O destino dos peles-vermelhas

Da mesma maneira, o Destino e as Moiras são os mestres universais do estaleiro, e você é suas brocas e enxadas; e me parece que em vez de render homenagens e fazer sacrifícios para você, os homens deveriam fazer sacrifícios para o Destino, e implorar-lhe favores; apesar de que mesmo isso não resolveria o problema, porque considero que as coisas estejam determinadas de uma vez por todas e que mesmo as Moiras não tenham liberdade para retalhar e mudar.

Fala do personagem Cyniscus no diálogo “A inquirição de Zeus” do escritor satírico romano Luciano de Samósata (125 d.C.-180 d.C.)

Diz-se que Zeus, que pesa a vida dos homens e informa as Moiras de suas decisões, pode mudar de ideia e intervir para salvar quem ele deseja salvar, quando o fio da vida, tecido no fuso de Cloto, e medido pela régua de Láquesis, está para ser cortado pela tesoura de Átropos. Outros sustentam, ao contrário, que o próprio Zeus está sujeito às Moiras, como as pitonisas uma vez confessaram em um oráculo; porque elas não são filhas dele, mas filhas partenogenéticas da Grande Deusa Necessidade. Com a qual nem mesmo os deuses lutam, e que é chamada de “A Grande Moira”.

Retirado do livro “Os mitos gregos” escrito pelo escritor britânico Robert Graves (1895-1985)

107 anos depois do Congresso Sionista da Basiléia, 90 anos depois do Tratado de Sykes-Picot, Israel não conseguiu nos eliminar. Estamos aqui, na Palestina, enfrentando-os. Não somos índios peles-vermelhas.

Trecho de entrevista de Yasser Arafat (1929-2004), líder da Autoridade Palestiniana na década de 1990 dada em 2004

    Prezados leitores, lembro que nos meus tempos de cursinho pré-vestibular, no começo da década de 1990, eu tinha uma apostila de geopolítica e um dos assuntos de maior destaque nela era o conflito judeu-palestino. Havia uma descrição das guerras lá travadas – a Guerra de 1948, a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, a Guerra do Líbano, em 1982. Nossos professores nos davam as chaves para entendermos o conflito e assim podermos dar a resposta certa no exame e éramos sempre alertados sobre a grande probabilidade de haver alguma questão sobre a disputa entre árabes e judeus sobre o território da Palestina.

    Passou o tempo e no derradeiro cursinho pré-vestibular que frequentei, em 2008, o assunto era mencionado, mas não com a ênfase de outrora. O problema não havia sido resolvido, estava dormente, mas não havia ocorrido uma grande guerra que justificasse uma expansão da narrativa já consolidada sobre o conflito e os interesses geopolíticos envolvidos. Eis que em 7 de outubro de 2023 o ataque sinistramente espetacular do Hamas nos fez lembrar que os palestinos continuam a morar na Faixa de Gaza. Provavelmente no material didático do ano que vem a ser entregue aos estudantes do ensino médio haverá um tópico “Segunda Guerra do Yom Kippur”. Quanto ela durará e quais impactos ela terá no mundo nenhum ser humano sensato se atreve a prever.

    Para responder a essas duas perguntas, em vez de consultar os cientistas políticos, os geopolitólogos, os especialistas militares, os ex-agentes da CIA, os ex-marines, os ex-juízes e os membros aposentados do exército americano que nos brindam com sua expertise no YouTube,  poderíamos pedir a ajuda das Moiras da mitologia grega, Cloto, Láquesis e Átropos que tecem, medem e cortam o fio da vida humana e portanto, sabem quem nascerá, o que cada indivíduo fará e quando morrerá. Conforme o trecho que abre este artigo, há duas versões contadas sobre o poder dessas três irmãs. Em uma delas o seu poder é relativo, porque Zeus, o mais poderoso dos deuses do Olimpo, pode intervir no destino trançado pelas Moiras por sua atividade têxtil se quiser favorecer alguém que lhe agrada. Na outra versão, o poder das Moiras é absoluto porque não são filhas de Zeus e portanto, não se submetem a seus ditames.

    Entre uma versão e outra o escritor Luciano de Samósata, citado na abertura deste artigo, prefere a versão absoluta do poder das Moiras, o que fica evidenciado na primeira pergunta que o personagem Cyniscus faz ao onipotente Zeus: “Você tem conhecimento de Homero e Hesíodo, claro? É verdade que tudo que eles cantam sobre o Destino e as Moiras – que tudo que elas tecem para o homem em seu nascimento deve inevitavelmente ocorrer?”. A resposta de Zeus “Inquestionavelmente” é o mote para Cyniscus fazer uma crítica ácida ao macho alfa do Olimpo.

