Alguns leitores do Montblatt devem ter reparado que estive ausente da primeira edição do ano do jornal. Tive um começo de ano atribulado que me impediu de realizar minhas atividades rotineiras. Minha mãe, de 78 anos, esteve internada durante cindo dias, vítima de desidratação e pneumonia. Foi um susto danado, porque ela estava na praia e tivemos que trazê-la às pressas para São Paulo, à noite, estava lívida, não falava direito. Tive que dormir com ela no hospital, o que para acompanhantes é um pesadelo, pois como não estamos grogues com remédios, fica difícil ao som das conversas dos enfermeiros que ressoam pelo corredor, das máquinas do hospital que funcionam sem parar. Ao voltar para casa e ter minha primeira noite de sono digno do nome foi um alívio. Alívio maior foi não ter que dar assistência a minha mãe durante a noite.
Sempre que ela é internada, sou assolada por uma angústia que se resume na seguinte pergunta, da qual derivam todas as outras indagações sem resposta: Será que o momento finalmente chegou? Será que a partir de agora minha mãe se tornará eternamente dependente? Será que terei que ajudá-la a ir ao banheiro, colocar-lhe fraldas, ajudá-la a caminhar pelo apartamento, lembrar-lhe de tomar os 13 remédios diários (remédio para pressão, remédio para diabetes, AAS para evitar derrames, cálcio para fortalecer os ossos e impedir que caia de novo e frature o outro fêmur, ou pior, o mesmo, antidepressivo, calmante para dormir)? Será que não mais conseguirá tomar banho sozinha? E a pergunta mais amedrontadora deixo para o final: será que ela está começando a ter sintomas de Alzheimer?
Sei que o tempo não está a meu favor: a cada dia que passa vejo como ela decai, o que em termodinâmica se conceitua como a entropia, isto é a tendência de os sistemas se desintegrarem, caminharem para o caos. Alguns geriatras realmente usam esse termo para se referirem ao que acontece com o ser humano à medida que a idade avança: o sistema, que era perfeito, que se auto-regulava, de repente perde essa capacidade, e começa a falhar em um ritmo cada vez mais alucinante. Se no início é possível substituir as partes com defeitos, gradualmente tais gambiarras vão se tornando inúteis, porque o corpo deixa de apresentar as características de um sistema e simplesmente se desmilingue, como uma Brasília velha que mesmo com o tanque cheio, bem lavada, não dá mais partida: o motor arriou de vez. Shakespeare resumiu esse estado miserável nas Idades do Homem: “Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything…”
Há momentos em que me considero tremendamente azarada por conta disso. Poxa, por que minha mãe não morre de ataque do coração fulminante, depois de uma vida absolutamente saudável? É o que todo mundo deseja no fundo, e não ousa dizer. Aliás, era o que ocorria até há pouco tempo atrás, mas hoje a medicina descartou essa possibilidade para aqueles que têm acesso aos cuidados que a tecnologia nos oferece: exames preventivos e diagnósticos cada vez mais apurados, que permitem que os problemas sejam detectados a ponto de não pegar as pessoas mortalmente desprevenidas, exames que permitem que as pessoas convivam com doenças crônicas por anos a fio, tomando remédios, fazendo fisioterapia, cirurgias que se não cortam o mal pela raiz, ao menos fazem com que o velhinho vá empurrando com a barriga, garantindo que a lenta e inexorável decadência física se desenrole de maneira total.
Outro motivo de irritação para mim é que infelizmente tenho três irmãos homens e todos eles casados. Para se livrarem do fardo de cuidar da minha mãe, implicitamente transferem a responsabilidade para mim, a mulher solteira, ideal para cuidar dela, que pode gastar todo o seu dinheiro e energia com a mãe: pago um convênio médico razoável, os olhos da cara que daqui a dois anos se transformará nos olhos da Medusa quando ela mudar de faixa etária, levo-a a uma geriatra particular porque os médicos do convênio marcam consultas de 15 em 15 minutos o que é o tempo que minha levaria para sair do sofá da sala de espera e conseguir se sentar na cadeira de frente para o médico. Pago um “passeador”, que sai com ela todos os dias, pois ela não consegue mais andar sozinha e sem a ajuda de sua muleta canadense.
