Um dia Narciso mandou uma espada para Ameinius, seu pretendente mais insistente. Ameinius matou-se perto de Narciso, clamando aos deuses que vingassem sua morte. Ártemis ouviu sua súplica. No local chamado Donacon, em Téspias, Narciso chegou perto de uma fonte d’água, límpida como a prata, e à medida que ele se abaixou, exausto, na grama à beira da fonte para aplacar sua sede, ele apaixonou-se pelo seu reflexo, mirando o lago, embasbacado. Como ele conseguiria suportar possuir e ao mesmo tempo não possuir?
Trecho da história de Narciso, retirada da mitologia grega, conforme contada pelo poeta e romancista inglês Robert Graves (1895-1985) no livro “Os Mitos Gregos”
É claro, conforme ressalta o ex-diplomata israelense, esse enredo constrói-se basicamente a respeito da ambição pessoal de Netanyahu – ele manobra para diminuir as críticas e permanecer no poder o quanto ele puder. Mais importante que isso, ele espera que isso lhe permita diluir a culpa, afastando de si próprio toda e qualquer responsabilidade. [Melhor ainda], “isso pode colocar Gaza em um contexto histórico e épico como um acontecimento que pode tornar o primeiro-ministro o líder em tempos de guerra da grandeza e da glória”.[…] A contextualização por parte de Netanyahu da guerra em Gaza em termos absolutamente maniqueístas – a luz versus as trevas; a civilização versus a barbárie; Gaza como o local do mal; todos os habitantes de Gaza como cúmplices do mal causado pelo Hamas: os palestinos como não humanos – tudo isso está agitando as emoções israelenses e trazendo de volta a memória de uma ideologia no estilo daquela predominante em 1948.
Trecho do artigo “O escorpião vai picar o sapo americano?” escrito pelo ex-diplomata britânico Alastair Crooke e publicado em 20 de novembro
Prezados leitores, permitam-me compartilhar uma experiência pessoal que tive há algum tempo. Eu trabalhei durante dois anos sob a chefia de uma personalidade que apresentava um distúrbio sério de caráter. Não tenho treinamento em psicologia para fazer um diagnóstico preciso, mas vou valer-me do mito grego de Narciso para lançar luz sobre minha experiência. Afinal, conforme uma das definições de mito da Enciclopédia Britânica ele é “um termo coletivo utilizado para um tipo de comunicação simbólica”, então se eu explorar a história de Narciso como um símbolo poderei comunicar melhor aquilo que vivenciei profissionalmente. Ao final, esse uso do mito para iluminar um aspecto da minha vida servirá como base para eu iluminar o que se passa na cena internacional.
Conforme o trecho que abre este artigo, Narciso foi punido pela deusa Ártemis que atendeu a um pedido de Ameinius, que amava Narciso, sem ser correspondido, já que o filho da ninfa Liríope e do deus do rio Céfiso orgulhava-se tanto de sua beleza que ele considerava todos os seus pretendentes indignos dele. A punição infligida por Ártemis consistiu em fazer com que Narciso visse sua própria imagem refletida no espelho d’água e se enamorasse dela. Como ele jamais poderia tocar na própria imagem e possuí-la, Narciso preferiu cravar uma faca em seu peito para acabar com o sofrimento de não poder realizar o amor que tinha por si mesmo.
Considero pertinente utilizar o mito de Narciso para falar da personalidade da minha chefe – era uma mulher – porque para seus subordinados ela apresentava-se como perfeita. Ela sabia tudo mais do que nós, e quando eu mostrava algo novo a ela, que eu tinha descoberto fazendo meus neurônios trabalharem, ela comentava simplesmente que ela já tinha visto aquilo em algum momento no tempo. Como um ser perfeito, ela não errava e se o erro fosse de tal modo flagrante que era impossível fingir que ele não ocorrera, ele tinha sido fruto de um erro anterior, de algum dos seus funcionários, que a haviam levado a trilhar o mal caminho.