    De fato, se tudo é decidido pelo Destino e pelas Moiras, qual é a utilidade de os seres humanos renderem homenagens aos deuses, fazer sacrifícios para obterem alguma benesse? Zeus responde que tais rituais de respeito e de oferenda são expressão do reconhecimento pelos pobres mortais da superioridade dos imortais. Ao que Cyniscus retruca que não há superioridade nenhuma em seres submetidos à mesma força superior das Moiras e pior, de uma maneira permanente porque não morrem como os seres humanos.

    Seguindo seu raciocínio, Cyniscus defende a ideia de que seria melhor praticar atos religiosos em prol de quem de fato têm poder para decidir sobre a vida dos mortais. De qualquer forma, como está tudo inapelavelmente decidido, nem vale a pena perder tempo com esses rituais porque nem as Moiras podem deixar de fazer o que tem de ser feito. A conclusão de Cyniscus, acusado de ser um sofista por Zeus, é que o homem não tem livre-arbítrio, não decide nada e está submetido a impulsos irresistíveis ditados pelo Destino e pelas Moiras. Aliás, tal conclusão obtida pelas vias da mitologia é a mesma conclusão obtida pelas vias filosóficas por Baruch Spinoza no século XVII e David Hume no século XVIII e pelas vias da neurociência por Sam Harris no século XXI, conforme explicado anteriormente neste humilde espaço.

    E no entanto, argumentos sobre a impossibilidade de livre-arbítrio não são um guia para o indivíduo conduzir sua vida na prática. Pode até ser em última análise que não tenhamos poder de decisão, mas para sobrevivermos como animais que somos, precisamos crer que podemos influir sobre o rumo dos acontecimentos por nossa ação, do contrário cairíamos na letargia destruidora do corpo e da mente. Nesse sentido, a afirmação de Yasser Arafat, de que os palestinos não terão o mesmo destino dos peles-vermelhas americanos de virarem peças de museu, uma tênue lembrança de um povo expulso de sua terra e aniquilado fisicamente, é uma manifestação de fé. Pode ser que as Moiras já tenham tecido o fio da vida do povo palestino e eles estejam destinados a fazer parte de alguma coleção etnológica futura, mas no aqui e no agora, ninguém sabe o que vai acontecer e é preciso agir. Oxalá que os homens de boa vontade judeus e árabes ajam em prol do melhor destino possível para ambos os povos.

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Preconceito para quê?

[…]já que a opulência da capital francesa resulta dos defeitos do seu governo e da sua religião. Na ausência de Luís XIV e de seus sucessores, o Louvre permaneceu inacabado mas os milhões que foram esbanjados nas areias de Versalhes e no pântano de Marly não poderiam ser proporcionados pelo estipêndio aprovado pelo Parlamento para um rei britânico. […] Todo ornamento supérfluo é rejeitado pela fria frugalidade dos protestantes, mas a superstição católica, que é sempre a inimiga da razão, é frequentemente a mãe das artes.

Trecho retirado da “Autobiografia” do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), autor de “A História do Declínio e Queda do Império Romano”

Estereótipos negativos em particular dão origem a um sentimento de culpa: ninguém se preocuparia muito se pensasse que é improvável que velhinhas com artrose e cabelo lavado de azul o roubasse na rua. São os estereótipos negativos que nos incomodam e fazem com que nossos pensamentos deem voltas. Houve tantos estereótipos negativos que eram falsos, degradantes e cruéis que foram usados como justificativa para injustiças ou barbáries que a própria ideia de criar estereótipos para um grupo de maneira negativa foi desacreditada.

Trecho retirado do livro “Em defesa do preconceito – A necessidade de se ter ideias pré-concebidas, do médico, psiquiatra e escritor inglês Theodore Dalrymple (1949- )

Foi necessário colocar sobre uma peça grande, sobre uns tapetes e lonas todos os relicários e cofres, para reparti-los de maneira ordenada e transferi-los dos cofres de seda em que tinham vindo para os vasos e custódias preciosas, onde todos pudessem vê-los, gozar deles e adorá-los. O Rei subia até ali vindo dos seus aposentos, algumas vezes sozinho, outras vezes acompanhado dos seus filhos.  Estando ali, me pedia algumas e ainda muitas vezes (eu tinha então sob meu encargo todos aqueles santos tesouros) que me mostrasse tal ou qual relíquia; quando eu a colocava nas mãos, antes que pudesse me valer de algum tafetá ou lona, o piedosíssimo Rei se inclinava e tirando seu chapéu ou gorro, beijava a relíquia com sua boca e com os olhos, nas minhas próprias mãos e pelo fato de algumas serem pequenas era forçoso também beijá-las mil vezes e creio que com isso queria fazer duas obras santas de um caminho, mostrando não estimar menos as mãos pelas quais se consagrava Jesus Cristo que aqueles ossos […]

Trecho retirado do livro “Como viveu e morreu Felipe II”, escrito pelo frei espanhol José de Siguenza (1544-1606)

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei algumas das ideias do filósofo escocês David Hume (1711-1776), um dos pais do Iluminismo tanto na sua Grã-Bretanha natal quanto no continente europeu. Além de ser filósofo, Hume aventurou-se no campo da historiografia, escrevendo uma história da Inglaterra. Nesta semana, tratarei de um historiador que leu a “Investigação sobre o Entendimento Humano” e “A História da Inglaterra” e foi fortemente influenciado pelo ceticismo e empirismo de Hume. Trata-se de Edward Gibbon. A influência do filósofo escocês pode ser detectada na Autobiografia que Gibbon escreveu no fim de sua vida, ao narrar sua atitude cambiante em relação à religião.

