Crer em quê?

Quase todos os filósofos do Iluminismo reconheciam que a maioria dos homens, mesmo na nação mais civilizada, está assoberbada demais pelas necessidades econômicas e pelo trabalho para ter tempo para o desenvolvimento da razão e que as massas da humanidade são motivadas muito mais pela paixão e pelo preconceito do que pela razão. […] O homem podia finalmente libertar-se dos dogmas medievais e dos mitos orientais; ele poderia dar de ombros para aquela teologia atordoante e aterradora e levantar-se livre, livre para duvidar, indagar, refletir, obter conhecimento e disseminá-lo, livre para construir uma nova religião no altar da razão e a serviço da humanidade. Era uma nobre embriaguez.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre os filósofos ateus do século XVIII na França

Vejo a raça humana continuamente ocupada em proteger-se das trapaças cruéis desta Providência, que dizem estar ocupada em cuidar da felicidade da raça humana. […] A quem a ideia de Deus enche de reverência? A alguns poucos homens fracos, decepcionados e desgostosos com o mundo, algumas pessoas cujas paixões já estão extintas pela idade, pelas enfermidades ou pelos revezes da fortuna.

Trechos retirados do livro “Superstições em todas as Idades” ou “Últimas Vontades e Testamento” de Jean Meslier (1678-1733), padre na região de Champagne, na França, mas um ateu enrustido

Grandes personalidades que eram – o que poderíamos dizer? – porta-vozes da comunidade dos Novos Ateus – Douglas Murray, […], Neil Fergusson, entre eles, Bret Weinstein, começaram a perceber que nossas concepções estão inseridas em um substrato narrativo, em uma história religiosa e que essa história em vários aspectos não pode ser substituída. É possível encaixar substitutos, mas eles tendem a ser ideologias devastadoras do tipo que caracterizava, digamos a União Soviética, ou um niilismo que devora a alma.

Trecho retirado da entrevista dada pelo psicólogo canadense Jordan Peterson ao jornalista britânico Piers Morgan

    Prezados leitores, já ouviram falar de um padre francês que exerceu o ofício por 30 anos e que deixou como legado testamentário um livro tão antirreligioso que sua versão integral só foi publicada em 1861, mais de 100 anos depois de sua morte? Se não ouviram, ouvirão agora neste humilde espaço, que lhes apresenta Jean Meslier. Meslier justifica aos seus leitores póstumos ter sido padre a vida toda, a despeito de suas inclinações, não por ganância, mas para obedecer aos pais. Meu objetivo será o de apresentar suas ideias, representativas dos chamados philosophes franceses do século XVIII, que se rebelaram contra o catolicismo.

    Para quem sabe um pouco de história, a reforma protestante na França não vingou, porque os dissidentes religiosos foram todos expulsos ou trucidados sob as ordens do rei Luís XIV (1638-1715). Portanto, a Igreja Católica não teve seus bens confiscados como o rei Henrique VIII fizera na Inglaterra para se ver livre do jugo de Roma. Até o advento da Revolução ela continuou a ser poderosa senhora de terras e a explorar o trabalho dos camponeses, isenta de tributação, monopolizadora das instituições educacionais e da monarquia, fazendo a cabeça de todos, ricos e pobres, incluindo dos reis que tinham padres como tutores, além confessavam seus pecados desde a mais tenra infância. E o que a Igreja colocava na cabeça das pessoas? Jean Meslier explica.

    Detentora de poder material e espiritual, a Igreja Católica tinha interesse em manter o status quo e para tanto infundia nos fiéis o medo do inferno e a promessa do paraíso. O inferno era para os pecadores, aí incluídos os hereges, que questionavam os dogmas religiosos como a ideia de que Jesus Cristo era filho de Deus, que na missa o pão e o vinho transformavam-se no corpo e no sangue do Salvador do Mundo. O paraíso era para os que não cometiam pecados, aí incluídos os que aceitavam todas as proposições da Igreja e da Bíblia, tal como os padres as apresentavam aos fiéis.

    Não admira que um Deus que condenava ao inferno os contestadores das verdades estabelecidas fosse um Deus tirânico e caprichoso, porque afinal a decisão sobre o que era verdade e o que era mentira cabia à Igreja e somente a ela, de acordo com critérios obscuros que mudavam ao sabor dos interesses temporais da Igreja como instituição: um dia um homem era excomungado, noutro era perdoado se se submetesse aos ditames religiosos. Mas será que depois do perdão o homem teria deixado de ser pecador ou teria sido por conveniência política que a Igreja o perdoara, num quid pro quo destinado a manter sua influência sobre as pessoas?

