Aloha

[…] a “verdade” não se coloca como um fim nesse tipo de exercício intelectual, justamente porque não é possível inquirir o próprio poeta sobre o que ele quis dizer com tal ou tal verso; por conseguinte, “parte deles afirma que o poeta pensa tal coisa, enquanto outra parte, que ele pensa coisa diferente. Ao instituir uma cisão indelével entre “verdade” e enunciado poético, a exegese poética é confinada no âmbito da opinião, da verossimilhança, admitindo, consequentemente, a coexistência de diferentes versões sobre um mesmo poema.

Trecho do ensaio “A incursão de Sócrates na makrologia”, escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução do diálogo Protágoras de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Ele definia o livre-pensamento como o “uso do entendimento na tentativa de encontrar o significado de qualquer proposição, considerando a natureza das evidências contra ela e a favor dela, e no julgamento da proposição de acordo com a aparente força ou fraqueza das evidências… Não há outra maneira de descobrir a verdade. A diversidade de crenças e as interpretações contraditórias de passagens da Bíblia nos levam a aceitar o julgamento da razão; a qual outro tribunal poderíamos recorrer, a não ser que fosse ao arbítrio da força?

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre o deísta inglês Anthony Collins (1676-1729), autor do livro “Discurso sobre o Livre-Pensamento” (1713)

Podemos debater de maneira apaixonada, podemos ter discussões acaloradas, defender de maneira corajosa aquilo com o quê nos importamos, mas faça isso com aloha, faça isso com respeito, compaixão e amor.

Trecho da mensagem no dia de ação de graças, em 24 de novembro de 2022, gravada por Tulsi Gabbard (1981-), ex-membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos e ex-candidata à presidência do país em 2020

Sul e Sudeste vão continuar com a arrecadação muito maior do que recebem de volta? Isso não pode ser intensificado, ano a ano, década a década. Se não, você vai cair naquela história do produtor rural que começa a dar tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. As que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma.

Trecho da entrevista dada pelo governador de Minas Gerias, Romeu Zema ao jornal O Estado de São Paulo em 6 de agosto

    Prezados leitores, na semana passada expus neste meu humilde espaço o conceito de philia desenvolvido no diálogo Protágoras e dei um exemplo de sua aplicação prática no século XVII, quando Isaac Newton (1642-1727) propôs sua teoria da gravitação universal no livro Philosophiae Naturalis Principia Matematica e ao sofrer críticas dos seus colegas da Royal Society publicou uma segunda edição do livro esclarecendo alguns pontos, especialmente o que ele propunha a respeito do conceito de gravitação e o que ele não se atrevia a dizer sobre ela. Nesta semana, a philia dá lugar a aloha, que quer dizer amor, afeição e delicadeza na língua dos havaianos. Pode ser que em certos tipos de discussão não seja possível chegar a um consenso em torno de uma verdade aceita por todos os participantes, mas mesmo que não haja acordo, é preciso cultivarmos a virtude da aloha para concordarmos em discordar e assim podermos futuramente discutir novamente.

    No diálogo Protágoras há um exemplo de discussão em que o máximo a que se pode almejar é a verossimilhança, mas jamais à verdade compartilhada pelos amigos. Conforme o trecho que abre este artigo, esse é o caso da exegese poética, isto é, da interpretação de poemas, o que fazia parte da educação dos gregos, que liam Hesíodo (O Trabalho e os Dias) e Homero (A Ilíada e A Odisseia), para citar alguns dos mais famosos. A verossimilhança aqui era a regra pelo fato de ser impossível pedir ao poeta que esclarecesse o que ele queria dizer em determinado trecho, então não havia um ponto de apoio firme para sustentar uma proposição. Era possível basear-se em uma ou outra palavra do texto, fazer associações entre um trecho e outro, mas no final das contas, uma interpretação era tão válida quanto a outra porque, na falta de uma instância superior julgadora que apontasse o significado autêntico, as diferentes versões sobre o sentido do poema eram irredutíveis a um denominador comum.

    A essa mesma conclusão chegaram os partidários do deísmo, doutrina que considera a razão como a única via capaz de assegurar a existência de Deus. No caso dos deístas, seus esforços exegéticos concentraram-se na Bíblia. De novo não havia a quem recorrer para o esclarecimento das contradições dos textos bíblicos, do sentido literal ou metafórico de suas passagens. O que fazer? Agir como os fanáticos religiosos fizeram durante as guerras de religião que abalaram a Europa desde o advento da reforma protestante no século XV e alegar que a Bíblia era a palavra de Deus e que eles estavam inspirados por Deus para interpretá-la e divulgá-la aos crentes? Como resolver as disputas entre exegetas dos textos bíblicos que propunham interpretações totalmente antagônicas? Quem era o intérprete autêntico?

