Quem me dera que a minha vida fôsse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para deonde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperança – tinha só que ter rodas…
16º poema de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caieiro, persona poética de Fernando Pessoa
Minhas amigas não sabem, mas eu tenho um interesse velado em conversar com elas, interesse que não revelo porque ele poderia ser mal visto e até causar ressentimentos. Gosto de ouvi-las falar para fazer observações e tirar minhas próprias conclusões. Essas conclusões sempre me são úteis para eu escrever no meu humilde espaço. Se eu fosse absolutamente honesta eu deveria até pagar uma comissão a elas porque contribuem para o meu trabalho intelectual, mas como eu não recebo nada para escrever, também não tenho como dar-lhes nada.
Será a terceira vez seguida que uma determinada amiga minha me serve de fonte de inspiração. Quem me acompanha sabe que ela iria afogar as mágoas em Nova York enfiando o pé na jaca nas compras e sabe que o irmão dela morreu em um acidente, acidente este que adiou a sonhada viagem. Adiou, mas não abortou, aliás, só reforçou o acerto da decisão de tomar um empréstimo no banco a ser pago durante os próximos meses para financiar a viagem. Afinal, é preciso aproveitar a vida, porque a morte é certa. Num café de despedida, ela revelou-me uma crise existencial sobre a compra do I-phone. Não queria gastar muito, mas queria comprá-lo, afinal não pode perder a oportunidade: na verdade dois, um para cada filha, que estão com I-phones 3, já bastante desatualizados.
Com certeza, é uma oportunidade imperdível. O Brasil tem o I-phone mais caro do mundo segundoo site Bloomberg: US$1.016,74, ao passo que nos Estados Unidos o preço é de US$649. E hoje quem não tem um I-phone é alguém deveras esquisito, como aquele que não tem perfil no Facebook. São realidades da vida, fatos inquestionáveis (como ouvi em uma palestra corporativa outro dia), não dá para negar, não dá para estar fora do mundo.
Eu consigo ver algum sentido nessas odes à modernidade em países que já chegaram lá em termos de proporcionarcondições decentes de vida à maioria da população. Afinal, quem usa um I-phone e sabe explorar todas as mil e uma utilidades pode até ganhar dinheiro. Outro dia um taxista informou-me que agora ele consegue pegar passageiros por meio de um aplicativo que permite aos usuários da invenção genial de Steve Jobs localizarem um táxi disponível nas proximidades. Para o taxista, principalmente para aqueles que não têm ponto e não querem pagar comissão para uma empresa de rádio-táxi, é uma grande vantagem econômica. Para os usuários, também representa economia de custo, pois não precisam ligar para alguém lhes arranjar um táxi. Eu seria idiota se achasse que o I-phone é uma engenhoca inútil. Para turistas que querem conhecer os pontos principais de uma cidade e estão perdidos, nada como ter mapas facilmente acessíveis pelo simples toque digital. Isso economiza tempo e tempo, mesmo tempo de lazer, é sempre dinheiro.
O que me incomoda no I-phone é o quanto ele revela em nosso Brasil varonil essa nossa triste sina de queimar etapas, de colocar o carro adiante dos bois. Esta minha amiga vai a Nova York para entre outras coisas comprar um I-phonee ao mesmo tempo está se endividando perigosamente, quando se considera que ela não tem emprego fixo, e portanto não tem renda garantida. Outro dia ouvi duas mulheres no metrô, mulheres que via-se serem simples, conversando: uma delas dizia que iria abrir crédito nas Casas Bahia para comprar um celular, porque não “tinha mais condições de não ter um celular”. Lembro até hoje de quanto fui ridicularizada por uma conhecida a respeito do meu celular Nokia de 100 reais. Ela insistia para que eu comprasse um celular decente e eu pensava com meus botões que eu preferia ser uma sem celular do que ser uma criatura como ela que vivia de vender biscoitos em feira e tinha os dentes amarelos típicos de quem só frequenta o dentista quando está com o canal supurado. Mas eu fiquei quieta, porque se eu lhe falassse algumas verdades ela se sentiria humilhada e eu não vi razão de ser tão cruel. Tenho segurança suficiente para não me ofender com bobagens como essa quando me acusam de ser retrógrada.
Endividamo-nos sem poder para comprar os símbolos da modernidade, mas fazendo isso ficamos cada vez mais longe da verdadeira modernidade. O governo, de olho nas eleições, vai prorrogar a isenção do IPI para carros, para garantir as vendas e os números do PIB a serem mostrados nos famigerados programas eleitorais. Pensamos na turbinada temporária do PIB e esquecemos de uma visão de longo prazo: será que o estímulo aos carros é viável sob o ponto de vista da mobilidade urbana? Será que os congestionamentos causados pelo excesso de carro nas ruas no final causam mais perdas do que os ganhos causados pelo aumento das vendas? Será que a maior poluição, o número de negócios perdidos devido ao tempo gasto pelos motoristas parados dentro dos carros, não tiram muito mais pontos do PIB do que aqueles adicionados pela indústria automotiva? Enquanto isso, a bicicleta, um meio de transporte típico dos muito pobres, é totalmente desestimulado, em vista da alta carga tributária (40,5% contra os 32% dos carros) e dos altos preços das peças, o que faz com que uma bicicleta custe R$ 640 reais no Brasil e R$ 286 reais nos Estados Unidos. Ainda cultivamos a mística dos anos 50 de que fabricar carros é algo moderno, é algo que mostra que progredimos.
E assim caminhamos de arroubos em arroubos, até o carro sem bois descarrilar. Nesta semana o grupo OGX do senhor Eike Batista entrou com pedido de recuperação judicial. De acordo com Dilma Rouseff “Eike era o nosso padrão, a nossa expectativa e sobretudo, o orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado.” Concordo com Dona Dilma em gênero, número e grau. Como não concordar, Eike é o padrão, ele reflete a média da mentalidade brasileira de ser incapaz de construir o futuro pela obstinado trabalho no presente, de gastar o que não temos: o negócio do seu Eike era vender possibilidades como realidades, projeções como fatos, usufruindo sem ter ainda nada de palpável. Seus executivos se deram muito bem, alguns vendedores do futuro saíram com bônus de 200 milhões de reais. Quem ficou com a dura realidade das dívidas, das ações que viraram pó nas mãos dos investidores, que apague a luz.
Quem sabe um dia nós brasileiros deixemos de querer ser modernos a todo custo e simplesmente sigamos o conselho do poeta, puxando nosso carro de boi lenta e inexoravelmente, sem ansiedades, sem atropelos, sabendo que um dia chegaremos lá?