    Sob essa perspectiva, para Meslier a Igreja Católica e a religião cristã eram simplesmente fonte de opressão e de injustiças. A história falava por si: as perseguições e matanças dos cátaros no século XIII, o massacre de São Bartolomeu em agosto de 1572, quando ao redor de 3.000 protestantes foram assassinados, mostravam que o comportamento ético passava ao largo das ações dos príncipes da Igreja: a paz e a harmonia que a Igreja defendia era aquela que ela impunha à força com a ajuda das armas do Estado Monárquico.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Meslier considerava que a ideia de crença em um Deus ia contra a natureza humana: somos seres com paixões e instintos e querermos fundar um código de ética na negação da nossa natureza era contraproducente, pois só uma minoria de pessoas, que não tivesse mais desejos, pelo fato de elas estarem velhas ou doentes, poderia aderir às proibições impostas pela Igreja Católica. Para o padre e ateu enrustido, a moral só pode ter dois fundamentos: a razão e o conhecimento, de modo que o homem chegue ao bom senso, isto é, a estabelecer regras que podiam ser obedecidas porque estavam de acordo com aquilo que somos e aquilo que somos só pode ser conhecido pelo exercício da razão aliado à experiência. O homem deveria ser livre para buscar seu prazer se não prejudicasse os outros, e deveria ser livre para lutar com todas as suas forças e sua razão para vencer as peças pregadas pela Natureza: as enchentes, a fome, as tempestades, o frio, a esterilidade e todos os infortúnios que faziam parte da existência humana, a contrariar a ideia de um Deus benigno e providente.

    Esse novo ser vislumbrado pelo padre de Champagne era o ideal iluminista por excelência, conforme pregado pelos filósofos franceses como Diderot, D’Alembert, Voltaire, La Mettrie, Grimm, Helvétius e d’Hollbach. Deixando definitivamente para trás as superstições, os medos e as fábulas impostas pela Igreja Católica desde a Idade Média para manter seu poder, o homem seria livre para questionar as verdades consolidadas pela tradição e, ajudado pelas descobertas cada vez mais numerosas da ciência, embarcaria em uma jornada de busca da felicidade material e espiritual, proporcionada pelo exercício desimpedido da razão para a solução dos problemas postos à sobrevivência da humanidade. Assim é que o homem, livre de doenças, da morte precoce, da falta de comida superaria o estágio religioso da civilização e entraria no estado racional, em que as regras de comportamento ético e de organização da sociedade seriam fruto de um esforço racional de todos que conjugaria para um denominador comum.

    E no entanto, conforme o trecho que abre este artigo, os próprios entusiastas desse novo tipo de agir viam-lhe as limitações. Nem todos os homens tem aptidão ou vontade para exercer suas faculdades mentais. Aliás, a maioria deles só consegue agir de maneira instintiva ou passional, e seu conteúdo mental limita-se aos preconceitos que herdaram de seus pais, familiares, amigos, e demais pessoas do seu círculo de convivência. Na ausência do exercício da razão, que caminho essas pessoas poderão trilhar rumo ao futuro cheio de esperanças prometido pelos iconoclastas religiosos?

    À época em que os philosophes propuseram suas ideias pela primeira vez, o entusiasmo com a redescoberta da razão como instrumento que poderia substituir as crenças milenares que haviam estagnado o progresso da civilização era grande demais para que eles se preocupassem com o destino da grande maioria das pessoas que não tem nada de intelectual em si mesmas para cultivar. No entanto, em nosso século XXI, o Ocidente que inventou o Iluminismo para superar o Cristianismo já está no pós-Iluminismo, quando o Cristianismo só é levado a sério por uma ínfima minoria. Por esse motivo, esse problema do que colocar no lugar da religião na cabeça dos não intelectuais é premente e digno da atenção de pessoas que se debruçam sobre a malaise espiritual da nossa época, como o psicólogo canadense Jordan Peterson.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Peterson, as ideologias, que no século XX tentaram ser fontes de utopias terrenas – como a religião cristã havia sido outrora fonte de utopias celestes – fracassaram porque só causaram destruição, como o leninismo, o stalinismo, o maoísmo. É mais do que necessário agora retomar a religião como instrumento de criação de uma narrativa pessoal, isto é, de estabelecimento de valores que deem sentido à vida, pois não só de pão vive o homem: vivemos em meio a uma prosperidade material inédita na história da humanidade, fruto das conquistas científicas e tecnológicas estimuladas pelo Iluminismo, mas ao mesmo tempo isso não é suficiente para nos dar paz de espírito, como mostra a alta incidência de ansiedade e os índices de suicídio entre os jovens.

    Prezados leitores, o que fazer? Crer? Mas crer em quê? Na razão como única fonte possível de conhecimento e de preceitos morais? Ou em alguma religião? Ou no vegetarianismo? Ou na ecologia? Ou na diversidade e inclusão? Cada indivíduo deve escolher, de acordo com suas aptidões pessoais? Ou ele deve seguir as normas da sociedade em que vive? De qualquer forma, para nossa saúde mental, para conseguirmos desenvolver e contar nossa própria história, é preciso crer em alguma coisa.