    Conforme o trecho citado acima, o filósofo deísta Anthony Collins propôs uma solução a que ele chamou de livre-pensamento, que nada mais era do que valer-se das evidências, ponderá-las, cotejá-las e aplicando a razão, chegar a uma conclusão que podia não ser infalível, mas era verossímil, pois fundada na boa-fé daquele que se propôs a investigar o assunto. A verdadeira natureza das coisas divinas não poderia ser estabelecida com a certeza dos dogmas, mas poderia ser objeto de uma tentativa bem-intencionada do sujeito racional.

    Em última análise, a boa-fé e as boas intenções são o que importam quando se sabe que sempre haverá discordância sobre determinadas proposições e que cada uma das partes terá sua própria opinião. Sem essas duas virtudes, não só não é possível chegar à verdade como também é impossível às partes concordarem em discordarem, o que torna qualquer troca de ideias uma experiência amarga, pois cada um dos participantes se sentirá desrespeitado e mal interpretado pelo outro. Sob essa perspectiva, a aloha de que fala Tulsi Gabbard no trecho que abre este artigo resume a boa-fé e as boas intenções. Podemos defender nosso ponto de vista, nossos valores de maneira apaixonada e não arredar pé da nossa opinião, mas ao mesmo tempo precisamos ouvir o outro, perceber as diferenças entre nosso lado e o lado oposto, identificar a origem delas, e em assim fazendo entender a opinião divergente mesmo que não concordemos com ela.

    Essa prática da aloha está muito difícil nos tempos atuais, em que as trocas de ideia se dão nas plataformas digitais. A repercussão das palavras do governador Romeu Zema, que falou sobre a formação de um Consórcio Sul-Sudeste para defender os interesses da região no Congresso Nacional, é emblemática nesse sentido. O Ministro da Justiça, Flávio Dino, o acusou de ser traidor da Constituição, por estabelecer diferenças entre brasileiros, e portanto, traidor da pátria. Marília Arraes o acusou de ser fascista. Será que esses dois políticos da esquerda tinham boas intenções ao criticar a opinião de Zema, ou estavam apenas explorando politicamente uma questão espinhosa no Brasil para ganhar pontos com suas bases eleitorais?

    Afinal, pode-se discordar da proposição do governador de Minas Gerais de que os Estados dos Sul e Sudeste devam se unir para conseguir aprovar pautas que lhes beneficiem em Brasília. E pode-se afirmar que a metáfora das vaquinhas produtivas e não produtivas foi uma escolha infeliz, pelas conotações da palavra vaca na língua portuguesa. Mas acusá-lo de estabelecer diferenças entre os brasileiros é uma distorção de má-fé, pois as diferenças existem, independentemente da vontade do senhor Zema. Conforme ele citou na entrevista, a região concentra 70% do PIB e 56% da população, mas recebe de volta um valor menor daquele que arrecada. Flávio Dino e Marília Arraes podem considerar que a distribuição da arrecadação tributária deve continuar discriminando contra os Estados do Sul e do Sudeste e eles têm todo o direito de ter sua opinião, mas estigmatizar aqueles que se opõem a esse regime é distorcer os argumentos da parte contrária para fins politiqueiros, em mais um round do eterno Fla-Flu em que a política brasileira vive.

    Nem Dino nem Arraes se deram ao trabalho de propor argumentos em prol da distribuição desigual da arrecadação tributária para a solução das disparidades regionais. Na entrevista, Zema sustentou que há pobreza também nos Estados do Sul e Sudeste, que justificam investimentos públicos. Dino e Arraes poderiam ter exposto seus próprios argumentos e assim enriqueceriam o debate, impelindo o governador a contra-argumentar em prol da inconveniência de mandar mais e mais do que se arrecada nas regiões mais ricas do Brasil para as regiões mais pobres. Preferiram fazer ataques pessoais, sob o manto da indignação moral com a “ultra-direita fascista”.

    Prezados leitores, se a philia é reduto de cientistas do nível de Leibniz e de Newton em sua busca pela verdade, que ao menos possamos cultivar a aloha em nossas trocas de opinião na arena política.