    Aos 16 anos de idade, tendo sido enviado a Oxford para estudar, Gibbon converte-se ao catolicismo, para desespero do seu pai, de quem o futuro historiador era o único filho. Não sendo conveniente deserdar seu único rebento que carregava o mesmo nome, Edward pai resolve mandá-lo para Lausanne, na Suíça, para ser educado por um pastor calvinista. E lá a cura foi conseguida: a doença do catolicismo foi definitivamente superada e Edward Filho passa a achar toda sorte de defeitos na religião dos papas, associando-a uma forma de governo e a uma cultura e mentalidade específicas.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para Edward Gibbon o catolicismo é a religião de reis absolutistas como Luís XIV, que tinham a seu dispor todo o dinheiro que pudessem arrancar dos súditos para construir obras monumentais, como o Palácio de Versalhes e o castelo de Marly-le-Roi. A religião protestante é a religião daqueles governantes que viviam sob controle do parlamento e, portanto, dependiam financeiramente daquilo que os representantes do povo estavam dispostos a lhes dar. É assim a religião da frugalidade, da sobriedade não muito amiga das artes, porque estas requerem um apego à ornamentação a que só reis todo-poderosos poderiam se dar ao luxo.

    E não é só isso, o catolicismo é a religião da superstição, contrária à razão desassombrada de Hume. Afinal, católicos acreditam na transubstanciação, isto é, na transformação do vinho e da hóstia da missa no sangue e no corpo de Jesus Cristo, uma ocorrência que, como diria o filósofo escocês sobre os milagres, é pouco provável que ocorra porque não atestada por um número suficiente de homens que pudesse dar substância à alegação que tal transformação ocorreu. E o que falar do culto aos santos e mártires? A superstição neste caso atinge os píncaros da irracionalidade, como atesta o trecho que abre este artigo, retirado da biografia escrita pelo frei José de Siguenza sobre o rei da Espanha Felipe II (1527-1598).

     Ao final do décimo-terceiro capítulo do seu livro, o frei conta como o rei adorava relíquias que nada mais eram do que partes do corpo de santos da Igreja Católica, normalmente ossos que eram colocados em relicários. Felipe II seguia o ritual diário de beijá-las inúmeras vezes, como se aquilo pudesse dar-lhe mais saúde ou torná-lo mais virtuoso. Quem visita o Palácio do Escorial em pleno século XXI poderá ver a coleção de relíquias do rei da Espanha, que quando esteve doente para morrer não as largava nunca, o que não adiantou muito para sua recuperação. Considerando essa adoração macabra e inútil de um dos governantes mais poderosos do mundo no século XVI, Gibbon não tem razão quando diz que o catolicismo é refratário ao pensamento racional e está mais afeito ao irracionalismo e ao absolutismo?

    O preconceito que Gibbon adquiriu contra a religião da sua adolescência, à qual passou a associar uma série de más qualidades, respaldou seu ponto de vista de historiador, permitindo-lhe contrapor a visão de mundo dos romanos, donos de um império que durou mais ou menos de 27 a.C. a 1453 d.C., mas que foi solapado pelo cristianismo, a uma visão de mundo baseada em uma religião monoteísta que provou ser refratária a qualquer tentativa de assimilação ao panteísmo então em voga. É razoável supor que se Gibbon não tivesse tido suas ideias negativas em relação ao catolicismo romano, cujas origens remontam aos apóstolos de Jesus no primeiro século da era cristã, ele não teria tido a sensibilidade de apreciar tais diferenças de mentalidade entre romanos e cristãos que lhe permitiu estabelecer as causas da queda de uma civilização que durou quase 1.500 anos.

    E, no entanto, conforme explica Theodore Dalrymple no trecho que abre este artigo, atualmente temos um sentimento de culpa em relação a cultivar estereótipos, pelas consequências nefastas que tiveram. No caso de Gibbon, equacionar o catolicismo ao irracionalismo e ao despotismo foi profícuo como ponto de partida para sua narrativa histórica, mas na primeira metade do século XX na Europa as ideais pré-concebidas sobre certos grupos sociais levou à matança indiscriminada dos membros daqueles grupos, sejam eles ciganos, judeus, comunistas, deficientes mentais ou físicos.