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O estilo da Capital da Solidão

Quanto mais substância e força damos aos pensamentos pela meditação, mais fácil será concretizá-los na expressão. […] A mente humana não consegue criar nada, produzir nada, a não ser que tenha se enriquecido pela experiência e pela meditação; […] Somente aqueles trabalhos que são bem escritos entrarão para a posteridade. A quantidade de conhecimento, a singularidade dos fatos, mesmo a novidade das descobertas, não serão garantia de imortalidade; […] porque o conhecimento, os fatos, as descobertas são facilmente removidos e levados para longe, e até ganham ao serem colocados em mãos mais hábeis. Essas coisas estão fora do homem, mas o estilo é o homem ele mesmo; o estilo não pode ser roubado, transportado ou alterado; caso seja elevado, nobre e sublime, o autor pode ser admirado igualmente em qualquer época, pois somente a verdade é durável e permanente.

Trechos do discurso proferido em 25 de agosto de 1753 pelo naturalista francês Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), ao ser admitido à Académie Française

Uma barreira é tanto um obstáculo que desengana quanto um convite para que se procure superá-lo. A barreira tanto desencoraja quanto tenta. Se existe, é porque esconde algo. Se esconde algo, é porque é precioso. Os primeiros portugueses pioneiros decidiram-se pela segunda alternativa, ato que seria o primeiro a determinar a criação da cidade de São Paulo.

Trecho do livro “A Capital da Solidão – Uma história de São Paulo das origens a 1900”, de Roberto Pompeu de Toledo, referindo-se à Serra do Mar, muralha de 800 metros de altura que corre paralela ao mar e liga o litoral ao Planalto, onde foi fundada a cidade de São Paulo

    Prezados leitores, tenho por hábito caminhar pelo centro histórico de São Paulo, para apreciar a arquitetura dos prédios antigos, as esculturas lapidadas na fachada, e por vezes entrar em um ou outro edifício à cata de alguma obra de arte em exposição temporária ou permanente. Achar essas pérolas requer motivação, porque a região em volta da Praça da Sé é frequentada nos finais de semana e feriados, que é quando tenho tempo de sair pela cidade afora, em sua maior parte por moradores de rua. Andar por lá não chega a ser perigoso pois há policiamento, mas a quantidade de sem-teto é tamanha que afasta os cidadãos normais. O centro de São Paulo poderia ser uma atração turística muito maior do que é, mas creio que nunca chegará a sê-lo de maneira robusta o suficiente para que a massa de turistas afaste os mendigos, bêbados e drogados.

    É inegável que não temos aqui o nível de antiguidade de cidades como Salvador e Recife, que ostentam igrejas e conventos do século XVII, e que a casa mais antiga que temos no centro de São Paulo que ainda resta em pé talvez seja a da Marquesa de Santos, que foi proprietária do agora chamado Solar da Marquesa de 1834 a 1867. Isso se deve não só ao fato de que o casario colonial foi derrubado à medida que a cidade se expandia no começo do século XX, mas a que a cidade de São Paulo ao longo de seus primeiros trezentos anos  de vida foi um simples vilarejo do interior, fora do alcance dos navios da metrópole, sem nada a oferecer à cobiça portuguesa que fizesse com que os colonizadores aqui se instalassem, como o fizeram nas cidades litorâneas, que os colocavam mais próximos da Europa, para onde eram enviados os produtos produzidos ou recolhidos nos trópicos.

    A constatação de que a cidade de São Paulo não tem muito a oferecer em termos de patrimônio histórico é fácil quando caminhamos pelo centro e fica mais inteligível ao lermos a história de “Sampa”, como é conhecida, contada no livro de Roberto Pompeu de Toledo citado na abertura deste artigo. Para resumir uma longa história, Martim Afonso de Sousa, que em 1532 aportara em São Vicente, no litoral, tinha vindo ao sul do Brasil com uma esperança: a de tornar o Planalto, a que se tinha acesso depois de subir a íngreme e dificultosa Serra do Mar – a barreira de que fala Roberto Pompeu de Toledo – uma plataforma para a realização de expedições que pudessem levar os portugueses a chegar pelo interior à terra do ouro e da prata, isto é, ao que hoje chamamos de Peru.

    No entanto, Francisco Pizarro perseguiu uma melhor estratégia para descobrir o império do rei branco, apostando em um caminho marítimo pelo Pacífico. Em 1531, ele aportou na costa oeste da América do Sul e o ouro e a prata ficaram para os espanhóis. Martim Afonso de Sousa, que por causa de suas atividades no litoral paulista, recebeu São Vicente como capitania hereditária, jamais voltou a pôr os pés no Brasil, preferindo aventurar-se na Índia. O vilarejo além da Serra, distante do litoral, desprovido de metais preciosos e inútil como ponto de partida para a busca do ouro e da prata que já tinham sido abocanhados pelos rivais espanhóis, que seria fundado em 1554 com a criação do colégio dos jesuítas, foi esquecido e abandonado pelo governo português.

