A Copa e a Olimpíada estão destruindo o Rio
Nereu Cavalcanti, arquiteto e historiador
Bem-Vindo ao Futuro, de Jaron Lanier, vê a tecnologia e a cultura do grátis da internet como ameaça às profissões de classe média
Trecho retirado de O Estado de São Paulo de 20 de janeiro de 2014
Prezados leitores, em um dia desses fui tomar café com uma amiga que tem duas filhas, uma delas de 14 anos. Ela estava bastante chateada porque a filha não conseguira ir bem em um exame de seleção para uma escola técnica. Minha amiga havia nutrido a esperança de que a filha cursasse o ensino médio para que tivesse educação de qualidade e gratuita. Havia 40 vagas e a menina chegou em ducentésimo lugar, portanto seu desempenho esteve muito aquém do mínimo necessário. Eu lhe recomendei então que, em vista da falta de vocação da menina para o estudo, o melhor seria tentar uma vaga de jovem aprendiz em uma empresa, porque a alternativa é ela frequentar a escola particular em que estuda, que não é lá muito boa, e passar as tardes navegando na internet, à cata de fotos, comentários, novidades.
Senti muito por essa minha amiga pois fico imaginando a angústia de uma mãe em relação ao futuro dos filhos. Pertencer à classe média significa, entre outras coisas, estar sempre consciente que a única coisa que podemos dar aos filhos, à falta do capital que se reproduz automaticamente, no círculo virtuoso explicado e denunciado por Marx, é a educação. Eu particularmente não acredito que uma educação cara faça muita diferença para aqueles que estão no extremo da curva, os muito brilhantes e os totalmente incapazes, pois no primeiro caso o indivíduo é capaz de conseguir tudo o que uma boa formação proporciona sozinho e no segundo caso despender dinheiroé inútil. No entanto, para a grande maioria que está no meio, frequentar instituições em que o indivíduo possa ter contato com pessoas que lhe abram portas é sempre útil, independendentemente da formação acadêmica.
O fato é que se o seu filho não tem grandes dotes intelectuais, físicos ou artísticos, em suma se ele é uma pessoa comum,e você não tem condições de permitir-lhe frequentar locais em que ele conheça as pessoas certas, a própria posição de classe média pode ficar ameaçada, se formos levar a sério as previsões catastrofistas que dizem que a tecnologia vai tornar a maior parte das pessoas obsoletas. Sobrarão os muito ricos, que herdaram capital, e os muito talentosos, que conseguirão um lugar ao sol, mesmo que seja à sombra das máquinas.O último relatório da Oxfam parece mostrar isso (digo parece porque estatísticas podem ser enganadoras): as 85 pessoas mais ricas do mundo detêm uma riqueza equivalente àquela de metade da população mundial. Emoutraspalavras, comocantava o finadogrupo ABBA, “The winner takes it all, the looser has to fall”
É o tal do apagão dos empregos, que faz com que tenhamos que correr freneticamente para conseguirmos permanecer no mesmo lugar sem pretensões de nem conquistarmos posições na maratona, mas apenas para continuar competindo. Creio que minha profissão de tradutora, por exemplo, está com os dias contados, o máximo que teremos a fazer em uma década será realizar pequenas correções naquilo que o computador produzir.Tenho tentado me preparar para isso, mas a verdade é nunca sabemos em que ponto o tsunami da mudança tecnológica vai arrebentar com mais força. Considerando minhas habilidades, que não se adaptam muito ao mundoexato e matemático criado pelo desenvolvimento da eletrônica, e o estado da sociedade, em que a instituiçãoque antes era responsável por resolver os problemas, a família, tem hoje uma influência cada vez menor sobre a vida dos seus membros, resolvi que disputas na sociedade cada vez mais passarão pelo Judiciário e apostei nesse ramo.Alia jacta est.
Mas se o espectro do desemprego ocasionado pela obsolescência ronda todos os quadrantes do mundo, nós no Brasil temos adicionalmente outro tipos de medo. Temos o apagão de planejamento, em que as megacidades comoRio e São Paulo estão cada vez mais sufocadas pela facilidade de carros vendidos com IPI reduzido, produtos vendidos no crédito que sujam nossas ruas e enchem nossos aterros e ferros-velho, e pelas dificuldades representadas pela falta de políticas públicas que enfoquem de fato o bem comum e não simplesmente o crescimento econômico de curto prazo, as próximas eleições, a próxima Copa e as próximas Olimpíadas.Por falar nos mega eventos, por acaso vocês não têm medo do quanto vai de fato nos custar esta Copa, depois de feitas todas as contas e adicionados todos os gastos emergenciais? Vocês não têm medo de ver na televisão jogos de menor importância com público mínimo, o que provará que os gringos não vieram (77% dos ingresso vendidos froam para brasileiros até agora)? Vocês não têm medo do que vai ser dessas arenas em alguns anos, passado o torneio? Confesso que tenho medo de tudo isso.
Não poderia deixar de mencionar o apagão primordial, aquele que deu origem ao uso metafórico do termo apagão para conotar situações de grande deficiência em determinadas áreas. O apagão elétrico, ocasionado pelas baixas chuvas, que fazem com que os reservatórios das hidrelétricas estejam baixos e tenhamos que recorrer às termoelétricas. Tenho medo do quando e em que medida o maior custo da energia será repassado a nós pobres consumidores. Para não falar do meu medo de racionamento de água, em São Paulo, diante do calor infernal e da falta de uso racional de um recurso cada vez mais escasso, em umacidade em que as pessoas teimam em usar o esguicho como vassoura hidráulica.
Prezados leitores, diante desse rol de fobias que eu coloquei aquivocês devem estar se perguntando se isso não passa de um mero expediente estilístico e eu lhes respondo que não, decididamente tenho medo de tudo isso. O meu consolo é que sempre procuro dar aos meus medos uma finalidade e assim acabo adotando a filosofia do engenheiro Edward Alvar Murphy Jr. que deu o nome à famosa Lei de Murphy. Para ele, era importante sempre adotar como premissa que o pior dos cenários vai se concretizar para que assim possamos estar sempre preparados e ao fim e ao cabo nada saia de errado. Quero crer que explorar o que pode acontecer de catastrófico conosco enquanto indivíduos e enquanto sociedade, por mais que o que de fato acontece nunca seja tão ruim quanto vislumbramos em nossas previsões, possa nos ajudar a preparar melhor o futuro. Portanto, sempre quando eu der vazão aos meus medos neste espaço saibam que o faço para levá-los a pensar sob um ponto de vista que não tinham abordado. Medos: se não tê-los, como fazer com que trabalhem a nosso favor?