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Good philia

[…] a finalidade do diálogo não seria simplesmente levar o adversário a se contradizer, deixando-o em situação embaraçosa diante de seu próprio público, mas buscar esclarecer o problema em questão, em vista do conhecimento, ainda que o resultado não fosse plenamente satisfatório. […]Segundo Pródico, quando a relação entre os interlocutores é mediada pelo sentimento de philia, uma discórdia entre eles sobre algum ponto na discussão, não implica que um almeja derrotar o outro; pelo contrário, a discórdia é natural e está na base de qualquer investigação comum que vise a um consenso. […]No caso de uma relação de inimizade entre os interlocutores, todavia, a discórdia se converte, de pronto, em disputa, cujo fim é antes derrotar o adversário, sem qualquer motivação benevolente de um para com o outro.

Trechos retirados do ensaio “A Crise do diálogo e a inversão dos papéis” escrito por Daniel R. N. Lopes para sua tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Nós temos certeza que as formas e as qualidades das coisas podem ser mais bem explicadas pelos princípios da mecânica, e que todos os efeitos da Natureza são produzidos pelo movimento, pela figura, pela textura e pelas várias combinações deles; e que não há necessidade de recorrer a formas inexplicáveis e a qualidades ocultas, como um refúgio contra a ignorância.

Trecho da carta do secretário da Royal Society, Henry Oldenburg (1615-1677) ao filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), sobre os objetivos da academia de ciências da Inglaterra criada em 15 de julho de 1662

    Prezados leitores, é meu objetivo neste humilde espaço utilizar o pouco que sei da sabedoria acumulada ao longo da história para entender os problemas que enfrentamos hoje e propor soluções. Na semana passada, recorri ao filósofo inglês John Locke (1632-1704) para falar sobre a importância de cultivar hábitos saudáveis que nos permitam criar uma reserva cognitiva e assim enfrentarmos melhor o fantasma da demência que nos rondará cada vez mais quanto mais vivermos. Nesta semana, tentarei estabelecer a trilha do diálogo saudável, isto é, aquele que não descamba para a troca de insultos e de ofensas pessoais, mas busca o consenso para chegar a uma aproximação da verdade. Para isso, recorrerei novamente às lições dos diálogos platônicos nos quais o filósofo Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) aparece como personagem e procurarei um exemplo histórico da concretização desse ideal de discussão frutífera de ideias, que passa ao largo das disputas ideológicas que infelizmente hoje são a norma nas plataformas digitais.

    No diálogo “Protágoras”, conforme o trecho que abre este artigo incluído em um capítulo que serve de comentário ao conteúdo da obra, é feita uma distinção entre o diálogo de orientação filosófica e o diálogo de orientação agonística. No primeiro, a relação entre os interlocutores é cordial, pois predomina o sentimento de amizade (em grego philia) entre pessoas que têm um objetivo comum: chegar à solução de um problema colocado como objeto da investigação intelectual, seja a definição de um conceito (por exemplo, o que é a virtude?), seja a verificação se uma proposição é verdadeira ou não (por exemplo, as virtudes são todas uma só ou cada uma delas tem sua própria característica?). Para atingir tal meta, os interlocutores, bem dispostos um ao outro, concordam em chegar a um consenso sobre determinadas premissas que servirão como ponto de partida para a discussão. Não há certeza de que o problema posto no início será resolvido e chegar-se-á a uma resposta, mas de qualquer forma o caminho percorrido de mãos dadas pelos participantes do diálogo lhes permitirá perceber suas próprias falhas e aprimorar suas ideias, pois cada um deles ouve o outro e está disposto a aprender com o outro e a ensinar ao outro.

    Ao contrário, no diálogo de orientação agonística, não há o sentimento de philia permeando a troca de ideias, mas a inimizade entre os interlocutores, a qual interfere na discussão, transformando-a em um agon logon, uma contenda verbal. Ausente a boa vontade recíproca, nenhum dos interlocutores está disposto a conceder algo ao outro e a admitir rever suas ideias pela confrontação com ideias alheias. Sendo o interlocutor o inimigo, o objetivo é vencê-lo na disputa, mostrar à plateia que os assiste, em um banquete na casa de alguém ou na ágora, que ele está errado, que ele é ignorante e estúpido. Para isso qualquer arma vale: correções da gramática e do estilo do discurso do outro, ataques à sua conduta na vida pública e privada. O resultado de um agon logon passa ao largo do esclarecimento de algum problema filosófico, concentrando-se na destruição da reputação na sociedade do inimigo que foi incapaz de responder aos argumentos propostos pela parte contrária. No diálogo agonístico há a tese vencedora e a tese perdedora, o que não quer dizer que necessariamente tenha havido um aumento do conhecimento das partes envolvidas.

