Uma professora recém-formada, Maria, imbuída de ideais sobre educar os mais desfavorecidos para tirá-los da marginalização social a que estão condenados pela ignorância e pela falta de qualificação profissional, decide trabalharem um colégio de subúrbio. Em 5 de abril de 2012 às duas e vinte da tarde elaestá iniciando sua aula quando um adolescente de 16 anos, encapuzado,armado de uma soqueira, desfere vários golpes no rosto da professora, que cai no chão sem que nenhum dos alunos tente fazer nada para deter o adolescente.Maria leva 15 pontos e fica 10 dias afastada do trabalho. Descobre-se que na verdade o adolescente tinha feito o serviço a mando de um dos alunos da desafortunada Maria, que havia descoberto que o menino de 14 anos falsificara documentos do colégio utilizando o selo oficial da escola, o que valeu uma punição de seis dias de suspensão. Como represália, o aluno de Maria havia escrito “puta porca” nos muros e nas cadeiras do colégio, apoiado pela mãe que acusava a professora de ser mentirosa. Neste mês demarço finalmente sai o veredito do processo penal: um ano de prisão com direito a sursis. O episódio marca a pequena, e frágil moça de tal forma que ela desiste de dar aulas em escolas de subúrbio.
Prezados leitores, essa pequena história, real, poderia muito bem ter acontecido no em Sâo Paulo ou no Rio de Janeiro, em qualquer escola da periferia ouem uma favela dominada pelo Comando Vermelho. Poderia, mas na verdade ela se desenrolou na França, no Colégio Garcia-Lorca, em Saint Denis. Se quiserem mais detalhes, acessem (http://www.lepoint.fr/invites-du-point/jean-paul-brighelli/brighelli-violence-a-l-ecole-pour-marie-qui-voulait-etre-utile-en-zep-19-03-2014-1802836_1886.php). Estamos acostumados no Brasil com a desvalorização dos professores, com a desestruturação das famílias que gera a violência e a delinquência, com o reflexo desses comportamentos na escola.Mas ouvir falar disso em países do Primeiro Mundo nos causa espanto e dá uma medida do ponto a que chegamos no Ocidente em termos de erosão do conceito de autoridade.
Autoridade tornou-se sinônimo em nossa cultura de algo ruim. No Brasil, uma das heranças da ditadura que se instalou em 1964 foi ter manchado este conceito de maneira indelével: ela é sempre confundida com autoritarismo, com tortura, com violência policial, com arbitrariedades.A relação dos brasileiros com a ideia de polícia é um sintoma disso: é verdade que nossa polícia é muito mal treinada e tende a descer o sarrafo em pretos e pobres. Mas quando ela cumpre seu papel e contém uma baderna ou quando ela é chamada para atuar em uma greve de estudantes privilegiados de universidade pública ela é acusada de agir como na ditadura, como se o policiamento não fosse algo necessário quando aqueles que se acham defensores de causas nobres se excedem.
Em países como a França, que não estiveram sob o jugo de ditaduras, a desconstrução da autoridade é algo devido não a um episódio histórico como um golpe militar, ou a um passado de violência estatal institucionalizada que se quer apagar definitivamente, mas a um desenvolvimentosecular das democracias liberais do Ocidente, fruto do Iluminismo. De acordo com a filósofa Hannah Arendt, em seu ensaio denominado “A Crise na Educação”,tais regimes chegaram a um ponto de amadurecimento em que a autoridade e a tradição são constantemente solapadas em nome dos direitos individuais. Em uma democracia, nenhuma autoridade consegue preeminência, pois ela pode ser rapidamente destruída por uma maioria que a rejeitar. O efeito mais pernicioso desse foco total nos direitos se dá na educação. As crianças aprendem desde cedo que têm direitos, direitos que os pais e os professores, as primeiras fontes de autoridade na vida de uma criança, não podem infringir. Para Hanna Arendt, isso causa um dano psicológico irreparável nos pequenos: tratados como príncipes, eles ficam livres não para transformarem-se em adultos independentes, com força de caráter, mas em seres medrosos à mercê dos seus pares, das outras crianças e adolescentes que exercem controle de maneira tirânica e caprichosa, muito mais tirânica e caprichosa do que uma autoridade individual como a mãe, o pai e o professor fariam. O resultado é que esses príncipes tornam-se escravos do politicamente correto, tímidos demais para divergirem das ortodoxias do momento.
Há outras consequências nefastas dessa educação centrada no desafio constante à noção de autoridade. Isso é verificado em um outro país de Primeiro Mundo com democracia para lá de consolidada, a Suécia. De lá vem o alerta de um psiquiatra de 42 anos, David Eberhard que escreveu um livro, “Como as crianças assumiram o poder” (tradução minha) que denuncia a abordagem educacional focada nas crianças, prevalecente na Escandinávia desde a década de 1960, que transformou o país em uma nação de “ouppfostrade”, que pode ser traduzido como crianças levadas. Para o médico, a falta de disciplina na infância fez com que milhões de suecostenham se tornado indivíduos incapazes de lidar com os desafios da vida adulta, o que é evidenciado pelas taxas acima da média de distúrbios de ansiedade e suicídio entre filhos de pais liberais que não exerciam a autoridade.Essa filosofia permissiva também está presente nas escolas. Eberhard descreve como os professores suecos não podem insistir para que as crianças parem de mexer no celular durante as aulas: eles devem convencê-los de que fazer isso é uma má ideia. Caso tomemo celular sem o consentimento do “príncipe” provavelmente ouvirão um sermão sobre os direitos das crianças.
Eu mesma que não sou mãe já presenciei manifestações desse liberalismo. Tenho uma amiga que tem uma filha única que amava jogar futebol. Sua paixão a levou a romper os ligamentos de um joelho. Eu perguntei-lhe o porquê de ela não proibir a menina de jogar, fazê-la dedicar-se a outra atividade: ela respondeu-me simplesmente que não podia fazer nada, pois a filha gostava dojogo bretão, como diria o Armando Nogueira. Resultado: rompimento dos ligamentos do outro joelho, mais uma operação e aos 20 anos a moça tem dois joelhos imprestáveis que trarão várias sequelas em sua vida futura (aqueles que têm problemas ósseos saberão do que estou falando), pelo fato de que os pais seguem o princípio sacrossanto de que é proibido proibir. Por outro lado, como professora que fui no início da minha vida profissional, vivenciei um episódio que foi um dos motivos por que eu desisti do ensino. Um dia coloquei a mão na cabeça de uma adolescente infernal que não parava quieta e pedi-lhe que trouxesse o livro na próxima aula, coisa que ela não havia feito até então. Ela reclamou com a mãe que eu havia batido sua santa cabecinhana parede e a mãe, furibunda, foi reclamar com a diretora, que não perdeu tempoo em me dar uma “carcada”.
Hanna Arendt alerta que as democracias ocidentais vivem um dilema: por um lado minam suas instituições – família, escola, igreja – por meio dessa condenação geral e irrestrita da autoridade, por outro lado precisam dessas instituições se quiserem sobreviver enquanto sociedades civilizadas. Qual a solução? Ninguém ainda achou uma resposta que permita a Marie, o nome verdadeiro da professora, a voltar a ter fé na sua missão de educadora e voltar à sala de aula do Garcia-Lorca.