    O que fazer? Deixar os preconceitos totalmente de lado para que a tragédia da Segunda Guerra Mundial não se repita? Ou tentar fazer como Edward Gibbon fez no século XVIII, e torná-los um modo de apreensão da realidade por meio de certos princípios e valores básicos? Preconceitos para quê em pleno século XXI? Cada um que ache sua resposta.

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Razão para quê?

A razão, ele afirma, não consegue nunca explicar o mundo ou provar a existência de Deus. “Que privilégio peculiar tem essa pequena agitação do cérebro chamada pensamento, que devemos fazê-lo o modelo do universo como um todo?” […] A respeito do desenho, a adaptação de órgãos para determinados objetivos pode ter resultado não da orientação divina, mas dos experimentos lentos e malfeitos ao longo de milhares de anos. (Aqui está a “seleção natural” 1.800 anos depois de Lucrécio, 108 anos antes de Darwin.) E mesmo que admitamos um desenho sobrenatural, a imperfeição das adaptações e a miríade de sofrimentos no mundo humano e animal revelam na melhor das hipóteses um deus com poderes e inteligência limitados, ou um deus bem indiferente ao ser humano.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire”, escrito por (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o filósofo empiricista escocês David Hume (1711-1776)

 

Assim, o cético continua a pensar e a acreditar, em que pese ele não poder defender sua razão pela razão; e de acordo com a mesma regra, ele deve concordar com o princípio relativo à existência do corpo, em que pese ele não poder pretender com base em nenhum argumento filosófico manter sua veracidade.

Trecho retirado do “Tratado sobre a Natureza Humana”, de David Hume, citado no livro “A Era de Voltaire”, escrito por (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada eu lhes apresentei a teoria alternativa à teoria da evolução, a teoria do design inteligente, a qual não é aceita na comunidade científica, mas que pretende ser um meio de explicar aquilo que o darwinismo não consegue explicar muito bem, isto é, como a vida é criada na Terra com base na codificação de informação genética no DNA. Naquele texto eu disse que aventar a hipótese de que exista uma mente brilhante por trás da criação da vida pode servir de contraponto ao materialismo que predomina na ciência desde o século XVII. Nesta semana, meu objetivo será o de me debruçar sobre um dos pais do Iluminismo britânico, David Hume. Em assim fazendo, trarei um terceiro ponto de vista à discussão, pelo fato de Hume não ser nem materialista e nem idealista, mas um cético e um empiricista.

David Hume é empiricista porque para ele todas as nossas ideias são derivadas da experiência por meio das impressões que aquela causa em nossos sentidos, produzindo as sensações de luz, som, calor, pressão, cheiro, gosto. A sensação interpretada pelo cérebro se transforma em percepção e assim em um processo de elaboração mental chega-se às ideias. A ideia de espaço é a ideia de pontos tangíveis e visíveis distribuídos em uma determinada ordem, a ideia de tempo é a percepção da sequência das nossas impressões. Nesse sentido, Hume não é materialista porque para ele não percebemos matéria nenhuma e a única coisa que sabemos é o nosso mundo mental de ideias, sentimentos, desejos, impressões e percepções. E Hume também não é idealista porque não considera que exista uma mente independente dos estados mentais transitórios que variam conforme o conteúdo que esteja ocupando a consciência no momento.

    Daí que seu antimaterialismo e seu anti-idealismo levam o filósofo escocês a ser um cético. Não se pode sobrestimar os poderes da razão humana porque em última análise ela atua sobre a experiência que é contingente e variável. As leis da natureza que estabelecem relações de causa e efeito entre os fenômenos na verdade são meras sequências frequentes de eventos em nossa experiência, que se repetem ao longo do tempo e que nos fazem acreditar que se manterão assim. No entanto, por serem obtidas empiricamente, essas conexões entre sequências de eventos não são invariáveis nem necessárias, não havendo garantia de que elas se repetirão amanhã ou continuarão a repetir-se infinitamente. Sob esse aspecto, a ciência é um acúmulo de probabilidades sujeitas a mudanças sem aviso prévio.

    E o que dizer da realidade última aventada pelos metafísicos? Se não podemos conhecer a matéria por trás das nossas sensações, que são os únicos meios de contato de que dispomos com o mundo exterior, se não podemos conhecer as operações causais por trás das sequências de eventos que percebemos no tempo e no espaço e se não podemos conhecer a mente por trás das ideias, as quais são o produto de estados mentais, não há como propor uma cadeia retroativa de causas e efeitos que levasse ao Ser Supremo da metafísica aristotélica, ao ente não movido que deu o pontapé inicial no mundo.