    Daí por que Roberto Pompeu de Toledo chama a desenxabida vila de Capital da Solidão, solidão de um local cujo acesso requeria vencer um paredão de 800 metros coberto de mata densa. E no entanto, apesar da vila ter permanecido imersa em sono profundo até o século XIX, isso não é motivo suficiente para que o jornalista não conte uma história saborosa da cidade, assim como não é motivo para que eu humildemente deixe de caminhar por um centro cuja história é bem desprovida de marcos arquitetônicos e culturais, justamente por nada de muito interessante ter acontecido aqui desde que Martim Afonso de Sousa partiu para nunca mais voltar. O motivo quem explica é o naturalista francês Buffon, autor da famosa frase que se perpetuou na história: “O estilo é o homem”. Explico-me.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o autor de “História natural, geral e particular” que no total era constituída de 44 volumes, considerava que o estilo era tudo. O que era o estilo? Era a capacidade do homem, pela meditação sobre a experiência, chegar à expressão dos seus pensamentos. E tal expressão perduraria pelos séculos se ela fosse perfeita, se ela fosse capaz de evocar tudo aquilo que tinha dado ensejo a ela, em suma se ela chegasse a uma verdade, que fosse além dos fatos, descobertas e conhecimento que tinham sido processados pela mente que burilou tal verdade. Pois o que importava não eram os detalhes específicos, mas o panorama geral dado pela maestria estilística do homem que criava a forma na qual cabiam os elementos já conhecidos pelo dono do estilo, mais aqueles que ainda se dariam por conhecer. Em seu trabalho de naturalista Buffon muitas vezes foi criticado por sacrificar a precisão dos detalhes em prol das generalizações, mas nunca se negou a ele a qualidade de saber expressar suas ideias acerca da majestade da natureza.

    Prezados leitores, seguindo consciente ou inconscientemente as lições do naturalista francês, Roberto Pompeu de Toledo faz seu estilo dar uma dinâmica à história de São Paulo, cidade que teve um destino medíocre do século XVI ao século XIX, e que apesar disso não deixou de ser marcada por vários dramas. Ao utilizar a Serra do Mar como uma metáfora da dificuldade de colonizar esta parte do sul do Brasil, e da motivação para superar tal desafio, o jornalista tornado historiador, desfia os elementos épicos da criação de São Paulo: a barreira física representada pelo Serra do Mar, a decepção dos portugueses que contavam chegar ao Peru passando pelo Planalto e atravessando o interior do Brasil, o conflito entre os jesuítas motivados e comprometidos com a evangelização e os portugueses como João Ramalho que viveram aqui na poligamia escancarada com suas temericós, i.e. as índias oferecidas aos estranhos como símbolo de aliança.

    Desse modo, a Capital da Solidão, triste e enfadonha na realidade, transforma-se na vila do Planalto, erguida no pico da Serra do Mar. E os meus passeios pelo centro adquirem um sabor especial ao me dar conta de que aquele centro desprovido de patrimônio é o fruto da expansão vertiginosa de uma cidade que não era nada para o país e que acabou tornando-se tudo. Em tempo: todos estão convidados para um passeio pelos arredores da Praça da Sé, para verificarem in loco a mutação da tal da Capital da Solidão em capital das multidões.

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A felicidade das leis e dos calotes

Nas Histórias, Heródoto narra o suposto encontro entre Sólon e Creso, então rei da Lídia, em Sárdis, depois que ele deixou Atenas após a instituição das leis por ele reformadas. A conversa entre eles versa sobre a noção de felicidade, em que se contrastam duas concepções morais decorrentes de dois modos de vida distintos (a austeridade ateniense em oposição à opulência lídia): enquanto Creso identifica a felicidade com riqueza e poder, Sólon a entende como uma combinação de excelência moral, bens externos (como ter uma família bem constituída) e boa fortuna.

Trecho retirado de uma nota de rodapé à tradução de Protágoras, de Platão (427 a.C.-347 a.C.), por Daniel R. N. Lopes

Parece incrível que nesta encruzilhada [final do século VII a.C.] da vida de Atenas, frequentemente repetida na história das nações, um homem tivesse sido encontrado que, sem nenhum ato de violência e nenhuma animosidade no discurso, conseguiu persuadir os ricos e os pobres a chegarem a um compromisso que não somente evitou o caos social, mas estabeleceu uma nova e mais generosa ordem política e econômica para todo o restante da vida independente de Atenas. A revolução pacífica de Sólon é um dos milagres encorajadores da história.

Trecho retirado do livro “A Vida da Grécia”, de Will Durant (1885-1981), professor de filosofia e historiador americano

Nos séculos VII e VI a.C. a maior parte das cidades gregas foi deposta por líderes denominados tiranos. Eles basicamente eram reformistas que derrubaram as aristocracias locais fechadas, cancelaram as dívidas e redistribuíram a terra ao povo. Sólon aboliu a servidão por dívidas em Atenas em 594 a.C. (mas não fez reforma agrária) por meio “da destruição dos ônus,” sua seisachtheia, referindo-se ao ônus das dívidas.