A consciência de que minha chefe tinha um distúrbio de personalidade ficou aguda em mim quando assisti ao filme “A Queda” que narra os últimos dias de Adolf Hitler (1889-1945) no bunker em Berlim, rodeado pelos colaboradores mais próximos. Ao ver o líder nazista vituperar contra tudo e todos, achar sempre um culpado para o que dava de errado e nunca admitir que tinha falhado, eu identifiquei imediatamente semelhanças com o comportamento da minha querida chefe, de quem eu dizia brincando aos meus colegas de infortúnio que na outra encarnação ela havia sido chefe de campo de concentração na Manchúria, região ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.
Lidar com tipos narcísicos, que só olham para o próprio umbigo, para as próprias necessidades, como se o mundo tivesse que se adaptar a eles, girando em torno deles, como os planetas giram em torno do sol é um desafio, para dizer o mínimo. Minha estratégia foi exercer controle mental para eu não perder as estribeiras e o emprego e começar a procurar uma outra colocação assim que eu tivesse conseguido beneficiar-me do meu período de trabalho sob as ordens da dita cuja, em termos de aquisição de conhecimentos. E assim eu fiz, e quando disse à Narcisa que eu tinha arranjado um outro emprego, ela sentiu-se traída porque eu ousara procurar sair da sua batuta.
O perigo coletivo em relação aos narcisistas é que a política é um campo que os atrai, por dar-lhes oportunidade de brilhar e de olhar sua imagem refletida nos eleitores que admiram o líder, reforçando assim sua vaidade. Fazendo novamente as devidas ressalvas sobre minha falta de conhecimento especializado sobre psicologia, a leitura do artigo de Alastair Crooke sobre a estratégia adotada pelo primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para lidar com o ataque do Hamas de 7 de outubro, parece apontar para um homem enamorado da ideia que ele faz de si mesmo e que ele pretende colocar em prática.
De acordo com o ex-diplomata britânico, para desviar a atenção dos israelenses da tremenda falha de segurança que permitiu que centenas de membros do Hamas invadissem vários kibutzim e fizessem reféns, Netanyahu quer se colocar como o chefe de guerra que irá concretizar a solução final do problema palestino. Com a ajuda militar dos Estados Unidos, que lhes fornecem as bombas e os mísseis, Netanyahu quer bombardear Gaza de tal maneira que não reste pedra sobre pedra e a vida lá se torne totalmente inviável. Aos palestinos restará morrer se ficarem ou fugirem para algum país árabe vizinho, de forma que o sonho do Grande Israel possa ser colocado em prática.
Crooke chama Israel de escorpião e os Estados Unidos de sapo sobre o qual Israel quer atravessar o rio, tal qual na fábula antiga. E como sabemos, o final não é feliz: o escorpião traiçoeiro pica o sapo, que morre envenenado, e o escorpião acaba morrendo afogado, pois perde a proteção daquele que confiou nele e lhe deu carona apesar da sua peçonha. A ameaça à paz no mundo reside no fato de que se os Estados Unidos continuarem compactuando com o bombardeio de Gaza, fornecendo aos israelenses os meios bélicos para tanto, e assim causando a morte de milhares de civis palestinos, eles perderão toda a credibilidade de que ainda dispõe no mundo e isso pode levar a uma reação por parte dos países árabes, que atuarão militarmente para que a matança não continue.
Dessa forma, os sonhos de grandeza de Benjamin Netanyahu, que quer se tornar o líder que recriou o Grande Israel descrito na Bíblia, podem desencadear um conflito regional e mundial. Qual será o destino deste Narciso? Ele se matará depois de ter causado o sofrimento de muitos, como narra o mito grego? Ou o povo israelense perceberá que o caminho escolhido por ele é inviável no longo prazo e trocará de líder, como eu humildemente fiz na minha vida pessoal? Aguardemos e torçamos para que o desenlace do drama narcísico não ocorra demasiado tarde para os palestinos.