    Feita a distinção entre um e outro, cabe agora cavoucar na história um exemplo de diálogo filosófico na prática. Ele pode ser encontrado no século XVII sob os auspícios da Royal Society que, conforme o trecho que abre este artigo, tinha como objetivo dar explicações sobre o funcionamento do mundo que fossem livres de superstições, de agentes invisíveis e inexplicáveis, mas que tivessem como foco as relações de causa e efeito ancoradas na percepção e descrição dos fenômenos naturais. E assim os membros da Royal Society fizeram, utilizando como veículo uma publicação própria, The Philosophical Transactions of the Royal Society, iniciada em 1665, que recebia e solicitava contribuições de filósofos e cientistas. Além de promover discussões por meio da sua revista, a Royal Society atuava como editora, publicando obras científicas. Entre elas, está a Philosophiae Naturalis Principia Matematica, de Isaac Newton (1642-1727), em que o físico e matemático inglês expôs sua teoria da gravitação universal e a demonstrou matematicamente. A polêmica em torno da Principia mostra o diálogo filosófico em ação, para o bem da ciência.

    Houve muitas críticas dirigidas à física newtoniana e destacarei aqui aquela feita por Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), um dos pais do cálculo integral, juntamente com Newton. Para o matemático alemão, a não ser que Newton pudesse explicar o mecanismo de atuação da gravitação no espaço vazio sobre objetos a milhões de quilômetros de distância, a gravitação não poderia ser aceita como nada melhor do que uma palavra, pois ela parecia mais com as forças sobrenaturais tão ao gosto da religião que a Royal Society tinha por objetivo suplantar com suas explicações mecânicas e naturalísticas.

    Como resposta às críticas, na segunda edição de sua obra Newton fez alguns esclarecimentos. Ele admitia não saber a natureza da gravitação, se era uma força que atuava no espaço vazio, se era um agente material ou imaterial, mas defendeu seu sistema com a famosa frase “Non fingo hypotheses” (Eu não invento hipóteses). O que quer que fosse a gravitação, ele descreveu seu comportamento e formulou as leis de acordo com as quais ela atuava, tudo com base na observação dos fenômenos e na aplicação da matemática a tais observações. O resultado era uma teoria que explicava o movimento de todos os objetos no universo e tinha a capacidade de prever a trajetória dos planetas e dos demais corpos celestes. As ressalvas de Leibniz não destruíram a reputação de Newton, nem sua contribuição à física, mas o levaram a esclarecer seu método dedutivo, o que contribuiu para o desenvolvimento da ciência até o século XX.

    Prezados leitores, esperemos que o espírito dos membros da Royal Society, cheio de philia e de vontade de buscar a verdade pela cooperação mútua, seja um dia a regra nas praças digitais do século XXI. Se isso ocorrer, não só contribuiremos para o progresso da civilização pelo aumento do conhecimento, mas evitaremos o holocausto nuclear.

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Bons hábitos

[…] “hábitos trabalham de maneira mais constante e com maior facilidade do que a razão, a qual, quando mais precisamos dela, raramente é consultada de maneira adequada e ainda mais raramente obedecida.”

A questão da educação não é fazer os jovens perfeitos em nenhuma das ciências, mas abrir a mente deles e torná-la apta da melhor maneira para fazer com que ela seja capaz de dedicar-se a alguma ciência, quando os jovens a ela se dedicarem.

Nada faz isso melhor do que a matemática, que dessa maneira penso que deva ser ensinada a todos aqueles que têm o tempo e a oportunidade, não tanto para fazê-los matemáticos como para fazê-los criaturas racionais.

Trechos do livro do filósofo inglês John Locke (1632-1704) retiradas do seu livro “Algumas Reflexões sobre a Educação” de 1693, citados na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Estudos realizados no Brasil e no exterior sugerem que o letramento e outras atividades apreendidas na escola promovem alteração anatômica e funcional do cérebro. Elas estimulariam a formação de conexões entre neurônios e aumentariam a densidade das fibras que transferem informações entre as regiões cerebrais. O neurocientista Yakov Stern, da Universidade Columbia nos Estados Unidos, chamou essa conectividade incrementada do cérebro de reserva cognitiva.

Trecho retirado do artigo “O Peso da Demência”, publicado na revista Pesquisa da FAPESP de julho de 2023

Há um certo fatalismo de que a perda da janela demográfica vai levar à redução de geração de renda. É uma visão dos anos 1980. Isso mudou completamente com a tecnologia, a geração de renda em intangíveis, e novas formas de gerar riqueza.