Trecho retirado de entrevista do economista americano Michael Hudson (1939- ) a Martin North da Digital Finance Analytics em 20 de março de 2020

    Prezados leitores, vocês já ouviram falar dos Sete Sábios da Grécia? Foram em sua maior parte legisladores ou personagens que exerceram altos cargos públicos e cuja sabedoria se exprimia por meio de máximas morais ou práticas úteis na vida política da cidade. Para citar algumas delas, de autoria de Quilon de Esparta: “a virtude humana é prever o futuro na medida da capacidade da razão”; “controle sua língua, especialmente num banquete”; “não ultraje uma pessoa morta”; “respeite a velhice; “vigie a si mesmo”; “não deixe que a língua suplante o pensamento”; “não escarneça do infortúnio alheio”; “uma punição é preferível a uma vantagem vergonhosa, pois a primeira é dolorosa uma única vez, ao passo que a segunda o é pelo resto da vida”. Além de Quilon, esses sábios incluíam a figura de Sólon (640 a.C.-558 a.C.), estadista de Atenas, o qual será objeto deste humilde artigo por sua relevância para o momento presente.

    Sólon é conhecido por ter dado a Atenas uma constituição, isto é um conjunto de leis para a condução dos negócios da cidade, que se aplicavam a todos os homens livres, ricos e pobres, o que acabou lançando as bases para a democracia que floresceria na cidade no século V a.C.  Quando perguntado em que consistia um estado em ordem e bem constituído, ele respondeu: “Quando as pessoas obedecem aos governantes e os governantes obedecem às leis.”

     Essa submissão dos governantes a algo maior do que eles fica clara na história – citada na abertura deste artigo – que Heródoto conta a respeito de um suposto encontro entre o rei da Lídia, Creso e Sólon. Creso pergunta a Sólon se este não o considerava um homem feliz, já que ele tinha poder e riqueza.  Sólon responde que é temerário considerar um homem feliz, considerando o futuro incerto e as mudanças na fortuna que poderiam advir. Só pode ser considerado feliz a quem os deuses agraciaram com a felicidade até o fim.  Pavonear-se por sua prosperidade presente é uma insolência desarrazoada porque a vida do homem poderia mudar para pior. Aliás, o destino de Creso é emblemático a esse respeito, pois foi destronado pelo rei da Pérsia, Ciro, em 546 a.C.

    Assim, a boa fortuna era fundamental para a felicidade e tal fortuna não dependia do ser humano, portanto era preciso cultivar a humildade e não tripudiar sobre os outros. Para evitar que os ricos fizessem uso do seu poder e riqueza para esmagar os pobres e vulneráveis, Sólon cancelou todas as dívidas fossem elas devidas a particulares ou ao Estado. As pessoas presas ou escravizadas por dívidas foram soltas ou libertadas e conforme Michael Hudson explica em sua entrevista, citada na abertura deste artigo, Sólon inscreve-se na lista de líderes na Antiguidade que tinham a consciência de que dívidas impagáveis tinham que ser simplesmente canceladas. Obrigar as pessoas a honrar pagamentos à custa da sua própria subsistência ou de sua própria liberdade era lançar os germes da revolta social. O calote infligido aos credores pelo perdão das dívidas era o preço a pagar para que largas fatias da população não fossem depauperadas a ponto de cair na mais absoluta miséria e perderem a fé no sistema e o comprometimento com sua manutenção.

     É por essa razão que Will Durant chama Sólon de um milagre da história: em um momento em que os pobres endividados não acreditavam nas leis e na justiça que sempre decidia a favor dos ricos e em que os ricos sofriam as consequências do calote de dívidas que só podiam ser pagas com o sangue, o suor e as lágrimas dos devedores, as reformas de Sólon criaram previsibilidade que por seu turno gerou prosperidade para todos. A previsibilidade de leis aplicáveis a todos que substituíram uma miríade de  decretos incalculáveis e eternamente mutáveis, e a previsibilidade do perdão de dívidas que permitiram aos pobres sair do círculo vicioso do endividamento e da penúria material e assim melhorar suas perspectivas.

    Prezados leitores, Michael Hudson defende que a receita de Sólon seja aplicada nos Estados Unidos aos indivíduos que devem mais do que o valor do seu patrimônio e aos Estados soberanos que seguem a cartilha do FMI para impor a austeridade a suas populações para permanecerem bons pagadores aos credores. Segundo ele, só livrando os cidadãos do peso de dívidas impagáveis é que se pode começar a construir uma nova economia baseada não nas operações financeiras, mas sim na produção de coisas reais.

    Essa nova economia, não financeirizada, melhorará a situação do povo porque ela tornará a vida menos incerta, mais previsível e pronta para ser iniciada de novo, livre do fardo das dívidas. Oxalá que Javier Milei, o novo presidente da Argentina, ouça falar de Sólon e de sua fórmula para evitar a revolta social e a divulgue ao FMI, quando for renegociar a divida impagável do país com seus credores internacionais. Como todo sábio digno de nome, Sólon deixou-nos um legado de lições pertinentes em qualquer época: meden agan, nada em excesso, nem dívidas nem leis. Aproveitemo-lo!

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O melhor ou o pior dos mundos possíveis?

