O espaço público não é espaço do sentimento, da subjetividade, do “eu quero”. Ele tem instâncias onde os interesses individuais são apresentados, por mais conflitantes que sejam, e a coletividade delibera o sentido do interesse coletivo. Os “vencidos” devem então seguir o que foi decidido como interesse público, ainda que desejassem que as coisas ocorressem de outra forma.
E-mail de um aluno de Direito
Prezados leitores, para quem acompanhou minhas agruras acadêmicas na semana passada, dou um desfecho a elas citando as palavras de um colega meu de faculdade, a respeito da greve que os alunos fizeram por um mês. Para ele, os anti-greve deveriam se submeter à vontade coletiva, decidida por uma minoria de um quinto do corpo discente, e parar de organizar aulas em espaços alternativos, como eu estava fazendo. Eu percebi que não adiantava discutir com uma pessoa que tinha valores tão diferentes dos meus. Para mim essas bonitas palavras de submissão da vontade individual ao interesse coletivo não passam de coletivismo, e eu não acredito nisso, como aliás já expus nesse espaço. Sou a favor da meritocracia, da liberdade individual de buscar sua própria felicidade. Levando essa teoria coletivista às últimas consequências chegamos à situação de colocarmos o ser humano como mero instrumento de teorias políticas e econômicas e da vontade do Estado que tenta aplicar tais teorias. O resultado é termos Pol Pot, Stalin, Mao Zedong ditando nossas vidas.
Por isso é que, se eu estivesse presente ao final da Segunda Guerra Mundial, eu teria ficado muito feliz com a vitória dos Estados Unidos, afinal àquela época era um país em que o ideário capitalista era colocado em prática. E de fato quem quer que fosse contrário ao comunismo, ao socialismo, ao maoísmo e todas as tentativas de moldar o ser humano à imagem de uma abstração, voltava os olhos aos americanos. Os Estados Unidos eram então um império benigno, por assim dizer. Benigno porque elem estavam do lado certo em termos morais para aqueles que compartilhavam os valores relativos à liberdade de escolha individual. Mas claro que seu lado império o fazia sempredefender seus interesses ferozmente.
O Plano Marshall pode ter ajudado a Europa a se recuperar economicamente do desastre bélico, mas foi antes de tudo uma maneira de os americanos garantirem mercados consumidores, como aliás qualquer ajuda que os EUA dão a qualquer país do mundo, por mais pobre que seja. O império dá umas migalhas apenas para reforçar sua própria posição. Nós da América Latina não fomos particularmente agraciados com migalhas, talvez por não termos a importância estratégica da Europa e da Ásia.
De fato, os Estados Unidos não intervieram aqui para fazer reforma agrária como fizeram no Japão, não abriram seus mercados para produtos manufaturados como fizeram com a China, o que foi um dos fatores que permitiram ao Império do Meio tornar-se em 30 anos uma potência industrial. A única preocupação do Tio Sam foi impedir que nós latino-americanos adotássemos governos alinhados com a União Soviética e daí a Operação Condor e todos os esforços feitos para que qualquer laivo esquerdista fosse exterminado. A respeito desse assunto, o documentário sobre o Jango e a conspiração para assassiná-lo é uma ótima fonte de informação.
Alguns ao lerem essas linhas considerarão que estou sendo inconsistente, afinal eu bato no peito dizendo que não acredito nos ideais de esquerda e depois reclamo do esforço sistemático dos EUA e dos seus aliados na América Latina para destruir a esquerda . Explico-me, antes que me acusem de autoritária e egoísta, como fez meu colega citado acima. As nossas ditaduras de direita, no mais das vezes, longe de estabelecerem condições para que o capitalismo frutificasse e democratizasse a criação de riqueza, tal como preconizava a Margaret Thatcher, só fez nos encher de monopólios, cartéis e pouco fez para aumentar a qualidade de vida do povo. Em suma, os governos de direita apoiados pelos Estados Unidos não foram capazes de tornar Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil, para citar alguns exemplos, países em que a classe média fosse predominante, muito ao contrário.