    Não é de surpreender então que Hume rejeite totalmente a ideia de uma mente brilhante por trás das engrenagens dos fenômenos, conforme o trecho que abre este artigo. Não é possível supor com base em nosso conhecimento que haja uma mente além dos estados mentais que se sucedem enquanto o ser humano está vivo. E esses estados mentais só produzem ideias fundadas em experiências transitórias e contingentes, de forma que elas não podem servir de modelo para explicar o universo como um todo. Projetista inteligente por trás da criação? Não, apenas uma série infinita de tentativas, muitos erros e alguns acertos que levaram a um mundo em que o sofrimento, a dor e a calamidade são por demais onipresentes para pressupormos uma inteligência perfeita que os tivesse criado.

    E no entanto, apesar de todos esses argumentos céticos quanto aos poderes da razão humana, o próprio filósofo, no segundo trecho que abre este artigo, adota outro guia para sua vida. Em vez de abandonar a razão de todo, ele adota a crença de que a realidade é racional e permeada pelo princípio da causalidade. O tempo, o espaço e a causalidade são construções mentais derivadas da experiência contingencial do homem, mas isso é suficiente para continuarmos a fazer ciência e filosofia, embora não seja suficiente para postular uma mente brilhante que deu vida a tudo da melhor maneira possível.

    Prezados leitores, para um cético empiricista como David Hume a razão não faz milagres, não cria coisas do nada e, no entanto, ela serve para continuarmos vivendo e aprendendo com nossas experiências, cautelosamente, sem grandes pretensões, mas também sem grandes desilusões. A falta de entusiasmo de Hume pela infalibilidade das construções racionais inspirou um ambiente intelectual inédito de tolerância que na Europa do século XVIII influenciou intelectuais como Voltaire e Diderot, na França e Immanuel Kant na Prússia, preparando o terreno para o Iluminismo.

    Razão para quê? Para, entre outras coisas, do alto do nosso ceticismo, concordarmos em discordar, porque sabemos não podermos ter certeza de nada.

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Materialismo para quê?

O materialismo mecânico é a teoria de que o mundo consiste inteiramente em objetos materiais e sólidos os quais, mesmo que sejam imperceptivelmente pequenos, são de outro modo coisas como as pedras. […]Esses objetos interagem da maneira que as pedras fazem: pelo impacto e possivelmente também pela atração gravitacional. A teoria nega que coisas imateriais ou aparentemente imateriais (tais como mentes) existam ou de outro modo as explicam como sendo coisas materiais ou movimentação de coisas materiais.

Trecho retirado do verbete sobre “Materialismo” da edição de 1974 da Enciclopédia Britânica

Darwin elaborou uma teoria da evolução com base nas mudanças aleatórias e na seleção natural … uma versão da evolução rigidamente materialista (e basicamente ateia).

Trecho retirado da palestra intitulada “A humanidade esqueceu-se de Deus? dada em Dallas, no Texas, em maio de 2023 por Stephen Meyer (1958-), doutor em filosofia da ciência americano e proponente da teoria do design inteligente, citando o paleontólogo e biólogo americano Stephen J. Gould (1941-2002)

 

Quero abordar hoje a falsa disputa entre design inteligente e as explicações da ciência biológica baseada na teoria da evolução”, afirma. […]O físico aponta que o principal argumento em defesa do design inteligente é que a complexidade dos seres vivos e de seus órgãos não poderia surgir do acaso, hipótese apresentada como complexidade irredutível: sem um “projetista” inteligente essas estruturas não poderiam existir. “A hipótese de que um criador ‘inteligente’ é responsável pelo surgimento da vida (e do próprio universo) não se presta a testes experimentais”, ressalta. “Portanto, não pode ser considerada científica.”

Trecho do artigo ”Design inteligente não é ciência e não deve ser ensinado nas escolas”, publicado no Jornal da USP de 12 de fevereiro de 2020, citando o professor do Departamento de Física Experimental da Universidade de São Paulo, Paulo Nussenzveig

 

Tanto em períodos pré-paradigmas quanto durante as crises que levam a mudanças de larga escala no paradigma, os cientistas normalmente elaboram muitas teorias especulativas e não articuladas que podem elas mesmas apontar o caminha para a descoberta. Frequentemente, no entanto, a descoberta não é exatamente aquela prevista pela hipótese especulativa e provisória. Somente à medida que os experimentos e a teoria provisória são articulados de modo a terem uma correspondência é que a descoberta emerge e a teoria torna-se um paradigma.

Trecho retirado do livro a “Estrutura das Revoluções Científicas” do físico e filósofo da ciência americano Thomas S. Kuhn (1922-1996)

 

    Prezados leitores, há algumas semanas tenho abordado a questão de como a religião começou a ser desafiada no Ocidente a partir da Reforma Protestante no século XVI e quanto esse desafio evoluiu ao longo dos séculos XVII e XVIII: deixou de ser um ataque meramente institucional à Igreja Católica e passou a ser um ataque intelectual e epistemológico. Intelectual porque a fé que acreditava em coisas inverossímeis, improváveis ou até impossíveis foi contraposta à razão que analisava o mundo natural. Epistemológico, porque a Bíblia deixou de ter a última palavra sobre assuntos como a origem do mundo e do homem, que podiam ter uma explicação baseada na premissa de que não era preciso recorrer a um Criador para que o ser humano entendesse como os fenômenos naturais se desenrolam de acordo com leis que descrevem os mecanismos de operação desses fenômenos.