Quais são os valores do Iluminismo, os ideais do Iluminismo? Em resumo, é o ideal de que devemos utilizar a razão para aumentar o florescimento humano. O que quero dizer com “razão”? Discussão aberta, ciência, história, avaliação das ideias. E os frutos da razão foram implementados em determinadas instituições, particularmente na democracia liberal, nos mercados regulados e nas instituições internacionais. Esse é em resumo, o Iluminismo. O que quero dizer com florescimento? Bem, quero dizer coisas que queremos para nós mesmos e não podemos negar aso outros: vida, saúde, subsistência, prosperidade, paz, liberdade, segurança, conhecimento.

Trecho de autoria do professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-), em seu debate com o professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-)

Como você consegue obter progresso moral e político se você não chega à verdade, se você tem uma situação em que os indivíduos não conseguem chegar a um acordo sobre os princípios fundamentais?

Trecho de autoria do professor de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer (1947-) em seu debate com o professor de psicologia de Harvard Steven Pinker (1954-)

Todo o conhecimento será subdividido e ampliado; e sendo o conhecimento, como observa Lord Bacon, poder, os poderes humanos de fato aumentarão; a natureza, incluindo tanto seus materiais quanto suas leis, ficarão mais sob nosso domínio; os homens farão sua situação neste mundo tremendamente mais fácil e confortável; eles provavelmente prolongarão sua existência nela, e ficarão a cada dia mais felizes, cada um por si mesmo, e mais capazes de comunicar a felicidade aos outros (e, creio eu, mais dispostos a fazê-lo). Assim, qualquer que tenha sido o começo deste mundo, o final será glorioso e paradisíaco além do que nossa imaginação pode conceber agora… Felizes são aqueles que contribuem para a difusão da pura luz deste evangelho eterno.

Trecho retirado do livro “História das Corrupções da Cristandade” (1782), de autoria de Joseph Priestley (1733-1804), teólogo e cientista britânico, descobridor do oxigênio, citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Prezados leitores, antes de mais nada é preciso fazer um esclarecimento. Segundo Thomas Kuhn, há três indivíduos que podem ser considerados os descobridores do gás oxigênio, o apotecário sueco Karl Wilhelm Scheele (1742-1786), Joseph Priestley e o químico francês Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794). Todos os três obtiveram, por meio de experimentos, uma amostra relativamente pura do gás, mas Lavoisier levou os louros porque ele deu ao gás um nome, derivado do grego, que quer dizer um gerador de ácidos, porque Lavoisier considerava erroneamente que o oxigênio era um elemento constituinte indispensável de todos os ácidos. Dando esse nome Lavoisier acabou por enterrar de vez a teoria do flogístico, que segundo acreditavam os químicos da primeira metade do século XVIII, era um fluido liberado no ar a partir da queima de uma substância.

O fato é que ao passo que Priestley ainda acreditava na teoria do flogístico e considerou que o gás que ele obteve era ar sem o flogístico, Lavoisier percebeu por meio de seus experimentos que na verdade na combustão o material que queimava retirava algo do ar, o oxigênio, não liberando nada. Essa capacidade de dar um passo além em termos conceituais foi fundamental para que Lavoisier fosse um dos pais da química moderna, ao conseguir explicar melhor o fenômeno da combustão. Quanto a Scheele, o problema dele foi que não publicou seus resultados a ponto de ter alguma influência sobre o trabalho de seus colegas do mundo da ciência.

Feitos esses esclarecimentos sobre a epítome dada a Priestley de descobridor do oxigênio, independentemente da maior ou menor contribuição dele à química moderna, o fato é que o cientista britânico era um entusiasta da ciência, para ele a única força capaz de criar uma utopia na Terra, se ela vencesse a superstição e a ignorância. Conforme o trecho que abre este artigo, a ciência traria conhecimento ao homem e lhe conferiria poder sobre o mundo, de modo a livrá-lo dos males da doença e da morte e levá-lo a uma vida mais feliz, que seria livre dos medos atávicos e esperançosa no futuro, o qual tinha muito mais chances de concretizar-se. E o homem que vivesse mais e melhor, sendo mais feliz, comunicaria essa felicidade aos próximos: um círculo virtuoso se construiria sob o condão da vitória da ciência.

Não é menos inabalável o otimismo de um dos principais divulgadores da filosofia Iluminista no século XXI, o psicólogo canadense Steven Pinker. Conforme ele explica na discussão citada na abertura deste artigo, o Iluminismo é o cultivo da razão (cotejo de ideias para a maior aproximação possível da verdade) para que o homem conquiste bens materiais e imateriais, como prosperidade, saúde, segurança, liberdade e paz. Essa razão em prol do florescimento humano concretiza-se em um determinado ambiente político, econômico e institucional. Ele é constituído de democracia para haver o embate de ideias e a obtenção de consensos possíveis, de mercados em que o indivíduo tenha a liberdade de empreender e de oferecer sua força de trabalho, e de instituições que possibilitam que a democracia e os mercados funcionem sem impedimentos.

