Prezados leitores, meu Grand Tour continua. Mas, ao contrário da elite europeia que no século XVIII tinha seu séquito de assistentes para preparar a logística das operações (hospedagem, transporte e alimentação), sou apenas uma garota latino-americana sem parentes importantes, parafraseando a música de Belchior, e por isso sou eu mesma quem tem que se encarregar dos arranjos, aliás compartilho as tarefas com meu companheiro de viagem, responsável pelo transporte e pela programação. O ideal, claro, é sempre ter um orçamento folgado o suficiente para alugar um carro, hospedar-se em hotel, comer em restaurantes, de forma que a diversão seja total. Isso é possível somente a uma pequena minoria de turistas que circulam pelo mundo. A maioria é composta de pessoas de classe média que devem ater-se a um orçamento, que não comporta esses três tipos de luxo, provavelmente apenas um deles.
No meu caso, meu dinheiro permite apenas que uma vez por dia eu coma um lanche fora para matar a fome durante o dia, sempre exaustivo para o turista que anda quilômetros em museus, em parques e pelas cidades. Isso significa gastar no máximo 8 euros por pessoa, ao redor de 27 reais, e preparar a verdadeira refeição em casa, o que significa depois ter de lavar a louça, limpar o fogão, varrer o chão e vocês sabem mais o que. Se fossêmos comer duas vezes ao longo do dia em restaurantes, gastaríamos 30 euros no mínimo por pessoa (o menu turístico mais barato fica em torno de 15 euros ou 51 reais). Gastar 100 reais por dia com comida não dá, além do que passaríamos fome:afinal, este menu turístico nunca é uma lauta refeição de encher a pança. Portanto, leitores, devo confessar a vocês que meu contato com a culinária italiana, ou melhor siciliana, é, e será até o fim da minha viagem, limitado a experimentar os doces divinos de amêndoa e pistache que são a especialidade da região e que são acessíveis ao bolso de uma pobre garota tropical como eu. É uma pena, mas é preciso estabelecer prioridades.
E a prioridade do turista mediano é sempre conhecer o maior número de lugares possível, pelo menos fazer o básico aconselhado pelos guias, o que inclui visitar os locais declarados patrimônio histórico da humanidade. Aqui a dependência de transporte público é muitas vezes frustrante. A Itália está em crise, e por isso cortando gastos. Isso na prática significa que há museus fechados, para grande consternação minha, o museu arqueológico de Palermo, um dos mais importantes do país, está fechado para “reformas” – eufemismo para indicar a falta de dotação orçamentária para mantê-lo aberto –, e pior, sem prazo para voltar a funcionar. Há outros casos de museus fechados, mas o pior de tudo é quando as linhas de ônibus ou trem são desativadas ou simplesmente não existem. Para ilustrar o problema vou contar-lhes o drama turístico por que passei no sábado dia 22.
Seguindo as orientações do Baedecker, tínhamos decidido conhecer Enna, uma cidade situada a 931 metros de altitude com uma vista privilegiada do interior da Sicília. A cidade tem castelos, igrejas e um museu arqueológico ainda aberto ao público. Pois bem, de acordo com as informações que obtivemos em nosso “Rough Guide to Sicily”, haveria um ônibus que passava na estação de trem da cidade, distante 4 quilômetros do centro. Chegamos exatamente ao meio dia em Enna,e para encurtar a história, devo lhes dizer que não há mais linha de transporte ligando a estação à cidade, e só conseguimos chegar a ela duas horas mais tarde, depois de ficarmos andando atarantados pela estrada, ora esperando um quimérico ônibus que nunca vinha e nunca viria, ora pateticamente pedindo carona. Já desacorçoados, decidimos ir andando pela estrada, com o guia na mão, e um homem apiedou-se de dois turistas perdidos recolhendo-nos no seu carro. O pior estava por vir. Ao chegarmos à cidade, como o trem partia às 15:39, decidimos ir atrás de comprar passagem de ônibus para podermos ter mais tempo de conhecer a dita cuja. No entanto, Enna é praticamente morta num sábado à tarde, e a estação de ônibus estava fechada. Quando conseguimos encontrar uma paticceria aberta, quase às três horas, contamos com a ajuda inestimável do dono, que chamou um táxi para nos levar de volta à estação de trem. O taxista explicou-nos que quem manda na cidade não quer que haja turistas em Enna, quer que ela seja unicamente uma cidade dormitório. Será a Máfia que não quer? Pode ser, certamente turistas que dependem de transporte público são banidos, talvez os mafiosos só apreciem turistas finos. No final, gastamos 30 euros de passagem mais 15 de táxi para absolutamente nada, não vimos nenhuma das atrações da cidade. Nosso único consolo foi contemplar da janelado trem a paisagem lindissíma do campo nesse prenúncio de primavera.
Outra grande frustração do turista de orçamento já todo comprometido, como diria um dos nossos tecnocratas, é nem poder chegar a um lugar que o guia coloca como um must. É o caso de Villa Romana del Casale, onde há mosaicos romanos realizados no século III, não se sabe por quem. Simplesmente não há trem ou ônibus de Agringento, onde nós estamos, e que fica próxima à cidade. Os únicos ônibus disponíveis partem de Catânia, a três horas daqui, seria impossível fazermos um passeio de um dia. E mesmo se fosse possível, talvez sacrificássemos os mosaicos para não passarmos de novo por Catânia. Esta cidade, recebeu duas estrelas de um dos nosso três guias e para lá fomos. Qual foi meu choque quando me vi em um lugar que, à exceção da Piazza Duomo, parecia o Pari, um bairro de São Paulo, em que o antigo é sumplesmente decrépito. Tivemos que passar lá um dia inteiro, lamentando a infelicidade de não ter um carro próprio para picar a mula de uma cidade que foi muito bombardeada na Segunda Guerra Mundial e perdeu muito dos seus prédios históricos. Aliás leitores, foi em Licata e Gela, cidades litorâneas que tive o prazer de conhecer nesta última semana, que os Aliados desembarcaram na Itália. Vêem-se ainda algumas casamatas dos alemães nos morros com vista para o mar.
Para finalizar minhas lamúrias, devo dizer que há um lugar a mais que eu sonhara em conhecer, mas que ficará para as calendas, pela falta de transporte próprio. Sou fã do filme O Leopardo, de Luchino Visconti, e estava doida para conhecer o Castelazzo di Montechiaro, em Palma de Montechiaro, construído pelo Príncipe Carlo Tomasi di Lampedusa, antepassado de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o autor do livro. Visconti fez parte das filmagens lá e quando decidi vir para a Sicília, meu primeiro desejo foi entrar na atmosfera do filme e do livro visitando o local. Vão-se os anéis, ficam-se os dedos. Quem sabe minhas frustrações sejam um motivo para voltar aqui em outra oportunidade e preencher as lacunas? Afinal, uma garota latino-americana sem dinheiro no bolso pode se transformar em uma emergente cheia do dinheiro!
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