Eu deveria então suspender meus cumprimentos à nova liberdade da França até que eu fosse informado de como ela havia sido combinada com o governo; com a força pública; com a disciplina e obediência das forças armadas; com a arrecadação de receitas eficazes e bem distribuídas; com a moralidade e a religião; com a solidez da propriedade; com a paz e a ordem; com os costumes sociais. Tudo isso (à sua maneira) são coisas boas também; e, sem elas, a liberdade não é um benefício enquanto ela dura e provavelmente não durará muito.
Trecho retirado do livro “Reflections on the Revolution in France”, de Edmund Burke (1729-1797), pensador político irlandês
Prezados leitores, Edmundo Burke não é um autor muito conhecido no Brasil, e a razão é simples, ele é um conservador, e o conservadorismo no Brasil tem uma imagem negativa, associado que está sempre à direita, à ditadura, a deixar as desigualdades sociais como estão, etc. Ele é conhecido por ter, no começo da Revolução Francesa, ter-se colocado diametralmente contra ela, porque para ele revoluções eram perigosas, na medida em que as pessoas a quem é dada a liberdade juntam-se e adquirem poder eo que elas farão com esse poder não será algo necessariamente bom. Para Burke ignorar os costumes, asinstituições da sociedade, tentar recomeçar tudo do zero, só daria em violência e tirania, e seu maior trunfo intelectual foi ter previsto esse desdobramento da Revolução Francesa no Reinado do Terror, em que a guilhotina funcionou a torto e a direito.
As palavras de Burke vêm à minha mente quando penso na democracia brasileira, na liberdade que nos foi dada ou que foi conquistada depois do fim do regime militar. Nossa democracia se manifesta a cada quatro anos quando fazemos as tais das escolhas de governadores, deputados, senadorese presidente.Desde a primeira eleição direta que tivemos para presidente em 1989 até agora, tenho a impressão que cada vez mais as opções são desprovidas de sentido. Em 1989 tínhamos o candidato capitalista, Collor, contra o candidato socialista, Lula. Atualmente, estamos em um nível de normalidade em que todos se parecem demais. A demonstração mais cabal disso em minha opinião é que não temos um candidato que defenda tal ideia e outro que seja oposto a ela violentamente. Alguém por acaso vai atacar Lula, ou o Bolsa Família? Alguém vai falar que sediar a Copa foi um erro tremendo, considerando os gastos que vamos ter e que já tivemos,para retornos pífios? Alguém vai se insurgir contra a formação de superávits primários para pagarmos nossas contas em dia? Alguém vai lançar um modelo radicalmente novo para os investimentos em infraestrutura que aumente a oferta de serviços sem onerar demais o cidadão comum? Alguém vai propor um novo pacto federativo, isto é, uma nova distribuição das receitas entre os Estados? Alguém vai propor uma prioridade total em alguma área como fez Cristóvam Buarque em relação à educação quando foi candidato? Alguém vai propor um plano detalhado e factível de como fazer uma reforma tributária relevante, além das meras manifestações vagas daintenção de reunir os “atores da sociedade civil” para discuti-la e blá blá blá?
A resposta é não, pois a palavra da moda nessas eleições será o “microgerenciamento”. Para os homens que fazem a cabeça de Aécio Neves, o problema está em que o governo interfere demais na economia, nos preços, na alocação de capital,eliminando esse intervencionismo exagerado tudo melhorará. O governo cometeu erros no setor energético, antecipando o fim de concessões e causando prejuízos de8 bilhões de reais às distribuidoras. A solução é gerenciar melhor, tomar as decisões corretas, não interferir na segurança jurídica dos contratos com as concessionárias.Em suma, é uma questão de ajuste fino. Para o povão que vota, e que não entende o jargão dos economistas, a coisa provavelmente girará em torno da percepção de quanto dinheiro cada um tem no bolso agora e espera ter no futuro se Dilma ficar ou for defenestrada. Ou então da percepção sobre quem é mais ladrão, ou seja, um embate entre mensalão petista e mensalão mineiro, Alstom versus Petrobrás. Ou sobre quem é mais incompetente, incapaz do tal do microgerenciamento, petistas que criaram o nó da energia, ou os tucanos em Sâo Paulo, que estão raspando o fundo do tacho do Sistema Cantareira.
Alguns dirão que o fato de questões comezinhas serem o cerne da eleição é um sinal de maturidade da sociedade brasileira, que fez uma opção definitiva por um Estado do Bem Estar Social. Mesmo que isso seja verdade, isto é, que tenhamos escolhido a justiça social como valor principal,resta ainda a pergunta de comocolocar essa justiça social na prática, de maneira duradoura. E para isso seria preciso que nossos ilustres candidatos a presidente tivessem resposta a todos os desafios que coloquei acima, algo que passará ao largo da campanha. Para mim essa é a grande disfunção da nossa democracia, o fato de ela se propor grandes objetivos e ser incapaz de propor os caminhos reais, factíveis para colocá-los em prática.
O povo brasileiro instintivamente sabe desse nosso ponto fraco, das frustrações que todos os mandatários de cargos executivos geram no Brasil, e os mais privilegiados procuram o Judiciário como válvula de escape. O STF tem atualmente em sua agenda casos bastante espinhosos, entre os quais a correção de depósitos bancários que sofreram expurgos pelos planos de combate à inflação, e a substituição da TR, taxa referencial do Banco Central, por um índice que reflita melhor a inflação para o reajuste dos depósitos do FGTS. A suprema corte fica entre a cruz e a caldeirinha: como garantir os direitos de poupadores e trabalhadores e ao mesmo tempo a governabilidade? Afinal, se houve tunga na atualização monetária por parte do Executivo, é porque as pessoas que o povo brasileiro elegeu estabeleceram certas prioridades, tiraram dinheiro de uns para dar para outros. Para a correção da injustiça, seria preciso que aqueles que a Caixa Econômica Federal beneficiou com o dinheiro retirado do FGTS devolvessem o que lhes foi dado, ou que pelo menos fossem obrigados a partir de então a não mais se beneficiar de empréstimos pela Caixa. Será possível enfrentar grupos de interesse? Será razoável esperar que o Judiciário compre essa briga em nome dos poupadores e trabalhadores brasileiros? Ou será que caberia a nós brasileiros lutarmos pelos nossos direitos, votando de maneira consciente, fiscalizando o trabalho dos nossos legisladores? Temos capacidade e cultura de organização local para sermos capazes de fazer nossos governantes de fato prestarem contas a nós de maneira cotidiana?
E aqui volto a Edmund Burke, o conservador, para quem a força de uma sociedade está naquilo que ela tem de permanente, que lhe permite enfrentar os desafios. E aplicando os critériosburkianos chego à conclusão que as perspectivas no Brasil não são animadoras. Temos uma política democrática sim, eleições, divisão de poderes, mas nossa cultura, nossas tradições, não têm nada de democrático, pois tendemos a deixar as decisões nas mãos dos “profissionais”, sejam eles o síndico do prédio, o diretor da escola, o prefeito, o governador, Supremo e por aí vai. Enquanto formos assim, a liberdade servirá àqueles que têm poder adquirem mais poder.