Aqueles que são bem governados. . .não enchem seus pórticos com normas escritas, mas somente acalentam a justiça em sua alma; pois não é pela legislação, mas pela moral que os estados são bem dirigido
Na semana passada falei de Sócrates, o brasileiro, que apesar de ter sido espinafrado pela Veja na semana passada, recebeu menção honrosa em várias publicações internacionais. O colunista de esportes inglês Roger Alton descreveu o meio-campista brasileiro como mandado por Deus: era de classe média como nós, apreciava Camus e Che Guevara, formou-se médico, usava uma faixa na cabeça com os dizeres: “Não Ao Terror”. Seu corpo se encurvava em um perfeito “S”, sua espinha reta, a cabeça perfeitamente equilibrada, pernas fortes, braços esguios, olhos focados na bola. Um modelo de como um atleta deveria ser, mas no Brasil como temos uma mentalidade coletiva bipolar do tipo sim/não, já que ele tinha laivos de esquerda a Veja considera um imbecil e descreve-o ironicamente do alto das suas certezas ideológicas: “Como pensador era um excelente jogador”. Não estou aqui a julgar os pensamentos de Sócrates, apenas lamento que não sejamos capazes de reconhecer que as pessoas têm defeitos e virtudes. Talvez por isso gostemos tanto de heróis da pátria e vilipendiemos os traidores da pátria.
Nesta semana, começarei com um outro filósofo, Isócrates, orador e retórico ateniense que viveu de 436 a.C. a 338 a.C. Suas palavras, eu as achei em um texto que falava sobre a profusão de leis nos Estados Unidos, o que para o autor era sintoma do esgarçamento do tecido social. Onde as pessoas não se entendem é preciso estabelecer leis repressivas para garantir o poder das elites, que de outro modo, não conseguiriam manter o status quo, já que ele não traz nenhum benefício à população.
Eu poderia falar aqui da miríade de leis, regulamentos, portarias que permite que tenhamos uma carga tributária de 36% do PIB, recorde histórico, que permite que alguns privilegiados juízes do Tribunal de Justiça do Rio ganhem 650.000 reais por mês (levantamento do Conselho Nacional de Justiça), tudo na mais absoluta legalidade, apesar da flagrante injustiça. É claro que nenhum desses nababos responderá a solicitações de esclarecimento, mas se algum dia tiverem que dar explicações à Eliana Calmon, por exemplo, do CNJ, que parece ser uma mulher proba, disposta a fazer uma faxina moral, alegarão direitos adquiridos e citarão as normas legais que aprovam o despautério, dão um jeitinho para que a concepção de teto de salário da Constituição seja flexibilizada de maneira que o salário máximo dos membros do STF seja apenas um trampolim para alavancar os egrégios magistrados rumo ao infinito.
Assim, ao mesmo tempo em que a Justiça presta um péssimo serviço, em que o acesso aos processos é difícil, pois não são digitalizados, em que a celeridade garantida como direito pela Constituição é uma mera quimera, as leis que estabelecem os privilégios dos magistrados são rigorosamente respeitadas, e ai de quem se insurgir contra esse estado de coisas. A noção de que um estado de leis e não de homens é o que de melhor podemos almejar está rigorosamente entranhada entre os bem pensantes: falar mal do Judiciário nesse sentido é falar mal da própria sacrossanta democracia.
E de fato temos seguido celeremente nesta seara legalista. São tantas as normas na Junta Comercial, na Previdência Social, na Receita Federal que no Brasil maior pesadelo do que abrir uma empresa é o de fechá-la, o que demora pelo menos quatro anos para que possamos cumprir todos os ritos. Não admira que a maioria dos empreendimentos abertos feche em menos de doze meses. No campo criminal reformamos o Código em 2009 e agora um ato libidinoso que dá até 10 anos de cadeia inclui desde estupro até um beijo mal dado que não satisfez a vítima e que por isso reclamou na polícia ter sido molestada. Importamos também do primeiro mundo a tendência de tornar comportamentos repreensíveis que ficavam no domínio da moral privada fenômenos públicos, sobre os quais psicólogos, médicos, psiquiatras e claro, advogados, agora nos chamam a atenção constantemente em campanhas de esclarecimento: bullying nas escolas, homofobia, castigo físico, tudo é diagnosticado, publicizado e ostracizado. Alguns dirão que trazer tudo isso à lume é um avanço e permitirá coibir os abusos. A mim me parece um sinal da nossa incapacidade de ter um comportamento minimamente civilizado, que deveria ser corrigido no ambiente familiar, por meio do exemplo dado pelos pais, conversas, que nos permitiriam aprendermos com quem tem mais experiência de vida.
E aqui mora o perigo. Por acaso temos convivência que nos permita respeitar diferenças, negociar para vivermos juntos? O que é o espaço doméstico hoje se não um grupo de pessoas que compartilham o mesmo local físico, mas cada uma na sua baia? Uns na televisão, outros no blackberry, outros no facebook (o Brasil é o país em que as crianças são introduzidas mais precocemente ao maravilhoso mundo dos perfis). Abrimo-nos ao mundo ao clicar de botões, mas é um mundo totalmente sob o nosso controle, em que não há conflito real, em que não há o desgaste de enfrentar outra individualidade cujos valores são diferentes dos seus. Talvez por isso quando saímos do mundo virtual e entramos no mundo real, sejamos tão ingênuos e por conseqüência, tão intolerantes e irredutíveis. Horas e horas cultivando nosso narcisismo em frente ao computador nos faz muitas vezes refratários a aceitar o que não é espelho, o que não se reduz às nossas expectativas abstratas.
Vemos agora a Europa no processo de elaborar mais um tratado, com uma torrente de normas sobre disciplina fiscal e orçamentária para afastar de vez a crise de confiança na capacidade de pagamento dos países da zona do euro. Será que não seria mais eficaz se cada agente econômico, cada governo, cada cidadão respeitasse uma única regra do senso comum, que é a de não viver além das suas possibilidades? Não seria tão mais fácil se cada elemento da sociedade se propusesse seriamente a gastar só aquilo que tem concretamente?
Alguns considerarão minha imprecação contra as leis ingênuas, afinal tudo está cada vez mais complexo, as transações se multiplicam e portanto, há necessidade de regular as relações entre as pessoas. Talvez. Mas não custa sonhar com um mundo em que cada indivíduo colocará em seu coração, para seu próprio bem-estar espiritual, dois princípios simples: cumprir sua obrigação de não causa mal a ninguém de maneira intencional e fazer o bem no limite de suas possibilidades. Quem sabe então uma grande parte das leis se tornaria supérflua?