    O resultado deste duplo ataque foi a ascensão do materialismo, isto é, a ideia, conforme explica o trecho que abre este artigo, que o mundo é composto unicamente por matéria que interage entre si. Conceitos como o Espírito Santo, a Santíssima Trindade e a Transubstanciação não tinham mais função explicativa, porque só objetos materiais poderiam ter efeito sobre outros objetos materiais. Não havia lugar para conceitos metafísicos que pudessem ser causa suficiente dos fenômenos observados no mundo fenomenológico. Sob essa perspectiva, a mente e a consciência não têm existência autônoma, como propõe o idealismo, a corrente filosófica que se opõe ao materialismo: elas são apenas manifestações de processos materiais que ocorrem no cérebro do homem e só atuam no mundo na medida em que tenham uma concretização material.

    Muitos foram os produtos deste materialismo filosófico triunfante. Neste meu humilde espaço já mencionei a física newtoniana, nesta semana meu objetivo será tratar da teoria da evolução do biólogo inglês Charles Darwin (1809-1882). A teoria da evolução foi a pá de cal na possibilidade de fé religiosa por parte dos intelectuais porque, conforme Stephen Mayer explica na palestra mencionada na abertura deste artigo, ela explica a vida não como uma dádiva divina, mas como um produto da evolução de seres mais simples aos mais complexos, por meio de mudanças biológicas graduais ao longo de longos períodos de tempo que permitem que os indivíduos se adaptem às condições ambientais e sobrevivam. Os neodarwinistas, entre os quais colocou-se Stephen Jay Gould, atualizaram a teoria de Darwin à luz das descobertas mais recentes sobre o DNA e as mutações dos genes, para esclarecer que essas mudanças graduais consistem em mutações genéticas que, se permitem uma melhor adaptação, serão preservadas para as próximas gerações porque permitirão aos seus portadores sobreviver e reproduzir-se; e se não facilitam a adaptação serão descartadas ou tornadas menos prováveis porque farão com que seus portadores ou morram ou não consigam reproduzir-se de maneira bem-sucedida, evitando a propagação dessa mutação genética maléfica.

    Assim, a teoria de Darwin parece ser a cereja do bolo dos materialistas, pois permite descartar Deus como agente causal de efeitos sobre o mundo material: bastam os objetos materiais eles mesmos, no caso os organismos vivos, para mudarem, evoluírem e propagar-se a depender do sucesso ou do fracasso da sua adaptação ao meio ambiente. E no entanto, eis que os próprios frutos científicos conquistados, notadamente o entendimento do papel do DNA na constituição dos organismos, abrem novas perspectivas neste século XXI, levando ao questionamento da teoria da evolução como suficiente para explicar a vida. Esse questionamento se materializa na teoria do desenho inteligente, que seus detratores como o físico Paulo Nussenzveig citado na abertura deste artigo, chamam de uma vertente do criacionismo, que vigorava antes de Darwin entrar em cena, sob a inspiração dos mitos bíblicos sobre a criação do mundo e do homem.

    Conforme Paulo Nussenzveig explica na conversa de rádio de 2020, reproduzida no Jornal da USP, os designers inteligentes propõem que a complexidade dos organismos vivos é muito grande para que sua constituição possa ser explicada por mutações aleatórias. É preciso haver uma mente brilhante que permite que os diferentes órgãos em uma célula, por exemplo, se organizem de forma que cada um desempenhe uma função e todos juntos em sintonia possam fazer com que a célula seja uma estrutura perfeita que existe como tal somente porque suas partes foram concatenadas em prol desse objetivo. Ora, para o físico da USP, propor a hipótese de um projetista que não pode ser testada devido à própria natureza etérea do projetista, é algo não científico.

    No entanto, há mais objeções que os proponentes da teoria do design inteligente, pessoas como Stephen Meyer e o químico orgânico americano James Tour (1959-) colocam à teoria da evolução. Darwin explicou como os organismos evoluem, mas não explicou como a vida surge. Até hoje ninguém nunca conseguiu criar vida em laboratório de maneira espontânea, sem a ajuda do pesquisador, e isso por uma razão fundamental: conforme Francis Crick e James Watson descobriram ao revelar a estrutura química do DNA, a vida requer instruções precisas: para que as proteínas que são os tijolos dos organismos vivos sejam produzidas, elas precisam ser codificadas, e tal codificação é feita pelo DNA, que é formado por letras químicas cuja ordem precisa determina o tipo de proteína que será produzido. Ora, se o DNA é uma instrução baseada em uma linguagem, não há como descartar uma mente que cria a linguagem e dá as instruções por meio dela.

