[…] a “verdade” não se coloca como um fim nesse tipo de exercício intelectual, justamente porque não é possível inquirir o próprio poeta sobre o que ele quis dizer com tal ou tal verso; por conseguinte, “parte deles afirma que o poeta pensa tal coisa, enquanto outra parte, que ele pensa coisa diferente. Ao instituir uma cisão indelével entre “verdade” e enunciado poético, a exegese poética é confinada no âmbito da opinião, da verossimilhança, admitindo, consequentemente, a coexistência de diferentes versões sobre um mesmo poema.
Trecho do ensaio “A incursão de Sócrates na makrologia”, escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.)
Ele definia o livre-pensamento como o “uso do entendimento na tentativa de encontrar o significado de qualquer proposição, considerando a natureza das evidências contra ela e a favor dela, e no julgamento da proposição de acordo com a aparente força ou fraqueza das evidências… Não há outra maneira de descobrir a verdade. A diversidade de crenças e as interpretações contraditórias de passagens da Bíblia nos levam a aceitar o julgamento da razão; a qual outro tribunal poderíamos recorrer, a não ser que fosse ao arbítrio da força?
Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o deísta inglês Anthony Collins (1676-1729), autor do livro “Discurso sobre o Livre-Pensamento” (1713)
Podemos debater de maneira apaixonada, podemos ter discussões acaloradas, defender de maneira corajosa aquilo com o quê nos importamos, mas faça isso com aloha, faça isso com respeito, compaixão e amor.
Trecho da mensagem no dia de ação de graças, em 24 de novembro de 2022, gravada por Tulsi Gabbard (1981-), ex-membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos e ex-candidata à presidência do país em 2020
Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não, você vai cair naquela história do produtor rural que começa a dar tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. As que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma.
Trecho da entrevista dada pelo governador de Minas Gerias, Romeu Zema ao jornal O Estado de São Paulo em 6 de agosto
Prezados leitores, na semana passada expus neste meu humilde espaço o conceito de philia desenvolvido no diálogo Protágoras e dei um exemplo de sua aplicação prática no século XVII, quando Isaac Newton (1642-1727) propôs sua teoria da gravitação universal no livro Philosophiae Naturalis Principia Matematica e ao sofrer críticas dos seus colegas da Royal Society publicou uma segunda edição do livro esclarecendo alguns pontos, especialmente o que ele propunha a respeito do conceito de gravitação e o que ele não se atrevia a dizer sobre ela. Nesta semana, a philia dá lugar a aloha, que quer dizer amor, afeição e delicadeza na língua dos havaianos. Pode ser que em certos tipos de discussão não seja possível chegar a um consenso em torno de uma verdade aceita por todos os participantes, mas mesmo que não haja acordo, é preciso cultivarmos a virtude da aloha para concordarmos em discordar e assim podermos futuramente discutir novamente.
No diálogo Protágoras há um exemplo de discussão em que o máximo a que se pode almejar é a verossimilhança, mas jamais à verdade compartilhada pelos amigos. Conforme o trecho que abre este artigo, esse é o caso da exegese poética, isto é, da interpretação de poemas, o que fazia parte da educação dos gregos, que liam Hesíodo (O Trabalho e os Dias) e Homero (A Ilíada e A Odisseia), para citar alguns dos mais famosos. A verossimilhança aqui era a regra pelo fato de ser impossível pedir ao poeta que esclarecesse o que ele queria dizer em determinado trecho, então não havia um ponto de apoio firme para sustentar uma proposição. Era possível basear-se em uma ou outra palavra do texto, fazer associações entre um trecho e outro, mas no final das contas, uma interpretação era tão válida quanto a outra porque, na falta de uma instância superior julgadora que apontasse o significado autêntico, as diferentes versões sobre o sentido do poema eram irredutíveis a um denominador comum.
A essa mesma conclusão chegaram os partidários do deísmo, doutrina que considera a razão como a única via capaz de assegurar a existência de Deus. No caso dos deístas, seus esforços exegéticos concentraram-se na Bíblia. De novo não havia a quem recorrer para o esclarecimento das contradições dos textos bíblicos, do sentido literal ou metafórico de suas passagens. O que fazer? Agir como os fanáticos religiosos fizeram durante as guerras de religião que abalaram a Europa desde o advento da reforma protestante no século XV e alegar que a Bíblia era a palavra de Deus e que eles estavam inspirados por Deus para interpretá-la e divulgá-la aos crentes? Como resolver as disputas entre exegetas dos textos bíblicos que propunham interpretações totalmente antagônicas? Quem era o intérprete autêntico?