Feitas todas essas ressalvas à atuação americana no mundo durante a Guerra Fria, é preciso reconhecer que havia uma certa consistência. Os Estados Unidos lutavam contra o comunismo em todas as suas formas e nisso residia a credibilidade de sua política externa para aqueles que eram a favor do capitalismo. Mas no mundo pós Guerra Fria e pós 11 de setembro, em que o alvo não são os comedores de criancinhas mas os terroristas, está tudo embaralhado e acredito que nesta confusão os americanos deixaram de ser o império benigno e se tornaram o Império do Mal. Porque se antes a predominância americana poderia ser vista como um mal menor, hoje fica difícil sustentar tal posição. Qual o mal maior, os terroristas? Os islâmicos?
Afinal quem são os terroristas? A Al Qaeda era o grupo maligno que foi responsabilizado pelo 11 de setembro e hoje faz parte do grupo dos rebeldes que os Estados Unidos apóiam contra o ditador Assad da Síria. Terroristas eram os chechenos que invadiram a escola em Beslan na Ossétia do Norte em 2004. Àquela época os Estados Unidos respaldaram a ação das forças especiais russas que acabou precipitando a morte de 344 pessoas, pois afinal era preciso uma postura firme contra os terroristas. Hoje Vladimir Putin é demonizado como autoritário por ser contra a derrubadade Assad, que luta contra seus próprios rebeldes.
Ao menos o líder russo, por mais adepto das lições maquiavélicas de como manter o poder que possa ser, é coerente. Ele prefere a ditadura do líder sírio para que as rédeas do Estado não caiam nas mãos dos jihadistas, que compõem uma parte dos que lutam contra o governo constituído. Por acaso não poderiam ser denominados de terroristas também? Aliás, Putin é tão consistente nas suas idéias sobre a importância de um governo forte e estável que se recusou a aceitar as ofertas tentadoras feitas pelo chefe da inteligência saudita, Príncipe Bandar, que propôs a formação de um cartel de petróleo com a Rússia em troca de o homofóbico Putin abandonar Assad à sua própria sorte. Para quem quiser detalhes dessa reunião, http://www.telegraph.co.uk/finance/newsbysector/energy/oilandgas/10266957/Saudis-offer-Russia-secret-oil-deal-if-it-drops-Syria.html
Essa consistência de princípios, para o bem e para o mal,não pode ser aplicada aos Estados Unidos. Há um tal comportamento errático dos americanos que fica difícil acreditar nas mais recentes justificativas para uma nova guerra. O Egito ficou sob o jugo de Hosni Mubarak por 30 anos, com o beneplácito dos Estados Unidos que davam e dão uma ajuda anual de 1,5 bihão de dólares a um regime que usava como um dos instrumentos de coação de dissidentes estuprar familiares deles em sua presença. Até que os yankees deixaram que Mubarak caísse, porque afinal os Estados Unidos promovem a democracia. Os egitos elegeram Morsi da Irmandade Muçulmana e o que era bom ficou ruim. Democracia em que os islâmicos têm poder não serve, então deruba-se Morsi. Portanto a luta pela democracia não é o que move a política externa americana atualmente.
Agora o Prêmio Nobel da Paz diz que não pode aceitar que crianças sejam vítimas de armas químicas e portanto vai atacar a Síria. E desde quando os Estados Unidos são paladinos das criancinhas? Afinal pequenos palestinos morrem aos montes quando Israel usa suas bombas cluster e fósforo branco nos seus ataques em Gaza, e os americanos não falam nada. A Guerra do Congo se arrasta desde 1998 sem que ao menos haja uma estimativa confiável do número de mortos, e os Estados Unidos não pensaram em intervenção. E como pode haver tanta certeza que Assad é o responsável pelo uso do gás sarin? Não seria mais sensato esperar que os inspetores da ONU fizessem uma avaliação e apurassem as responsabilidades antes de partir para a agressão?
Tempos perigosos estes, em que não sabemos ao certo por que o Império Americano luta. Democracia não é, direitos humanos não é, é um ser mutante chamado terrorismo que muda conforme as conveniências daqueles que querem destruir os que se opõem ao seu poder. Podemos estar à beira de uma guerra nuclear e ao contrário dos tempos da Guerra Fria ficará difícil decidirmo-nos por um lado ou pelo outro.