E no entanto, o intelectual com o qual Steven Pinker debateu a respeito do Iluminismo, John Mearsheimer, tem lá suas dúvidas sobre essa receita de sucesso, formada por razão + conhecimento + ciência = bem-estar material e espiritual. Pois o fato é que a razão livre de restrições determinadas pelos dogmas religiosos e pelas superstições não fundadas na realidade não é unívoca. Diferentes pessoas, igualmente educadas, podem ter visões diametralmente opostas, a depender de seus valores fundamentais. Para o cientista político, se não há acordo sobre o que é a boa vida sob o ponto de vista ético, não haverá o compartilhamento de uma verdade ancorada em uma visão do modo como devemos viver neste mundo e portanto, não haverá progresso político nem moral: as pessoas, os Estados, as civilizações continuarão a disputar entre si porque eles não conseguem se entender sobre o que é certo e o que é errado. A concepção Iluminista de uma razão transparente, acessível a quem quer que estivesse disposto a livrar-se dos dogmas religiosos, cai por terra quando consideramos a diferença de concepções embutidas nas diferentes ideologias espalhadas pelo mundo, seja o liberalismo ocidental, o islamismo do Oriente Médio, o confucionismo chinês, o cesaripapismo russo, o teocraticismo vigente em Israel e no Irã.

Prezados leitores, os ideais do Iluminismo, colocados em prática primeiro no Ocidente e depois espalhados pelo mundo, levaram a prosperidade a centenas de milhões de indivíduos na China e na Índia, países que agora colhem os frutos da sua importação da receita de sucesso. Afinal, de acordo com o FMI, a China é a segunda economia mundial e a Índia a quinta. Por outro lado, será que fizemos progressos morais e políticos utilizando a razão? Ou a razão livre para florescer acaba criando as mais variadas e conflitantes ideologias?

Conforme já comentado neste humilde espaço, Israel, que já matou ao menos 50.000 palestinos desde 7 de outubro, a maioria deles (70%) mulheres e crianças, considera-se paladino da civilização contra a barbárie. O que há de civilizado nessa matança? Não estará aqui o governo israelense simplesmente racionalizando seu desejo de vingança e de extermínio do povo palestino usando o véu da luta contra o terrorismo? Será que algum dia haverá um consenso sobre o que fazer no Oriente Médio com base na razão? Ou a razão livre e desimpedida só levará à construção de dogmas políticos e religiosos pelas respectivas partes? Nesse sentido, será que vivemos no melhor dos mundos possíveis em termos dos confortos materiais disseminados cada vez mais no mundo e ao mesmo tempo no pior dos mundos possíveis, pois cada um tem a liberdade de ter sua própria opinião sobre tudo e sente-se no direito de defendê-la contra aqueles que com ela não concordam? Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e enquanto isso tenhamos uma visão mais crítica das utopias na Terra prometidas por Priestley no século 18 e por Pinker no século XXI.

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Confúcio e a ética do cavalheiro

[…] Confúcio, como outros professores da antiguidade, tinha por objetivo criar uma sociedade estável, mantendo um certo nível de excelência, mas nem sempre lutando para obter novos sucessos. Nisso ele foi mais bem-sucedido do que qualquer outro homem que já passou pela face da Terra. Sua personalidade marcou a civilização chinesa desde seus dias até os dias atuais. Durante a vida de Confúcio, os chineses ocupavam somente uma pequena parte do território atual da China e eram divididos em uma série de estados beligerantes. Durante os próximos trezentos anos, eles se estabeleceram no que hoje é considerada a China e fundaram um império que ultrapassava em termos de extensão e população qualquer outro que existiu até os últimos 50 anos. […] Na essência, o que Confúcio prega é algo muito parecido com o ideal ultrapassado do “cavalheiro”, conforme existia no século dezoito.

Trecho retirado de “Ideais de Felicidade”, ensaio incluído na coletânea de “Ensaios Céticos” do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), o qual tece considerações sobre o sistema ético chinês em contraposição ao ocidental

Porque é impossível descrever a maneira bonita pela qual tudo nas leis dos chineses, mais do que em qualquer outro povo, tem como objetivo a conquista da tranquilidade pública… O estado das coisas aqui, à medida que a corrupção espalha-se entre nós de maneira desmedida, parece-me tal que pareceria quase necessário que missionários chineses fossem enviados a nós para nos ensinar o uso e a prática da religião natural, da mesma maneira que nós enviamos missionários a eles para lhes ensinarem a religião revelada. De maneira que considero que se um homem sábio fosse escolhido para julgar… a excelência dos povos, ele iria dar o prêmio máximo aos chineses […]

Trecho do livro “Novissima Sinaica”, do filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) citado em “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, em março de 2022 em “Confúcio e a algocracia” eu explorei as raízes dessa invenção chinesa, o crédito social, na ética confuciana. À época argumentei que para o filósofo chinês Confúcio (551 a.C.-479 a.C) não poderia haver uma sociedade ordenada e pacífica sem que cada indivíduo, em suas relações familiares, pessoais e profissionais, tivesse as atitudes corretas, então controlar o comportamento de cada pessoa ao final resultaria na construção daquele ideal almejado de ordem, paz e prosperidade. No Ocidente, o crédito social é considerado o símbolo do totalitarismo chinês, pois permite o controle pelo Estado de tudo o que o cidadão faz e consome. Meu objetivo nesta semana é mostrar que os princípios que embasam esse sistema de pontuação para o bom comportamento podem ser uma fonte de liberdade e da única ética possível para os seres humanos, isto é, aquele que não é contrária à nossa natureza e afinidades naturais. Para isso vou basear-me nas considerações de Bertrand Russell sobre a ética confuciana, da qual ele era um grande entusiasta.