    Assim, o ponto principal dos designers inteligentes é que, com base no nosso conhecimento atual sobre como a vida é possível, ela é baseada em informação química, e sem tal elemento mental, que dá as instruções para a síntese de proteínas, não é possível que a matéria inerte seja transformada de tal forma a ser considerada como tendo vida. Uma abordagem materialista que enfoca os impactos mútuos dos objetos materiais sem levar em conta a mente que atua sobre eles e lhes dá função e propósito não explica o aspecto mais fundamental da biologia, que por definição é a ciência que estuda a vida e os organismos vivos. Darwin pode ter explicado como os organismos vivos evoluem, mas sua teoria materialista e ateia não explica como a vida surge, pois a base da vida é a informação.

    Prezados leitores, pode ser que os designers inteligentes sejam derrotados pelos darwinistas e que no final das contas estes consigam chegar a uma explicação materialista satisfatória que dê conta da biologia como um todo. Ou conforme explica Thomas Kuhn em seu famoso livro, citado na abertura deste artigo, a tentativa incipiente de explicação alternativa proposta pelos ditos “criacionistas” leve a descobertas não vislumbradas por nenhuma das partes, mas robusta o suficiente para permitir a mudança do paradigma e a substituição da teoria darwinista por uma teoria que se adeque melhor ao que se sabe sobre a função do DNA como o código da vida. Aguardemos, com a mente aberta, sem pré-conceitos, se possível. Talvez o século XXI seja o momento em que a oposição dialética entre ciência e religião, entre materialismo e idealismo, seja superada por uma síntese revolucionária, quem sabe?

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Boas maneiras para quê?

“[…] você deve esperar encontrar [na corte] contatos sem amizade, inimigos sem ódio, honra sem virtude, aparências salvas e realidades sacrificadas, boas maneiras com comportamento ético ruim; e todos os vícios e virtudes tão disfarçados que quem quer que tenha refletido sobre um ou outro não conheceria nenhum deles quando os tivesse encontrado pela primeira vez na corte.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

 

Aprenda a bajular, porque somente os grandes sábios e santos são imunes à bajulação; mas quanto mais ao alto você for, mais delicada e indireta deve ser sua bajulação.

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

Uma “característica de um homem bem educado é a de conversar com quem lhe é inferior sem insolência, e conversar com quem lhe é superior com respeito e à vontade.”

Trecho retirado da obra “A Era de Voltaire”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Philip Dorner Stanhope (1694-1773), homem de Estado e diplomata inglês, autor que escreveu “Cartas ao seu Filho”

    Prezados leitores, na semana passada eu falei sobre algumas das iniciativas tomadas por Philippe d’Orléans (1674-1723) enquanto foi regente da França de 1715 a 1723, e usei o exemplo de sua vida para dar uma lição de moral, alegando que ele poderia ter feito muito mais pelo país e talvez tivesse contribuído para atenuar o desgaste da Monarquia francesa se tivesse vivido mais. E ele teria vivido mais se tivesse cultivado a virtude da temperança, isto é, se tivesse exercido um melhor controle sobre seus apetites. Afinal, a temperança é a sabedoria relativa à determinação do que é moderado e conveniente em relação aos prazeres do homem, o qual deve sopesar os efeitos benéficos e maléficos a curto e a longo prazo de dar vazão a seus apetites e tomar decisões com base na arte da medida do prazer e da dor que eles lhe causam.

    Nesta semana, meu foco não será na virtude, mas nas boas maneiras. Porque a verdade é que no ambiente cultural em que se vivia na Europa no século XVIII, com a proliferação de livre-pensadores e de libertinos que caçoavam da religião e das proibições que ela impunha, e se achavam muito inteligentes e criativos ao atacá-la enquanto instituição e enquanto prática, ficava difícil almejar a um comportamento cristão. Todos os preceitos das igrejas haviam perdido a credibilidade quando das repetidas guerras nos séculos XVI e XVII entre católicos e protestantes. Não era possível a homens do mundo, familiarizados com as descobertas científicas de Newton, com as mais recentes especulações filosóficas de Spinoza e Locke, serem criaturas morais que tomavam a Bíblia como a suprema autoridade para decidirem como se comportar. Na falta de rígidos padrões éticos, um homem de sensibilidade e inteligência inventou as boas maneiras e elaborou um manual dirigido a seu filho, como meio de educação do rebento, que ele esperava exercesse cargos no governo como Ministro ou diplomata.