Trecho de entrevista do economista Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, ao jornal O Globo em 23 de julho

    Prezados leitores, na semana passada abordei a educação sofística, cujo objetivo era preparar os cidadãos para a vida política na Atenas democrática. Falei de Protágoras, de seu pragmatismo e de seu relativismo, contrapondo-o a Sócrates, que fugia das discussões nas assembleias por considerá-las pouco propícias à busca da verdade. Nesta semana, tratarei da educação para o enfrentamento de um problema do século XXI, que adquirirá contornos dramáticos no Brasil, o envelhecimento acelerado da população. Para tanto, vou me valer das contribuições pedagógicas do filósofo John Locke, que de acordo com “A Era de Luís XIV”, tiveram grande influência na Inglaterra e nos Estados Unidos.

    Para Locke, a educação, compreendendo as esferas física, mental e moral, deveria consistir em uma disciplina em prol da virtude. Era preciso cultivar a virtude por meio do controle dos desejos, e a predominância da razão sobre a emoção só se tornaria uma realidade pela repetição de ações virtuosas que inculcassem hábitos no indivíduo que lhe moldassem o caráter. De fato, conforme o trecho que abre este artigo, criar hábitos é muito mais eficaz para garantir que certas coisas sejam feitas do que recorrer ao comando esporádico da razão, que não é digna de confiança quando confrontada às nossas paixões e no mais das vezes rende-se a ela.

   Considerando as três dimensões da educação, hábitos físicos consistiriam em exercícios ao ar livre, abstinência de bebidas alcoólicas, sono suficiente, uma vida frugal que fizessem com que o corpo mantivesse o vigor e a disposição. Hábitos mentais consistiriam na prática do raciocínio matemático de maneira que o indivíduo aprendesse a pensar e assim tivesse condições de continuar aprendendo sempre, independentemente do campo de estudos a que se dedicasse. Finalmente hábitos morais consistiriam na prática do autocontrole que permitisse ao indivíduo enfrentar as vicissitudes da vida sem se desesperar.

   Em suma, a receita de John Locke era o comedimento no comer e beber, a movimentação do corpo, o uso da mente para raciocinar sempre e assim conseguir ter uma mente sã em um corpo são, livres dos excessos daqueles que não cultivam os bons hábitos. É nesse ponto que a lição de Locke pode ser transplantada 430 anos no futuro para podermos responder à pergunta crucial para um país como o Brasil que, de acordo com informações dadas pelo neurologista Paulo Caramelli da Universidade Federal de Minas Gerais à revista da FAPESP, em pouco mais de 20 anos terá dobrado a população de idosos, algo que um país como a França demorou 150 anos para atingir. Diante desse envelhecimento galopante do povo brasileiro, como será possível que o Brasil tenha alguma esperança de conseguir atingir crescimento sustentável e assim melhorar o nível de vida da população? Como envelhecer bem, isto é, sem doenças graves e permanecendo produtivo, isto é, continuando a contribuir para a economia do país?

    A resposta está na pedagogia liberal de John Locke. Afinal, os bons hábitos do filósofo inglês não têm como produto necessário a reserva cognitiva de que fala o neurocientista Yakov Stern, que nada mais é do que uma rede bem conectada de neurônios criada pelo uso constante da mente e por hábitos saudáveis que evitam males como a hipertensão, a obesidade e o diabetes, os quais prejudicam a vascularização cerebral? A chave no Brasil é impedir que o idoso se transforme em um demente e para isso é preciso criar essa reserva cognitiva que permite que o cérebro se torne mais resiliente face às intempéries da idade provecta. Só assim a perda do nosso bônus demográfico, quando o Brasil tinha uma maioria relativa da população em idade para trabalhar, não se transformará em uma tragédia, condenando uma parcela do povo a ser doente, dependente e improdutiva.

    Prezados leitores, seguindo a velha receita do século XVII em prol da nossa poupança mental, vejamos o envelhecimento da população sob a ótica positiva de Ricardo Henriques, citado na abertura deste artigo:  ele poderá ser uma oportunidade de mudarmos os paradigmas econômicos, se conseguirmos estender a vida produtiva das pessoas, permitindo a elas se reinventarem continuamente ao longo da maratona de 5.000 metros em que se transformou a vida dos seres humanos no século XXI.