    No ensaio “Ideais de Felicidade”, o filósofo inglês estabelece como uma das diferenças cruciais entre a ética ocidental e a ética chinesa a ideia, fundada na Bíblia, de um pecado original, isto é, de que todo homem nasce corrompido, tão corrompido que ele merece a punição eterna. Uma série de consequências surge desse pecado original. Se o homem é naturalmente mau, o objetivo da ética é o de controlar os seus próprios impulsos e tentar controlar os impulsos alheios, de maneira que não basta ao homem ético abandonar os prazeres, mas também garantir que as outras pessoas também o façam.

Para Russell, essa é uma receita certa para a hipocrisia, pois os impulsos naturais não são facilmente domados, então o homem busca racionalizações para explicar para si mesmo e aos outros o porquê de não ter atingido o ideal de bom comportamento. Pior, essa hipocrisia envolve também agir da maneira mais antiética possível, chafurdando nos mais baixos instintos como se estivesse atuando como um santo, pois tem uma sublime explicação para fazê-lo. Os guerreiros cruzados, que nos séculos XI, XII e XIII lutaram na Palestina em nome de Cristo, matando, pilhando e destruindo, são o exemplo acabado dessa dissonância entre o ideal ético abstrato, incompatível com o homem real, e o comportamento prático.

    Uma segunda consequência da crença no pecado original do homem para Bertrand Russell é que as diferenças de opinião entre os ocidentais se transformam rapidamente em questões de princípio: cada lado considera que o outro lado é malévolo e qualquer compromisso com o partido oposto significa compactuar com sua malignidade. Nesse sentido, é muito mais difícil submeter as diferenças a argumentos e à razão, porque a visão maniqueísta do bem contra o mal obscurece qualquer nuance e leva a uma disposição maior a recorrer à força para resolver disputas, já que estas logo se tornam ferozes pela invocação de conceitos absolutos como o bem e o mal.

    A esse mito do pecado original, cultivado no Ocidente, o filósofo inglês contrapõe a falta dessa noção de que todos somos irremediavelmente pecadores entre os chineses. Daí surgir o ideal confuciano do cavalheiro, conforme o trecho citado na abertura deste artigo. O cavalheiro não está obrigado a fazer coisas excepcionais que exijam um grande autocontrole. Não se está aqui a pedir que o homem reprima sua natureza e suas simpatias: Confúcio não pede que o pai denuncie o filho ou que o filho denuncie o pai, pelo contrário, ele considera errado fazer isso, pois os laços familiares devem sempre ser reforçados, a família sendo a unidade básica da sociedade.

    Além disso, o cavalheiro não precisa amar a humanidade, pois isso não é possível. Basta que ele trate a todos de maneira polida, evitando ser briguento e quando disputar algo com alguém deve pedir a mediação de um terceiro para resolver o conflito. E resolver o conflito não é dar razão a uma parte em detrimento da outra: é chegar a um meio-termo que salve as aparências para ambas isto é, que evite que elas sejam humilhadas e permita que ambas possam seguir em frente, tendo preservado sua dignidade. Segundo Russell, essa ênfase no compromisso faz com que a vida social e política na China seja bem menos implacável que no Ocidente, aferrado a princípios morais abstratos de difícil concretização, como amor universal e perdão.

    Essas explicações sobre a ética confuciana do cavalheiro permitem-nos entender a que Leibniz se refere no trecho que abre este artigo, quando fala da religião natural praticada pelos chineses, em contraposição à religião revelada dos ocidentais, a qual temos como ideal, mas que raramente colocamos em prática. A religião natural, incentivando a tolerância e o respeito mútuos, não pedindo mais do cavalheiro do que ele pode dar, estimulando as fidelidades familiares provou ser uma receita mais duradoura de ordem e paz do que aquela testada no Ocidente, afinal o Império do Meio existe como país unificado desde o século VI a.C., o que não é o caso de nenhum país da Europa ou das Américas.

    Prezados leitores, em um tempo tão polarizado como o nosso, em que um país como os Estados Unidos se vê como excepcional, em que Israel vê-se participando de um embate contra as forças do mal, representadas pelos terroristas sanguinários do Hamas, e em que muitos islâmicos querem empreender a jihad contra os infiéis, será que esse pragmatismo confuciano dos objetivos modestos em prol de conquistas mais duradouras não é uma proposta mais civilizada? Será que ela não evitaria a conflagração mundial que a cada dia parece mais perto? Bertrand Russell, grande pacifista de sua época, que foi preso por protestar contra a Primeira Guerra Mundial e lutou toda sua vida contra os princípios absolutos, certamente diria que sim.

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