entre si, ajustando a si mesmo sem estardalhaço às fraquezas do ser humano.

Trecho retirado do livro “A Era de Luís XIV”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) e de sua esposa Ariel Durant (1898-1981) sobre Jean Baptiste Poquelin, conhecido como Molière (1622-1673)

 

A bem da verdade, Lula não é o primeiro presidente a ter de se submeter aos humores e à voracidade de parlamentares oportunistas, que sentem o cheiro do sangue que governos fracos jorram na água. Mas poderia ser o último, se assim realmente quisesse. Não parece ser o caso.

Trecho retirado do editorial ‘Parlamentarismo sem freios’, publicado no jornal o Estado de São Paulo em 4 de junho, sobre a falência do semipresidencialismo que hoje vige no país

    Prezados leitores, na semana passada eu citei um trecho da peça de Molière em que o pilantra Tartufo tenta persuadir a mulher do seu melhor amigo a ir para a cama com ele. Tartufo se tornou ao longo dos séculos um símbolo tão poderoso da hipocrisia, isto é, da diferença entre o que se prega e o que se faz, que a língua francesa tem um substantivo, “tartuferie” que denota a dissimulação, a duplicidade, a insinceridade própria dos hipócritas. Tartufo é tão perfeito na sua hipocrisia que ele se vale das suas faculdades mentais para encontrar razões verossimilhantes o suficiente para convencer a pessoa de chafurdar no vício pensando que está agindo corretamente.

    Esse uso adulador da razão foi denunciado por Sócrates nos diálogos escritos por Platão em que ele figura como personagem, conforme já expliquei em “Sócrates Reloaded”. Nesta semana meu objetivo será o de explorar os limites da busca do filósofo pela virtude por meio da razão, quando o interlocutor de Sócrates nega-se a interagir com ele. Perscrutando esses limites, tentarei investigar os limites da nossa própria democracia brasileira, curvada atualmente sob o peso desse semipresidencialismo em que o Congresso Nacional tem cada vez mais poderes e cada vez menos responsabilidades e o Executivo tem cada vez mais responsabilidades e cada vez menos poderes.

    Conforme o trecho que abre este artigo, Sócrates procurava, em seus diálogos, levar seus interlocutores pela via correta do bem pensar. Para isso ele se valia do processo do elenchos, ou refutação. No caso concreto do “Górgias”, Sócrates conversa com Cálicles, que propõe a ideia de que o aprazível e o bom são a mesma coisa. Para mostrar o absurdo de tal proposição, Sócrates convida o interlocutor a participar do seu jogo, qual seja: definir os termos de maneira precisa (o que é uma coisa boa?, o que é uma coisa aprazível?) e uma vez definidos os termos, estabelecem-se as premissas do argumento que será desenvolvido pelo filósofo.

    No entanto, para que esse caminho rumo à verdade, isto é, rumo às proposições sem contradições, seja percorrido, é preciso que Sócrates e Cálicles consintam com tais premissas. Sem tal consentimento a verdade não se completa, porque ela depende da percepção pelos participantes de que suas afirmações anteriores estavam eivadas de contradições internas, oriundas da má definição dos termos. Se o interlocutor se recusa a perceber isso, se ele não se deixa persuadir, o elenchos falha em atingir o objetivo de refutar as ideias erradas do interlocutor do filósofo e assim aquele persiste no vício, porque para Sócrates bastava que o homem se livrasse da sua ignorância utilizando sua razão para começar a agir de maneira ética.

    E é exatamente isso que ocorre no diálogo Górgias entre Sócrates e Cálicles: este se recusa a participar da investigação filosófica proposta por Sócrates, obstinando na opinião de que as coisas que dão prazer são boas. Será que faltava a Cálicles poderes mentais de perceber a necessidade lógica dos argumentos de Sócrates? Será que a mente dele não era brilhante o suficiente? Ou será que Cálicles mostrou-se impermeável aos argumentos de Sócrates porque não simpatizava com o filósofo, com sua recusa em participar do processo político de Atenas? A atitude respeitosa de Sócrates em relação a Cálicles ao longo do diálogo mostra que o filósofo não o via como um ser estúpido, mas simplesmente recalcitrante.

    Nesse ponto revelam-se os limites da busca racional de Sócrates pela virtude. Se Cálicles não se deixa persuadir por argumentos lógicos que mostram a contradição das suas afirmações, isso significa que sua razão não está sempre a serviço da busca da verdade, tal como concebida pelo filósofo. Tal como Tartufo fazia para lograr seus intentos libidinosos, Cálicles usa suas faculdades mentais para atingir objetivos que são muito diferentes daqueles ideais ético-racionais vislumbrados pelo filósofo. Cálicles quer usar seu intelecto para relacionar-se com seus concidadãos, para convencê-los a agir de determinada forma, não para fazê-los trilhar o caminho de um bem que é demasiadamente individual e apartado da vida da pólis.

    A visão mais pragmática de Cálicles, de usar a razão para atuar no mundo, em contraposição à visão idealista de Sócrates de depurar a razão para, imbuído do conhecimento, fazer o que é bom e justo, encaixa-se na visão do honnête homme de Molière, o criador de Tartufo, citada no trecho que abre este artigo. Essa insistência de Sócrates em buscar o ideal, ao custo de isolar-se das atividades cívicas para evitar a corrupção da razão pelas necessidades da persuasão, acaba sendo um absurdo e o melhor que o homem sensato tem a fazer é evitar os radicalismos: não procurar nem a virtude perfeita, que é impossível, e nem o excesso de vícios de um Tartufo, que com sua hipocrisia e busca do interesse próprio causa tanto mal ao seu redor.

    Considerando a necessidade do equilíbrio delicado para que a razão pragmática de Cálicles atuando na assembleia dos cidadãos de Atenas não descambe para a razão tartufiana atuando para dar vazão aos vícios do indivíduo, como podemos ver a atuação do presidente Lula nas relações do Executivo Federal com o Congresso Nacional? A MP que estrutura a máquina pública, aprovada na Câmara dos Deputados, retirou atribuições do Ministério do Meio Ambiente, como o Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas, tirando muito do poder de uma das ministras com mais credibilidade do governo, Marina Silva. Esse é um exemplo da voracidade dos deputados oportunistas a que se refere o editorial do Estado de São Paulo citado na abertura deste artigo. Os parlamentares não são responsáveis por elaborar e implantar uma política ambiental, mas fazem de tudo para atrapalhar quem queira fazê-lo, porque podem e o Executivo aceita porque não pode negar-se, sob o risco de não conseguir cumprir suas outras responsabilidades.

    Será que Lula vai tentar pragmaticamente negociar com os próceres do Legislativo, como Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, David Alcolumbre, presidente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça para atingir certos objetivos inegociáveis que seus eleitores esperam ver atingidos? Ou ele vai resvalar para o comportamento dos Tartufos da vida e agirá unicamente para viabilizar a manutenção do PT no poder, deixando que a agenda nacional seja ditada exclusivamente pelo Congresso, à base das emendas de relator, dos toma-lá-dá-cá sem nenhum compromisso com a governança do país? Em suma, Lula vai fincar o pé e tentar restaurar a iniciativa do Executivo ou vai deixar rolar o semiparlamentarismo ou semipresidencialismo, a depender do ponto de vista, para não se desgastar e levar tudo em banho-maria até as próximas eleições? Aguardemos os rumos da democracia tupiniquim, flutuando nas águas turvas entre Cálicles e Tartufo.

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