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Pragmatismo aqui e acolá

Zeus enviou justiça e pudor a todos os homens, pois todos devem cultivar ambos de um modo ou de outro, pois, caso contrário, a vida comunitária não seria possível. […]justiça e pudor, enquanto dádivas de Zeus, segundo a interpretação do mito oferecida por Protágoras, não são vistas por ele como certa disposição que os homens possuem por natureza (pois, se assim o fosse, a questão da ensinabilidade da virtude não se colocaria, tampouco teria utilidade o ofício do sofista), mas como a capacidade política a ser desenvolvida, capacidade esta que distinguiria o homem dos animais.

Trecho retirado do ensaio “A construção da figura do sofista no Protágoras”, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução à sua tradução do diálogo “Protágoras”, de Platão (427 a.C.-347 a.C.)

Com a difusão de constituições democráticas durante o século quinto, tornou-se importante ser capaz de fazer discursos. Essa necessidade era atendida pelos professores de retórica. Da mesma maneira, havia professores de política, que instruíam os discípulos a como gerir os assuntos na assembleia. Finalmente, havia professores de disputas argumentativas, ou erística, homens que conseguiam fazer com que o pior argumento parecesse o melhor. […]É importante distinguir a erística da dialética. Aqueles que praticam a primeira querem ganhar, ao passo que os dialéticos estão tentando descobrir a verdade. É realmente a diferença entre debate e discussão.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, do filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970)

Hoje o centro político tem uma importância e uma relevância muito grande para qualquer governante. Nós viemos de uma eleição muito polarizada, muito radicalizada e o centro político é o pêndulo ali que pode ajudar o Brasil a crescer. Antigamente se falava no centrão como uma coisa pejorativa. Agora o centrão já está virando uma coisa positiva.

Trecho da entrevista dada por Celso Sabino, recém-nomeado ministro do Turismo, ao jornal Folha de São Paulo

    Prezados leitores, no artigo “A medida das coisas” publicado em 7 de setembro de 2021, já tratei do filósofo Protágoras (481 a.C.-411 a.C.) e de sua filosofia pragmática e relativista, encapsulada no aforismo “O homem é a medida de todas as coisas”, o que significa tanto que não há verdadeiro conhecimento, pois o homem está irremediavelmente preso aos seus sentidos enganadores, e que o homem usa suas faculdades intelectuais para conduzir seus assuntos práticos, aquilo que lhe diz respeito na vida cotidiana. Nesta semana, explorarei outro significado do aforismo, por meio do enfoque de alguns aspectos da educação baseada nas ideias de Protágoras, a chamada educação sofística.

    Conforme o trecho de Bertrand Russell que abre este artigo, havia uma necessidade na Grécia do século V, de um treinamento sobre como fazer discursos. Estes serviam tanto para que os cidadãos pudessem participar da tomada de decisões na assembleia e assim escolher um curso de ação para a pólis, como defender um argumento em um tribunal de justiça. O objetivo era que o indivíduo tivesse sucesso no seu empreendimento, seja convencendo seus concidadãos da conveniência de determinada política, seja convencendo um júri da inocência ou da culpabilidade de um acusado. Nesse sentido, a educação sofística viabiliza a prática democrática, pois permite a atividade do legislativo e do judiciário.

    Sob esse viés pragmático, estamos longe aqui da preocupação socrática em buscar a definição mais completa e precisa de uma palavra, de modo a chegar ao menos a uma aproximação da verdade, mesmo porque a premissa básica dos seguidores de Protágoras é que a verdade é uma busca inútil, porque em última análise é inacessível para o homem. Assim, não seguiremos o caminho de Sócrates de lançarmos a dúvida sobre o sentido de uma palavra, inquirirmos nosso interlocutor e juntos, dialogicamente pelas perguntas e respostas, chegarmos a uma conclusão sobre tal sentido, ou até decidirmos que a palavra não tem sentido unívoco nenhum. O único caminho que dá resultados certos é seguir a via erística de argumentar para convencer e vencer, fazendo sua opinião prevalecer, independentemente de ela revelar mais ou menos conhecimento do assunto objeto da deliberação.

    Cabe nesse ponto realçar uma outra dimensão do homem ser a medida de todas as coisas, além do pragmatismo. Conforme o trecho que abre este artigo, segundo Protágoras, Zeus deu ao homem e somente a ele, a dádiva da justiça e do pudor, sem os quais não é possível conviver em sociedade: cada indivíduo precisa cultivar a lei da pólis, estar ciente dos seus direitos e obrigações e saber quando agiu em violação a tais obrigações. O homem é a medida da vida em sociedade justamente porque só ele pode adquirir o senso de justiça, por meio da educação: a graça de Zeus imbuiu-lhe de um potencial que só pode ser concretizado pelo esforço individual de cada um na busca do seu aprimoramento moral, educando-se e preparando-se assim para viver em comunidade.