Conforme o trecho citado acima, o filósofo deísta Anthony Collins propôs uma solução a que ele chamou de livre-pensamento, que nada mais era do que valer-se das evidências, ponderá-las, cotejá-las e aplicando a razão, chegar a uma conclusão que podia não ser infalível, mas era verossímil, pois fundada na boa-fé daquele que se propôs a investigar o assunto. A verdadeira natureza das coisas divinas não poderia ser estabelecida com a certeza dos dogmas, mas poderia ser objeto de uma tentativa bem-intencionada do sujeito racional.
Em última análise, a boa-fé e as boas intenções são o que importam quando se sabe que sempre haverá discordância sobre determinadas proposições e que cada uma das partes terá sua própria opinião. Sem essas duas virtudes, não só não é possível chegar à verdade como também é impossível às partes concordarem em discordarem, o que torna qualquer troca de ideias uma experiência amarga, pois cada um dos participantes se sentirá desrespeitado e mal interpretado pelo outro. Sob essa perspectiva, a aloha de que fala Tulsi Gabbard no trecho que abre este artigo resume a boa-fé e as boas intenções. Podemos defender nosso ponto de vista, nossos valores de maneira apaixonada e não arredar pé da nossa opinião, mas ao mesmo tempo precisamos ouvir o outro, perceber as diferenças entre nosso lado e o lado oposto, identificar a origem delas, e em assim fazendo entender a opinião divergente mesmo que não concordemos com ela.
Essa prática da aloha está muito difícil nos tempos atuais, em que as trocas de ideia se dão nas plataformas digitais. A repercussão das palavras do governador Romeu Zema, que falou sobre a formação de um Consórcio Sul-Sudeste para defender os interesses da região no Congresso Nacional, é emblemática nesse sentido. O Ministro da Justiça, Flávio Dino, o acusou de ser traidor da Constituição, por estabelecer diferenças entre brasileiros, e portanto, traidor da pátria. Marília Arraes o acusou de ser fascista. Será que esses dois políticos da esquerda tinham boas intenções ao criticar a opinião de Zema, ou estavam apenas explorando politicamente uma questão espinhosa no Brasil para ganhar pontos com suas bases eleitorais?
Afinal, pode-se discordar da proposição do governador de Minas Gerais de que os Estados dos Sul e Sudeste devam se unir para conseguir aprovar pautas que lhes beneficiem em Brasília. E pode-se afirmar que a metáfora das vaquinhas produtivas e não produtivas foi uma escolha infeliz, pelas conotações da palavra vaca na língua portuguesa. Mas acusá-lo de estabelecer diferenças entre os brasileiros é uma distorção de má-fé, pois as diferenças existem, independentemente da vontade do senhor Zema. Conforme ele citou na entrevista, a região concentra 70% do PIB e 56% da população, mas recebe de volta um valor menor daquele que arrecada. Flávio Dino e Marília Arraes podem considerar que a distribuição da arrecadação tributária deve continuar discriminando contra os Estados do Sul e do Sudeste e eles têm todo o direito de ter sua opinião, mas estigmatizar aqueles que se opõem a esse regime é distorcer os argumentos da parte contrária para fins politiqueiros, em mais um round do eterno Fla-Flu em que a política brasileira vive.
Nem Dino nem Arraes se deram ao trabalho de propor argumentos em prol da distribuição desigual da arrecadação tributária para a solução das disparidades regionais. Na entrevista, Zema sustentou que há pobreza também nos Estados do Sul e Sudeste, que justificam investimentos públicos. Dino e Arraes poderiam ter exposto seus próprios argumentos e assim enriqueceriam o debate, impelindo o governador a contra-argumentar em prol da inconveniência de mandar mais e mais do que se arrecada nas regiões mais ricas do Brasil para as regiões mais pobres. Preferiram fazer ataques pessoais, sob o manto da indignação moral com a “ultra-direita fascista”.
Prezados leitores, se a philia é reduto de cientistas do nível de Leibniz e de Newton em sua busca pela verdade, que ao menos possamos cultivar a aloha em nossas trocas de opinião na arena política.