Aliás, ela odeia a muleta, que é o símbolo maior da sua humilhação: usar muleta é coisa de velha e ela não quer ser velha. Neste ponto, eu também me sinto particularmente desafortunada. Minha mãe é uma velhinha teimosa, porque mesmo sendo dependente, ela tem imensas dificuldades para seguir recomendações, quer de médicos, enfermeiras ou dos filhos. Teve uma mãe autoritária, filha de um delegado de polícia que esperava os bandidos de carabina na mão na frente de sua casa, e estudou em colégio de freiras onde no banheiro se lia “Deus me vê”. Daí ela ter o instinto de se rebelar contra qualquer tipo de autoridade, mesmo aquelas benignas que só querem ajudá-la em sua via crúcis, e não oprimir-lhe a personalidade como a filha do delegado e as freiras faziam: quanto esforço para convencê-la a usar sapatos que lhe protejam os pés mesmo em casa, quanta argumentação para provar que se ela usar a muleta canadense em casa evitará o risco de cair! E mesmo quando eu a convenço, como eu represento a autoridade repressora, ela faz o contrário do que eu “ordeno” quando estou longe. Anda pelo apartamento se encostando nos móveis, come mais do que deve, etc. Ai de mim com uma mãe assim: recalcitrante, sorvedoura de recursos, minadora dos meus últimos laivos da juventude! Buáááááá!!!!!!!
Mas pensando bem, será que sou tão azarada assim? Ou será que faço parte da normalidade estatística? De acordo com o último censo do IBGE, a população idosa do Brasil é de 21 milhões de pessoas.
Entre 1998 e 2008, a proporção de idosos (60 anos ou mais) aumentou de 8,8% para 11,1% e claro tende a crescer nas próximas décadas, com a diminuição da taxa de natalidade. Ou seja, em todas as famílias brasileiras haverá dramas como o meu, os mais jovens tendo que cuidar dos seus velhinhos. E o fato é que nossa sociedade de consumo nos prepara mal e porcamente para isso.
De fato, como acreditamos que comprando produtos conseguiremos a felicidade permanente por meio da satisfação material, temos muito poucos recursos espirituais para lidarmos com o sofrimento que é próprio da condição humana: não pensamos na morte, que conseguimos adiar, e os médicos nos passam a crença de que se seguirmos suas prescrições nossa velhice será sem atropelos. Nossa mentalidade racionalizadora, nos impede de enfrentar de frente a questão do imponderável, do arbitrário da vida. Lembro-me de uma entrevista da Ala Szerman, que nos tempos do TV Mulher dava dicas de estética. Tinha o supremo bem que uma mulher almeja em nossa sociedade, que era não aparentar a idade que tinha. E orgulhosa deste seu poder, ela não acreditou que pudesse ter um câncer de seio e demorou para perceber os sintomas. Afinal, como ela poderia estar doente se comia de maneira saudável, se praticava exercícios? Que injustiça! Pois é, a vida nos prega peças…
Será um grande desafio para nosso Brasil, país que historicamente nunca teve grande capacidade de poupança e que pelo andar da carruagem nunca irá ter, lidar com o envelhecimento de sua população. Muito pouco desse investimento estrangeiro que está inundando o país por causa do preço do dólar está sendo empregado na produção. Nossa taxa de investimento segue abaixo de 20%, o que nos impede de crescermos mais de 4,5% ao ano. Estamos usando esse dinheiro para consumirmos, sem nos preocuparmos em prover para o futuro, em gerar empregos que criem riqueza que possa nos sustentar quando a crueza da condição humana bater à porta de todos. A previdência, à exceção daquela para os funcionários públicos, não conseguirá prover para os futuros velhinhos, e quem não tiver um filho solteiro como minha mamãe estará em maus lençóis. O jeito é torcer para que os brasileiros se tornem mais precavidos, mais previdentes para evitar que essa bomba relógio exploda. Será possível mudarmos nossa mentalidade imediatista no espaço de uma geração?