    Sob essa perspectiva, o sucesso da educação sofística é medido pela capacidade do educando de participar das assembleias dos cidadãos e dos júris, produzindo argumentos convincentes, e de respeitar as leis da pólis, cumprindo suas obrigações e usufruindo dos seus direitos. Ela não faz o cidadão chegar à verdade pela autocrítica prezada por Sócrates, mas lhe proporciona meios de se fazer ouvir e ser acatado e assim fazer as rodas da democracia girarem em prol da tomada de decisões.

    Considerando essas várias dimensões do homem como a medida de todas as coisas, como interpretar as palavras do novo Ministro do Turismo, Celso Sabino, indicado ao cargo por ter como principal qualificação ser aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, citadas na abertura deste artigo? Será que para a prática da democracia tanto faz definirmos o Centrão como um grupo de deputados e senadores adeptos do fisiologismo político ou o definirmos como o grupo que garante a governabilidade do país? Será que no frigir dos ovos o que interessa são os resultados concretos obtidos com as negociações entre Lula e o todo poderoso Arthur Lira e não investigar a verdadeira natureza do tal do Centrão? Ou será que as palavras de Celso Sabino são manipuladoras e escondem o toma-lá-dá-cá que engendra a corrupção, mina as instituições e impede qualquer projeto de longo prazo no Brasil que não seja ganhar as próximas eleições? Será que a busca da verdade bem ou mal não dá um balizamento ético às nossas ações? Para responder a essas perguntas só nos resta aguardar que os frutos dessas negociações, ou contemporizações ou negociatas, a depender do gosto de cada um, sejam colhidos logo. Enquanto isso, cada um de nós mede as coisas de acordo com seus próprios valores, pois conforme ensinou Protágoras, a opinião de cada homem é a verdade para ele.

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Ecos petrinos

A política petrina era converter o império russo de um estado universal russo ortodoxo cristão num dos estados paroquiais do moderno mundo ocidental, no qual o povo russo teria seu lugar como uma das muitas nações ocidentais ou ocidentalizadas.

Trecho de “Um Estudo da História”, do historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975), sobre Pedro o Grande, que foi tzar da Rússia de 1682 a 1725

 

Pedro havia herdado o poder absoluto, tomava isso como certo e nunca duvidou da sua necessidade. O governo pela duma dos boyars restauraria o separatismo feudal e o caos e a estagnação da nação; o governo por uma assembleia democrática era impossível em um país ainda mental e moralmente primitivo; Pedro concordava com Cromwell e Luís XIV que somente a concentração da autoridade e da responsabilidade poderia organizar a heterogeneidade humana em um estado forte o suficiente para controlar as paixões do povo e repelir os ataques de inimigos sedentos de territórios.

Trecho retirado da obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), sobre Pedro, o Grande (1672-1725)

    Prezados leitores, nesta semana, nos dias 11 e 12 de julho, ocorre a reunião dos países da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que dará as boas-vindas ao mais recente membro do clube, a Suécia. No atual contexto geopolítico internacional, com a guerra na Ucrânia sem a mínima perspectiva de terminar, essa adesão da Suécia ao bloco militar ocidental é carregada de simbolismos para quem tem algum conhecimento de história. Meu objetivo nesta semana será explicar essas repercussões no passado e no presente, dando aos meus leitores algumas informações sobre as relações da Rússia com a Suécia, que remontam a Pedro, o Grande.

    Para quem já ouviu falar de Pedro I da Rússia, um homem com mais de dois metros de altura, seu nome está associado à cidade que ele fez construir a partir de 1703 à beira do rio Neva, São Petersburgo, a cerca de 40 quilômetros do mar, em um terreno pantanoso e tendo como modelo Amsterdã, que Pedro conhecera em uma de suas três viagens ao Ocidente. Ora, o tzar russo garantiu que a cidade realmente fosse erguida e se mantivesse por conta de sua vitória na Batalha de Poltava em 1709, contra o rei sueco Carlos XII, que invadira a Ucrânia e que acabou derrotado pelo exército russo, levando a Rússia a conquistar os principados do Báltico e toda a Ucrânia.