    Este homem foi o 4º Conde de Chesterfield, Philip Dorner Stanhope, que foi membro da Câmara dos Lordes (1726), embaixador da Inglaterra na Holanda (1728) e governador-geral da Irlanda (1745-1746), onde criou escolas, estabeleceu indústrias, deu fim à perseguição aos católicos, acabou com a corrupção no governo e administrou com competência e imparcialidade. Apesar dessas realizações, seu principal legado ao mundo foram suas Cartas, publicadas depois de sua morte. Em que pese elas não terem atingido seu objetivo de formarem seu herdeiro para ser um membro da elite governante, já que o moço morreu antes do pai aos 36 anos, sem ter realizado nada digno de nota, as Cartas são uma coletânea de bons conselhos para quem quisesse ter sucesso em um mundo cujas instituições milenares, como a Igreja e a Monarquia, estavam sendo corroídas.

    Conforme o primeiro trecho que abre este artigo, o 4º Conde de Chesterfield tem uma visão equilibradas da Corte: não era nem um antro de homens degenerados e nem povoada por homens abnegados que tratavam da coisa pública com zelo e sacrifício pessoal. Não era preciso ter um comportamento moral ilibado e coerente, afinal o ideal do bom cristão tinha ficado para trás, mas era necessário sobretudo disfarçar seus vícios de modo que eles pudessem passar quase desapercebidos e que as aparências pudessem ser mantidas, para alívio de todos.

    O fato é que cada personagem na Corte tratava dos seus interesses da melhor maneira possível, o que muitas vezes significava moderação nas atitudes para conseguir ser bem-sucedido. Era preciso bajular as pessoas que tinham o poder para fazer nomeações, viabilizar contratos com o governo, mas não era de bom tom ser abertamente bajulador, porque isso poderia irritar o objeto dos elogios e torná-lo antipático aos desígnios do bajulador. Da mesma maneira, não era de bom tom tripudiar sobre aqueles que estavam abaixo na escala social, pois isso poderia nutrir o ressentimento e lembrar aos objetos do desprezo como a fortuna era arbitrária e injusta, o que poderia lhes inspirar a desígnios vingativos.

    Nesse sentido, os objetivos materiais imediatos tinham predominância sobre ideais de vida e as relações humanas não deveriam ser muito pessoais, calcadas nas emoções, nos valores em comum, o que sempre ofusca o raciocínio: eram relações baseadas nos interesses mútuos e todas as tratativas deveriam relevar as preferências ou antipatias pessoais em prol da obtenção de um acordo sobre um mínimo que fosse conveniente para ambas as partes. Adotando esse comportamento equilibrado, os homens da Corte poderiam satisfazer seus interesses egoístas sendo polidos, discretos e cautelosos no falar e no agir. Evitando excessos de insolência, desrespeito e bajulação, eles poderiam manter relações cordiais tanto com quem estava acima deles quanto como quem estava abaixo deles, viabilizando a consecução dos seus objetivos e em assim fazendo contribuindo para a paz social.

    Em suma, boas maneiras eram fundamentais, a despeito das ilusões perdidas em relação ao modo de vida cristão. E tais boas maneiras implicavam também uma atitude serena em relação à religião. Para Chesterfield, criticar abertamente a religião como libertinos e livre-pensadores faziam, fazer troça das suas proposições cientificamente absurdas, era algo vulgar e desrespeitoso. Vulgar porque com a profusão de obras anticlericais e antireligiosas, qualquer indivíduo de pouca inteligência e cultura poderia achar argumentos para lançar diatribes contra a Igreja, a Bíblia e Jesus Cristo. Desrespeitoso porque a religião era, afinal de contas, a garantia da moral. Sem a religião a moral se enfraquecia bastante, tornava-se um ativo desvalorizado. Tanto assim, que já em 1752 Chesterfield, observando na França como as pessoas criticavam livremente o governo e a religião, vislumbrou uma possibilidade cada vez maior de que houvesse uma revolução no país, tamanho era o desprezo mostrado ao Rei e à Igreja Católica.

    Prezados leitores, mesmo que a virtude e as boas maneiras não sejam a mesma coisa, o fato é que a falta de uma e de outra leva ao mesmo resultado catastrófico, de erosão da credibilidade das instituições que são o esteio da sociedade. Da mesma maneira que ocorreu com Philippe d’Orléans, cujo curto período no governo foi insuficiente para deixar um legado duradouro de boa governança do Estado para os sucessores de Luís XIV, talvez se mais pessoas da elite tivessem aderido ao manual de boas maneiras do 4º Conde de Chesterfield, os excessos de vulgaridade, desrespeito e arrogância teriam sido evitados e o povo francês não teria se rebelado da maneira violenta que o fez em 1789. Os franceses poderiam ter mantido sua monarquia, domesticando-a por meio da prevalência do Parlamento como na Inglaterra. Se faltam virtudes aos homens, imperfeitos que são, a lição das Carta ao seu Filho é que as boas maneiras são um substituto que pode contribuir para manter a sociedade organizada.

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