    E assim São Petersburgo começou a tomar forma, a princípio como um porto, mas depois da vitória em Poltava como a capital do império russo. E o sonho de Pedro se transformou em realidade no estilo autocrático descrito por Durant no trecho que abre este humilde artigo. Pedro exerceu o poder absoluto para erguer a nova capital não poupando recursos humanos e materiais, independentemente do custo em termos de vidas perdidas. De acordo com o historiador americano, em 1708 40.000 homens, incluindo prisioneiros de guerra suecos, foram enviados para os trabalhos de construção ao pântano cortado pelo vento e escurecido pela falta de luz solar ao longo de vários meses por ano; em 1709, mais 40.000; em 1711 46.000; em 1713 40.000 trabalhadores adicionais, que ganhavam meio rublo por mês e mendigavam e roubavam nas ruas para complementar os módicos rendimentos. Não havendo carrinhos de mão, essas pobres criaturas, expostas ao frio, à fome e às doenças, tinham que carregar os materiais nos seus casacos levantados acima da cabeça. Então, quem quer que visite São Petersburgo deve saber que a cidade tem como fundação mais sólida os ossos dos milhares de trabalhadores que foram sacrificados no altar dos planos de Pedro, o Grande para a Rússia.

    E conforme explica Arnold Toynbee no trecho que abre este artigo, o objetivo do tzar de todas as Rússias foi dar uma resposta ao desafio da Questão Ocidental, isto é, à superioridade técnica, militar e material dos países ocidentais que no início do século XVIII já se mostrava com nitidez. Era preciso achar meios de criar não só uma cidade portuária para estimular o comércio, uma “janela para o Ocidente”, como ela foi designada, mas criar indústrias que produzissem artigos que pudessem ser comercializados, formar gente capacitada que pudesse gerir essas indústrias, construir navios que pudessem usar o porto de São Petersburgo e transportar mercadorias para os países ocidentais pelo Mar Báltico. Pedro tentou tudo isso para empurrar a Rússia, custasse o que custasse, rumo à modernidade ocidental. Fracassou na questão da industrialização e da criação de uma Marinha digna do nome, mas de qualquer forma estabeleceu um exército permanente que protegerias as conquistas militares, e lançou a semente da incorporação das conquistas da civilização ocidental por meio da cidade que leva seu nome.

    Essa pequena história de como São Petersburgo surgiu da chamada Grande Guerra do Norte que durou de 1700 a 1721 permite-nos entender melhor o que acontece hoje no século XXI, em que a Suécia abandona sua tradicional neutralidade para se unir ao bloco militar ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos. Se a derrota da Suécia em Poltava marcou a abertura da Rússia para o Ocidente, essa reunião da OTAN de boas-vindas ao seu novo membro será o símbolo do corte total dos laços que ligam a Rússia à Europa?

     Nesse sentido, outras questões se colocam. Será que Vladimir Putin terá o mesmo papel que Pedro, o Grande teve no século XVIII, mas de maneira invertida? Será que assim como Pedro não teve pejo de sacrificar milhares de vidas humanas para abrir a janela para o Ocidente, ao final da Guerra na Ucrânia, que um dia terminará sem dúvida, Putin, pela decisão tomada em fevereiro de 2022, terá sacrificado milhares de vidas para fechar as portas ao Ocidente e voltar as relações do seu país primordialmente para a Ásia? E à luz das lições de Platão que vimos examinando aqui neste meu humilde espaço sobre a natureza da liderança política, as ações dos dois líderes russos, o do século XVIII e o do século XXI, atenderiam aos critérios platônicos sobre a necessidade de cultivar a virtude dos cidadãos e de domar suas paixões para colocá-los no caminho da racionalidade? Será que a decisão de num caso abrir uma janela para o Ocidente fundando uma cidade e no outro de fechar tal janela totalmente pela invasão de um país vizinho foram decisões de homens visionários, sabedores do melhor caminho pelo qual conduzir o povo?  Ou tanto Pedro quanto Vladimir são simplesmente tiranos que impuseram sua vontade ao país sem se importarem com o sofrimento material e espiritual infligido às pessoas?

    Prezados leitores, como sempre não trago respostas às perguntas que coloco, mas uma coisa é certa: para o bem e para o mal, sem São Petersburgo e a ocidentalização a fórceps que ela representou, a Rússia não teria nos brindado com Tolstói, com Dostoiévski, com Turguêniev, Gógol, para mencionar apenas alguns escritores (meus conhecidos) que fizeram contribuições seminais à civilização cultivadas no mundo inteiro. Esperemos que o legado cultural do fechamento da janela para o Ocidente de Putin fique à altura daquele ensejado por Pedro, o Grande.

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